Sobre o Estado

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SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAÇÃO E ALGUNS PROBLEMAS CONCEITUAIS UMA VISÃO LATINO-AMERICANA COM UMA RÁPIDA OLHADA EM ALGUNS PAÍSES PÓS-COMUNISTAS Guillermo O'Donnell* Tradução do inglês: Otacílio Nunes RESUMO A maioria dos países recém-democratizados não parece estar caminhando para o estabeleci- mento de regimes políticos institucionalizados. Embora essas novas democracias sejam poliarquias — conforme a definição clássica de Robert Dahl —, são um tipo diferente de poliarquia, ainda não teorizado. Este artigo pretende contribuir para essa teorização, tomando como referência a Argentina, o Brasil e o Peru. A partir de uma discussão do conceito de estado, o autor procura estabelecer ligações entre certas características de muitos países recém- democratizados — a alta heterogeneidade territorial e funcional de seus estados e de suas ordens sociais — e o tipo de democracia neles existente. Palavras-chave: estado; teoria do estado; democracia; cidadania; redemocratização; institucio- nalização. SUMMARY Most of the recently democratized nations do not seem to be moving towards the establishment of institutionalized political regimes. While these new democracies are polyarchies — following Robert Dahl's classic definition — they represent a different sort of polyarchy that has not yet been the object of theoretical scrutiny. This article intends to contribute to this theorization, taking Argentina, Brazil and Peru as points of reference. Based on a discussion of the concept of the state, the author seeks to establish connections between certain characteristics present in many of the recently democratized countries — the high degree of territorial and functional heterogeneity of their states and social orders — and the type of democracy they have. Keywords: state; theory of the state; democracy; citizenship; redemocratization; institutionali- zation. Uma advertência introdutória Devo advertir o leitor desde o início. O presente texto contém idéias que estão desenvolvidas de forma sumária. Estou escrevendo um livro no qual es- tas e outras idéias, e seus referentes empíricos, são tratados de modo mais apro- priado. Decidi publicar este texto depois que a gentil insistência de vários cole- gas me persuadiu de que faria sentido oferecer à discussão, mesmo em sua forma atual, minhas visões sobre temas e problemas que penso terem sido ne- gligenciados, com alto custo, nos estudos existentes sobre democratização. (*) As idéias aqui apresentadas devem muito às reuniões e in- tercâmbios intelectuais do pro- jeto "East-South System Trans- formation", financiado pela MacArthur Foundation. Sou par- ticularmente grato ao diretor desse projeto, Adam Przewor- ski, por suas numerosas críti- cas e sugestões extremamente úteis. Algumas das idéias deste texto foram inseridas e aprimo- radas por Przeworski em um volume (Sustainable democra- cy, no prelo) do qual ele é o principal autor. Apresentei uma versão prévia deste texto no encontro sobre "Democra- JULHO DE 1993 123

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  • SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAO E ALGUNS

    PROBLEMAS CONCEITUAIS UMA VISO LATINO-AMERICANA COM UMA RPIDA OLHADA

    EM ALGUNS PASES PS-COMUNISTAS

    Guillermo O'Donnell* Traduo do ingls: Otaclio Nunes

    RESUMO A maioria dos pases recm-democratizados no parece estar caminhando para o estabeleci-mento de regimes polticos institucionalizados. Embora essas novas democracias sejam poliarquias conforme a definio clssica de Robert Dahl , so um tipo diferente de poliarquia, ainda no teorizado. Este artigo pretende contribuir para essa teorizao, tomando como referncia a Argentina, o Brasil e o Peru. A partir de uma discusso do conceito de estado, o autor procura estabelecer ligaes entre certas caractersticas de muitos pases recm-democratizados a alta heterogeneidade territorial e funcional de seus estados e de suas ordens sociais e o tipo de democracia neles existente. Palavras-chave: estado; teoria do estado; democracia; cidadania; redemocratizao; institucio-nalizao.

    SUMMARY Most of the recently democratized nations do not seem to be moving towards the establishment of institutionalized political regimes. While these new democracies are polyarchies following Robert Dahl's classic definition they represent a different sort of polyarchy that has not yet been the object of theoretical scrutiny. This article intends to contribute to this theorization, taking Argentina, Brazil and Peru as points of reference. Based on a discussion of the concept of the state, the author seeks to establish connections between certain characteristics present in many of the recently democratized countries the high degree of territorial and functional heterogeneity of their states and social orders and the type of democracy they have. Keywords: state; theory of the state; democracy; citizenship; redemocratization; institutionali- zation.

    Uma advertncia introdutria

    Devo advertir o leitor desde o incio. O presente texto contm idias que esto desenvolvidas de forma sumria. Estou escrevendo um livro no qual es-tas e outras idias, e seus referentes empricos, so tratados de modo mais apro-priado. Decidi publicar este texto depois que a gentil insistncia de vrios cole-gas me persuadiu de que faria sentido oferecer discusso, mesmo em sua forma atual, minhas vises sobre temas e problemas que penso terem sido ne-gligenciados, com alto custo, nos estudos existentes sobre democratizao.

    (*) As idias aqui apresentadas devem muito s reunies e in-tercmbios intelectuais do pro-jeto "East-South System Trans-formation", financiado pela MacArthur Foundation. Sou par-ticularmente grato ao diretor desse projeto, Adam Przewor-ski, por suas numerosas crti-cas e sugestes extremamente teis. Algumas das idias deste texto foram inseridas e aprimo-radas por Przeworski em um volume (Sustainable democra-cy, no prelo) do qual ele o principal autor. Apresentei uma verso prvia deste texto no encontro sobre "Democra-

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  • SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAO E ALGUNS PROBLEMAS CONCEITUAIS

    Dado o carter deste texto, limitei as citaes ao mnimo necessrio; os argu-mentos que apresento aqui se baseiam em vrias correntes da literatura e mui-tas contribuies valiosas s quais farei a merecida justia em meu livro.

    1. O estado e as novas democracias

    Nas duas ltimas dcadas, a queda de vrios tipos de sistemas autoritrios levou ao surgimento de numerosas democracias. Essas so democracias; so democracias polticas ou, mais precisamente, de acordo com a formulao clssica de Robert Dahl1, so poliarquias. Diversas contribuies mostraram que h vrios tipos de poliarquia. Elas diferem, como Arendt Lijphart2 mostrou pioneiramente, at mesmo em dimenses to importantes como se se baseiam em regras majoritrias ou em regras mais consensuais para o acesso a e o exerccio da autoridade pblica. Mas esses tipos compartilham uma caracterstica crucial: todos eles so demo-cracias representativas institucionalizadas. Em contraste, a maioria dos pases recm-democratizados no est mudando para um regime democr-tico institucionalizado, nem provvel que venha a faz-lo no futuro previsvel. Eles so poliarquias, mas de um tipo diferente. Esse tipo no foi teorizado. O presente texto uma tentativa preliminar de contribuir para essa teorizao3. Esse exerccio pode ser justificado por duas razes. Primeiro, para ser satisfatria, uma teoria da poliarquia deveria abranger todas as democracias (polticas) existentes, e no apenas as representativas e institucionalizadas. Segundo, como muitas das novas democracias tm uma dinmica poltica peculiar, no se deveria supor que seus impactos societais sero similares queles das poliarquias representativas institucio-nalizadas, presentes e passadas4.

    Por outro lado, as tipologias recentes das novas democracias, basea-das em caractersticas do regime autoritrio precedente e/ou nas modalida-des da primeira transio tm pouco poder preditivo no que concerne ao que acontece depois da instalao dos primeiros governos eleitos demo-craticamente. Quanto aos pases que so nossa preocupao central aqui Argentina, Brasil e Peru , o primeiro foi um caso de transio por colapso, enquanto o segundo foi a transio mais protelada e provavel-mente mais negociada (apesar de no pactada formalmente) que conhece-mos; por outro lado, a Argentina e o Brasil tiveram regimes burocrtico-autoritrios exclusionrios, enquanto o Peru constituiu um caso de popu-lismo militar-autoritrio incorporador. A despeito dessas e de outras diferenas, hoje parece claro que no perodo posterior ao estabelecimento da democracia esses pases (assim como o Equador, a Bolvia, a Repblica Dominicana e as Filipinas, todos os pases democratizados ou liberalizados da sia e da frica orientais, e a maioria dos pases ps-comunistas) compartilham caractersticas importantes, todas elas convergindo para sua situao "no institucionalizada"5.

    cy, Markets and Structural Re-forms in Latin America", patro-cinado pelo North-South Cen-ter e pelo CEDES, realizado em Buenos Aires, em maro de 1992, e no encontro sobre "Eco-nomic Liberalization and De-mocratic Consolidation", patro-cinado pelo Social Science Re-search Council (SSRC), para o projeto "Democratization and Democratic Economic Reform", realizado em Bolonha-Forli, em abril de 1992. Sou grato pelos muitos comentrios teis recebidos durante esses encon-tros, inclusive os de Carlos Acua, Eduardo Gamarra e Wi-llam Smith, codiretores do pri-meiro projeto mencionado. Devo agradecimentos especi-ais a Laurence Whitehead, di-retor do projeto do SSRC, no s por suas teis crticas e su-gestes mas tambm por seus generosos esforos de tomar o presente texto razoavelmente legvel que ele no tenha sido totalmente bem-sucedido no certamente sua culpa. Agradeo tambm a meus co-legas do Cebrap e do Kellogg Institute por vrias discusses esclarecedoras.

    (1) Especialmente Dahl, Ro-bert. Polyarchy. Participation and opposition. New Haven: Yale University Press, 1971.

    (2) Lijphart, Arend. "Consotio-nal democracy". World Politics, January 1968, pp. 207-25; Idem. Democracies. Patterns of majo-ritarian and consensus govern-ment in tewnty-one countries. New Haven: Yale University Press, 1984.

    (3) Alm de seu carter muito sinptico, este texto tem uma limitao importante: no trato diretamente de fatores interna-cionais e transnacionais, ape-sar de muitas vezes eles faze-rem parte implicitamente de minhas argumentaes.

    (4) Uma limitao decorrente de eu no tratar diretamente de fatores internacionais, e ape-nas muito de passagem dos histricos, que no terei con-dies de discutir aqui uma suposio que s vezes apare-ce na literatura: a de que as novas democracias esto "ape-nas" atravessando estgios que as democracias institucionali-zadas j atravessaram.

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    Em relao a esses pases, a literatura existente no foi muito alm de indicar quais atributos (representatividade, institucionalizao etc.) eles no possuem, juntamente com uma descrio de suas vrias desventuras polticas e econmicas. Essas contribuies so valiosas, mas no so capazes de fornecer as chaves tericas de que precisamos. Alm disso, a caracterizao desses casos pela ausncia de certos atributos pode implicar uma teleologia que impediria uma conceitualizao adequada dos vrios tipos de democracia que tm surgido. Outras correntes da literatura, mais voltadas para as polticas e a "elite", fornecem conselhos teis para a democratizao dos lderes polticos, mas a praticabilidade de tais prescri-es depende da situao contextual na qual esses lderes se encontram.

    Embora para as democracias liberais "normais", ou poliarquias, a bagagem conceitual da cincia poltica possa ser satisfatria, me convenci de que para analisar a presente situao e as perspectivas da maioria das novas democracias na sia, na frica, na Amrica Latina e na Europa central/oriental, devemos retroceder e fazer um trabalho bsico em sociologia poltica e legal. Neste texto a discusso ter como principais referentes a Argentina, o Brasil e o Peru, mas acredito que muitas das questes de que tratarei aqui tm aplicabilidade mais ampla. Dentro do espao disponvel, apontarei brevemente semelhanas ou convergncias com outros pases que considero particularmente intrigantes.

    A anlise que se segue tem como premissa um aspecto: os estados se entrelaam de modos diferentes e complexos com suas respectivas sociedades. Esse encaixe acarreta que as caractersticas de cada estado e de cada sociedade influenciam fortemente as caractersticas da democra-cia que ter a probabilidade (se tiver alguma) de se consolidar ou meramente durar ou, finalmente, fracassar. Essas asseres so muito bvias, mas no pesquisamos suficientemente suas implicaes em ter-mos da problemtica da democratizao. A razo , em parte, o fato de lidarmos com conceitos (especialmente o de estado) que, do modo como so formulados pela maior parte da literatura contempornea, no so muito teis para nosso tema.

    um erro reificar o estado; isto , ver como uma coisa s o estado e o aparelho do estado (ou, equivalentemente, o setor pblico, ou o agregado das burocracias pblicas). Estas, inquestionavelmente, fazem parte do estado. Mas o estado tambm, e no menos fundamentalmente, um conjunto de relaes sociais que estabelece uma certa ordem, e em ltima instncia a sustenta com uma garantia coerciva centralizada, sobre um dado territrio. Muitas dessas relaes so formalizadas em um sistema legal criado e sustentado pelo estado. O sistema legal uma dimenso constitutiva do estado e da ordem que ele estabelece e garante sobre um dado territrio. Essa ordem no uma ordem igualitria e socialmente imparcial; tanto no capitalismo como no socialismo burocrtico ela susten-ta, e ajuda a reproduzir, relaes de poder sistematicamente assimtricas. Mas uma ordem, no sentido de que mltiplas relaes sociais esto comprometidas com base em normas e expectativas estveis (embora no n

    (5) Em outro trabalho ("Dele-gative democracy?". Working Paper n 172. Kellogg Institute, maro 1992 [trad. bras.: "De-mocracia delegativa?". Novos estudos n 31, outubro 1991]) chamei esses casos de "demo-cracias delegativas", para con-trast-las com as democracias institucionalizadas (ou, o que equivalente, consolidadas ou estabelecidas ou representati-vas, ou, como veremos, libe-rais). Com o termo "delegativa" aponto para uma concepo e prtica do Executivo como ten-do recebido por meio de elei-es o direito de fazer o que lhe parecer adequado para o pas. Tambm argumento que as democracias delegativas so inerentemente hostis aos pa-dres normais de representa-o nas democracias estabele-cidas, criao e fortalecimen-to de instituies polticas e, especialmente, ao que deno-mino "controle horizontal so-bre a atividade dos represen-tantes" [horizontal accounta-bility-N.T.]. Entendo por isso o controle cotidiano da validade e da legalidade das aes do Executivo por outros rgos pblicos que so razoavelmen-te autnomos do primeiro. Alm do mais, como veremos, o componente liberal dessas democracias muito fraco. Al-guns autores tendem a confun-dir a democracia delegativa com o populismo; ambos, cer-tamente, compartilham carac-tersticas importantes. Mas, pelo menos na Amrica Latina, o populismo acarretou uma am-pliao (ainda que controlada verticalmente) da participao e da organizao poltica po-pular, e coexistiu com pero-dos de expanso dinmica da economia interna. A democra-cia delegativa, ao contrrio, ten-ta tipicamente despolitizar a populao, exceto durante bre-ves momentos nos quais de-manda seu apoio plebiscitrio, e coexiste atualmente com pe-rodos de grave crise econmi-ca. Embora meu texto anterior fosse basicamente um exerc-cio tipolgico, neste observo alguns processos societais que parecem estreitamente relacio-nados ao surgimento e ao fun-cionamento das democracias delegativas.

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    necessariamente aprovadas). Em um desses momentos em que a lingua-gem comum expressa as relaes de poder nas quais ela prpria est embutida, quando as decises so tomadas no centro poltico (as "ordens dadas"), essas decises normalmente "do ordem", no sentido de que esses comandos so obedecidos regularmente. Essa aquiescncia afirma e reproduz a ordem social existente. As relaes sociais, inclusive as da aquiescncia cotidiana, pr-consciente autoridade poltica, podem se basear, como Weber argumentou, na tradio, no medo de punio, no clculo pragmtico, no hbito, na legitimidade e/ou na efetividade da lei. A efetividade da lei sobre um dado territrio consiste em inumerveis comportamentos habituados que (conscientemente ou no) so normal-mente consistentes com as prescries da lei6. Essa efetividade se baseia na expectativa amplamente sustentada, nascida de evidncias exemplares, de que essa lei ser, se necessrio, aplicada por uma autoridade central dotada dos poderes competentes. Esse o tecido que sustenta a ordem estabele-cida e garantida pelo estado-nao contemporneo. Vemos assim que a lei (incluindo os padres de habituao a que a expectativa de sua aplicao regular leva) um elemento constitutivo do estado: ela a "parte" do estado que fornece o tecido regular, subjacente da ordem social existente em um dado territrio.

    Tanto na tradio continental como na anglo-saxnica a lei , em ltima instncia, uma dimenso codificada sujeita s interpretaes do saber profissionalizado. A lei tem suas prprias expresses organizacio-nais, altamente ritualizadas e institucionalizadas nas democracias contem-porneas. O Congresso supostamente o lugar do debate e da aprovao das principais leis do pas, e o Judicirio o lugar onde os conflitos de interesse e, em ltima instncia, os argumentos sobre o prprio significado da comunidade poltica so discutidos e decididos. Como tambm ocorre com outros aspectos do estado, o Congresso e o Judicirio so as corporificaes organizacionais perceptveis do fenmeno mais amplo que consiste na efetividade social da lei.

    O reconhecimento da lei enquanto uma dimenso constitutiva do estado foi obstrudo pelas vrias abordagens que dominaram a cincia poltica anglo-saxnica desde a "revoluo comportamental". Por outro lado, a despeito das contribuies de autores como Max Weber e Herman Heller, as abordagens que prevaleceram na Europa continental eram estritamente legalistas; elas se baseavam em uma anlise formalista da lei escrita, dando muito pouca ateno a seus aspectos sociolgicos e polticos. De uma maneira ou de outra, essas duas grandes tradies no conseguiram distinguir o estado enquanto realidade complexa ocasionada por suas dimenses organizacionais/burocrticas e legais.

    H ainda outra dimenso do estado, a ideolgica. O estado (ou, mais precisamente, o aparelho do estado) afirma ser e normalmente visto como um estado-para-a-nao. O estado reivindica, desde os discursos explcitos at a invocao recorrente dos smbolos da nacionalidade, ser o criador da ordem que eu discuto acima, bem como nas democracias n

    (6) Estou usando uma lingua-gem cautelosa porque no pos-so tratar aqui das vrias nuan-as e qualificaes que um tra-tamento mais extenso dessa questo deveria apresentar. Para uma boa discusso dessas questes, ver Cotterrell, Roger. The sociology of law: an intro-duction. Londres: Butterwor- ths, 1984.

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    contemporneas dos direitos individuais e associativos que subjazem o ingresso nessas relaes. Vimos que em todas as sociedades essa ordem desigualitria, mesmo quando a partir do topo do estado se afirma que ela igual para todos enquanto membros da nao. Mas esse lado de ocultao parcial (que sustentado pela lei, que estrutura as desigualdades causadas por aquela ordem) no exclui a realidade de dois aspectos fundamentais. Primeiro, como j observei, essa ordem verdadeiramente uma ordem, na verdade o supremo bem coletivo: ela fornece a previsibi-lidade social generalizada sustentada por aes eventualmente decisivas das burocracias pblicas competentes. Segundo, muito embora no se estenda a outras relaes sociais, a igualdade garantida a todos os membros da nao em termos de cidadania crucial para o exerccio dos direitos polticos decorrentes do funcionamento da democracia e, tambm, para a efetividade das garantias individuais consagradas na tradio liberal.

    Da perspectiva que estou propondo, a cidadania no se esgota nos limites do poltico (estritamente definidos, como o faz a maior parte da literatura contempornea). A cidadania est em jogo, por exemplo, quan-do, depois de ingressar numa relao contratual, uma parte que pensa ter uma reclamao legtima pode ou no apelar a um rgo pblico legal-mente competente, do qual pode esperar tratamento justo, para que intervenha e julgue a questo. Mesmo nos domnios aparentemente mais privados do direito privado (ou comum), o sistema legal "pe" a dimen-so pblica resultante da remisso virtual daquela relao para julgamen-to legal por um rgo do estado devidamente autorizado. Essa dimenso inerentemente pblica das relaes privadas (ou, o que equivalente, o tecimento dessas relaes pelo estado-enquanto-lei) violada quando, por exemplo, um campons tem negado de facto o acesso ao Judicirio contra o proprietrio de terra. Esse direito "privado" no deve ser visto como menos constitutivo da cidadania do que o direito "pblico" de votar sem sofrer coero.

    A Argentina, o Brasil e o Peru (assim como outros pases da Amrica Latina e de outras regies) no esto apenas atravessando uma crise social e econmica muito sria. Embora com ritmos e intensidades diferentes, esses pases esto sofrendo tambm uma profunda crise de seus estados. Essa crise existe nas trs dimenses que acabo de discutir: do estado enquanto um conjunto de burocracias capaz de cumprir suas obrigaes com eficincia razovel; da efetividade de sua lei; e da plausibilidade da afirmao de que os rgos do estado normalmente orientam suas decises segundo alguma concepo do bem pblico7. Esses pases esto vivendo a crise prolongada de um padro de acumulao de capital centrado no estado e voltado para dentro, e da posio do estado nesse padro. Por contraste, alguns pases Espanha, Portugal, Coria do Sul, Taiwan e Chile, entre os recentemente democratizados ou em processo de liberalizao , em circunstncias que no nos preocupam aqui, conse-guiram escapar da crise generalizada. Eles emergiram como economias voltadas para a exportao integradas ativamente na economia mundial.

    (7) Muitos pases ps-comunis-tas sofrem o problema adicio-nal, e enorme, de que nem mesmo suas fronteiras geogr-ficas esto isentas de disputa e de que vrias clivagens tnicas e religiosas impedem graus m-nimos de lealdade aos respec-tivos estados. Nesse sentido, embora vrios pases latino-americanos estejam passando por processos de eroso aguda do estado-nao existente, v-rios pases ps-comunistas es-to enfrentando o problema ainda mais incmodo de come-ar a construir, em circunstn-cias econmicas e sociais mui-to adversas, um estado-nao.

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    Para tanto eles contaram, com variaes que no posso discutir aqui, com uma mquina estatal enxuta mas poderosa e eficaz.

    As discusses contemporneas confundem com muita freqncia duas dimenses. Uma diz respeito ao tamanho e ao peso relativo da mquina estatal. No h dvida de que na maioria dos pases recentemente democratizados o estado grande demais, e de que isso tem numerosas conseqncias negativas. Mas, nesse contexto, o antnimo de grande no pequeno, mas enxuto; isto , um conjunto eficaz e menos pesado de organizaes pblicas que seja capaz de criar razes slidas para a democracia, resolver progressivamente as principais questes da equidade social, e de gerar condies para a obteno de taxas de crescimento econmico condizentes com a sustentao de avanos, seja na rea da democracia seja na da equidade social. A segunda dimenso se refere fora ou fraqueza do estado como um todo; isto , no s mas inclusive o aparelho do estado. Um aparelho estatal "grande" ou "pequeno" pode ou no estabelecer efetivamente sua legalidade sobre seu territrio; de acordo com a viso que estou propondo, um estado forte, independentemente do tamanho de suas burocracias, aquele que estabelece efetivamente essa legalidade e que no visto pela maioria da populao como apenas uma arena para a satisfao de interesses particularistas. Eu argumento abaixo que as tentativas atuais de reduzir o tamanho e os dficits do estado-enquanto-burocracia, no mais das vezes inconscientemente mas com conseqncias nefastas de todos os tipos (inclusive para o sucesso a longo prazo das polticas econmicas que inspiram essas tentativas, sem falar na realizao da democracia institucionalizada), esto destruindo tambm o estado-enquanto-lei e a legitimao ideolgica do estado.

    As teorias do estado existentes costumam fazer uma suposio que recorrente nas teorias da democracia: a de um alto grau de homogeneidade no escopo, seja territorial seja funcional, do estado e da ordem social que ele sustenta. No se pergunta (e quando a pergunta feita, raramente problematizada) se essa ordem, e as ordens emanadas das organizaes do estado, tm efetividade similar por todo o territrio nacional e atravessan-do a estratificao social existente8. O ideal de "igualdade perante a lei" no foi plenamente alcanado em nenhum pas; veja-se, por exemplo, a constatao universal de vieses de classe na administrao da justia. Mas os pases escandinavos chegam perto da plena homogeneidade, enquanto os Estados Unidos, tanto territorialmente quanto funcionalmente, esto prximos do limite inferior entre as democracias institucionalizadas con-temporneas.

    Na Amrica Latina os pases com homogeneidade relativamente alta (especialmente territorial) so os que tm uma tradio democrtica mais antiga e slida Costa Rica, Chile e Uruguai. O Peru constitui o extremo oposto, ainda mais acentuado ultimamente pelo Sendero Luminoso e suas sequelas. A Bolvia, o Equador e a Colmbia esto prximos do plo de extrema heterogeneidade. O Brasil e o Mxico, a despeito de dcadas de governo autoritrio centralizador, so tambm casos de alta heterogenei- n

    (8) Na verdade, a "penetrao do estado" foi uma das "crises" conceitualizadas na famosa s-rie de volumes da dcada de 60 sobre "Desenvolvimento Pol-tico", do Social Science Resear-ch Council (esp. Lapalombra, Joseph. "Penetration: a crisis of governmental capacity". In: Binder, Leonard et. al. Crises and sequences in political de-velopment. Princeton: Prince- ton University Press, 1971, pp. 205-32). Essa mesma questo central para Samuel Hunting- ton (Political order in chan- ging societies. New Haven: Yale University Press, 1968). Mas enquanto esses trabalhos esto preocupados com a dissemina-o de algum tipo de autorida- de central, minha argumenta- o aqui se refere efetividade do tipo de legalidade que um estado democrtico deve im-plantar.

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    dade territorial e funcional. A Argentina, junto com a Venezuela e a Colmbia duas democracias relativamente antigas mas atualmente com graves problemas situam-se em algum ponto no meio desse continuum.

    O que acontece quando a efetividade da lei se estende muito irregularmente (quando no desaparece totalmente) sobre o territrio e as relaes funcionais (inclusive as relaes de classe, tnicas e de gnero) que ele supostamente regula? Que tipo de estado (e sociedade) esse? Que influncias isso pode ter sobre o tipo de democracia que pode surgir?

    Vou me limitar aqui a discutir alguns temas que se relacionam crise do estado nas trs dimenses que identifiquei. Nessas situaes, estados inefetivos coexistem com esferas de poder autnomas, tambm baseadas territorialmente. Os estados se tornam ostensivamente incapazes de pro-mulgar regulaes efetivas da vida social em seus territrios e seus sistemas de estratificao. As provncias ou distritos perifricos ao centro nacional (que normalmente so duramente atingidos pela crise econmica, alm de j contarem com burocracias mais fracas que as do centro) criam (ou reforam) sistemas de poder local que tendem a atingir extremos de domnio violento e personalista patrimonial, at mesmo sultanstico , abertos a toda sorte de prticas violentas e arbitrrias. Em muitas democra-cias emergentes, a efetividade de uma ordem nacional corporificada na lei e na autoridade do estado desaparece to logo deixamos os centros urbanos nacionais. Mas mesmo nestes visvel a evaporao funcional e territorial da dimenso pblica do estado. O crescimento do crime, as intervenes ilegais da polcia nos bairros pobres, a prtica disseminada da tortura e mesmo da execuo sumria de suspeitos pertencentes aos setores pobres ou de alguma forma estigmatizados, a negao de direitos a mulheres e a vrias minorias, a impunidade do comrcio de drogas e o grande nmero de crianas abandonadas nas ruas (tudo assinalando um escasso progresso em relao ao perodo autoritrio precedente) refletem no apenas um grave processo de decadncia urbana. Elas tambm expressam a crescente incapacidade do estado para tornar efetivas suas prprias regulaes9. Muitos espaos pblicos desaparecem, tanto devido a sua invaso pela misria desesperada de muitos como pelo perigo envolvido em sua utilizao. O medo, a insegurana, a segregao dos bairros ricos e a verdadeira tortura que usar o transporte pblico encolhem os espaos pblicos e levam a um tipo perverso de privatizao que, como veremos, tem correspondentes prximos em outras esferas. Certamente, esses e outros males no so novos, e alguns deles so mais agudos em um dado pas do que em outro. Mas e no s na Amrica Latina eles se tornaram piores com a sobreposio de uma crise imensa a um frgil processo de democratizao.

    Consideremos aquelas regies onde os poderes locais (tanto os formais como os de facto) estabelecem circuitos de poder que operam de acordo com regras inconsistentes, quando no antagnicas, com a lei que supostamente regula o territrio nacional. Esses so sistemas de poder privado (ou, melhor, de poder privatizado, j que muitos dos principais n

    (9) Certamente trata-se de uma questo de grau. Os Estados Unidos, por exemplo, situam-se como um caso onde no pas-sado alguns desses problemas eram muito arraigados e at hoje eles no foram inteira-mente eliminados. Mas l (como tambm na Inglaterra antes) esses problemas foram motivaram a criao de um ser-vio civil nacional "apoltico" muito eficiente. Em contraste, sublinhando alguns dos trgi-cos mas basicamente ignora-dos efeitos da profunda crise que alguns pases esto atra-vessando e das polticas eco-nmicas em curso, o inverso o que est acontecendo l: a destruio todas as burocracias estatais e noes de servio pblico existentes.

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    atores ocupam cargos no aparelho do estado), nos quais alguns direitos e garantias de legalidade democrtica no tm nenhuma efetividade. Isso se estende a numerosas relaes privadas que so normalmente decididas, mesmo pelo Judicirio dessas regies, com base exclusivamente nas assimetrias de poder que existem entre as partes. Essas regies neofeuda-lizadas contam com organizaes estatais, nacionais, estaduais e munici-pais. Mas a obliterao da legalidade priva esses poderes, inclusive essas agncias estatais, da dimenso pblica, legal sem a qual o estado nacional e a ordem que supostamente ele sustenta esvaecem. O equvoco de reificar o estado pode no ser evidente quando se teoriza sobre pases homog-neos; mas se torna aparente quando a obliterao de sua dimenso pblica torna algumas organizaes estatais parte de circuitos de poder perversa-mente privatizados10. Partes do Nordeste e toda a Amaznia no Brasil, as terras altas no Peru e vrias provncias no Centro e no Nordeste da Argentina so exemplos da evaporao da dimenso pblica do estado e, consequentemente, da singular "reificao" do estado como consistindo exclusivamente em organizaes que, nessas regies, fazem parte de circuitos privatizados, freqentemente sultansticos, de poder.

    Embora essas caractersticas da Amrica Latina sejam bem conheci-das, no foi feita, que eu saiba, nenhuma tentativa de lig-las aos tipos de democracia que surgiram na Argentina, no Brasil, no Peru e em pases similares da Amrica Latina e de outras regies. Imaginemos um mapa de cada pas no qual as reas cobertas pela cor azul designariam aquelas onde h um alto grau de presena do estado (em termos de um conjunto de burocracias razoavelmente eficazes e da efetividade da legalidade devida-mente sancionada), seja funcionalmente seja territorialmente; a cor verde indica um alto grau de penetrao territorial e uma presena significativa-mente mais baixa em termos funcionais/de classe; e a cor marrom, um nvel muito baixo ou nulo nessas duas dimenses. Nesse sentido, o mapa da Noruega, digamos, seria dominado pelo azul; os Estados Unidos mostrari-am uma combinao de azul e verde, com importantes manchas marrons no Sul e em suas grandes cidades; o Brasil e o Peru seriam dominados pelo marrom, e na Argentina a extenso do marrom seria menor mas, se tivssemos uma srie temporal de mapas, poderamos ver que essas sees marrons teriam crescido ultimamente11.

    Nas reas marrons das novas democracias h eleies, governadores e legisladores nacionais e estaduais (alm disso, em muitos casos essas regies so fortemente sobre-representadas nas legislaturas nacionais). Os partidos que funcionam a, mesmo quando so nominalmente membros de partidos nacionais, no so mais do que mquinas personalistas avidamente dependentes das prebendas que podem extrair das agncias estatais nacionais e locais. Esses partidos e os governos locais funcionam com base em fenmenos como o personalismo, o nepotismo, o prebenda-lismo, o clientelismo etc. Como sabem os antroplogos, esse um mundo que funciona de acordo com um conjunto de regras elaboradas, embora no escritas, no qual em contraste com as sociedades "tradicionais" n

    (10) Um sintoma importante disso o grau em que as princi-pais operaes do comrcio de droga prosperam nessas regi-es, freqentemente em coali-zo com as autoridades locais e nacionais a baseadas. Essa convergncia (e a de numero-sas outras atividades criminais) acentua ainda mais a privatiza-o perversa dessas regies.

    (11) Deve-se notar que as me-didas de heterogeneidade que estou sugerindo no significam necessariamente apenas uma nacionalidade sob um estado (por exemplo, a cor dominante da Blgica azul). A desinte-grao de imprios supranaci-onais tais como a Unio Sovi-tica e a Iuguslvia podem ou no levar, nas respectivas uni-dades emergentes, a estados homogneos no sentido que estou especificando aqui. Por exemplo, a eroso da autorida-de pblica e a desobedincia generalizada legislao pro-mulgada na Rssia significa que, muito embora essa unida-de possa ser mais "nacional" no sentido de conter uma po-pulao muito homognea, em termos das dimenses de esta-ticidade que tenho em mente aqui, seria, na realidade, domi-nada pelo marrom. Para uma vvida descrio da rpida e extensiva "marronizao" da Rssia de hoje, ver Reddaway, Peter. "Rssia on the brink". New York Review of Books, Ja-nuary, 1933, pp. 30-5.

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  • GUILLERMO O'DONNELL

    existem burocracias estatais, algumas delas grandes e complexas, e onde, sob burocracias extremamente politizadas e mal pagas, o prprio significa-do do termo "corrupo" se torna vago.

    Esses circuitos de poder esto representados no centro da poltica nacional, a comear pelo Congresso, a instituio que supostamente a fonte da legalidade existente, nacionalmente abrangente. Em geral, o interesse dos legisladores "marrons" muito limitado: sustentar o sistema de dominao privatizado que os elegeu e canalizar para esse sistema tantos recursos estatais quanto possvel. A tendncia de seus votos , portanto, conservadora e oportunista. Para ter sucesso eles dependem da troca de "favores" com o Executivo e diversas burocracias estatais e, sob Executivos enfraquecidos que precisam de algum tipo de apoio congres-sual, eles obtm freqentemente o controle das agncias estatais que fornecem esses recursos. Isso aumenta a fragmentao (e os dficits) do estado as manchas marrons invadem at mesmo o topo burocrtico do estado. Alm do mais, o jogo que essas pessoas jogam (tanto dentro como fora do Congresso) se beneficia da existncia de partidos que no apenas tm um contedo ideolgico muito baixo (o que per se no necessaria-mente mau), mas so tambm totalmente oportunistas em suas posies, no tm disciplina, e de uma situao em que a mudana de partido ou a criao de novos partidos pode ser feita sem praticamente nenhum custo a regra o transformismo extremado. Alguns estudos recentes aponta-ram as conseqncias deletrias que isso tem, entre outras reas, sobre o funcionamento do Congresso e para o surgimento de um sistema partid-rio razoavelmente estvel12; esse quadro dificilmente constitui um bom prospecto para a institucionalizao da democracia. Por razes bvias esses polticos, da mesma forma, convergem com as orientaes delegati-vas, cesaristas do Executivo na hostilidade que demonstram a qualquer forma de obrigatoriedade de prestao de contas horizontalmente*; apesar de s vezes eles terem conflitos agudos com o Executivo, trabalham junto com ele para evitar o surgimento de instituies representativas slidas.

    Em certo sentido o regime da resultante muito representativo. Ele consistente com a realidade de pases cujos padres de representao poltica os heterogeneizam ainda mais. O problema, claro, que essa representatividade acarreta a introjeo do autoritarismo entendido aqui como a negao da publicidade e da efetiva legalidade de um estado democrtico e, assim, da cidadania no prprio centro de poder poltico desses pases13.

    Nosso exerccio de mapeamento suscita algumas questes importan-tes, a nenhuma das quais responderei totalmente aqui. Que tipo de estado o daqueles pases onde predominam as reas marrons? Que tipo de regime democrtico pode se estabelecer sobre essa heterogeneidade? At que ponto podemos extrapolar para esses casos teorias do estado e da democracia que supem pases muito mais homogneos? Em seus termos mais gerais essas questes foram centrais para os esforos comparativos das cincias sociais. Mas elas tm que ser relembradas e especificadas

    (12) Especialmente Mainwa-ring, Scott. "Politicians, parties, and electoral systems: Brazil in comparative perspective". Working Paper n 141, Kellogg Institute, June 1990 [trad. bras.: "Polticos, partidos e sistemas eleitorais". Novos Estudos n 29, maro 1991]). (*) No original: horizontal ac-countability (N.T.). (13) Consideremos os atuais problemas polticos da Itlia, que pode-se sustentar ser a mais heterognea das demo-cracias institucionalizadas (com a exceo da ndia, se que este pas extremamente hete-rogneo ainda pode ser consi-derado como pertencente a esse conjunto) mas muito mais homognea que a maioria dos pases que estou discutin-do. Esses problemas esto es-treitamente conectados s re-as marrons da Itlia e pene-trao de representantes legais e ilegais dessas reas em seu centro nacional. Nos Estados Unidos, seja qual for a avalia-o que seus governos republi-canos meream, parece inques-tionvel que na dcada passa-da as reas marrons (em parti-cular em torno das grandes ci-dades) experimentaram um crescimento preocupante nos Estados Unidos. Alm do mais, esses problemas esto apare-cendo tambm em outros pa-ses ricos, relacionados a uma srie de transformaes glo-bais (especialmente econmi-cas). Mas no presente texto quero enfatizar alguns fatores, especficos de certos pases, que acentuam grandemente es-ses problemas. Mais uma vez, e como sempre, as compara-es so uma questo de grau.

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  • SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAO E ALGUNS PROBLEMAS CONCEITUAIS

    quando o sentimento generalizado de uma vitria universal do capitalis-mo, e quem sabe da democracia, levou a seu esquecimento. Podemos estar reincidindo em alguns erros da dcada de 60, quando muitas teorias e comparaes eram superficiais, quando no etnocntricas: elas consistiam na aplicao de paradigmas cuja validade era supostamente universal, mas que ignoravam a variao estruturada encontrada fora do mundo desen-volvido. Hoje, os economistas da corrente neoliberal dominante constitu-em um exemplo claro desse problema, mas os socilogos e os cientistas polticos no esto isentos dele.

    Devemos lembrar que a legalidade de uma ordem democrtica que funcione adequadamente universalista: pode ser invocada com sucesso por qualquer pessoa, independentemente de sua posio na sociedade. Retomando uma discusso antiga, os atributos "democrtico" e "autorit-rio" podem ser aplicados ao estado, ou deveriam ser reservados exclusiva-mente ao regime? Isso depende, claro, de como definimos estado e regime. No que diz respeito ao regime, repetirei a definio proposta por Schmitter e por mim mesmo:

    o conjunto de padres, explcitos ou no, que determinam as formas e canais de acesso aos principais postos governamentais, as caracte-rsticas dos atores que so admitidos ou excludos desse acesso, e os recursos [e] estratgias que eles podem usar para obter acesso14.

    Com algumas variaes, esse tipo de definio pacfico na literatura. A definio do estado, ao contrrio, , como vimos, problemtica. Contra a viso prevalecente, o que estou argumentando leva concluso de que atributos como "democrtico" ou "autoritrio" no correspondem apenas ao regime, mas tambm ao estado.

    Esse raciocnio pode ser visto a contrario. Um contexto autoritrio tem uma caracterstica fundamental: no existe (ou, se existe, no tem uma real efetividade, ou pode ser anulado ad hoc, ou subordinado a regras secretas e/ou aos caprichos dos governantes) um sistema legal que assegure a efetividade dos direitos e garantias que indivduos e grupos podem sustentar contra os governantes, o aparelho do estado e outros situados no topo da hierarquia poltica ou social existente. Essa uma legalidade trancada: mesmo no caso do autoritarismo institucionalizado, ela no contm a garantia de sua prpria aplicao contra os governantes e outros poderosos. Isso afeta uma dimenso constitutiva do estado: o tipo de legalidade (que, em casos extremos, pode acarretar uma arbitrariedade absoluta) que tece a ordem particular que imposta sobre um territrio. Desse ponto de vista no vejo como podemos fugir concluso de que tambm o estado pode ser autoritrio.

    O inverso no me parece menos claro. Na medida em que um sistema legal inclui os direitos e garantias do constitucionalismo ocidental e

    (14) O'Donnell, Guillermo e Schmitter, Philippe. Transiti-ons from authoritarian rule: tentative conclusions about un-certain democracies, vol. IV de O'Donnell, G.; Shmitter, P. e Whitehead, Laurence. Transi-tions from authoritarian rule: prospects for democracy. Balti-more: Johns Hopkins Universi-ty Press, 1986, p. 73, nota 1.

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  • GUILLERMO O'DONNELL

    existem poderes pblicos capazes de e dispostos a impor de acordo com procedimentos devidamente estabelecidos esses direitos e garantias mesmo contra outros poderes pblicos, o estado e a ordem que ele ajuda a implantar e reproduzir so democrticos. Contra a legalidade truncada do estado autoritrio, a do estado democrtico como argumentou Hans Kelsen em um contexto diferente completa; ela "fecha" seus prprios circuitos por meio da aplicao universalista de suas regras, at mesmo contra outras organizaes estatais. isso o que acontece nas reas azuis e o que no acontece nas extensas (e crescentes) reas marrons de muitas novas democracias.

    Nos pases com extensas reas "marrons", as democracias se baseiam em um estado esquizofrnico: ele mistura de modo complexo, funcional e territorialmente, importantes caractersticas democrticas e autoritrias. um estado no qual os componentes de legalidade democrtica e, portanto, de publicidade e cidadania, desaparecem nas fronteiras das vrias regies e relaes tnicas e de classe.

    A democracia, enquanto forma poltica efetiva sobre um dado territrio, est necessariamente conectada cidadania, e esta s pode existir dentro da legalidade de um estado democrtico. A completa universalizao de cidadania um ideal do qual as democracias realmente existentes se aproximam mais ou menos estreitamente. Mas as extensas reas marrons de muitas novas democracias no deveriam ser desprezadas como irrelevantes para as teorias do estado e da democracia que utiliza-mos. Nem deveramos supor que h algum efeito virtuoso inerente democracia poltica e/ou mudana econmica que eliminar essas reas. No se trata, como o caso nas democracias institucionalizadas, de alguns componentes autoritrios em um estado que ainda pode ser considerado democrtico; nos pases que nos preocupam aqui, a dimenso autoritria se mescla, de modo complexo e poderoso, com a democrtica. Essa mistura exige a reconceitualizao do prprio estado e da democracia (e do regime) peculiares que existem a.

    Um estado que incapaz de impor sua legalidade sustenta uma democracia com cidadania "de baixa intensidade". Na maioria das reas marrons dos pases recentemente democratizados, os direitos polticos da poliarquia so respeitados. Normalmente, as pessoas no esto sujeitas coero direta quando votam, seus votos so apurados corretamente, elas podem em princpio criar praticamente qualquer tipo de organizao, podem expressar suas opinies sem censura, e podem se movimentar livremente dentro e fora do territrio nacional. Esses e outros atributos da poliarquia so cumpridos nessas regies. Isso faz a diferena entre, digamos, a Polnia e a Argentina, por um lado, e a Romnia e a Guatemala, por outro; no importa o que digam suas Constituies, o real funciona-mento da vida poltica desqualifica estas duas ltimas como poliarquias. Mas pases com extensas reas marrons que cumprem realmente os atributos da poliarquia e h argumentos para sustentar que estes so o ncleo universal da democracia so democracias.

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  • SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAO E ALGUNS PROBLEMAS CONCEITUAIS

    Entre os pases que atendem aos critrios da poliarquia, pode-se distinguir diferentes dimenses e graus de democraticidade. Isso tem a ver com questes de equidade e igualdade nas vrias esferas societais (em outras palavras, com a democratizao social e econmica15). Mas o conceito de cidadania de baixa intensidade no se refere a essas questes sabidamente muito importantes. Ele se refere especificamente esfera poltica, teoria poltica da democracia poltica, ou poliarquia. Como observei acima, nas reas marrons das novas democracias, as condies especificamente polticas da existncia da poliarquia normalmente so atendidas. Mas os camponeses, os favelados, os ndios, as mulheres etc. no conseguem normalmente receber tratamento justo nos tribunais, ou obter dos rgos do estado servios aos quais tm direito, ou estar a salvo da violncia policial e mais um extenso etc. Essas so restries "extrapolirquicas" mas ainda politicamente relevantes; elas acarretam a inefetividade do estado-enquanto-lei, o cerceamento de alguns direitos e garantias que, tanto quanto o voto sem coero, so constitutivos da cidadania. Resulta da uma curiosa disjuno: nas reas marrons os direitos participativos, democrticos, da poliarquia so respeitados. Mas o compo-nente liberal da democracia sistematicamente violado. Uma situao em que se pode votar livremente e os votos so apurados corretamente mas no se pode esperar o tratamento devido por parte da polcia ou dos tribunais questiona seriamente o componente liberal dessa democracia e mutila seriamente a cidadania16. Essa disjuno a outra face da moeda da poderosa mistura de componentes democrticos e autoritrios desses estados.

    A negao de direitos liberais (principalmente, mas no exclusiva-mente) aos pobres e a outros setores de algum modo estigmatizados analiticamente distinta e no necessariamente se relaciona a dos vrios graus de democratizao social e econmica. Mas, empiricamente, vrias formas de discriminao e pobreza extensiva e sua correspondente, a extrema disparidade na distribuio de recursos (no s econmicos), vo de par com a baixa intensidade da cidadania17. Este o tema das condies sociais necessrias para o exerccio da cidadania; como podem os mais fracos e os mais pobres ganhar direitos consistentes com a legalidade democrtica e, consequentemente, ganhar sua plena cidadania, democrtica e liberal? Mesmo uma definio poltica da democracia (tal como recomendada pela maioria dos autores contemporneos, a qual adoto aqui) no deveria deixar de levantar a questo da extenso em que a cidadania realmente exercida em um dado pas. Isso per se permitam-me insistir num ponto que se presta a incompreenses no tem necessariamente a ver com o quanto algum critica as agudas desigualda-des sociais e gostaria de elimin-las; o argumento, neste texto, se refere s conseqncias dessas condies sociais sobre o tipo de poliarquia e sobre a extenso da cidadania com que estamos lidando em cada caso.

    Nas sees seguintes discuto, do modo altamente resumido que o espao permite, alguns temas que se relacionam, em primeiro lugar, crise n

    (15) O'Donnell, G. e Shmitter, P., op. cit.

    (16) Como diz Alan Ware, "A reivindicao das democracias liberais de serem democracias liberais se baseia na afirmao de que elas tm procedimentos tanto bem estabelecidos como tambm acessveis para prote-ger as liberdades dos cidados individualmente". Ware, A. "Li-beral democracy: one form or many?". Political Studies n 40, 1992, pp. 130-45.

    (17) A pobreza extensiva e a alta desigualdade encontrada na maior parte da Amrica Lati- na e do resto do Terceiro Mun-do (o sedimento de uma longa histria, acentuada pela crise e pelas polticas econmicas atu-ais) diferente do processo de rpida desigualizao que ocorre nos pases ps-comu-nistas; seja qual for o padro que venha a se mostrar mais explosivo, o ltimo aponta para democracias que, quase no pr-prio momento de sua inaugu-rao, esto sofrendo um verti-ginoso decrscimo na intensi-dade de sua cidadania.

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  • GUILLERMO O'DONNELL

    do estado e, secundariamente, a um certo tipo de crise econmica. Essas discusses nos permitiro ter uma perspectiva mais concreta sobre algumas questes levantadas na presente seo.

    2. Sobre alguns aspectos da crise do estado

    H muitas evidncias de que a crise scio-econmica extraordina-riamente sria que a maioria dos pases recentemente democratizados est sofrendo favorece a disseminao das regies marrons. Esses impactos no derivam apenas dos vrios processos de desintegrao social e econmica; resultam tambm da profunda crise do estado, enquanto legalidade efetiva, enquanto conjunto de burocracias e quanto a sua credibilidade como agente do interesse comum. So resultado tambm do antiestatismo militante das idias e polticas neoliberais18, especialmente o compromisso com a diminuio a qualquer custo do tamanho das burocracias e do dficit do estado.

    Muitos esforos esto sendo feitos para reduzir o dficit fiscal. Do lado da despesa, as principais caractersticas tm sido as privatizaes e as tentativas de desfazer-se do "excesso de pessoal". Estas no tm sido fceis, em parte porque na maioria dos casos os empregos desses funcio-nrios so protegidos legalmente, e em parte porque a oposio tenaz de seus sindicatos se mostrou custosa para governos instveis. Mais eficazes para reduzir o dficit fiscal, foram as polticas que resultaram no declnio vertiginoso dos salrios da maioria dos funcionrios pblicos.

    Alm da queda acentuada dos salrios, h muitos indicadores de uma sria degradao do funcionamento e da prpria idia de servio pblico. Muitos dos funcionrios mais capazes trocaram o setor pblico pelo privado. Os que permaneceram viram seu status declinar na mesma velocidade que seus salrios: as ideologias antiestatistas prevalecentes olham para seus empregos na melhor das hipteses com desconfiana, e as notcias e a sabedoria popular esto repletas de anedotas sobre sua (muito freqentemente verdadeira) preguia, falta de competncia e interesse em seus empregos, e corrupo. Se at h algum tempo ser um funcionrio do estado era um sinal de status elevado, hoje em dia quase o oposto disso.

    E o que provavelmente ainda pior que antes da presente crise ser um funcionrio pblico era estar inserido numa carreira. Isso significava trabalhar num estabelecimento que oferecia um caminho previsvel para promoes, e receber uma renda mensal e vrias vantagens extra-salariais que permitiam um slido estilo de vida de classe mdia (incluindo normalmente boa moradia e condio de custear a educao universitria dos filhos). Exceto alguns bolses privilegiados (tipicamente os Bancos Centrais), isso no mais verdade nos pases afetados pela presente crise. Um quadro sombrio resulta da decapitao das burocracias de primeiro

    (18) Por polticas "neoliberais" entendo aquelas advogadas por instituies de crdito interna-cionais e pelas teorias neocls-sicas dominantes. Essas polti-cas experimentaram algumas mudanas, provocadas presu-mivelmente pelos resultados muito desiguais de sua aplica-o. Mas um vis antiestatista muito forte e indiscriminado continua a estar em seu cerne. Para uma crtica dessas polticas, ver especialmente Adam Przeworski et al., no pre-lo (muito embora eu concorde com essa crtica e seja um dos co-autores desse livro, devo aduzir, por razes ticas, que no participo dessa parte do livro). Ver tambm Przewor-ski, A. "The neoliberal fallacy". Journal of Democracy, vol. 3, n 3, July l992.

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  • SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAO E ALGUNS PROBLEMAS CONCEITUAIS

    escalo e mais especializadas devido ao xodo das pessoas mais qualifica-das, politizao desses cargos, a numerosas e sempre fracassadas "racionalizaes" e "reorganizaes", e ao espetacular declnio da planta fsica (talvez no exista nada mais desestimulante do que martelar uma mquina de escrever mecnica gasta em um escritrio cujas pintura e moblia no so trocadas h muitos anos). Esse quadro extremamente propcio existncia de uma burocracia desqualificada e pouco motivada. Isso realimenta as inumerveis anedotas que sustentam um arrasador ataque ao estado, e erode o apoio poltico que seria necessrio para pr em prtica uma poltica de governo mais equilibrada em relao a sua burocracia.

    Alm do mais, em condies de inflao elevada e errtica, em apenas um ms os funcionrios pblicos podem perder 30%, 40% ou mesmo 50% de sua renda real. Nessas circunstncias, eles s podem se desesperar e exigir mudanas imediatas. Eles fazem greves e manifesta-es, s vezes violentas. O resultado so paralisaes freqentes dos servios pblicos essenciais. As conseqncias desses protestos atingem duramente as grandes cidades, o centro do poder e da poltica. Esses protestos do uma grande contribuio ao sentimento de que os governos e os polticos democrticos so incapazes e por razes demaggicas nem mesmo esto dispostos a isso de evitar o "caos" e uma deteriorao econmica geral ainda maior. Alm do mais, o comportamento racional e desesperado dos funcionrios do estado alimenta a imagem genera-lizada de uma burocracia pblica desregrada que est mais interessada em defender seus "privilgios" do que em cumprir suas obrigaes. Finalmen-te, apesar de as evidncias sobre esse assunto serem impressionistas, as greves e outros protestos dos funcionrios pblicos, na medida em que paralisam e ajudam a deteriorar ainda mais os servios pblicos essenciais, antagonizam os setores populares e muitos segmentos de classe mdia. A raiva desses setores, que so mais dependentes da maioria dos servios pblicos do que as classes altas, estabelece uma clivagem que favorece a ofensiva antiestatista que confunde a tarefa (necessria) de conseguir um aparelho de estado mais enxuto com o (suicida) enfraquecimento do estado em todas as suas dimenses.

    O encolhimento da renda pessoal, o encurtamento das perspectivas de carreira, as ms condies de trabalho, um ambiente poltico hostil e, ao mesmo tempo, as incontveis intervenes que o estado leva a cabo constituem um solo perfeito para um enorme crescimento da corrupo. Em muitas reparties pouca coisa funciona sem suborno, que leve para os ricos mas taxa pesadamente os pobres. Nos nveis mais altos da burocracia, e mesmo nos mdios, a corrupo envolve enormes somas de dinheiro, o que pilha ainda mais os j escassos recursos pblicos. Adicionalmente, quando alguns desses atos se tornam escndalos pbli-cos, eles minam a confiana no s no funcionamento e no papel do estado, mas tambm nos governos, que parecem incapazes de corrigir essa situao, quando no participantes ativos dela.

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  • GUILLERMO O'DONNELL

    Para governos desesperados por recursos, a soluo temporria tem sido aumentar os impostos indiretos e os preos dos servios pblicos. Mas isso alimenta a inflao e tem conseqncias distributivas deletrias. No que diz respeito ao imposto de renda, a nica maneira de aplic-lo facilmente na forma de desconto sobre os salrios do setor formal da economia (incluindo os funcionrios pblicos). Se considerarmos, ainda, que os formalmente empregados so os principais contribuintes da seguridade social, o resultado um poderoso incentivo, tanto para eles como para seus empregadores, a deixar o setor formal; em perodos de emprego incerto e salrios em queda, a acentuada deteriorao da maioria das polticas sociais (observada tanto na Amrica Latina quanto nos pases ps-comunistas) vem se somar aos infortnios de vastos segmentos da populao. Alm do mais, as alquotas do imposto de renda e da seguridade social aplicadas sobre os formalmente empregados acarretam uma pesada carga fiscal, que poucos pagam mas que nominalmente efetiva para o conjunto da economia isso aumenta os incentivos evaso fiscal e diminui o custo do suborno. O resultado so protestos generalizados contra os "impostos excessivos", ao mesmo tempo em que a receita fiscal global do estado diminui, com os impostos diretos aqueles que, supostamente, um governo democrtico enfatizaria caindo ainda mais acentuadamente. A longa agonia do padro de acumulao de capital substituidor de importaes centrado no estado nos legou um dinossauro incapaz at mesmo de se alimentar, enquanto as "solues" em curso levam a uma entidade anmica que pode ser igualmente incapaz de sustentar a democracia, nveis decentes de igualdade social e crescimento econmico.

    3. Sobre certas crises econmicas

    Discutirei aqui um tipo particular de crise econmica: aquela sofrida por pases Argentina, Brasil e Peru que se enredaram em um padro de inflao alta e recorrente19, pontuado por repetidas tentativas fracassadas de controlar a inflao e levar a cabo "reformas estruturais" do tipo recomenda-do pelas organizaes de crdito internacionais. Esse conjunto de pases , felizmente, pequeno; mas vrios pases ps-comunistas e africanos parecem j ter ingressado nesse padro, ou esto na iminncia de faz-lo. Pode-se postular que quanto mais profunda a crise, e quanto menor a confiana de que o governo ser capaz de resolv-la, mais racional se toRNa para todos agir: (1) em nveis altamente desagregados, especialmente em relao aos rgos do estado que podem resolver ou aliviar as conseqncias da crise para uma dada firma ou setor; (2) com horizontes de tempo extremamente curtos; e (3) com o pressuposto de que todos faro o mesmo. Um gigantesco em nvel nacional dilema do prisioneiro se instala quando uma crise econmica profunda e prolongada ensina a todos os agentes as seguintes

    (19) Entendo por isso perodos de cinco anos ou mais em que a inflao mensal ficou em m-dia acima de 20% ao ms, che-gando a picos de valores de trs dgitos ao ms.

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  • SOBRE O ESTADO, A DEMOCRATIZAO E ALGUNS PROBLEMAS CONCEITUAIS

    lies: (1) a inflao continuar alta, mas quase impossvel prever a mdio prazo quanto mais a longo prazo as flutuaes que ela sofrer; (2) entre tais flutuaes no se devem excluir perodos de inflao extremamente alta (taxas de, digamos, 50% ou mais ao ms) ou hiperinflao; (3) em algum momento o governo far uma interveno drstica, destinada a controlar a inflao, mas essa interveno provavelmente fracassar; (4) as expectativas a respeito da situao futura da economia so muito pessimistas; e (5) as previses sobre a situao econmica futura de cada agente dependem de uma adaptao perspicaz e no momento certo s condies impostas pelos pontos anteriores.

    Embora haja uma escassez de estudos sobre o micronvel apropriado, qualquer pessoa que tenha vivido nessas circunstncias sabe que esse um mundo duro e sombrio. Racionalmente, a estratgia dominante fazer o que for necessrio para se proteger contra possveis perdas decorrentes da inflao alta e errtica. Permanecer passivo e/ou no ter os recursos de poder para correr na velocidade da inflao uma garantia de pesadas perdas no limite, para alguns a bancarrota e para outros a queda numa pobreza abismal.

    Esse um mundo de sauve qui peut, e jogar esse jogo refora as prprias condies em que ele jogado. O primeiro fenmeno, mais bsico, a dessolidarizao generalizada. Todo agente racional age no nvel de agregao e com o horizonte de tempo que considera mais eficaz em seus movimentos defensivos. O horizonte de tempo adequado o curtssimo prazo; que sentido haveria em sacrificar ganhos de curto prazo em nome dos de longo prazo, quando a situao futura do mundo no pode ser prevista com nenhuma preciso, e abster-se de maximizar os ganhos a curto prazo pode provocar pesadas perdas? Alguns agentes, difceis de identificar topicamente com os dados disponveis, colhem grandes lucros. As maneiras de alcan-los so muitas, mas a distribuio das chances entre as classes extremamente viesada. Algumas das mais importantes envolvem a pilhagem da mquina do estado. Para os jogado-res desse jogo, polticas amplas, de longo prazo, negociadas e implemen-tadas com a participao de associaes de representao de interesses altamente agregadas, no so importantes; na medida em que os governan-tes tm de danar no ritmo da crise, sua capacidade de formulao dessas polticas muito limitada, e com grande freqncia sua implementao suspensa ou capturada pelas estratgias desagregadas que acabei de descrever. O que realmente importante para se defender e para even-tualmente lucrar com a crise (basicamente, mas no exclusivamente, para os capitalistas) o livre e rpido acesso aos rgos do estado que podem liberar os recursos esperados. Privilgios e favores de todos os tipos so conseguidos pela coalizo de dimenses mnimas que capaz de obter as decises apropriadas de um determinado rgo pblico. E essas vantagens devem ser obtidas rapidamente se no, sero devoradas pela inflao. Nessa situao, a estratgia racional consiste em uma dupla desagregao: primeiro, agir sozinho ou aliado ao menor conjunto possvel de agentes NN

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  • GUILLERMO O'DONNELL

    que possa garantir o resultado desejado; segundo, colonizar os rgos do estado que possam prover os benefcios buscados, evitando arenas mais agregadas e/ou pblicas que apenas complicariam a obteno dos benef-cios tpicos esperados. Vrios processos observados na literatura, tais como o afrouxamento de identidades populares coletivas, a imploso de partidos historicamente enraizados e a importncia cada vez menor das organizaes de capitalistas, so expresses das perversas conseqncias coletivas do comportamento racional defensivo.

    Os capitalistas da Argentina, do Brasil e do Peru contam com uma vantagem importante. Para eles este no um jogo novo; apenas a urgncia, os riscos e o nvel de desagregao cresceram. Eles tm assim como os capitalistas de outros pases da Amrica Latina uma longa experincia de viver da generosidade do estado e da colonizao de suas agncias. No precisam encontrar muitos parceiros novos nas burocracias pblicas, ou inventar novas maneiras de se envolverem com eles em mltiplas formas de corrupo mtua. Mas, hoje, a profundidade da crise aprofundou esses males. Em primeiro lugar, h a evidncia de um grande aumento na corrupo. Em segundo lugar, h uma enorme fragmentao do aparelho do estado ou, o que a mesma coisa, sua aguda perda de autonomia, no em relao a "uma" classe capitalista, mas em relao aos inumerveis segmentos nos quais essa classe se desagregou no ritmo da crise. Os problemas observados na seo anterior so multiplicados por essas conseqncias da crise econmica, ao mesmo tempo em que a resultante desintegrao da mquina do estado torna-o ainda mais incapaz de resolver a crise.

    Cada espiral da crise diferente da anterior. Os atores aprendem. Aqueles que foram suficientemente hbeis para sobreviver e at mesmo tomar a dianteira na corrida contra a inflao podem comprar a preos de ocasio ativos que os perdedores possuam. A rpida concentrao de capital nesses pases reflete os ganhos dos sobreviventes darwinianos. Os agentes supem que, como os esforos prvios de estabilizao fracassa-ram (e como o governo foi ainda mais enfraquecido por esse fracasso), os esforos futuros do governo tambm fracassaro. Consequentemente esses agentes protegem suas apostas contra a alta probabilidade de fracasso da poltica futura, o que certamente aumenta a probabilidade desse mesmo fracasso.

    De sua parte, quanto mais espirais ocorrem, mais desesperadamente os governos tentam encontrar uma sada da crise. Mas a concomitante desintegrao do aparelho do estado, dficits fiscais crescentes, uma opinio pblica hostil, partidos polticos que antecipam ganhos eleitorais futuros por meio da crtica dura ao governo (inclusive lderes do partido governante, que se vem arrastados para os abismos da impopularidade do governo), e a ao defensiva de atores econmicos poderosos contra a inflao e contra fracassos previstos do governo diminuem a probabilidade de que a prxima tentativa de poltica seja bem-sucedida. Isso tambm significa que, em uma economia com nveis crescentes de imunizao, a nnn

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    prxima tentativa de estabilizao ser uma interveno mais radical do que a anterior. Os riscos do jogo se tornam maiores a cada volta da espiral.

    A repetio dos fracassos de polticas alimenta o processo de seleo darwiniana, a cada vez tornada mais fcil pela crescente incapacidade do governo de controlar as conseqncias distributivas de suas polticas. Particularmente, como muitos segmentos dos setores mdios recebem, em termos relativos, os impactos mais srios, ouvem-se reclamaes generali-zadas sobre "a extino da classe mdia", s vezes com sobretons que no so exatamente consistentes com o enraizamento da democracia. Nessa situao, o governo projeta uma curiosa imagem que mistura onipotncia com a mais pura impotncia. Por um lado, cada tentativa de resolver a crise estrondosamente anunciada como aquela que, como dessa vez vai ter sucesso, justifica os sacrifcios adicionais exigidos da populao. Por outro, ao lado do bem-vindo alvio representado por uma queda temporria na inflao (normalmente com um alto custo em termos de atividade econ-mica e distribuio), logo se torna evidente que o governo no ser capaz de implementar outras polticas, tambm necessrias. Esse mais um fator do encurtamento dos horizontes temporais e da piora das expectativas que dinamizam o jogo geral.

    Nessas condies, a imagem que uma sociedade apresenta a si mesma muito feia. Seria possvel colecionar milhares de expresses da profunda malaise que se segue. As evidncias de oportunismo, ganncia, falta de solidariedade e corrupo generalizados no constituem um espelho agradvel. Alm do mais, muitas dessas aes acarretam flagrantes desrespeitos s leis existentes; quando fica claro que muitos violam a lei e que os custos de faz-lo so normalmente nulos, a lio aprendida erode ainda mais a previsibilidade das relaes sociais; o oportunismo e a ilegalidade generalizada aumentam todos os tipos de custos de transao, e o tecimento da sociedade pelo estado-enquanto-lei se enfraquece a cada volta da espiral.

    Seguem-se denncias amargas e apelos desesperados para superar a "crise moral". Os meios de comunicao e as conversas cotidianas se enchem de exortaes em favor da "recuperao da unidade nacional", da panacia de pactos scio-econmicos (dos quais, nessas condies, ne-nhum ator racional participaria de boa-f), da "moralizao" da administra-o e dos negcios pblicos e coisas semelhantes. Crticas moralistas e exortaes pias por mais valiosas que sejam como indicaes de que os valores bsicos da moralidade pblica sobrevivem de algum modo ignoram o aprisionamento da ao social em um colossal dilema do prisioneiro20. Alm do mais, essas falas podem facilmente se transformar em condenaes prematuras da situao como um todo, incluindo uma democracia que tem um desempenho to fraco em muitos aspectos.

    A exasperada atomizao da sociedade o outro lado da moeda da crise do estado, no s enquanto conjunto de burocracias mas tambm e at mesmo mais enquanto fonte legal de previsibilidade social. Da mesma forma, a crise leva plausibilidade cada vez menor do estado n

    (20) Embora eu no possa me estender aqui, deve-se notar que na situao que estou des-crevendo no h nenhuma das condies que a literatura iden-tificou como propcias a solu-es cooperativas para o dile-ma do prisioneiro.

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    enquanto agente autorizado dos interesses gerais do pas; ao contrrio, ele parece cada vez mais um aparato oneroso que se deixa saquear pelos poderosos. A desintegrao do aparelho do estado e a efetividade decres-cente do estado-enquanto-lei tornam-no incapaz de implementar minima-mente polticas complexas. No uma questo fcil decidir quais segmen-tos do estado deveriam receber prioridade para se tornarem mais eficazes; ou implementar uma poltica industrial; ou decidir o grau e o cronograma da abertura financeira e comercial da economia; ou chegar a um acordo sobre polticas de emprego e salrio etc. Sem essa "reestruturao" nem as polticas neoliberais nem polticas alternativas tero sucesso.

    Para que essas polticas sejam no apenas decididas (a parte mais fcil, obviamente), mas implementadas, preciso cumprir trs condies: (1) Os agentes privados e do estado devem ter pelo menos o mdio prazo como horizonte temporal relevante. Mas nas condies que discutimos improvvel que isso ocorra. No provvel nem mesmo que os governan-tes tenham outro horizonte que no seja o curto prazo, porque a crise significa, primeiro, que eles devem se dedicar a apagar incndios que surgem em todos os lugares e, segundo, que seus empregos esto em perigo permanente. (2) Se as polticas de estabilizao e, especialmente, as estruturais pretendem ser algo mais do que uma pura translao de sejam quais forem os interesses que tenham acesso a eles, os rgos estatais relevantes devem ser capazes de reunir e analisar informaes complexas, estar suficientemente motivados na busca de alguma definio do interesse pblico, e ver seu papel na formulao de tais polticas como um episdio gratificante em suas carreiras. Como vimos, exceto em alguns bolses organizacionais, essas condies so hoje em dia inexistentes. (3) Algumas polticas s podem ser implementadas com sucesso se passarem por negociaes complexas com os vrios atores privados que exigem acesso legtimo ao processo. Contudo, o modo extremamente desagregado como racional agir na presente crise erode a representatividade da maioria dos interesses organizados quem pode realmente falar por outro nesses pases? qual ego pode convencer alter de que o que ele combinou com ela ser honrado por aqueles que ele afirma representar? A atomizao da sociedade espelha e acentua a desintegrao do estado21.

    Como pode ser representado esse mundo de atores que se compor-tam de modo extremamente desagregado, oportunista e com horizonte de tempo reduzido? Quais podem ser as ncoras e ligaes com as instituies (as de representao de interesse e as propriamente polticas, tais como os partidos e o Congresso) que tecem os relacionamentos entre o estado e a sociedade nas democracias institucionalizadas? Que repre-sentatividade e, em termos mais amplos, que identidades coletivas po-dem sobreviver a esses contratempos? A resposta que h muito pouco progresso se que h algum no sentido de alcanar instituies de representao e controle sobre os representantes*. Ao contrrio, conec-tando-se com razes histricas profundas desses pases, a atomizao da sociedade e do estado, a disseminao das reas marrons e suas maneiras

    (21) No se deve esquecer que os efeitos de longo prazo da crise e da ideologia antiestatis-ta indiscriminada subjacentes s atuais polticas econmicas sobre fatores cruciais para sus-tentar o crescimento econmi-co. Refiro-me em particular a polticas de educao, sade e cincia e tecnologia, e mo-dernizao da infra-estrutura f-sica. Essas reas esto sendo muito negligenciadas, a des-peito de muitas advertncias e reclamaes. Mas, para levar a cabo essas polticas preciso uma mquina do estado razoa-velmente enxuta e eficiente. (*) No original: accountability (N.T.).

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    peculiares de pressionar por seus interesses, e a enorme urgncia e complexidade dos problemas a serem enfrentados alimentam as propen- ses delegativas dessas democracias. A pulverizao da sociedade em mirades de atores racionais/oportunistas e sua irritao com uma situa- o que todos e, portanto, aparentemente ningum parecem causar encontram um culpado principal: o estado e o governo. Esse senso comum , por um lado, um solo frtil para ideologias antiestatistas simplistas; por outro, impulsiona a vertiginosa perda de prestgio do governo democrtico, de suas fracas instituies e de todos os polticos. Certamente, essas avaliaes so bem fundamentadas: os fracassos de polticas do governo, suas trapalhadas e vacilaes, sua onipotncia impotente, e freqentemente a evidncia de sua corrupo, bem como os tristes espetculos oferecidos por polticos dentro e fora do Congresso e dos partidos, criam condies ideais para a exculpao projetiva da sociedade nos mltiplos defeitos do estado e do governo.

    O mnimo que se pode dizer sobre esses problemas , em primeiro lugar, que eles no ajudam a avanar para uma democracia institucionali- zada consolidada; em segundo lugar, eles tornam extremamente difcil a implementao das polticas complexas, de longo prazo e negociadas multilateralmente que poderiam tirar esses pases do pntano; e, em terceiro lugar (no s na Amrica Latina), que esses problemas interagem poderosamente com uma tradio de conceber a poltica de modo cesarista, antiinstitucional e delegativo.

    Neste ponto deve ser colocada uma questo pendente: existe manei- ra de sair dessas espirais descendentes? Ou, mais precisamente, em que momento e sob que condies existe essa sada? Devemos lembrar que estamos lidando com pases (Argentina, Brasil e Peru) que tiveram a infelicidade de sofrer um padro de inflao alta recorrente, pontuado por perodos de hiperinflao ou muito prximo dela (dependendo de defini- es que no cabe discutir aqui), e que passaram por vrios programas de estabilizao fracassados.

    Um pas que recentemente sofreu esses problemas mas que parece ter encontrado uma sada o Chile. As polticas do governo Pinochet compreenderam, com uma eficcia que Lenin teria admirado, a destruio da maior parte do que restou (depois do governo Allende) do mercado interno e da burguesia voltada para a substituio de importaes que ficou agradecida demais por ter sido salva enquanto classe para organizar qualquer oposio. Certamente, o governo Pinochet tambm reprimiu brutalmente as organizaes trabalhistas e os partidos polticos que poderiam ter articulado uma oposio efetiva a suas polticas. Nesse deserto societal, os custos sociais foram enormes, e, embora com vrias mudanas e acidentes, o programa neoliberal foi basicamente implemen- tado. O novo governo democrtico desse pas tem de resolver o problema ainda srio, mas menos exigente que os da Argentina, do Brasil e do Peru, de preservar a inflao baixa, taxas razoveis de crescimento econmico e um clima internacional favorvel. Esse governo enfrenta tambm o proble- n

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    ma de como aliviar as desigualdades acentuadas pelo regime autoritrio anterior. Mas o fato grave que as conseqncias distributivas de polticas econmicas mais ambiciosas e menos duras e ortodoxas, aplicadas em pases como o Brasil, a Argentina e o Peru, no foram melhores que aquelas do governo Pinochet. Alm do mais, os recursos de que o governo chileno dispe atualmente para aliviar os problemas de equidade so muito maiores que aqueles disponveis para o Brasil, o Peru e a Argentina. Finalmente, o fato de que o Chile esteve at h algum tempo mas no est mais aprisionado nas espirais aqui descritas significa (embora essa no seja a nica razo, havendo outras, mais histricas, que no posso elaborar aqui) que seu estado est em melhor forma do que os dos pases discutidos acima para lidar com as questes de equidade e desenvolvimento que herdou.

    Outro pas nessas condies poderia ser o Mxico. Mas a inflao e seus mltiplos deslocamentos sociais nunca foram to altos no Mxico como foram na Argentina, no Brasil e no Peru (ou como hoje na maior parte da ex-Unio Sovitica); o PRI foi um instrumento mais eficaz para a implementao de polticas do que qualquer um disponvel naqueles pases; e os interesses geopolticos de seu vizinhos, os Estados Unidos, esto ajudando a ainda penosa e incerta, mas comparativamente mais fcil, rota desse pas para a consecuo das metas de longo prazo de suas polticas atuais. Outro pas a Bolvia, onde a implementao de polticas bem-sucedidas no controle da inflao e na liberalizao do comrcio e das finanas (mas no, pelo menos at agora, na retomada do crescimento e do investimento) foi acompanhada de uma brutal represso, que dificilmente pode ser vista como consistente com a democracia. Um candidato mais recente a fazer parte desta lista a Argentina. Focalizando os casos latino-americanos, o que o Chile, a Bolvia e a Argentina tm em comum? Dito de modo simples, o fato de que as crises nesses pases no primeiro sob governo autoritrio e nos dois ltimos sob regimes eleitos democraticamente chegaram ao fundo do poo. O que esse fundo? a convergncia do seguinte: (1) um estado que enquanto princpio de ordem tem uma escassa correspondncia com o comportamento da maioria dos atores, que enquanto burocracia alcana limites extremos de desintegrao e ineficcia, e que em algum momento se torna incapaz de sustentar a moeda nacional; (2) um movimento de trabalhadores que foi completamente derrotado, no sentido de que no mais capaz de se opor s polticas neoliberais, exceto por meio de protestos muito desagregados e de curta durao; (3) uma classe capitalista que em grande medida se autodevorou, com os ganhadores se metamorfoseando em conglomerados centrados financeiramente e orientados para fora (junto com os ramos do comrcio e os profissionais liberais que alimentam o consumo de luxo); e (4) uma atitude generalizada de concordncia em que a vida sob contnua inflao alta e incerta to intolervel que qualquer soluo prefervel, mesmo quando essa soluo ratifica um mundo mais desigual no qual muitas formas de sociabilidade solidarstica se perderam. Nesse momento, n

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    quem quer que tente controlar a inflao e iniciar a "reestruturao" recomendada pelas vises neoliberais j no enfrenta, como pouco tempo antes, poderosas coalizes bloqueadoras: as fraes mais importantes da burguesia no tm mais interesses antagnicos com essas polticas, as vrias expresses dos interesses populares e de classe mdia esto fracas e fracionadas, e os funcionrios do estado que sobreviveram s suas prprias tribulaes podem agora esperar a melhora de sua situao. A pulverizao da sociedade e do aparelho do estado, juntamente com a demanda primordial de retorno a um mundo social ordenado, termina por eliminar as resistncias que, com relutncia mas efetivamente, alimentaram as voltas anteriores da espiral. No Chile isso aconteceu por meio dos efeitos combinados da crise deflagrada sob o governo da Unidade Popular e das polticas repressivas e decididas do perodo Pinochet. Na Bolvia e na Argentina h uma grande ironia: depois da hiperinflao, o fim (aparente, ainda longe de plenamente alcanado) das espirais aconteceu sob presi-dentes originados em partidos/movimentos como o MNR e o peronismo; provavelmente cabia a tais presidentes, e s a eles, completar a derrota dos respectivos movimentos de trabalhadores.

    E o Brasil? O Brasil foi o ltimo dos pases aqui discutidos a entrar nesse tipo de crise. Isso esteve estreitamente relacionado ao maior tamanho de seu mercado interno e a seu desempenho econmico mais dinmico, o que criou uma economia mais complexa e industrializada que a de seus vizinhos. Em uma espcie de "paradoxo de sucesso"22, essa vantagem pode passar a ser uma maldio. No Brasil h mais agentes poderosos que nos outros pases, capazes de vetar as polticas neoliberais mais ou menos ortodoxas que, de qualquer maneira, foram e sero tentadas de novo. Inversamente, se no houvesse alternativa a no ser continuar as espirais at o fundo do poo, o grau de destruio econmica seria muito maior. Alm do mais, em termos sociais, em contraste com a situao dos pases do Cone Sul antes de percorrerem suas prprias espirais, no Brasil j existe um vasto segmento da populao que no tem mais para onde cair.

    (22) Discuti os aparentes para-doxos de sucesso do Brasil em ODonnell, Guillermo. "Transi-tions, continuities and parado-xes". In: Mainwaring, S., O'Donnell, G. e Valenzuela, J. Samuel, orgs. Issues in demo-cratic consolidation. The new South American democracies in comparative perspective. Notre Dame: Notre Dame University Press, 1992, pp. 17-56.

    4. Uma concluso parcial

    H alternativas s crises que esbocei? O dilema do prisioneiro tem uma dinmica poderosa: invocaes ao altrusmo e unidade nacional, bem como propostas de polticas que supem solidariedades amplas e identidades firmes no resolvero o problema. Se h uma soluo, ela provavelmente se baseia na descoberta de reas que so importantes em seus impactos sobre a situao geral e nas quais a ao competente (particularmente do governo) pode aumentar os horizontes de tempo (e, consequentemente, o escopo das solidariedades) de atores decisivos. A melhor soluo para levar a esses resultados o fortalecimento das n

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    instituies polticas e sociais. Mas nas condies que esbocei essa de fato uma tarefa muito difcil. No mundo contemporneo, a alegre celebra-o do advento da democracia deve ser complementada com o sereno reconhecimento das imensas (e, na verdade, historicamente incomuns) dificuldades que sua institucionalizao e seu enraizamento devem enfren-tar. Como mostraram o Haiti, o Peru e a Tailndia, esses experimentos so frgeis. No h, tambm, nenhuma fora histrica imanente que guiaria as novas democracias para uma forma institucionalizada e representativa, e para a eliminao de suas reas marrons e dos mltiplos males sociais subjacentes. A longo prazo, as novas democracias podem se dividir entre aquelas que seguem esse curso feliz e aquelas que regridem para o pleno autoritarismo. Mas as democracias delegativas, o fraco controle horizontal sobre a atividade dos representantes*, estados esquizofrnicos, reas marrons e cidadania de baixa intensidade fazem parte do futuro previsvel de muitas das novas democracias.

    (*) No original: horizontal ac-countability (N.T.).

    Recebido para publicao em maro de 1993. Guillermo O'Donnell diretor acadmico do Helen Kellogg Institute for International Studi- es e professor Helen Kellogg de Governo e Sociologia da Universidade de Notre Dame. J publicou nesta revista "De-mocracia delegativa?" (N 31).

    Novos Estudos CEBRAP

    N. 36, julho 1993 pp. 123-145

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