Sobre Urbanismo

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Sobre Urbanismo VIANA &MOSLEY Editora Denise Barcellos Pinheiro Machado Organizadora Arquitetura e Cidade

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Denise Barcellos Pinheiro MachadoOrganizadora

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Sumário

Apresentação | 7Denise Barcellos Pinheiro Machado

Parte I Cidade e Tempo: Permanências e Rupturas | 15Utopias urbanas modernistas | 17Sônia Hilf SchulzA dialética entre permanência e ruptura nos processos de transformação do espaço | 27Cristóvão Fernandes DuartePercursos do urbanismo contemporâneo | 37Jorge MoscatoGlobalização e história ou atores sociais e culturas urbanas já são levados a sério? | 43Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira

Parte II Cidade e Espaço: Projetos Urbanos | 57Contextos e transformações | 59Nuno PortasO ensino do projeto urbano entre a crise e a mutação | 65Yannis TsiomisQuem debate o projeto urbano no Brasil? | 81João Farias RovatiOrdem e irregularidade no espaço urbano: uma perspectiva regulatória e urbanística | 89Rachel Coutinho Marques da SilvaQual futuro esperar para as favelas? | 103Um debate sobre a qualidade dos espaços físicos de assentamentos populares à luz de conceitos de espaço públicoLuciana da Silva Andrade

Parte III Cidade e Contexto | 121Por uma mitocrítica do urbanismo: da pertinência de mitos e arquétipos na prática | 123urbanística do Rio de JaneiroJosé Almir Farias FilhoA paisagem em movimento | 149Lucia Maria Sá Antunes CostaRio de Janeiro e árvores urbanas: uma paisagem afetiva | 159Ivete Mello Calil FarahO outro lado do Rio de Janeiro | 175Marlice Nazareth Soares de Azevedo

Projeto EditorialDenise B. Pinheiro MachadoPROURB - Programa de Pós-graduação em Urbanismo FAU/UFRJ

Coordenação EditorialMarta Mosley - Editora Viana & Mosley

DiagramaçãoHybris Design

CapaIsabella Perrotta

Foto da capaJosé Ripper Kós

Revisão de textoElisabeth Simões

Prourb – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo

Avenida Pedro Calmon, 550Edifício da FAU/Reitoria, Sala 521Cidade Universitária - Rio de Janeiro CEP: 21941-901Tel.: 55(21) 2598-1990 - Fax: 55(21) [email protected]

Av. Ataulfo de Paiva, 1.079/ sala 704

Leblon - Rio de Janeiro, CEP: 22440-031

Tel./Fax: (21) 2540-8571

Diretor Comercial: Richard Mosley

Tel.: (21) 3204-9285

[email protected]

www.vmeditora.com.br

VIANA & MOSLEYEditora

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Este livro1 inaugura a Coleção Arquitetura e Cidade, uma parceria entre a Editora Viana

& Mosley e o PROURB – Programa de Pós-graduação em Urbanismo (FAU/UFRJ). A Coleção

vem contribuir para a divulgação do conhecimento produzido na área de Arquitetura e

Urbanismo trazendo a público temas contemporâneos sobre a cidade e a arquitetura, discu-

tindo questões da práxis e da teoria, fundamentais no campo disciplinar.

SOBRE URBANISMO reúne um significativo conjunto original de textos2. A reflexão sobre os

métodos, as teorias e o porvir do Urbanismo é a linha transversal que conduz os diversos

ensaios. A obra se organiza a partir de quatro recortes privilegiados de análise sobre a cida-

de e sua arquitetura: tempo, espaço, contexto e futuro.

A primeira parte, CIDADE E TEMPO: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS discute o tempo na cidade como

transformador do espaço. A partir de diversas abordagens teóricas as permanências e ruptu-

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Parte IV Cidades e Futuro: Reflexão e Crítica | 189A Arquitetura e o futuro | 191Flavio Oliveira FerreiraViver a modernidade | 199José BarkiCidades e futuro: reflexão e crítica | 213Carlos Antônio Leite BrandãoA criação no pensamento das imagens | 223Carlos Alberto MuradQual futuro para um mundo urbanizado na América Latina? | 241Roberto Segre

Sobre os autores | 258

Apresentação

Denise Barcellos Pinheiro Machado

1 Forma e Movimento (de Cristóvão Fernandes Duarte) e A Cidade pelo Avesso (de RachelCoutinho Marques da Silva – org.), compõem, junto com Sobre Urbanismo, os três primeiros lançamen-tos da Coleção Arquitetura e Cidade.

2 Grande parte das contribuições deste livro tiveram origem nas apresentações feitas no"Seminário Internacional Urbanismo 10 Anos: percursos e prospectivas", realizado no Rio de Janeiropelo PROURB em 2004. Este Seminário recebeu o apoio de FAPERJ, CAPES, CNPq e FUJB.

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em enfatizar os tempos urbanos curtos em detrimento de tempos mais longos e de um feixe

mais complexo de dados da história das cidades, e o conseqüente silenciamento da dimen-

são histórica da cidade, fundamental nestas análises. Mostra que a globalização não é um

fenômeno novo e tampouco irreversível, mas é histórico.

Tempo e espaço se entrelaçam. Na segunda parte do livro, CIDADES E ESPAÇO: PROJETOS URBA-

NOS, os autores discorrem sobre a teoria e a prática projetual na cidade contemporânea em

seus diversos aspectos.

Nuno Portas nos brinda com uma fina digressão sobre a complexidade e ambigüidade do

que chama hoje contexto, a partir das transformações do pensamento sobre a cidade desde

o modernismo até o momento contemporâneo. Mostra que a relação entre o contexto e o

novo não é sempre igualitária e que a razão desta diferença de processos reside na força cul-

tural e de consenso das condicionantes que cada lugar impõe a um dado programa. Por fim,

alerta que os projetos urbanos para as nossas cidades necessitam incorporar as prioridades

sociais, assumindo a regeneração e continuidade das vastas áreas de assentamentos irregu-

lares periféricos e das áreas industriais com o restante do tecido urbano.

Yannis Tsiomis, ao abordar a questão do ensino do projeto urbano, nos fala da concepção

em arquitetura e da aporia. A principal razão desta aporia é a necessária distância entre aquilo

que se pratica e aquilo que se ensina. Sustenta a hipótese de que a concepção em arquitetura

se inscreve nas mutações dos mundos a construir em função da posição na história dos espa-

ços concretos. São concepções plurais e não objetivas, mas tributárias de coisas aparentemente

objetivas, entre outras a técnica. A concepção atinge o real pela construção de um método.

Mostra que as concepções e posições contraditórias se apóiam sobre as certezas que trazem a

legibilidade social e um ambiente técnico que, apesar das inovações, é controlado. É a ausência

desta legibilidade que nos faz hoje hesitar entre a crise, que alguns quiseram corrigir, e a muta-

ção através da qual outros defendem a mudança radical, não mais na política, mas no tratamen-

to do espaço e dos territórios urbanos. Assim, a concepção é um condutor e uma visão entre o

preexistente (cidade histórica, paisagem, território a urbanizar) e aquilo que desenha o porvir.

João Farias Rovati retoma as definições de projeto urbano e faz uma análise das aborda-

gens sobre o tema no âmbito acadêmico e profissional, com foco na experiência de Porto

Alegre. Mostra que apesar de temas e ações identificados com a problemática do projeto

urbano estarem presentes em trabalhos desenvolvidos na academia, não se observa um deba-

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Apresentação

ras são analisadas como processos dinâmicos de constituição da cidade, desde as utopias

modernistas às vicissitudes do momento contemporâneo.

Num percurso teórico preciso, Sonia Hilf Schulz traça uma breve história das utopias sub-

jacentes às transformações sofridas pelas cidades modernas, cujo legado foi uma urbanidade

que nega o potencial da cidade como lugar de trocas. O fracasso dessas teorias e práticas

urbanísticas obrigaria os arquitetos das gerações seguintes a abandonar idealidades e enfren-

tar o desafio de pensar e fazer realidades urbanas.

Cristóvão Fernandes Duarte apresenta uma reflexão acerca da relação dialética entre per-

manência e ruptura nos processos de transformação do espaço urbano, tendo como eixo con-

ceitual de análise as teorias desenvolvidas por Henri Lefebvre. Resgata o método de análise

regressivo-progressivo, proposto por este autor como chave de decifração daqueles proces-

sos. Tomando como referência a periodização proposta por aquele autor (era agrária, era

industrial e era urbana), e contribuições de outros autores, discute suas implicações sobre o

processo de constituição do espaço urbano ao longo da história.

Jorge Moscato discorre sobre os pressupostos e o devir do urbanismo contemporâneo a

partir da história do Movimento Moderno, que divide em dois momentos: século longo (sécu-

lo XIX) e século curto (século XX). Refere-se às posturas iniciais e às sucessivas correções que

o Movimento Moderno sofreu até entrar no período pós-século que se inicia na década de

90. É quando se assiste ao processo de mudança dos paradigmas necessários para a práxis

do século XXI, cujos pressupostos são baseados na volta da construção de projetos importan-

tes nas cidades históricas; na definição de novos projetos urbanos a partir de uma visão da

cidade como objeto; no abandono da idéia de trabalhar sobre a quadra fechada e a volta ao

bloco aberto; e na incorporação da natureza nas formulações urbanas através da noção de

paisagem. Conclui dizendo que o urbanismo atual aparece claramente liberado da carga

social e política do século passado, e destaca que embora não saibamos ao certo quais seriam

os novos paradigmas do século XXI, podemos supor que a angústia clássica sobre o futuro

seja substituída pela esperança.

Finalizando a primeira parte, Margareth da Silva Pereira nos alerta que embora os elos

entre globalização e cidades pareçam suficientemente tecidos, a forma como a dimensão his-

tórica é tratada em grande parte dos trabalhos sobre o tema constitui problema. Sua argu-

mentação é sustentada na insistência do binômio globalização-formação de cidades globais

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Sobre Urbanismo

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os papéis sociais. Pontua momentos e personalidades significativos dos diversos estágios do

urbanismo carioca, estabelecendo sua relação com imagens míticas e arquetípicas constituin-

tes do inconsciente coletivo, tal como considerado por Jung. Para Farias, assim como mitos e

arquétipos servem à compreensão da arte, eles podem também servir à história do urbanismo,

pois o urbanismo e seu objeto - a cidade - remetem à concepção de arte como transposição

de uma idéia em obra. Racional, por certo, mas também obra estética, visto que a cidade

moderna é o lugar da educação dos sentidos, da formação de novas sensibilidades.

Defendendo a inclusão das águas urbanas no projeto da paisagem, Lúcia Maria Sá

Antunes Costa traz uma contribuição específica a este debate. Argumenta que as águas são

paisagem em movimento - modelando e refazendo continuamente o contexto físico e social.

Destaca o valor das águas urbanas para as cidades e sua população e aponta a importância

de três premissas para o desenho da paisagem – visibilidade, acessibilidade e conectividade –,

sinalizando que um novo olhar sobre a questão das águas é uma atitude fundamental no

desenho da paisagem contemporânea.

Ivete Mello Calil Farah chama a atenção da importância das árvores urbanas na constitui-

ção da paisagem afetiva das cidades, mostrando o potencial afetivo que as árvores despertam

nos habitantes. Sustenta a consideração dos valores e significados referentes às árvores urba-

nas nos projetos paisagísticos, de forma que a sua potencialidade afetiva possa ser explorada.

Do outro lado do Rio de Janeiro, Marlice Nazareth Soares de Azevedo mostra que o elo

político, socioeconômico e físico-urbano entre Rio de Janeiro e Niterói sempre foi cerceado

pelas águas da baía de Guanabara. Assim, o sonho de continuidade das duas cidades sem-

pre esteve presente no imaginário fluminense. Numa abordagem histórica, Marlice Azevedo

vai desvendando a transformação da imagem de Niterói, através das marchas e contramar-

chas do processo de ocupação da orla da cidade que hoje abriga o projeto Caminho

Niemeyer, definido como área de especial interesse urbanístico, paisagístico e turístico. O sím-

bolo da cidade hoje é uma obra arquitetônica futurista voltada para a cultura.

A última parte do livro, CIDADES E FUTURO, retoma algumas questões discutidas nos capítulos

anteriores, abrindo caminhos de reflexão que passeiam pela filosofia, a história e outras discipli-

nas.A noção de futuro na contemporaneidade está atrelada ao seu contraponto no modernismo.

Para Flavio Ferreira, o núcleo do conhecimento da Arquitetura é constituído pela articu-

lação entre História, Teoria e Crítica. Mostra como as modificações em qualquer destas cate-

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Apresentação

te conceitual sobre o projeto urbano. Ao fazer um paralelo entre o discurso acadêmico e a

prática profissional, tece considerações sobre as diferenças entre projeto urbano e planeja-

mento urbano, calcadas principalmente na formulação de um programa para a cidade; entre

o projeto de arquitetura inscrito no tempo curto, em oposição ao projeto urbano inscrito num

tempo longo com atores múltiplos, e concebido como parte de uma obra – a cidade – que

jamais será integralmente concluída. Analisa o Orçamento Participativo, experiência inovado-

ra que não tem despertado o interesse dos planejadores urbanos. Insiste, por fim, na inexis-

tência, em Porto Alegre, de um debate focalizado no projeto urbano – que não se confunde

nem com o projeto de arquitetura nem com o planejamento.

Com o foco na cidade contemporânea brasileira, imprensada entre a ordem e o caos,

Rachel Coutinho Marques da Silva propõe uma reflexão sobre a irregularidade urbana,

expressa no espaço da cidade com a aparência da não-conformidade às normas. No intuito

de compreender como a ordem e a desordem atuam na constituição do espaço da cidade

contemporânea explora a análise do papel das normas urbanísticas na construção de uma

lógica formal, salientando a monetarização destas como parte da lógica intrínseca à ordem e

à desordem.

Luciana da Silva Andrade discute a idéia de favela como solução. Tomando como obje-

to a favela da Rocinha no Rio de Janeiro, foca sua análise na qualidade físico-formal dos espa-

ços. Descreve a qualidade dos percursos no interior da favela e, em seguida, com base em

debates sobre os significados da expressão espaço público, analisa as condições de vida

impostas pelo espaço físico a seus moradores. Por fim, retomando a oposição remoção versus

urbanização, enfatiza a necessidade de avançar nas políticas com vistas a superar as questões

relacionadas aos espaços de vida que são destinados à população pobre.

A cidade no tempo e no espaço implica em contexto, que na cidade contemporânea é mul-

tifacetado. A terceira parte deste livro, CIDADE E CONTEXTO, reúne olhares sobre diferentes contex-

tos e categorias da cidade, mostrando aspectos da complexidade intrínseca de nossas cidades.

A interseção entre a história do urbanismo e a psicologia analítica é o viés apontado por

José Almir Farias Filho para falar sobre a cidade. Analisando à luz da mitocritica e através de

um percurso historiográfico o urbanismo praticado na cidade do Rio de Janeiro ao longo do

século XX, cria um modelo alternativo de interpretação fornecido por uma antropologia social

menos preocupada com os recortes estruturais da sociedade do que com as representações e

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Sobre Urbanismo

Page 8: Sobre Urbanismo

rama das formações urbanas e dos paradigmas que nortearam a atuação de arquitetos e urba-

nistas ao longo da história. Diante do quadro que se desenha, pleno de contradições e defasa-

gens, ele salienta que, antes de assumir uma visão apocalíptica sobre o futuro social e urbano,

é necessário refletir sobre a herança recebida e os instrumentos de transformação do presente

real. Segundo Segre, o desafio consiste em assumir novos paradigmas de desenho urbano, que

devem adaptar-se a solicitações reais e objetivas, distantes da busca de futuros desconhecidos.

Esperamos que as idéias aqui apresentadas possam contribuir para os estudos da cidade e

de sua arquitetura, instigando os leitores a percorrer outros e novos caminhos sobre urbanismo.

Para finalizar, expressamos nosso reconhecimento às colaborações dos autores e de

Elisabeth Simões, sem o que este livro não teria sido possível.

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Apresentação

gorias resultam em mudanças nas demais, introduzindo o tempo como um elemento impor-

tante a ser considerado. O presente é um ponto móvel que percorre a linha do tempo dividin-

do-o em dois segmentos infinitos: o passado e o futuro. Assim, ao contrário do que aconte-

cia no Modernismo, as propostas na contemporaneidade não são feitas para um futuro dis-

tante e perfeito, mas para apoiar, o mais rapidamente possível, melhorias no ponto móvel e

imperfeito do presente. Salienta a substituição do núcleo do conhecimento da Arquitetura

entre o Modernismo e o momento contemporâneo, quando a base filosófica racionalista

sobre a qual este se assenta dá lugar a um enfoque empiricista, determinando um novo olhar

sobre a cidade e as propostas para o futuro.

Viver a modernidade de José Barki associa a utopia à noção de futuro. Mostra que as

noções de progresso e bem-estar se confundem na própria idéia da metrópole. Introduz a

questão da pós-modernidade e da modernidade, para salientar que esta última continua a

provocar controvérsias envolvendo posições filosóficas na interpretação da sociedade, da civi-

lização, da arte e da cultura. Finaliza apontando para uma razão crítica como a possibilidade

de refletir acerca da legitimação da sociedade contemporânea e recuperar a racionalidade

moderna, em que os homens se dêem conta que a preservação da humanidade ultrapassa a

busca de soluções tecnológicas, tratando-se, antes, de descobrir modos de restringir o poten-

cial destrutivo dessas mesmas soluções e reequilibrar os vínculos com a Natureza.

Na primeira parte de seu artigo Carlos Antônio Leite Brandão entrelaça cidade e universida-

de apontando as promessas e o caráter comum a ambas no início da modernidade. Em seguida,

alerta para a possibilidade de já estar em curso a desinvenção da cidade, delineando-se a cidade

do futuro como uma não-cidade, e apresenta como primeiro passo metodológico para preservar

a cidade em nosso devir, reconhecer o que é republicano na polis atual, dando-lhe passagem.

Tendo como pano de fundo o encontro entre a Filosofia e o Urbanismo, Carlos Alberto

Murad trabalha aspectos conceituais e metodológicos da fenomenologia bachelardiana da

Imagem. Apresenta procedimentos e dinâmicas objetivando uma sistematização de sua meto-

dologia filosófico-poética, visando ampliar a difusão e utilização desta metodologia por estu-

dantes e pesquisadores do Urbanismo, Design e Arte, na investigação poética de lugares,

sítios, processos criadores e objetos da criação.

Introduzindo o questionamento sobre o futuro do mundo urbanizado latino-americano,

Roberto Segre aponta perspectivas para as nossas cidades, traçando em sua análise um pano-

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Sobre Urbanismo

Page 9: Sobre Urbanismo

Parte I

Cidade e Tempo:Permanências e Rupturas

Page 10: Sobre Urbanismo

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A expansão do processo de industrialização no final do século XIX modificou profunda-

mente as paisagens urbanas. As transformações nos modos de produção, o aumento das ati-

vidades agrárias, industriais e comerciais, o desenvolvimento dos meios de transporte e de

comunicação, associados ao declínio da mortalidade resultante da melhor nutrição e de avan-

ços na medicina, originaram concentrações urbanas sem precedentes. A vitória do progresso

tecnológico impôs à cidade um crescimento desmesurado que, incompatível com a capacida-

de das estruturas medievais e barrocas, provocou a saturação e a deterioração dos centros

urbanos. O industrialismo produziu, segundo Mumford, "o mais degradado ambiente urbano

que o mundo jamais vira; na verdade, até mesmo os bairros das classes dominantes eram

imundos e congestionados" (1991: 484). Sem um planejamento prévio, os novos temas arqui-

tetônicos – fábricas, estações ferroviárias, lojas de departamentos, bancos e edifícios de escri-

tórios – invadiram as cidades existentes, expondo a precariedade de seus sistemas de circu-

lação e trazendo ameaças de epidemias para a população.

Na tentativa de regenerar a degradada cidade industrial, os arquitetos propuseram estra-

tégias para não somente facilitar os deslocamentos intra-urbanos, mas também higienizar o

ambiente construído. Todavia, esses projetos revelaram-se utópicos, sem aplicação prática,

pois não respondiam às complexidades formais e funcionais do espaço urbano real. As uto-

pias urbanas foram recorrentes no mundo ocidental desde a Antiguidade, visando idealizar

Utopias urbanas modernistasSonia Hilf Schulz

Page 11: Sobre Urbanismo

verde agrícola permanente que impedia a fusão com outro núcleo, a cidade seria compacta,

eficiente, saudável e, conseqüentemente, bela. Ao atingir o limite de ocupação, uma nova

cidade seria construída nas proximidades e, assim, sucessivamente até finalizar a implemen-

tação da configuração planejada. Apesar de autônomas, as unidades estariam interligadas

por um sistema de transporte rápido, que diminuiria os prejuízos com a dispersão, oferecen-

do as mesmas oportunidades sociais e econômicas de uma metrópole. A cidade-jardim, res-

saltou Robert Fishman, “atrairia pessoas para fora de cidades inchadas como Londres e suas

perigosas concentrações de riqueza e poder; ao mesmo tempo, o campo seria dotado de cen-

tenas de novas comunidades onde a cooperação em pequena escala e a democracia direta

poderiam florescer” (Ibid.: 22-3).

Howard julgava que o fascínio exercido por um ambiente urbano mais equilibrado pro-

vocaria a evasão da população e a contração das grandes metrópoles. A cidade-jardim não

seria, portanto, satélite de um centro urbano nem reproduziria a organização da metrópole

na tentativa de constituir mais um espaço, em escala reduzida, para concentração de rique-

zas. A intenção de instaurar um poder descentralizado para uma sociedade democrática era

premissa inegociável, supostamente traduzida pelo desenho urbano. As cidades circulares dis-

tribuídas a partir de uma centralidade enfatizavam a perfeição do círculo, considerado a mais

bela e eficiente figura geométrica. A simetria compositiva seria causa e efeito da cooperação

e da harmonia sociais. Os diagramas da cidade-jardim, entretanto, eram análogos aos traça-

dos urbanos ortodoxos. Se os conceitos de planejamento que viabilizariam a utopia socialis-

ta de Howard eram opostos às idéias que fundamentavam os projetos despóticos, o formalis-

mo, o zoneamento funcional e a limitação espacial eram muito semelhantes. Assim, após

séculos de experimentações, até mesmo os arquitetos defensores de ideologias mais liberais

ainda sustentavam seus modelos urbanos na rigidez da geometria euclidiana.

Quase simultaneamente, estavam sendo elaboradas as premissas de um movimento que

buscava atuar sobre territórios de dimensões menores através de projetos monumentais, pro-

vocadores de forte impacto na paisagem urbana. A principal meta do City Beautiful

Movement era o embelezamento das cidades. A estetização não apenas dos ambientes cons-

truídos, mas também da arquitetura e das artes aplicadas, pressupunha a recuperação dos

cânones tradicionais e a imitação rigorosa de modelos renascentistas no intuito de combater

o ecletismo dominante e o crescente prestígio da mecanização. Influenciado pelos preceitos

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Utopias urbanas modernistas

cidades para aplacar simultaneamente a nostalgia por um passado perdido e a ansiedade por

um futuro inatingível. No início do século XX, entretanto, ocorreu um ineditismo: ao invés de

buscarem inspiração no passado, os arquitetos procuravam prognosticar o futuro para proje-

tarem a cidade do presente. Segundo David Harvey, “o modernismo surgido antes da primei-

ra guerra mundial era mais uma reação às novas condições de produção (a máquina, a fábri-

ca, a urbanização), de circulação (os novos sistemas de transportes e comunicações) e de con-

sumo (a ascensão dos mercados de massa, da publicidade, da moda de massas) do que um

pioneiro na produção dessas mudanças” (1993: 32).

As principais utopias urbanas modernistas oscilavam entre o adensamento e a dispersão,

entre a verticalização e a horizontalização espaciais. Apesar de muitos aspectos divergentes,

todas as propostas defendiam a cidade do futuro como descontinuidade em relação às pre-

cárias e lamentáveis condições do presente. Jürgen Habermas apontou que "a vanguarda se

considerava invadindo territórios desconhecidos, expondo-se aos perigos dos encontros

repentinos e conflitantes, conquistando um futuro ainda desocupado" (1995: 5). Para os

arquitetos, a antiga ordem estava superada e somente a total redefinição do conceito de cida-

de impulsionaria transformações profundas, capazes de elevar o estágio de civilidade. "A pró-

pria completude de suas cidades ideais expressava suas convicções de que havia chegado o

momento para os programas totalizantes, e para um inteiro repensar dos princípios do plane-

jamento urbano" (Fishman 1998: 20). Em vez de melhorias graduais, era inevitável uma rees-

truturação radical, uma revolução urbana, que solucionasse a crise da urbanidade e suas dis-

torções socioeconômicas.

Na Inglaterra, onde as condições técnicas e a disponibilidade de matérias-primas tinham

favorecido a Revolução Industrial, surgiu também a primeira contestação aos malefícios tra-

zidos pela industrialização. Projetada por Ebenezer Howard, a cidade-jardim buscou conciliar

valores sociais e políticos com o tradicional gosto inglês pela natureza. Esse modelo sinteti-

zava as vantagens e eliminava as desvantagens da cidade e do campo através da criação de

núcleos contendo todas as funções urbanas, destinados à implantação de comunidades coo-

perativas auto-sustentáveis. O campo urbanizado, a cidade-jardim, seria uma alternativa pro-

missora para o congestionado centro londrino e suas miseráveis periferias. Howard previu

uma população máxima de trinta mil habitantes em um território de mil acres para garantir

densidade inferior à existente nos espaços urbanos medievais. Circundada por um cinturão

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Sobre Urbanismo

Page 12: Sobre Urbanismo

Embora patrocinada pela iniciativa privada, a torre passou a representar a imagem do

espaço público. A torre era demonstração de progresso, símbolo do capitalismo e, portanto,

adquiriu preponderância na paisagem urbana. Assim, nas primeiras décadas do século XX,

alguns arquitetos elaboraram projetos utópicos envolvendo a verticalização do espaço urbano.

"Era contra o que lhes parecia uma limitação artificial e míope da forma do arranha-céu que

modernistas como Le Corbusier começariam a lutar nos anos 1920. Os arranha-céus eram

maravilhosos, mas não como elementos a serviço da imagem da rua tradicional" (ibid.: 259-

260). Paralelamente, a celebração do automóvel em movimento veloz exigia o traçado de ruas

retilíneas, supostamente mais adequadas às atividades racionais humanas que as ruas sinuo-

sas, consideradas caminhos dos asnos. Sempre usando a metáfora da eficiência mecânica, Le

Corbusier (1987: 131) declarou que "a rua é uma máquina de circular; é na realidade uma

espécie de fábrica para produzir um tráfego veloz.A rua moderna é um novo órgão". Nas cida-

des do passado, o tráfego de pessoas e de bens era insuficiente para congestionar os centros

urbanos, mas com o advento do trem e a inserção de estações ferroviárias nas áreas centrais,

as ruas tornaram-se muito estreitas e a única alternativa era aparentemente a abertura de ave-

nidas. Além de favorecer o tráfego motorizado, a cidade rasgada por ruas largas permitiria a

distribuição irrestrita dos componentes salubres da natureza: a circulação do ar, a penetração

da luz solar e a proliferação do verde. Ao invés da sombria cidade industrial, natureza e máqui-

na deveriam ser integradas em uma cidade higiênica e tecnologicamente eficiente.

A estratégia singular utilizada por Le Corbusier na Ville Contemporaine, a cidade contem-

porânea para três milhões de habitantes, foi combinar a menor ocupação possível do solo

urbano com a maior concentração admissível de objetos arquitetônicos. O espaço urbano era

recortado por linhas que delimitavam territórios homogêneos, impondo rigidez formal e fixi-

dez funcional. Os traçados reguladores eram a condição de possibilidade da ordem e do con-

trole sobre o ambiente construído. "A obrigação da ordem. O traçado regulador é uma garan-

tia contra o arbitrário" (Le Corbusier 1998: 41). Assim, os princípios definidores da forma

urbana eram a distribuição geométrica regular e a centralização. No entanto, nenhuma arqui-

tetura religiosa ou cívica ocuparia o ponto focal. Na interseção dos eixos principais seria

implantado um terminal intermodal com diversos níveis de circulação, inclusive subterrâneos,

conectados a ferrovias ou rodovias e na cobertura estaria um aeroporto, que agora substituía

o portão de entrada da cidade. Torres de vidro cruciformes, esvaziadas de referências históri-

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Utopias urbanas modernistas

acadêmicos da École des Beaux-Arts de Paris, o revivalismo clássico foi um fenômeno tanto

europeu quanto norte-americano. Não por acaso, uma arquitetura e um urbanismo classici-

zantes foram os protagonistas no evento comemorativo dos quatrocentos anos de descobri-

mento da América, realizado em Chicago em 1893: a World’s Columbian Exposition. Como

todas as exposições internacionais mostravam as conquistas técnicas e científicas mais recen-

tes, Daniel Hudson Burnham, autor da chamada Cidade da Luz, explorou os efeitos da ilumi-

nação elétrica em grandes espaços públicos. Mas o arquiteto, apontou Edward Relph, "esta-

va convencido de que o elemento excepcional dessa exposição precisava ser a arquitetura, e

que tal arquitetura precisava ser clássica, todos os edifícios estando afastados, para exibir a

grandiosidade, a elegância e outras qualidades da civilização clássica" (1987: 30).

A cidade aberta dos monumentos construída para a World’s Columbian Exposition era fic-

tícia, porém mais encantadora que as cidades reais americanas. Burnham decidiu, então,

transferir estes princípios compositivos para o plano de Chicago, elaborado em 1909, o pri-

meiro projeto urbano envolvendo toda a extensão da cidade, que também incluía diretrizes

de desenvolvimento e vetores de crescimento. As fórmulas para embelezar a cidade reedita-

vam conceitos subjacentes a duas composições urbanas paradigmáticas: a Roma de Sixto V e

a Paris de Haussmann. Burnham inseriu no traçado retilíneo ortogonal de Chicago avenidas

diagonais, largas e arborizadas que, além de valorizarem os cenários perspectivados, dimi-

nuíam o percurso até os pontos focais. Nas belas avenidas seriam implantados centros cívi-

cos, instituições governamentais, museus, bibliotecas e teatros, sempre projetados a partir das

tipologias arquitetônicas tradicionais. Para evitar a contigüidade visual entre as formas clas-

sicizantes desses monumentos e os volumes geometrizados, construídos para empresas

comerciais e administrativas que também reivindicavam um espaço privilegiado da cidade,

Burnham demarcou uma área central de negócios, onde estariam concentrados os edifícios

altos e pouco ornamentados. Esse ambiente permeável, fragmentado pelos vazios existentes

entre as construções afastadas e verticalizadas, contrastava com o espaço público delimitado

pelas fachadas contínuas e horizontalizadas das arquiteturas beaux-arts. Segundo Spiro

Kostof, a setorização funcional e principalmente formal era a solução do City Beautiful

Movement para defender os edifícios cívicos e culturais de interesses meramente financeiros

(1991: 325). Embelezar implicava distribuir seletivamente os objetos arquitetônicos na cida-

de. Através da ordem urbana, a beleza ganharia visibilidade.

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Sobre Urbanismo

Page 13: Sobre Urbanismo

fícios residenciais. Elevadas sobre pilotis para garantir a continuidade do espaço urbano, e

coroadas com terraços para instalações de lazer, as unités d'habitation não mais refletiam as

desigualdades entre elite e classe trabalhadora existentes nos espaços de produção, pois

deveriam estar ajustadas à escala humana e atender as necessidades de cada família, inde-

pendente de sua posição na hierarquia social. A Ville Radieuse tornou-se, finalmente, o para-

digma da cidade funcional modernista. A CARTA DE ATENAS, documento elaborado pelos mem-

bros do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna para regulamentar a forma urba-

na, era mera reprodução do urbanismo dogmático de Le Corbusier. A cidade seria composta

de edifícios isolados, implantados em um jardim retalhado por um sistema viário para tráfe-

go em alta velocidade.

Um anti-urbanismo mais ligado à dispersão que ao adensamento surgiria nos Estados

Unidos. Impulsionado pela indústria automobilística e pela decorrente construção de vias

expressas, o processo de suburbanização gerou, em poucos anos, uma forte mutação na pai-

sagem das cidades. Após 1920, a expansão da periferia suburbana já superava o crescimen-

to dos centros urbanos, mas ainda seriam necessárias algumas décadas para estes subúrbios

adquirirem autonomia em relação às cidades centrais. Embora a tecnologia para fabricação

de veículos motorizados tenha sido desenvolvida no início do século XX, os altos custos res-

tringiam a aquisição dessas máquinas, consideradas não mais que objetos recreativos. Nesse

contexto, as primeiras rodovias americanas, as parkways, foram construídas para uso exclusi-

vo de automóveis, literalmente de passeio. Somente com a introdução do taylorismo nas

linhas de montagem de Henry Ford, os carros, sobretudo o Model T, seriam produzidos em

massa e as rodovias seriam espalhadas sobre um território maior. Inicialmente utilizada em

projetos paisagísticos, a parkway foi adaptada a uma nova função. "Prolongando-se 10 ou

20 milhas campo adentro (…), dava acesso rápido da cidade-base congestionada tanto para

os novos subúrbios quanto para as áreas de lazer rurais e litorâneas" (Hall 2005: 330).

A construção de um sistema de freeways transformou o automóvel no meio de transporte

predominante e, conseqüentemente, intensificou movimentos e fluxos. "O advento do carro ace-

lera o declínio do transporte público e do espaço público aberto, e gera um ambiente urba-

no/suburbano interiorizado" (Gandelsonas 1999: 32). Nem o trem modificou tanto a paisagem

urbana quanto essa recente tecnologia de deslocamento que, não apenas reduzia os percursos,

mas também estava subordinando e até mesmo anulando acidentes geográficos. O crescimento

23

Utopias urbanas modernistas

cas, seriam construídas no entorno deste centro, compondo um conjunto administrativo

monumental, e os edifícios residenciais se espalhariam regularmente em um parque cenográ-

fico. A zona industrial e os subúrbios para operários estariam muito afastados, marcando a

distinção entre o poder hegemônico centralizado, exercido pelos dirigentes da sociedade, os

agentes do progresso para todos, e as classes populares dispersas.

O Plan Voisin para Paris traduzia a vontade de introduzir a Ville Contemporaine ideal com

seus símbolos de modernidade em uma cidade real, que Le Corbusier considerava assombra-

da pelo passado.A antiga organização da cidade precisava ser desfeita para se construir auto-

ritariamente um espaço urbano que refutava toda reminiscência histórica. A obsessão sanitá-

ria em demolir as ruas-corredores e abrir imensas vias de tráfego evidenciava o desprezo pela

urbanidade do presente e pela memória do passado. Os edifícios sobre pilotis restituiriam a

permeabilidade suprimida pelas ruas tradicionais, predominantes nas áreas poluídas e insalu-

bres dos cortiços parisienses do século XIX. A proposta de destruir quadras inteiras do centro

de Paris era comparada a uma cirurgia para extirpar uma doença maligna. Ignorando os ves-

tígios urbanos, Le Corbusier (1987: 116) argumentava que "os centros existentes devem ser

demolidos. Para se salvar, cada grande cidade deve reconstruir seu centro". Contudo, não

tendo conseguido tornar realidade sua cidade ideal, o arquiteto se afastou das ideologias

capitalistas e projetou outra utopia urbana, desta vez, instigado a resolver o dilema sindica-

lista entre autoridade e participação. A solução seria a Ville Radieuse, estruturada para uma

sociedade hierarquizada que, entretanto, somente funcionaria com a cooperação de todos.

"Em seu esforço para compreender os elementos contraditórios do sindicalismo, Le Corbusier

fez a cidade radiante simultaneamente mais autoritária e mais libertadora que sua anteces-

sora" (Fishman 1998: 57).

A transição da Ville Contemporaine para a Ville Radieuse foi estimulada pelos contatos

de Le Corbusier com arquitetos estrangeiros, especialmente da Alemanha e União Soviética,

onde os projetos tinham um enfoque socialista. A cidade radiante ainda se fundava na noção

de circulação livre e verde, ainda tinha como tipologias dominantes os edifícios altos para

administração e habitação coletiva. Apesar da simetria axial, o traçado não previa um poder

centralizado, mas associava uma imagem antropomórfica a uma linearidade. Le Corbusier

propôs um modelo racional descentralizado, onde as torres das corporações tecnocráticas

foram deslocadas para a periferia e a posição privilegiada era ocupada por democráticos edi-

22

Sobre Urbanismo

Page 14: Sobre Urbanismo

Tendo como premissas as conquistas tecnológicas e a arquitetura orgânica, o projeto previa

a multiplicação de propriedades com área de aproximadamente um acre, onde seriam implan-

tadas casas usonianas. A arquitetura orgânica se referia à integração com a paisagem natu-

ral e à utilização de materiais regionais para viabilizar economicamente as construções. A tec-

nologia incluía a eletricidade e a mobilização mecânica, consideradas forças capazes de trans-

formar a civilização ocidental. A eletrificação, como fonte silenciosa de energia, desenvolveria

os meios de comunicação e permitiria a permanente iluminação dos espaços urbanos. Os

meios de transporte, representados pelo automóvel e pelo avião, gerariam um movimento ili-

mitado anulando distâncias e ampliando o contato entre seres humanos. Broadacre era a ten-

tativa de, através de uma ordem social mais eqüitativa e mais justa, reconciliar liberdade e

dignidade individuais com os benefícios da mecanização.

Os ideais das principais utopias urbanas modernistas foram parcialmente realizados. As

cidades construídas ou transformadas segundo os conceitos e métodos do urbanismo das pri-

meiras décadas do século XX não materializaram, entretanto, a ambição dos arquitetos de cri-

ticar radicalmente a cidade industrial. Os discursos sobre a metrópole e as experimentações

envolvendo formas urbanas totalitárias não passaram de desejos frustrados de regenerar os

ambientes degradados pela inexorável industrialização e pela divisão do trabalho. O equívo-

co dos funcionalistas foi compactuar com os modos de produção e reprodução que, finalmen-

te, dominaram a arquitetura e o urbanismo. A recuperação revelou-se destruição da textura

urbana existente, que precisou ser convertida em tabula rasa para a inserção dos novos obje-

tos arquitetônicos, os arranha-céus cartesianos, ícones do modernismo. Não foi maior o êxito

dos defensores do antiurbanismo ao proporem, inversamente, uma ocupação territorial dis-

persa que, embora tenha aproximado o campo da cidade, desertificou o espaço urbano, inten-

sificando o individualismo e, sobretudo, o isolamento. As conseqüências da máxima urbaniza-

ção e da máxima suburbanização são aparentemente coincidentes. O legado das utopias

modernistas foi uma urbanidade que nega o potencial da cidade como lugar de trocas. O fra-

casso dessas teorias e práticas urbanísticas obrigaria os arquitetos das gerações seguintes a

abandonar idealidades e enfrentar o desafio de pensar e fazer realidades urbanas.

25

Utopias urbanas modernistas

desordenado e possivelmente infinito ao longo de uma avenida de extensão indeterminada pro-

voca uma monotonia desesperadora, pois a mesmice dos espaços urbanos destrói seus valores

tradicionais. Assim, as questões mais discutidas pelos arquitetos eram a falta de definição da

forma, o tamanho e os limites da cidade suburbana. Como aponta Mumford, no “movimento

coletivo em direção às áreas suburbanas, produziu-se uma nova espécie de comunidade, que

constituía uma caricatura assim da cidade histórica como do refúgio suburbano arquetípico: uma

multidão de casas uniformes, identificáveis, alinhadas de maneira inflexível, a distâncias unifor-

mes, em estradas uniformes, num deserto comunal desprovido de árvores, habitado por pessoas

da mesma classe, mesma renda, mesmo grupo de idade, assistindo aos mesmos programas de

televisão, comendo os mesmos alimentos pré-fabricados e sem gosto, guardados nas mesmas

geladeiras, conformando-se, no aspecto externo como no interno, a um modelo comum, manu-

faturado na metrópole central” (1991: 525).

Antes desta suburbanização em grande escala se tornar realidade, Frank Lloyd Wright

tinha idealizado ou profetizado um território fragmentado, como desdobramento da cultura

nacional de espaços abertos reticulados pela matriz de uma milha quadrada. "A retícula con-

tinental, que estrutura a maioria do território americano, é um plano pós-revolucionário e

exclusivamente americano, proposto por Jefferson e não diretamente relacionado a qualquer

das origens do traçado urbano reticulado" (Gandelsonas 1999: 50). Essa diferenciação envol-

veu uma modificação radical nas dimensões urbanas, antecipando a rede de tráfego de uma

megacidade como Los Angeles, dependente do automóvel.Ao contrário do urbanismo da con-

centração de edifícios altos, dominado pela máquina, a cidade ideal wrightiana pressupunha

descentralização, baixa densidade e edifícios de pouca altura, onde a máquina seria apenas

um instrumento utilitário para os seres humanos. Como os desurbanistas soviéticos dos anos

1920, Wright pretendia lutar contra a tirania do centralizado capitalismo urbano e adotou os

preceitos do Manifesto Comunista, que defendiam a dissolução gradual das distinções entre

cidade e campo mediante uma dispersão homogênea da população sobre o espaço urbano.

O processo de suburbanização em Broadacre City visava espalhar a igualdade da residên-

cia unifamiliar através da fluidez da rodovia contínua. Kenneth Frampton (1991: 189) sugeriu

que "o carro enquanto a modalidade democrática de locomoção seria o deus ex machina do

modelo antiurbano de Wright, seu conceito de Broadacre City, em que a concentração da

cidade do século XIX seria redistribuída pela rede de um traçado rural regional" (2003: 227).

24

Sobre Urbanismo

Page 15: Sobre Urbanismo

Continuidades e descontinuidades: conceituação inicial

Apenas do ponto de vista analítico se pode justificar uma oposição conceitual entre os

termos ruptura e permanência. Ruptura indica uma descontinuidade, uma mudança súbita de

orientação no curso previsível dos acontecimentos, um corte com relação a um conjunto de

valores e expectativas estabelecidos numa determinada época, acompanhado de um salto em

direção a uma nova conjuntura, a ser instituída a partir da superação da conjuntura preceden-

te. Em todos os casos, é sempre sobre o pano de fundo das permanências, isto é, sobre o eixo

temporal da continuidade dos processos estudados, que se pode pretender identificar e assi-

nalar as rupturas. Uma não existe sem a outra: dialeticamente unidas, ruptura e permanência

constituem um mesmo movimento, através do qual se opera a transformação dos processos

em curso e que equivale, em última análise, ao próprio movimento da História.

Os períodos de transição nos ajudam a clarificar a interdependência estabelecida entre

ruptura e permanência. Em tais períodos, experimentamos a sensação de viver em dois mun-

dos simultâneos. Trata-se da transição entre o que já foi e o que ainda não é. Aquilo que se

encontra em processo de superação, se opõe e resiste ao novo que se anuncia. Ao mesmo

tempo, é a partir do velho mundo que são engendradas as condições necessárias para a sua

superação. Na superação, por sua vez, o que é superado não é eliminado de uma vez por

27

Referências Bibliográficas

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Fainstein, S. (Ed.) Readings in planning theory. Massachusetts: Blackwell. p. 19-67.

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Paulo: Martins Fontes.

Relph, E. (1987). The modern urban landscape. Baltimore: The Johns Hopkins.

26

Sobre Urbanismo

A dialética entre permanência e ruptura nos processos detransformação do espaçoCristovão Fernandes Duarte

Page 16: Sobre Urbanismo

permitindo que se vá dos processos mais gerais, que incluem continuidades e descontinuida-

des, aos processos mais específicos em curso na realidade urbana, e reciprocamente, das par-

ticularidades ao seu contexto global: “a cidade, mediadora ela própria das articulações entre

o geral e o particular, coloca em evidência, através da sua forma, o movimento contraditório

e conflitual das transições sem, contudo, dissolvê-las” (Duarte 2006: 44).

A periodização geral do tempo histórico, proposta por Lefebvre, divide a história do

homem em três grandes eras: a era agrária (relacionada à sacralização do solo e ao espaço

mítico), a era industrial (relacionado ao espaço como valor de troca) e a era urbana (relacio-

nado ao processo de construção da sociedade urbana). A cada uma dessas eras o autor asso-

cia a constituição de um espaço específico. Temos assim, respectivamente, o espaço absoluto

(era agrária), o espaço abstrato (era industrial) e o espaço diferencial (era urbana). Tomando

como referência esta periodização e, ainda, considerando as contribuições de outros autores,

discutiremos, a seguir, suas implicações sobre o processo de constituição do espaço urbano

ao longo da história.

Da cidade ao urbano: permanência e ruptura nos processosde transformação do espaço

Para Lefebvre (1972: 129), a urbanização está prenunciada como germe desde o início.

Desde os primeiros tempos da vida humana estiveram presentes as práticas sociais da reu-

nião e do encontro que caracterizam a forma urbana. Sobre esta questão, vale a pena acom-

panhar a exposição de Lewis Mumford acerca do advento histórico da cidade como criação

humana. Para este autor, muito antes de qualquer agrupamento em aldeias, os santuários

paleolíticos já fornecem os primeiros indícios de vida cívica. Mais do que um mero ajuntamen-

to de pessoas e objetos destinado a suprir as necessidades humanas básicas (alimento, aca-

salamento), nesses centros cerimoniais tinha lugar:

...uma associação dedicada a uma vida mais abundante; não simplesmente umaumento de alimentos, mas um aumento do prazer social, graças a uma utilizaçãomais completa da fantasia simbolizada e da arte, com uma visão comum de umavida melhor e mais significativa ao mesmo tempo que esteticamente atraente, umaboa vida em embrião... (Mumford 1998: 14)

29

A dialética entre permanência e ruptura

todas, mas conservado no processo de transformação. Por isso é tão difícil assinalar sobre um

eixo cronológico a data precisa em que se processou uma determinada ruptura. Pois, como

nos diz Lefebvre (1983: 231), superação implica, também, numa espécie de retorno ao pas-

sado que é, em cada etapa do desenvolvimento, reencontrado, mas superado e por isso

mesmo aprofundado, liberado de suas limitações.

A presente reflexão acerca da relação dialética entre permanência e ruptura nos proces-

sos de transformação do espaço urbano será desenvolvida a partir das contribuições teóricas

de Henri Lefebvre (1901-1991), resgatando, particularmente, o método de análise regressivo-

progressivo, proposto pelo autor como chave de decifração daqueles processos.

O método regressivo-progressivo, cuja concepção (como o próprio Lefebvre assinala)

deve ser atribuída a Marx, visa compreender a gênese do presente, partindo sempre do atual

em direção ao passado, não apenas para explicar o passado mas, sobretudo, para esclarecer

os processos em curso no presente que apontam para o futuro.A dialetização do método, per-

seguida por Lefebvre, impõe a consideração de duas dimensões temporais entrelaçadas: a

dimensão horizontal ou sincrônica, que permite estudar a inserção do objeto de estudo no

contexto de sua época, e a dimensão vertical ou diacrônica, que estuda a coexistência de pro-

cessos históricos diferentemente datados. O conhecimento deve ser submetido a um “movi-

mento de duplo sentido: regressivo (do virtual ao atual, do atual ao passado) e progressivo

(do superado e do terminado, ao movimento que determina aquela conclusão e que anuncia

e faz surgir algo novo)” (Lefebvre 1972: 30). Esta operação metodológica, à qual Lefebvre dá

o nome de transducção, visa construir o objeto teórico como um objeto virtual, aberto ao devir

e ligado, portanto, a um processo e a uma prática concreta (Idem: 9 e 171). Nesse sentido, a

transducção não se confunde com os procedimentos clássicos da indução e da dedução, nem

com a construção de modelos ou simulação de cenários futurísticos (Lefebvre 1991: 108).

A aplicação do método regressivo-progressivo pressupõe a construção simultânea de

uma periodização do tempo histórico, capaz de identificar descontinuidades temporais e

espaciais no continuum da história. Cada acontecimento deve ser estudado, não como uma

sucessão linear de fatos ocorridos, mas, como processos articulados no quadro de forças em

conjunção seletiva existente no presente (Santos 1999: 265). De acordo com Lefebvre (1991:

52): “evitar a confusão numa continuidade ilusória, bem como as separações ou descontinui-

dades absolutas, esta é a regra metodológica”. Estabelece-se assim uma via de mão dupla,

28

Sobre Urbanismo

Page 17: Sobre Urbanismo

controlar e dominar o campo, captando o sobre produto da sociedade rural. De acordo com

Lefebvre (2000: 271), a cidade protege o campo ao mesmo tempo em que o explora e o

explora protegendo.

A sociedade rural é (ela ainda não desapareceu completamente) a sociedade da escas-

sez, da penúria, do medo, marcada, sobretudo, por estreita ligação com a natureza. As forças

da natureza (os cataclismos, as estações do ano) regulam, como dádiva ou castigo, a vida da

sociedade rural. O espaço-tempo absoluto, cuja origem remonta à natureza consagrada pelos

mitos fundadores e dominada por poderes divinos, continua na cidade como instrumento de

legitimação das forças políticas aí instituídas. Através dos templos, dos palácios, dos monu-

mentos, o espaço absoluto adquire existência social e eficácia política. Toma forma, assim, a

cidade política (ligada ao modo de produção asiático) que controla e organiza uma vizinhan-

ça agrária, dominando-a. A propriedade é ainda coletiva (comunitária); o excedente da pro-

dução e o trabalho coletivo concorrem para “o culto da Unidade humana e divina, real e ima-

ginária, o Soberano” (Lefebvre s.d.: 91), que personifica a própria coletividade.

No Ocidente, em face do intenso nomadismo e dos movimentos migratórios então em

curso, as comunidades agrárias desenvolveram as comunas urbanas tendo como grande tare-

fa comum a guerra, fosse para a conquista e expansão do território, fosse para defendê-lo dos

agressores (Lefebvre s.d.: 95). A sociedade começa a se organizar militarmente e não admi-

nistrativamente como no Oriente. A partir dessas condições iniciais terá lugar, neste período

histórico, a cidade antiga (antiguidade greco-romana), ligada ao modo de produção escrava-

gista. A propriedade comunitária se desdobra em propriedade privada do cidadão e proprie-

dade pública, que corresponde à cidade e assegura as necessidades coletivas. A cidade orien-

tal e a cidade antiga (ocidental), em que pesem as diferenças e a diversidade de casos por

elas compreendidas, tiveram em comum o seu caráter essencialmente político (Idem: 96).

O declínio do Império Romano, seguido das invasões bárbaras, produziu um quadro de

miséria e flagelos levando ao quase desaparecimento da cidade antiga. Inicialmente, como

mostra Pirenne (s.d.: 21-22), as cidades sobrevivem como lugar físico das dioceses da Igreja,

sediadas nas circunscrições das antigas cidades romanas. O modo de produção feudal se esta-

belece tendo como base grandes propriedades agrícolas; os palácios e os castelos dos novos

senhores da terra estão localizados no campo. Entretanto, ainda segundo Pirenne, a partir do

século XX assiste-se a um renascimento comercial que produzirá, nos séculos seguintes, um

31

A dialética entre permanência e ruptura

Segundo Mircea Eliade (s.d.: 58), a sacralização do mundo, que pressupõe a ruptura com

o espaço natural, coincide com a descoberta de um centro, um ponto fixo para a orientação

cosmogônica do homem sobre a terra: “assim como o universo se desenvolve a partir de um

Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim a aldeia se constitui em

volta de um cruzamento”. Desse modo, o ponto de encontro que permitirá reunir periodica-

mente pessoas em torno de objetivos compartilhados e/ou convergentes já contém o embrião

da cidade, daquilo que ela virá a se tornar. “O ímã precede o recipiente”, diz Mumford (1998:

16). Lefebvre, por sua vez, identificará aí o nascedouro da forma da centralidade e da simul-

taneidade, que caracterizará, a partir de então, a própria essência do fenômeno urbano.

Nos primórdios da civilização urbana, o território habitado era entendido em sua oposi-

ção ao espaço desconhecido (informe) que o cerca. Como propõe Mircea Eliade (s.d.: 43 e 45-

46), o território habitado:

...é o mundo (mais precisamente: o nosso mundo), o Cosmos; o resto já não é umCosmos, mas uma espécie de outro mundo, um espaço estrangeiro, caótico, povoa-do de espectros, de demônios, de estranhos (...). Porque, da perspectiva das socie-dades arcaicas, tudo que não é o nosso mundo não é ainda um mundo. Não se faznosso um território senão criando-o de novo, quer dizer consagrando-o. Este com-portamento religioso em relação às terras desconhecidas prolongou-se mesmo noOcidente, até à aurora dos tempos modernos.

A recriação do território, através da consagração de fragmentos da natureza, institui o espa-

ço absoluto. Aí, neste espaço subtraído à natureza, instala-se o poder do sagrado, mas também

poderosas forças políticas. Para Lefebvre (2000: 272-273), o espaço absoluto torna-se o guar-

dião da unidade cívica, sendo compartilhado por opressores e oprimidos como o espaço-tempo

verdadeiro, aquele que reúne todos os lugares e todas as dimensões do Cosmos (a terra, o céu,

as profundezas). Mais vivido (espaços de representação) do que concebido (representação do

espaço), o espaço absoluto tende a perder o seu prestígio (sua transcendência) no momento em

que é concebido e, assim, laicizado (e, logo em seguida, profanado pela cidade).

A lenta transformação da paisagem natural em paisagem arquitetônica, verificada duran-

te a era agrária, produz a cidade como um centro de acumulação de riquezas, de conhecimen-

tos, de técnicas e de obras (criações artísticas) que se distingue, sem se desligar, do campo. A

relação campo-cidade é uma relação de simbiose, de co-dependência, mas também de con-

flitos e dominação. Como centro religioso e político, a cidade detém o poder que lhe permite

30

Sobre Urbanismo

Page 18: Sobre Urbanismo

que se sucedem ao longo do ano, o valor de uso da cidade. Nessas festas, uma outra parte,

não menos significativa, da riqueza acumulada é consumida improdutivamente, sem nenhu-

ma outra vantagem além do prazer e do prestígio. As festas conservam a unidade e a coe-

rência entre os usos do tempo e do espaço; elas celebram um tempo manifestado no espaço.

Ainda nesse período, os códigos do espaço coincidiam com os códigos do tempo (Lefebvre

2000: 279). O tempo do comércio ainda não havia se divorciado do tempo da liturgia religio-

sa que impregnava as práticas sócio-espaciais; o espaço abstrato ainda não havia se instala-

do. Uma prática cotidiana e inconsciente mantinha ainda a regulação do acordo entre o

tempo e o espaço, “limitando os desacordos das representações e as distorções na realida-

de” (Idem: 279). Por isso, períodos históricos marcados pela opressão coincidem com a cria-

ção de grandes obras, sendo a própria cidade a obra por excelência. De acordo com Lefebvre,

até a instauração do capitalismo as formas de opressão cumpriam um papel extra-econômi-

co na acumulação. A partir de então, a violência assume um papel preponderantemente eco-

nômico, a obra (valor de uso) é substituída pelo produto (valor de troca), a opressão dá lugar

à exploração e o econômico se torna dominante (Ibidem: 318).

O desenvolvimento da cidade comercial, surgida a partir do florescimento da cidade medie-

val, marca o fim da era agrária, preparando o advento da indústria. Nesse sentido, a cidade

comercial representa a transição para o espaço do capitalismo e para a era industrial. Quando

inicia a era industrial, as indústrias são implantadas, preferencialmente, fora das cidades. Elas

são, no entanto, filhas dos progressos verificados na cidade comercial. O capital e os conheci-

mentos necessários para a instalação das indústrias, são gerados na cidade. Nas cidades con-

centram-se os capitais, o mercado consumidor dos produtos industriais, a residência dos capita-

listas e dos políticos, as reservas de mão-de-obra.A reaproximação entre indústria e cidade logo

se fará sentir e com ela os seus efeitos devastadores sobre o tecido urbano tradicional.

De acordo com Lefebvre (1972: 20 e 174), a aceleração do crescimento das forças pro-

dutivas, alcançado pela revolução industrial, provocou na cidade um processo de “implosão-

explosão” (metáfora tomada da física nuclear), seguido da fragmentação, homogeneização e

hierarquização do espaço. Após a grande concentração de capitais, pessoas e bens, iniciada

já na cidade comercial e levada ao paroxismo pela cidade industrial, os núcleos urbanos

explodem, estendendo-se em todas as direções do território. A suburbanização da cidade pos-

tula a perda da antiga centralidade dos núcleos preexistentes. A oposição campo-cidade dis-

33

A dialética entre permanência e ruptura

novo florescimento das cidades. As origens desse renascimento comercial devem ser busca-

das nas caravanas de mercadores que, utilizando-se das antigas estradas do Império Romano,

cruzavam a paisagem da Europa medieval. As estradas romanas, que no passado ligavam as

cidades do Império, permitiam agora aos mercadores acessarem o que subsistiu daqueles

antigos núcleos urbanos, estabelecendo, nas suas cercanias, feiras para a comercialização de

suas mercadorias. Elegendo as cidades como pontos fixos para suas atividades, o comércio

produziu um significativo reaquecimento das economias locais, e a retomada do desenvolvi-

mento urbano. A chegada dos mercadores, vindos do estrangeiro, introduziu um elemento

perturbador no estratificado mundo feudal. A servidão era uma condição de berço da qual o

camponês não poderia se libertar. Os estrangeiros viajantes não tinham origem conhecida e,

portanto, não se poderia atribuir-lhes outro status senão o de homens livres (Pirenne s.d.:

106-108). Está aí o embrião do que virá a se tornar uma nova classe social, que fará da cida-

de o seu habitat natural e cuja ascensão se mostrará decisiva para o advento do modo de pro-

dução capitalista: a burguesia.

As cidades voltam a ser o centro da vida social e política, em detrimento dos feudos. A

cidade medieval, ainda que sem abdicar de seu caráter político, foi, sobretudo, uma cidade

comercial. A propriedade da terra passa progressivamente para as mãos dos novos grupos

dirigentes, representados principalmente pelos comerciantes e banqueiros. A afirmação da

cidade e da sua morfologia coincide com o objetivo estratégico de afirmação da burguesia

como nova classe social, sediada na cidade. Uma parte significativa da riqueza acumulada é,

então, invertida na própria construção e embelezamento da cidade. A arquitetura se incumbe

da tarefa de representar o poder da cidade. A cidade é encarada como uma obra no sentido

de uma obra de arte. Segundo Carlo Aymonino (1984: 10), o poder, acumulando num único

lugar as energias e os capitais, cria as condições necessárias (embora não suficientes) para a

representação arquitetônica: “um salto qualitativo, a passagem da necessidade à possibilida-

de, o desejo ou a vontade de representação – que é a característica mais evidente, de um

ponto de vista arquitetônico, da própria existência das cidades”.

A intensificação e a generalização das trocas comerciais não devem obscurecer o fato de

que a cidade é também sede do valor de uso, local do encontro, da reunião, da festa. Para

Lefebvre (1991: 4), o uso principal das ruas e das praças, dos edifícios e monumentos da cida-

de tradicional é a festa. Opressores e oprimidos celebram nas festas do calendário religioso,

32

Sobre Urbanismo

Page 19: Sobre Urbanismo

vel, a criação humana por excelência, a apropriação (para e pelo homem) do espaço e do

tempo, e o produto, produzido em série, resultado dos gestos repetitivos que remetem, em ulti-

ma análise, à reprodução automática e alienante das relações sociais (Lefebvre 2000: 485).

O despertar (possível/impossível) da utopia

A dialética entre permanência e ruptura nos processos de transformação do espaço, tal

como se pretendeu demonstrar, nos convoca a uma reflexão sobre o movimento da História,

ele próprio, feito de idas e vindas, de marchas e contra-marchas. As implicações teóricas da

análise regressiva-progressiva são de fundamental importância para a compreensão dos pro-

cessos aqui estudados, desfazendo os equívocos oriundos do determinismo histórico.

A irreversibilidade do tempo histórico, cujo sentido de orientação vai do passado ao futu-

ro, não nos autoriza a considerar este movimento como uma simples sucessão de aconteci-

mentos datados, linearmente dispostos sobre um eixo cronológico. As épocas se interpene-

tram, estabelecendo vínculos recíprocos que alteram a trajetória e os significados do cami-

nhar. A dialética entre ruptura e permanência se torna assim muito mais complexa.

De acordo com Walter Benjamim (1982: 59. Apud Rouanet 1993: 55), “cada época não

somente sonha a seguinte, como ao sonhá-la a impele a despertar”. O passado é resgatado

como uma das condições para a realização do presente que, por sua vez, vive, pressente e

antecipa o futuro.

Lefebvre, analisando o movimento de vir a ser do urbano, esboça um projeto e uma estra-

tégia de ação: a urbanização completa da sociedade humana e a instauração do direito à cida-

de, como o direito à diferença, à centralidade e ao movimento. Não se trata de uma profecia,

mas de um processo possível/impossível, comandado pelo futuro. Um futuro já em construção.

O futuro não é obra do acaso, embora eventuais surpresas não estejam, de antemão, des-

cartadas. Desde finais do século passado e início deste novo milênio aprendemos a descon-

fiar do futuro e, sobretudo, a temê-lo. Os descompassos verificados entre projeto e realização

provocaram um generalizado desencantamento, paralisando momentaneamente a nossa

capacidade de sonhar. Tal situação, entretanto, não muda o fato de que só o sonho (e o dese-

jo) pode antecipar o que ainda nos falta.

35

A dialética entre permanência e ruptura

solve-se, assumindo novas formas: centro-periferia, inclusão-exclusão, integração-segregação.

As aglomerações urbanas atingem dimensões inéditas, possibilitadas (e induzidas) pelo trans-

porte motorizado. A circulação de pessoas e mercadorias assume a condição de função urba-

na preponderante e peça-chave do circuito produtivo.

A racionalidade industrial submete a cidade à lógica do lucro capitalista; rebaixa a obra,

entendida como domínio do valor de uso e de livre fruição, à condição de produto para o con-

sumo, instrumento do valor de troca. O espaço e o tempo passam a ser condições gerais de pro-

dução; devidamente medidos e quantificados, tornam-se mercadorias valiosas e escassas.A lógi-

ca da equivalência abstrata busca eliminar as diferenças, produzindo uma homogeneização do

espaço. Assim, a negação da cidade, produzida pela era industrial, instala o espaço abstrato. É

o espaço da dominação, “a temporalidade do inferno, do eternamente idêntico”, de que nos

fala Rouanet (1993: 55). A abstração implica numa violência que lhe é inerente; ela age pela

devastação, pela destruição (Lefebvre 2000: 333). Este é, como se sabe, o modus operandis do

capitalismo: a violência da abstração do valor de troca, generalizada na forma do dinheiro.

A cidade não é, entretanto, eliminada de uma vez por todas. Tomada de assalto, saquea-

da, negada, resiste ao se transformar (Lefebvre 1991: 12). O valor de uso não desaparece. O

valor de uso, que implica em apropriação, reaparece nas práticas sócio-espaciais cotidianas, em

contradição dialética com o valor de troca, que implica em propriedade (Lefebvre 2000: 411).

A era urbana surge do processo de industrialização. O crescimento (quantitativo) da produção,

que parecia absorver, anulando, o desenvolvimento (qualitativo) da vida social, cria um campo

de novas possibilidades (contradições) e instaura a problemática do urbano, como uma proble-

mática mundial. Algo novo se anuncia: o espaço diferencial. Sob a aparente homogeneidade

do espaço abstrato, manifestam-se conflitos, oposições, superposições, diferenças. A forma do

urbano centraliza, reunindo e confrontando as diferenças. “A centralidade se descobre lugar

comum para o conhecimento, para a consciência, para a prática social” (Lefebvre 2000: 459).

A retomada do direito à cidade, implícita (como possibilidade) no processo de urbaniza-

ção da sociedade humana, implica no direito à diferença (Lefebvre 1972: 155). Para Lefebvre

é, portanto, na direção de um novo humanismo que se deve caminhar, “na direção de uma

nova práxis e de um novo homem, o homem da sociedade urbana” (Lefebvre 1991: 107).

A “revolução mundial” se fará no e pelo urbano (Lefebvre 1972: 150), tendo como orienta-

ção principal a superação da dissociação entre a obra, que representa o único, o irreproduzí-

34

Sobre Urbanismo

Page 20: Sobre Urbanismo

O século XX: Movimento Moderno e as duas correções

A modernidade como paradigma do conhecimento reconhece a história somente como

um processo que deve culminar na própria modernidade, entendida como etapa de supera-

ção em termos políticos e sociais da evolução da humanidade.

Deste modo a história – e a história do urbanismo em particular – viria a ser somente a

ante-sala da modernidade, o caminho necessariamente percorrido pelos homens até chegar

à etapa de redenção política e social.

É a idade da ilustração – a idade da maturação – a que deve chegar a sociedade tal como

nos fala Kant ou a futura sociedade socialista – que representa o fim da exploração e a eman-

cipação humana – de que trata o marxismo.

Ao mesmo tempo, a modernidade como período histórico apresenta duas fases claramen-

te definidas e distintas: a primeira é o período que vai da Revolução Francesa ao início da

Revolução Russa (1789-1917), que constitui o século longo – o Século XIX; a segunda, o

período de luta ideológica contínua, que chega até a queda do Muro de Berlim (1917-1989),

que constitui o século curto, que é o século XX.

Em quaisquer dessas duas fases, a modernidade se apresenta como um modo rígido e

inflexível de entender a História e, portanto, de intervir nela, sem concessões nem desvios

37

Os sonhos são como flechas disparadas pelo presente na direção de alvos que só adqui-

rem existência depois que as flechas são postas em movimento. A pontaria certeira depende,

em primeiro lugar, da força do desejo de quem sonha, pois que os alvos não são estáticos,

mas dotados de grande dinamismo. Outra característica peculiar dos sonhos é a de que os

sonhos são compartilháveis e quanto maior o número de sonhadores, maior a precisão da fle-

chada. Acontece também, às vezes, de acertarmos no alvo errado. Faz parte do jogo.

Referências Bibliográficas

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36

Sobre Urbanismo

Percursos do urbanismo contemporâneoJorge MoscatoTradução: Cristovão Fernandes Duarte

Page 21: Sobre Urbanismo

o estudo da história urbana e do urbanismo como modo de ação. Período no qual se produ-

zem conceitos como o de pós-modernismo que retomará parcialmente o Movimento

Moderno, considerado agora como uma etapa não-finalista da história.

Em síntese, o século XX e o Movimento Moderno se explicam por essa postura inicial e

as sucessivas correções necessárias.

O período pós-século e a transição conceitual

Podemos considerar que o século XX terminou em 1989, com o fim do conflito ideológi-

co, o que permitiu ao urbanismo e à arquitetura posterior desprender-se da carga ideológica

do século e do conflito do Movimento Moderno com a história. Portanto, quando falamos do

que sucedeu nos últimos anos estamos falando do estranho período pós-século que se inicia

na década de 1990, no qual assistiremos ao processo de mudança dos paradigmas necessá-

rios para a práxis do século XXI recém começado.

A década de 1990 se inicia com o auge dessa cultura morfotipológica baseada especial-

mente nos projetos espanhóis para a renovação de suas cidades, nos quais se destaca a expe-

riência da Barcelona Olímpica de 1992, através da qual a cidade vai conservar e completar as

diretrizes básicas previstas no ensanche da cidade de meados do século XIX do Plano de Cerdá.

Com o transcorrer da década, se passou particularmente do respeito rigoroso às diretrizes

básicas para a autonomização progressiva do urbanismo, buscando chegar ao cour d’ objets.

Visando alcançar esses objetivos se solicita a um conjunto de arquitetos estrelas que procurem

determinar um espaço através de um repertório de formas mais ou menos exitosas.

Neste ponto do percurso podemos supor, seguindo a citação de Tafuri sobre Marx, que o

mais avançado explica o menos desenvolvido e que se isso é o mais certo nos temas sociais,

também há de sê-lo naqueles relativos ao urbano; e que, por ser Barcelona o lugar em que

se materializam as novas propostas urbanas, a mudança das posturas sobre os projetos urba-

nos emblemáticos que se expressam nas diferenças evidenciadas entre os projetos dos anos

1980 como o Moll de la Fusta e os novos paradigmas de desenho incorporados no Fórum

2004, seguramente hão de ser incorporadas como novos princípios válidos por nossas Escolas

e Faculdades e pelas cidades que seguem esse modelo de atuação.

39

Percursos do urbanismo contemporâneo

populistas, tratando sempre de eliminar o mau gosto das posturas românticas no urbanismo

que tentavam mediar o processo de transformação ou fazê-lo mais compreensível através do

resgate dos valores do passado.

O Movimento Moderno propôs o urbanismo como um espaço livre, un terrain vague. Fez

tábula rasa das cidades históricas e só pensou em termos de solos de nova planta, e é lógico

que assim o fora, ao considerar a si mesmo como o fim da história – a história a sério ou a his-

tória real -, já que, produto da modernidade, a história entrava em uma época de racionalidade.

A modernidade foi a teoria que forneceu a base de ação dos Mestres do século XX.

Do passado não há nada demasiadamente memorável para ser resgatado, salvo algumas

grandes obras da arquitetura antiga que não tenham sido consideradas ruins, mas de nenhum

modo se considerará como valioso o espaço comum ambiental da cidade histórica. Um exem-

plo deste entendimento é o Plan Voisin de Le Corbusier concebido para Paris durante o perío-

do heróico do Movimento Moderno anterior à Segunda Guerra Mundial.

Deste modo, na primeira geração do Movimento Moderno a intervenção parte sempre de

um plano novo, um plano limpo, em branco ou vazio de cidade.

Mais recentemente, com a segunda geração do Movimento Moderno, se materializará a

ruptura com os CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), produzida em fins

da década de 1950, pondo fim a um longo período de hegemonia teórica das posições de

ruptura com o passado.

É então que se descobre que algo não andava bem com o urbanismo. Aparece a crítica

aos postulados teóricos do CIAM, iniciando-se com a recuperação do valor do local, do bair-

ro e da rua para a construção de um novo urbanismo, com uma carga social mais consciente

de tudo aquilo que, justamente, fazia parte dos conteúdos da arquitetura histórica. Isto será

possível com o início da influência inglesa, sempre atenta à tradição e à cultura local. A hege-

monia teórica passará ao Team X, às revistas inglesas; e teremos uma constelação de teóri-

cos e de exemplos que falam, constroem e se inserem na Cidade Histórica, particularmente

nos bairros populares onde habitava a classe trabalhadora inglesa.

É, no entanto, a partir da publicação do livro A ARQUITETURA DA CIDADE de Aldo Rossi que

começa um período sério e fundamentado de estudo da cidade e sua evolução histórica. A

modernidade a partir deste momento entra decididamente em revisão, embalada pela crítica

morfotipológica de origem italiana e espanhola aos postulados de tábula rasa, reiniciando-se

38

Sobre Urbanismo

Page 22: Sobre Urbanismo

A multiplicidade e o pensamento collage

Estas mudanças não são arbitrárias, são produtos de um novo modo de pensar o mundo

e, como conclusão, podemos presumir que o urbanismo atual aparece claramente liberado da

carga social e política do século passado, o que talvez indique simplesmente a possibilidade

de um novo começo da história com novos parâmetros.

Este é o ponto sobre o qual devemos refletir. Quais serão os novos paradigmas do sécu-

lo XXI? Como hão de ser exatamente não sabemos, mas, em meio a tanta confusão, talvez

possamos encontrar a resposta no conceito de rapidez-leveza-light de que nos fala Ítalo

Calvino nas suas SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO.

Neste caso, em um texto tão citado quanto pouco compreendido, podemos nos referir à

interpelação de Gui Bonsiepe (Envidia, Revista de la Facultad de Arquitectura y Urbanismo de

la Universidad de Chile, No. 1, 2000), quando sugere que o século XXI pode ser um período

de rapidez, no sentido de nos livrar do peso das idéias do século XX com a possibilidade de

deixar para trás os conflitos que o caracterizaram, mas, sobretudo, significa uma abertura a

um novo universo quase infinito de idéias, onde prevalece a multiplicidade de idéias ou de

pontos de apoio, que é o que habitualmente se denomina cultura-collage. É ele:

o salto ágil do poeta-filósofo, elevando-se sobre o peso do mundo e mostrandoque aquilo considerado por muitos como sendo a vitalidade dos tempos – ruido-sa, agressiva, acelerada e estrondosa – pertence ao reino da morte, como um cemi-tério de velhos automóveis enferrujados.

(ÍTALO CALVINO)

Em todo caso, poderíamos supor que a angústia clássica sobre o futuro, refletida no

poeta argentino Leopoldo Marechal para quem “no número dois nasce a pena, o sofrimen-

to”, é substituída pela esperança de Teilhard de Chardin sobre a nova dimensão cósmica da

terra no século que começa: “todas as partes se unem e recompõem a verdade”.

41

Percursos do urbanismo contemporâneo

A construção dos novos paradigmas no século XXI

É evidente, então, que esta transição dos últimos anos que exemplificamos com a mudan-

ça de atitudes projetuais nos grandes empreendimentos de Barcelona, havia de se constituir

sobre novos princípios teóricos e que estes novos princípios seriam autônomos em relação aos

conflitos do século XX.

E quando falamos de princípios teóricos, estamos pensando que estes são novos pressu-

postos, já que, embora ainda não constituam teorias definitivamente conformadas, podem se

resumir em quatro atitudes mais ou menos simultâneas:

• Mudou novamente nossa noção sobre a história e por isso se volta a construir nas cidades

históricas projetos importantes que não respeitam a massa, nem a tipologia do entorno. Isso

se torna evidente nos projetos de Gehry para Bilbao, de Zaha Hadid para Roma ou de Nouvel

para Barcelona.

• Os novos projetos urbanos abandonam as posturas contextuais e as tentativas de leitura da

cidade existente para se transformar em objetuais e concebidos a partir de uma definição objetual

da cidade. É o caso do Fórum 2004 e a exceção fica por conta das ZAC da biblioteca da França.

• Com a reaparição da cultura do bloco (block) nas áreas de plantas novas (áreas de reno-

vação) se abandonam as idéias de trabalhar sobre a quadra fechada e se volta ao bloco aber-

to, num processo de reivindicação histórica do período heróico do Movimento Moderno que

inclui Hilbersheimer.

• A natureza, que anteriormente havia sido excluída das formulações urbanas, é incorporada

através da noção de paisagem. A cidade histórica admitia o jardim, a praça e o parque; agora

temos que incorporar a paisagem (natural ou artificial, cultural ou produtiva), mas de forma

irreversível. Pensar-se-á em termos de paisagem e de meio ambiente.

É obvio que esses quatro critérios que podemos reconhecer – que mostraram sua influên-

cia no desempenho teórico e prático desses últimos anos – e que possivelmente se desenvol-

verão nos próximos anos, implicam novamente uma relação direta com as vanguardas do

Movimento Moderno de 1920 e com os planos e projetos do período heróico (1930-1940) e

um abandono explícito das duas correções que sofreu o movimento, em particular da última.

40

Sobre Urbanismo

Page 23: Sobre Urbanismo

A globalização tem uma história e esta história é indissociável da história das cidades.

Começar um texto com esta afirmação parece supérfluo, sobretudo quando consideramos que

na última década o próprio conceito de globalização se construiu em paralelo ao de cidades

globais. Mas se os elos entre globalização e cidades parecem suficientemente tecidos, é a

forma como a dimensão histórica é tratada em grande parte de textos que é problemática.

De fato, pode-se perguntar por que as análises do binômio globalização - formação de

cidades globais insistem em enfatizar os tempos urbanos curtos eludindo ou evitando, assim,

o tratamento do tema a partir de tempos mais longos e de um feixe mais complexo de dados

da história das cidades? Indo ainda mais longe, a pergunta que fica seria: por que a reflexão

sobre o momento contemporâneo (da história das cidades) justamente evita, não integra ou

silencia a própria dimensão histórica da cidade?

A questão poderia ser considerada mera incitação às querelas entre campos disciplina-

res, mas não é disso que se trata, antes ao contrário. Ela nasce da constatação da fragilidade

do diálogo entre os saberes urbanos, que traz implicações ainda maiores diante dos desafios

colocados à reflexão e à ação por sociedades altamente complexas e que mostram, de manei-

ra tão evidente, os processos de construção social de normas e o abandono delas, como é o

caso da sociedade brasileira.

43

Globalização e história ou atoressociais e culturas urbanas já sãolevados a sério?Margareth da Silva Pereira

Page 24: Sobre Urbanismo

cinco séculos continuam a ser projetadas ou a simplesmente surgir - e depois, movimentan-

do sua dinâmica, alimentando sua sustentabilidade ou fomentando sua decadência.

Mas se a centralidade das atuais cidades globais – para continuar com a metáfora geo-

métrica do mundo - é uma construção histórica que seria desejável analisar a partir de uma

perspectiva que não passasse sob silêncio a cultura citadina e sua inerente diversidade histó-

rica, curiosamente, não tem sido esta a perspectiva dominante. Chama atenção a ahistorici-

dade da maior parte das análises e dos discursos sobre as mutações contemporâneas às

quais, quando buscam adotar uma perspectiva histórica para os processos em curso, quase

sempre, recuam no máximo aos anos 1970.

Se a rápida internacionalização de contatos e intercâmbios transnacionais e mudanças

nos posicionamentos individuais e coletivos no exercício da vida social tem sido matéria de

centenas de livros, é importante lembrar que o tempo da globalização não se declina no sin-

gular e muito menos sua(s) história(s). Tempo das trocas em larga escala e das cidades, o

tempo da globalização é composto e, se ele é citadino, ele é antes de tudo historicamente

dinâmico, interativo, sistêmico, associativo, tenso e plural.

Historiadores contemporâneos refletindo sobre a globalização nos séculos XVI e XVII, por

exemplo, vêm insistindo sobre o caráter conectado das histórias, inclusive das cidades, o que

exige que sejam estudadas levando-se em conta amplos cenários geográficos (Gruzinski 2001

e 2004). Iniciativas no campo da geografia cultural analisando em recortes temporais ainda

mais recuados, cidades como Roma, Atenas, Marselha, Alexandria também insistiram em se

perguntar sobre o passado, o presente e a especificidade destas grandes e antigas cidades

mediterrâneas – algumas percebidas como verdadeiras megalópoles - e cujas heranças arcai-

cas continuam a impregnar o imaginário de seus habitantes e suas lógicas urbanas hoje

(Nicolet, Depaule et alli. 2000).

Partindo muitas vezes da visão de Braudel, ainda limitada a um Mediterrâneo geografi-

camente determinado, ou explorando territórios ainda mais vastos estes autores desvelam flu-

xos de intercâmbios globais igualmente complexos no passado, apontando, inclusive, a longa

permanência de temas, atitudes mentais ou práticas, com seus diferentes tempos, que são

mobilizadas e atualizadas no presente (Lepetit 1995).

As análises da ação de atores específicos em diferentes momentos do passado mostram

a persistência do messianismo e do temor do Islã, por exemplo, ou as formas e ritmos dife-

45

Globalização e história

Do ponto de vista estritamente especulativo, ela é tanto ou mais pertinente na medida

em que esse silêncio tem como conseqüência a própria desconsideração da cultura das cida-

des. Isto é, ela não seria necessária se este silêncio não significasse quase um paradoxo: em

um momento em que se fala tanto de culturas o campo das ciências sociais e, sobretudo das

chamadas ciências sociais aplicadas tende a negligenciar justamente o modo particular e

específico de cada cidade definir-se historicamente e, segundo sua cultura, o seu próprio

modo de ser cidade.

Para aqueles que acompanharam o desenvolvimento dos estudos de história urbana nas

três últimas décadas e que passaram a estudar as cidades a partir da co-presença e do con-

traste das diferentes lógicas de seus atores ou das temporalidades de suas ações é evidente

que a maior parte da vasta literatura que, desde os anos 1990, se dedica ao tema da globa-

lização desconsidera a dimensão histórica e, por conseqüência, as sedimentações culturais

das cidades e nas cidades.

Processos de mudança de escala nas interações das cidades, como se observa atualmen-

te, quando analisados em tempos mais longos, são evidentes quando nos aproximamos de

indivíduos em suas práticas quotidianas. É possível, até mesmo, observar em outros cenários

do passado, ações ou tendências comparáveis ou similares às contemporâneas ou, ainda, per-

ceber que aspectos globais das culturas citadinas são mobilizados e como interagem com

aspectos singulares em diferentes recortes temporais. Entre abordagens estruturalistas, regio-

nalistas ou os estudos culturais de gênero o desafio parece continuar sendo apontar conver-

gências, divergências, descontinuidades culturais e históricas nestas e em outras expansões e

reconfigurações de alianças e fronteiras.

Talvez, já que na literatura hegemônica permanece implícita uma visão geométrica de

mundo e das relações sociais, possa se dizer que a posição relativamente periférica que o

Brasil vem ocupando no processo de interação entre assentamentos humanos, regiões ou paí-

ses permite ver a sua história como um sismógrafo desses momentos particulares em que

grandes fluxos concentram-se (e, às vezes, convergem) em (para) certos pontos do planeta.

Suas cidades, então, constituem, para si mesmas, emaranhados de nós de diferentes percep-

ções de tempo e de normas e de expectativas, formas de luta e de resistência ou explicitação

de assimetrias e diferenças, às vezes com uma grande carga de violência. No caso brasileiro

com a particularidade desses fluxos contribuírem para a própria criação de cidades – que em

44

Sobre Urbanismo

Page 25: Sobre Urbanismo

ção intelectual e humana na qual estamos engajados aqui e agora – inclusive politicamente

(saibamos e tomemos distância crítica disto ou não). Mas os elos entre o presente e a inter-

pretação e atualização do passado parecem rompidos, a despeito do deslocamento teórico

em benefício dos atores sociais e de suas histórias, visões de mundo e práticas quotidianas

que os estudos culturais, dignos desse nome, provocaram. Dessa forma, a produção intelec-

tual gerada em centenas de instituições e seminários nacionais e internacionais dedicada à

história e à cultura das sociedades humanas (a começar pelas suas cidades) parece, por ora,

ser incapaz de subverter o status quo – e não apenas no caso brasileiro.

Neste sentido, recentíssima antologia dedicada ao tema das cidades globais, THE GLOBAL

CITIES READER (Brenner e Keil 2006), quando analisada a partir de sua organização e dos tex-

tos selecionados mostra-se um instrumento extremamente útil para dar embasamento a este

argumento. A obra permite tanto traçar um quadro da produção recente sobre o assunto, o

que nos interessa aqui, quanto perceber a difícil articulação presente-passado, considerando

as cidades como instituições sociais dotadas de densidades e espessuras históricas e culturais

próprias, dotadas de sujeitos sociais encarnados, com vidas densas, específicas. Por outro

lado, dada a ampla difusão que vem tendo, lembremos que nem mesmo uma mera antologia

possui neutralidade e é sempre organizada e lida segundo as práticas sociais (inclusive as

intelectuais) de seus autores e leitores. Observe-se, por exemplo, o papel crescente que este

gênero de livro vem, desde o início dos anos 1980, desempenhando nas estratégias de difu-

são e legitimação de abordagens teóricas e metodológicas, intervindo ainda na configuração

do campo intelectual ao reatualizar clássicos ou instituí-los.

A antologia mereceria ser cotejada a duas outras da mesma editora, THE CITY READER (1996)

e THE CITY CULTURES READER (2003), pois seria de se esperar que os pares globalização-história ou

globalização-culturas fossem objeto de um capítulo nestas publicações. Esclareçamos que um

trabalho de cotejamento dessa natureza não é nossa pretensão aqui, embora constatemos as

mesmas dificuldades em enfrentar as culturas das cidades em uma perspectiva histórica, em um

caso e no outro, e as próprias práticas econômicas como aspectos de culturas quando avaliadas

a partir de uma perspectiva mais sistêmica e temporalmente mais vasta.

Diga-se, de passagem, que malgrado Peter Hall, em apresentação de THE CITY READER, ter

insistido que os autores enfocavam problemas e polícias urbanas da antiga Grécia à Internet

o tema da globalização em sua articulação com a história não foi frontalmente abordado na

47

Globalização e história

renciados, mas conectados de produção, circulação e assimilação de conhecimentos científi-

cos e artísticos. Nebulosas geográficas formadas pelas nebulosas sociais (Topalov 1999) e

suas cidades podem ser identificadas e analisadas no interior de diferentes redes de sociabi-

lidade, que envolvem, evidentemente, as nossas jovens Américas, cuja colonização se insere

em um destes momentos de concentração de fluxos.

Em outras palavras, isto significa poder observar a vitalidade, a centralidade, a hegemonia

ou o declínio e estagnação de cidades, mas, sobretudo, como elas lidam com o novo, com a

norma, com a lei, com a solidariedade, com a razão, com o afeto, com o outro e, até mesmo, com

o urbanismo e com a arquitetura. Comparativamente ao momento atual, estas outras mundiali-

zações são estimulantes caixas de ferramentas (Gruzinski 2004) para a compreensão da parte

dos jogos entre ocidentalização, mestiçagem e globalização, mas também entre inclusão e exclu-

são que, no contexto contemporâneo, estão sendo, mais uma vez, ressignificados e instituídos.

Estudos históricos empreendidos por autores voltados para a história econômica em um

sentido mais restrito, e ainda que circunscrevendo o recorte a um grupo de países centrais,

mostraram também como a globalização não é um fenômeno novo e tampouco irreversível:

é histórico. O’Rourke e Williamson (1999) estudando aspectos como mercados, imigração e

fluxos internacionais de capitais buscaram fazer a dupla operação de analisar o hoje e o

ontem, focando a evolução da economia no Atlântico entre o século XIX e 1914, definida

como o primeiro boom da globalização, observada também nas últimas décadas. Embora, na

perspectiva historiográfica que estamos defendendo, que busca colocar a atenção nos atores

sociais e nas cidades em detrimento de uma narrativa centrada na idéia de países e modelos

explicativos, diversos limites possam ser apontados na obra, ela teve o mérito de ser uma das

primeiras a enfocar claramente em seu título o elo entre globalização e história. Neste senti-

do, autores, que também se dedicam à história econômica e política, têm contemplado a

dimensão histórico-cultural de modo mais fértil como, por exemplo, Arrighi (1996), buscando

enfrentar esta tendência ao esquecimento ou à naturalização da operação histórica, o que

vale dizer problematizando a própria interpretação do passado.

Na verdade, desde os anos 1970, Michel de Certeau, para citarmos pelo menos um dos

que contribuíram para a revolução epistemológica dos anos 1980, já insistia em alertar his-

toriadores que a operação histórica ou o passado, mesmo aquele mais tangível ou mais ime-

diato, só nos interroga, só o construímos como representação, objeto e tema, a partir da situa-

46

Sobre Urbanismo

Page 26: Sobre Urbanismo

cem que analisemos por que foram incluídos. São os textos de Peter Hall (1966) e de Fernand

Braudel (datado de 1984 quando na verdade esta é a data de sua edição nos EUA, tendo sido

publicado originalmente em francês em 1979), que figuram na Parte 1 e de H. Lefebvre

(1970), incluído na Parte 7 (publicado nos Estados Unidos em 2003).

Ora, estes textos foram escritos antes dos câmbios teóricos e metodológicos da década

de 1980 na análise da história das cidades e dos nexos entre capitalismo e urbanização que,

de resto, eles mesmos iriam fomentar. E isto não é negligenciável: é o próprio cerne da ques-

tão. À visão dialógica, complexa, instigante e fértil do que faz pensar e da atividade intelec-

tual ela própria, sobrepõe-se a individuação dos autores. Mais uma vez estamos diante de um

paradoxo: é a própria história do campo do conhecimento que não é considerada, em seus

ritmos, confrontos e deslocamentos, a partir da prática intelectual dos seus membros.

Colocados na abertura do livro os textos de Hall e Braudel funcionam como uma espécie

de arqueologia da emergência dos conceitos de cidade global e de globalização. Talvez o nítido

perfil dos autores, com consagrados estudos históricos, sirva como uma caução à própria obra

em relação à questão das temporalidades históricas. O texto escolhido de Hall é o que analisa

a noção de world cities de Patrick Geddes, situando-a historicamente como concomitante a

explosão das metrópoles.A contribuição de Braudel evidentemente se deve à sua própria noção

de economie-monde dos séculos XV e XVIII e se associa, assim, à noção de mundialização.

Já o texto de Lefebvre, que fecha as sete partes em que se divide a obra foi incluído,

segundo os autores, devido à contribuição do sociólogo francês que anteviu, nos anos 1960,

a passagem definitiva da cidade para a sociedade urbana. É curioso notar que um compor-

tamento quase instrumental dos nomes de Lefebvre (como autor) e de Geddes (este como

objeto de estudo de Hall) para representar a dimensão histórica também se observa em rela-

ção à W. Benjamin ou Ch. Beaudelaire. Esses autores, cuja reflexão, como a de Lefebvre e

Geddes, baliza outros momentos fortes de mundialização no passado, são citados vez por

outra apenas para ilustrar certas características do momento contemporâneo. Assim, as suas

reflexões não são analisadas sob o foco da própria história da globalização e dos contextos

de ação e de produção de sentido em que foram enunciadas. Ora, as reflexões desses auto-

res são assim despotencializadas em sua atualidade. Em resumo, textos e citações ao serem

evocados sem que a própria historicidade do campo do saber seja apontada e discutida, aca-

bam por revelar os sinais de anacronismo ou de artificialidade com os quais a história com-

49

Globalização e história

obra, do mesmo modo que o livro não enfoca as possibilidades teóricas trazidas pelo linguis-

tic turn que está na base dos estudos culturais. Por outro lado, embora reconhecendo que

cidades são resultados de culturas e lugares, THE CITY CULTURES READER coloca a ênfase em tem-

pos curtos, e aí o que falta é a cidade em sua materialidade e em seus processos de ressigni-

ficação mais longos que permitem observar reiterações nos processos de construção identitá-

ria, sedimentações e até regularidades. Em todo caso, analisando-se as três antologias elas

parecem guardar uma grande autonomia, lamentando-se que a leitura das duas primeiras

obras não tenha beneficiado a organização da última, o que é particularmente nítido na apre-

sentação da parte 6 de THE GLOBAL CITIES READER, justamente a que tem por título

REPRESENTATIONS, IDENTITY AND CULTURE IN GLOBAL CITIES: RETHINKING THE LOCAL AND THE GLOBAL.

A obra revela a dificuldade de grande parte dos autores, cujas reflexões estão em circu-

lação em grande escala, em analisar tendências comuns ou processos históricos tanto de den-

tro para fora, isto é dos atores sociais e de suas redes de sociabilidade, quanto a partir de um

olhar teórico das cidades menos mecanicista. Daí que a pergunta de Bernard Lepetit formu-

lada a historiadores e sociólogos em artigo nos idos de 1995 – A história leva os atores a

sério? – (Lepetit 1995) parece que não só não obteve eco como ainda pode ser repetida em

fóruns disciplinares, cada vez mais amplos na última década, embora falar de diferença, sin-

gularidade, alteridade, identidade, gênero, esteja cada vez mais na ordem do dia.

É certo que Brenner e Keil procuram contextualizar os textos selecionados para sua anto-

logia e as abordagens adotadas. Entretanto, as introduções ficam em um nível teórico super-

ficial, sobretudo em relação ao importante deslocamento no campo epistemológico dos anos

1980, quando historiadores, de fato ou de direito, ao lado de autores de diferentes campos

disciplinares enfrentaram violentamente o apagamento dos atores sociais e de recortes e

métodos explicativos a priori.

Basta comparar o tratamento da relação entre globalização – história - cultura nos arti-

gos selecionados onde, como já dissemos, majoritariamente, os autores apresentam as cida-

des globais e as causas que as engendram como fenômenos absolutamente novos e estas,

por suas vez, são definidas por uma série de atributos, malgrado os esforços mais incisivos de

alguns como M.P.Smith (2001), R.G.Smith (2003), King (1991) e Abu-Lughod (1999).

Dos 50 artigos que compõem a antologia, eminentemente anglo-saxônica, a maior parte

data dos anos 1990-2000 e como apenas três foram publicados antes dos anos 1980, mere-

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Sobre Urbanismo

Page 27: Sobre Urbanismo

novos léxicos para falar da cidade às redes intelectuais e de saber, vários temas pouco a

pouco emergiram com os conceitos de globalização e de cidades globais. Estes temas encon-

tram eco ou paralelo em momentos de câmbio econômico, tecnológico, político, epistemoló-

gico ou, falando mais simplesmente, em momentos e cenários de revisão, abandono e ressig-

nificação dos parâmetros da vida social.

Não se quer afirmar um caráter cíclico, repetitivo, biológico na história das sociedades e

das cidades, o que muitos historiadores já estariam habituados a constatar. De fato, não se

trata de asseverar que a história das cidades se resumiria ao nascimento, vida e morte de for-

mas de assentamentos humanos e de vida coletiva: um eterno recomeço. Mas, talvez, pudés-

semos pensar com Maurice Halbwachs que o passado não se conserva nem ressurge idênti-

co, mas é e pode ser ativado, remanejado, reatualizado de acordo com a estratégia de quem

lembra e quer lembrar. Não se pretende elencar temas recorrentes que irromperiam genérica

e regularmente, em certos momentos com mais força que em outros. Entretanto, isto não sig-

nificaria não reconhecer, estrategicamente, semelhanças entre movimentos e tendências e seu

corolário de problemas. Talvez pudéssemos pensá-los como um certo enquadramento de for-

ças e de lógicas individuais e coletivas que a própria experiência da vida citadina reforça, des-

loca, respeita, subverte, recusa, afasta, reconstrói sem cessar em alguns momentos e, segun-

do as cidades, mais intensamente que em outros.

Neste sentido, é importante também sublinhar que a maioria dos trabalhos que vem ana-

lisando o chamado sistema mundial moderno, implícita ou explicitamente acaba adotando

perspectivas nacionais ou, mais recentemente, regionais (Ásia, África, Sul América, Europa)

nas suas interpretações. Isto quer dizer que mesmo quando se fala da escala local é para, rapi-

damente, recolocá-la em uma grade abstrata de observação, neutralizando-se o foco a partir

do qual a própria reflexão deveria ser construída: as cidades. A perspectiva nacional ou regio-

nal nos estudos da globalização acaba contribuindo para que se deixe em segundo plano a

análise da posição relativa ocupada por cada cidade e seus atores, historicamente, em outras

configurações do sistema mundial, que é, assim, tomado como um campo definido a priori e

de modo muito mais estático que dinâmico. Posições e situações aqui já estão também defi-

nidas a priori e as cidades, as regiões, as nações e suas redes, deixam de ser investigadas,

como tantas vezes alertou Roncayolo, como categorias de uma prática social. Entretanto, cabe

aqui evitar o risco oposto. De fato, como não resvalar para um discurso sobre a singularida-

51

Globalização e história

parece no conjunto da produção elencada, não muito diferente do modo como ela é consi-

derada de modo geral.

Talvez tenha vindo dessa percepção, desistoricizada duplamente - das transformações

em curso e do próprio saber que os campos disciplinares podem gerar sobre elas em certos

momentos -, a grande perplexidade que marcou a produção dedicada à globalização, pelo

menos em um primeiro tempo. A ampla mutação observada na vida social começou por sus-

citar, primeiramente, reações contra ou a favor de um mundo que se passava a perceber como

globalizado e que vem sendo nos últimos anos nuançadas como demonstram certos movi-

mentos que insistem, por sua vez, em afirmar que uma outra mundialização é possível. De

todo modo, talvez devido a pouca intimidade de muitos analistas com os estudos históricos,

multiplicaram-se as análises sobre a morte das cidades, as denúncias ou elogios das cidades

genéricas e dos não-lugares ou a criação de vocábulos forjados para nomear situações vistas

como absolutamente originais na história das sociedades e das cidades.

Não vamos desenvolver aqui hipóteses sobre as causas dessa percepção, que dizem res-

peito à própria conformação contemporânea do campo dos saberes sobre sociedades e cida-

des e, portanto, às tensões entre visões disciplinares sobre o tema e às interpretações que se

impõem umas frente às outras. O que se constata é que muito tem se falado de globalização,

mas ainda muito pouco a partir de uma perspectiva histórica mundial, ou seja, que leve em

conta, em uma visada comparada, os diferentes capítulos da própria história da globalização.

Nem a sociedade global nem o funcionamento interconectado de nebulosas de cidades

e seus atores, que vêm se delineando (mais uma vez agora), são configurações absolutamen-

te novas. Na última década vimos discutindo temas como o neoliberalismo, a reorganização

de fronteiras, a macro regulação econômica, a exclusão social, o poder local, o impacto das

mutações tecnológicas ou a concepção de novas imagens urbanas ou a espetacularização da

cidade, como se fossem novos assuntos na história das cidades. Entretanto, o acúmulo de

estudos monográficos já permite a identificação de processos, senão semelhantes, no mínimo

comparáveis, quando se enfoca a história de cidades específicas ou as gêneses e mutações

no campo epistemológico vistos em recortes temporais mais longos.

Ora, do comportamento desterritorializado de setores da economia e de atores sociais,

do liberalismo à segregação, do individualismo às construções identitárias e comunitaristas,

das redes associativas às suas diferentes modalidades de ação, ou até mesmo da criação de

50

Sobre Urbanismo

Page 28: Sobre Urbanismo

Amsterdã, Seul, Tóquio ou Rio de Janeiro – para citar pelo menos algumas velhas ou novas

capitais, metrópoles ou cidades globais.

A problemática que gostaríamos de introduzir diz respeito a essa posição relativa de cada

cidade e da sua capacidade – de seus atores específicos - de ação, reação e, em suma, de

interação no processo de conformação dinâmica e instável de um sistema globalizado; ou,

simplesmente, os limites das suas interações, que ela mesma nesse fazer vai definir.

As afirmações que vimos fazendo se beneficiam de centenas de trabalhos da área dos

estudos urbanos realizados em vários países, inclusive no Brasil, que desde o início dos anos

1980, quando certas mudanças urbanas começavam lentamente a serem perceptíveis, passa-

ram a adotar uma visão sistêmica e comparada de alguns processos socioculturais. Foi o

tempo da multiplicação dos estudos comparados sobre a haussmanização, sobre a cidade

capital, sobre o nascimento do urbanismo ou sobre as palavras da cidade, que propunham

interpretações mais transversais e históricas dos fenômenos sociais e culturais observados.

Tomando a organização das redes de comunicação como indícios dessas histórias conectadas

(Pereira 1999) podem ser definidos vários capítulos da formação destes sistemas globaliza-

dos de intercâmbio que repousam, claramente, em um conjunto de cidades que passam a

conhecer-se e a reconhecer-se.

Hoje, se enfocamos apenas o caso do Rio de Janeiro, a acumulação de monografias sobre

a história urbana, sobre a história do urbanismo, sobre a história das formas de falar, escre-

ver, descrever, problematizar ou representar a cidade autoriza que os diagnósticos sobre o

presente feitos por uns, somem-se à atualização do passado, empreendida por outros, como

no nosso caso.

A história cultural do Rio, vista em um tempo longo e de maneira comparada, mostra inú-

meros momentos em que não só a cidade foi tematizada como agora, como também foi obje-

to de discussões sobre a sua imagem ou de reformas de suas estruturas materiais, adminis-

trativas, político institucionais. Estas situações e contextos evidenciam a ação de um campo

de saber específico sobre a sua forma material ou sobre a sua forma sócio política – chama-

do de urbanismo ou planejamento urbano, entre nós, na atualidade – que buscou autonomia

intelectual, redesenhou-se, organizou estratégias, criou palavras para falar de si e de suas teo-

rias, adotou novas tecnologias, fez proposições e mediações, mas também revelou, em maior

ou menor grau, consciência da dimensão política de sua prática técnica.

53

Globalização e história

de e sobre o gênero, que exclui e silencia de outro modo processos nos quais os posicionamen-

tos e situações podem seguir lógicas, cronologias, níveis de inclusão ou exclusão múltiplos?

No que diz respeito à história das cidades, seja como um objeto construído, seja como

uma experiência de reconhecimento da diferença e, assim, como ato educativo e de aprendi-

zado de si e do outro, as sedimentações e justaposições dos tempos e as declinações e expe-

rimentações das formas se impõem ao olhar. As cidades pelas suas toponímias, pelas suas for-

mas construídas ou de sociabilidade, em suma, por suas culturas revelam as suas interações

com um conjunto de outras cidades. É nesse jogo intrincado que a cidade ela própria se mos-

tra uma construção histórica, social e cultural especifica, se definindo como cidade no presen-

te e no passado e se posicionando conjunturalmente em uma multiplicidade de aspectos, pois,

como lembra Alessandra Russo (2005): “sempre haverá mais espaços [isto é relações] que

olhares... pois são infinitos os horizontes”.

É esta posição relativa instável e permanentemente alimentada e alimentadora de um

sistema de fluxos e trocas, que cada cidade possui e desenvolve em relação e em contraste a

outras cidades como construção coletiva, que pode ser observada em outros momentos his-

tóricos em suas bifurcações, descompassos, regularidades. É a posição que ela, cidade – não

abstratamente, mas pela ação de seus habitantes, atores de uma história coletiva -, define

para si junto às demais que a torna mais ou menos global em um determinado momento. Isto

é, capaz de compartilhar um conjunto de valores, características e modos de funcionamento

social e cultural com outras cidades, fazendo-os interna e profundamente seus.

Mas justamente esta externalidade conjuntural é um aspecto dentre outros processos

mais longos de construção dos traços identitários das cidades em sua internalidade. Em outras

palavras, a cidade não é global: ela se torna ou deixa parcialmente de sê-lo em ritmos tem-

porais muito mais longos.

Em resumo: a centralidade ou a capitalidade de uma cidade – já que nos últimos anos

vimos falando de sociedades capitalistas quando falamos de cidades globais – só pode ser

avaliada em longo prazo e sistemicamente, em sua capacidade de manter-se em diálogo mais

ou menos intenso com uma nebulosa de cidades e de atores e não com aquela outra, defi-

nindo suas posições relativas (mais densamente ligada, mais fluida) neste ou naquele

momento. Pelo menos é isso que deveria se ter em mente quando se analisa Roma, São Paulo

ou Marselha, Paris, Londres, México ou Nova Iorque, Buenos Aires, Milão ou Veneza, Istambul,

52

Sobre Urbanismo

Page 29: Sobre Urbanismo

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55

Globalização e história

O tempo da globalização é o tempo das cidades e de seus reformadores, arquitetos, escri-

tores, pintores e dos urbanistas avant la lettre. É também o tempo do poder municipal e de

seus funcionários e, sobretudo, dos citadinos, dos estrangeiros, dos imigrantes e de grandes

tensões, mas também de grandes misturas sociais e culturais. Nesses momentos, observa-se

a formação de redes intelectuais transnacionais, que tanto alimentam a própria internaciona-

lização do campo da cultura técnica quanto repensam as singularidades locais reformulando,

inclusive, não só práticas e teorias, mas ambicionando uma ação a longo termo. Resta, entre-

tanto, retirar tanto do presente, quanto do passado, as pesadas muralhas teóricas que insis-

tem em construir suas interpretações de modo desencarnado e ahistórico falando em nome

de sujeitos ocultos e indeterminados.

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Sobre Urbanismo