Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional...

44
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA UNB CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL CDS ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU EM INDIGENISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol JULIANA CRISTINA FUKUDA Monografia de Especialização Brasília-DF, abril de 2009

description

Monografia de Especialização Lato Sensu em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável. Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília.

Transcript of Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional...

Page 1: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

1

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UNB

CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – CDS

ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU EM INDIGENISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Sobreposição de Unidades de Conservação

e Terras Indígenas:

o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima

e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

JULIANA CRISTINA FUKUDA

Monografia de Especialização

Brasília-DF, abril de 2009

Page 2: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

2

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UNB

CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – CDS

ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU EM INDIGENISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Sobreposição de Unidades de Conservação

e Terras Indígenas:

o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima

e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

JULIANA CRISTINA FUKUDA

Orientadora: Melissa Curi

Co-orientadora: Elaine Moreira

Monografia de Especialização

Brasília-DF, abril de 2009

Page 3: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

3

É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta monografia e

emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. O autor

reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta monografia de especialização

pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor.

Juliana Cristina Fukuda

Fukuda, Juliana Cristina. Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o

caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e da TI Raposa Serra do Sol. / Juliana Cristina Fukuda.

Brasília, 2009. 31 p. : il. Monografia (Especialização Lato Sensu em Indigenismo e

Desenvolvimento Sustentável). Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília.

Sobreposição, Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Parque Nacional do Monte Roraima, Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Page 4: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

4

Pequenina semente no início deste curso,

foi crescendo em meio às disciplinas e aprendizados.

Viajou uterinamente a São Gabriel da Cachoeira,

recebeu boas energias indígenas ao final das aulas presenciais.

Nasceu em meio às discussões sobre segurança alimentar,

Mamou durante toda a elaboração desta monografia

E começou a comer já na sua finalização.

Ao meu precioso filhote, CAETÊ,

Para que cresça num mundo mais ético,

sensato e justo.

Page 5: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

5

Agradecimentos

Ao meu marido JÚLIO CÉSAR SOUZA DE ANDRADE, pelo companheirismo em todos os

momentos deste curso e pelas contribuições à monografia.

À minha família, sempre apoiando as minhas decisões acadêmicas.

À coordenação do curso de especialização em Indigenismo e Desenvolvimento

Sustentável, nas pessoas do Prof. OTHON LEONARDOS e de RENATA GUERREIRO, que se

dedicaram sobremaneira para a realização deste curso.

À minha orientadora, MELISSA CURI, pelas idéias apresentadas e pela atenção e

cuidado no processo construção da monografia.

À minha co-orientadora, ELAINE MOREIRA, pelas indicações de bibliografia e leitura

cuidadosa deste texto.

Aos colegas e demais professores do curso, pelo rico aprendizado proporcionado

através das aulas e discussões, tanto presenciais quanto pela internet.

Aos entrevistados – LUDMILLA GUERRA, DILSON DOMENTE INGARIKÓ, JOSÉ PONCIANO

FILHO, RODRIGO PARANHOS FALEIRO E VINCENZO LAURIOLA – pela disposição e abertura para

tratar do assunto, inclusive disponibilizando importantes referências para o trabalho.

Aos examinadores da banca de defesa desta monografia, IARA VASCO FERREIRA e

JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND, por aceitarem o convite para participarem desta etapa final do

curso.

À COORDENAÇÃO DE MEIO AMBIENTE (CMAM/CGPIMA) da FUNAI, em especial a

Ludmilla Guerra, e à COORDENAÇÃO DO BIOMA AMAZÔNICO (COBAM/DIREP) do ICMBio, em

especial a Jorge Piccolo, por permitir o acesso aos processos referentes ao tema, e pelas

conversas.

Aos colegas de trabalho que me incentivaram a fazer este curso, em especial a

CLÁUDIA ENK AGUIAR, minha então coordenadora, e a BRUNA VITA SILVA, pelo material

disponibilizado.

Enfim, a todos que de alguma forma contribuíram para as idéias e finalização deste

trabalho, muito obrigada.

Page 6: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

6

Resumo

A sobreposição entre Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) é

usualmente tratada como um conflito de terras e interesses entre índios / indigenistas e

ambientalistas. Entretanto, a disputa entre estas categorias de áreas protegidas

enfraquece o discurso da necessidade de manutenção dessas áreas frente a grandes

pressões por terras e uso de recursos naturais, como a exploração madeireira, o

agronegócio e a mineração. Defende-se neste trabalho a idéia de que, mesmo não sendo

simples, a situação poderia ser aproveitada para maior proteção das TIs e melhor uso das

UCs. Foi escolhida como área de estudo a região do Parque Nacional do Monte Roraima

(PNMR) / Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS). Foram analisados: a) a legislação

referente a estes dois tipos de áreas protegidas, b) a relação dos Ingarikó com o PNMR, c)

aspectos positivos advindos da sobreposição entre TIs e UCs, d) o processo de

construção do plano para gestão compartilhada para o PNMR entre Instituto Chico

Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), índios e Fundação Nacional do Índio

(FUNAI), e) o PNMR no recente julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a

demarcação contínua da TIRSS. Das conclusões do estudo coloca-se que a conservação

da biodiversidade pode e deve ser estabelecida em áreas com ocupação humana, mas as

sobreposições entre TIs e UCs não são desejáveis. No entanto, onde já existem

sobreposições, a situação poderia ser aproveitada para maior proteção das TIs e melhor

uso das UCs. Além disso, a possibilidade de gestão compartilhada de áreas protegidas em

mosaico é um instrumento interessante e que vem sendo pouco utilizado em conjunto com

as TIs. Quanto à área do PNMR/TIRSS, ressalta-se o processo amplamente participativo

de construção do plano de gestão compartilhada – documento atualmente em consulta

jurídica no ICMBio e na FUNAI – e a experiência de etnoturismo, que poderá servir como

um projeto-piloto para a FUNAI para a normatização da atividade. Independente da questão

de sobreposição entre TIs e UCs, a inclusão de uma categoria relativa a áreas indígenas no

Sistema Nacional de Unidades de Conservação poderia significar um avanço para a

conservação da biodiversidade no país, bem como assegurar maior proteção à cultura

indígena.

Palavras-chave: sobreposição, Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Parque

Nacional do Monte Roraima, Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Page 7: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

7

Abstract

Superposition between Indigenous Lands (TIs) and Conservation Units (UCs) is

usually treated as a conflict of land and interests between indigenes / indigenists and

environmentalists. However, the dispute between these categories of protected areas

weakens the speech of the need to maintain these areas facing severe pressures on land

and use of natural resources, such as logging, mining and the agribusiness. We advocate

in this work the idea that, although not simple, the situation could be used for greater

protection of TIs and better use of CUs. It was chosen as the study area the region of the

Monte Roraima National Park (PNMR) / Raposa Serra do Sol Indigenous Land (TIRSS). It

were analyzed: a) these two types of protected areas as to the law, b) the relationship of

Ingarikó with PNMR, c) positive aspects arising from the superposition between TIs and

UCs, d) the process of building the PNMR co-management plan between Instituto Chico

Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), indigenous e Fundação Nacional do

Índio (FUNAI), e) the PNMR in the Federal Supreme Court (STF) recent trial about TIRSS

continuous demarcation. The conclusions of the study raise that biodiversity conservation

can and should be established in areas of human occupation, but the superposition

between TIs and UCs are not desirable. However, where superpositions occur, the

situation could be exploited for greater protection and better use of TIs of UCs. Moreover,

the possibility of co-management of protected areas in mosaic is an interesting tool and

that has been little used in conjunction with the TIs. As the area of PNMR / TIRSS, we

highlight the widely participatory building process of the co-management plan - document

currently in legal consultation in ICMBio and FUNAI - and the experience of etnotourism,

which could serve as a pilot project for FUNAI to the normalization of the activity.

Regardless of the issue of superposition between TIs and UCs, including a category about

indigenous areas in the National System of Conservation Units could mean a breakthrough

for the biodiversity conservation in the country and ensure greater protection of indigenous

culture.

Key words: superposition, Conservation Units, Indigenous Lands, Monte Roraima National

Park, Raposa Serra do Sol Indigenous Land.

Page 8: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – localização da TI Raposa Serra do Sol e Parque Nacional do Monte Roraima

............................................................................................................................. ....... pág. 4

Figura 2 – Proporção do desmatamento dentro e fora das áreas protegidas na Amazônia

legal e nos estados de Mato Grosso (MT), Pará (PA) e Rondônia (RO) ...................... pág. 6

Page 9: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

9

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AER - Administração Executiva Regional

CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica

CIR – Conselho Indígena de Roraima

comunic. pess. – comunicação pessoal

COPING - Conselho do Povo Ingarikó

EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias

FUNAI - Fundação Nacional do Índio

GT - grupo de trabalho

IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas

ISA – Instituto Socioambiental

IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário

MJ - Ministério da Justiça

MMA – Ministério do Meio Ambiente

MRE - Ministério das Relações Exteriores

ONG - organização não-governamental

OPIR – Organização dos Professores Indígenas de Roraima

PDPI – Programa Demonstrativo dos Povos Indígenas

PN – Parque Nacional

PNAP – Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas

Page 10: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

10

PNMA – Política Nacional de Meio Ambiente

PNMR – Parque Nacional do Monte Roraima

PPTAL – Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia

Legal

RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável

RESEX – Reserva Extrativista

RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural

RR – estado de Roraima

RVS – Refúgio de Vida Silvestre

SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SODIUR - Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação

SPU – Secretaria do Patrimônio da União

STF – Supremo Tribunal Federal

TI(s) – Terra(s) Indígena(s)

TIRSS – Terra Indígena Raposa Serra do Sol

UC(s) – Unidade(s) de Conservação

UFRR – Universidade Federal de Roraima

Page 11: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

11

SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1

2 DESENVOLVIMENTO ....................................................................................................... 3

2.1 A área de estudo ......................................................................................................... 3

2.2 Por que há discórdias entre defensores acirrados de UCs e TIs? Faz sentido? ......... 5

2.3. Sobre o reconhecimento de Terras Indígenas e Unidades de Conservação na

legislação brasileira .......................................................................................................... 7

2.4. As Terras Indígenas no SNUC ................................................................................ 10

2.5. As sobreposições entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação federais ..... 11

2.6. Aspectos positivos advindos da sobreposição .......................................................... 13

2.7. Os Ingarikó e o Parque Nacional do Monte Roraima ................................................ 16

2.8. Os trabalhos para a gestão compartilhada (ICMBio, indígenas e FUNAI) do PNMR . 18

2.9. O Parque Nacional no processo da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa

Serra do Sol junto ao Supremo Tribunal Federal ............................................................ 22

3. CONCLUSÕES ........................................................................................................... 24

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 26

APÊNDICE

ANEXOS

Page 12: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

1

1. INTRODUÇÃO

Diversos são os relatos e provas de que há muito tempo a humanidade reserva parte

da área que ocupa para usufruto de recursos ou provimento de serviços ambientais. Com

o crescimento populacional mundial e o uso cada vez maior de energia por boa parcela

desta população, principalmente a partir da Revolução Industrial, ambientes naturais foram

sendo transformados e degradados. Agir contra a perda de biodiversidade, de recursos

naturais e de espaços de contemplação da natureza são algumas das razões que

motivaram diferentes países, a partir do final do século XIX, a adotarem ações de criar e

manter reservas ambientais. No Brasil, reservas com estes fins são denominadas

Unidades de Conservação (UCs).

Já as Terras Indígenas (TIs) correspondem a áreas delimitadas cujos objetivos são

de reconhecer o direito originário dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam

e proteger as terras de invasões e apropriações indevidas dos bens nelas existentes. Não é

objetivo específico das TIs o de conservação dos recursos naturais. Entretanto, o modo de

vida indígena, intimamente ligado à natureza, somado aos esforços de cada grupo

indígena para manter íntegra a área de sua posse, têm-se mostrado muito importantes

para a conservação da biodiversidade. Não à toa, o Plano Estratégico Nacional de Áreas

Protegidas (PNAP) considera que sejam áreas protegidas: unidades de conservação

federais, estaduais e municipais, terras indígenas, terras de quilombo, reservas legais,

áreas de preservação permanente e reservas da biosfera (BRASIL, 2006).

Territorialmente, em algumas partes do país, estas duas categorias de áreas

protegidas foram sobrepostas. Há casos em que TIs estão totalmente sobrepostas a UCs,

outros onde UCs estão totalmente sobrepostas a TIs e outras ainda onde uma porção de

cada são sobrepostas. Há casos de sobreposição tanto de UCs de proteção integral quanto

com UCs de uso sustentável. De acordo com estudo realizado pelo Instituto Socioambiental,

até 2004 existiam no Brasil cerca de 83,8 milhões de hectares em UCs1, e 91,1 milhões de

hectares de em TIs2, havendo 12,9 milhões de hectares de sobreposições entre UCs e TIs.

(ROLLA & RICARDO, 2004).

1 Levando-se em conta somente as UCs estaduais e federais, tendo suas áreas somadas e subtraída a área

total de sobreposições e de área marinha.

2 Considerando-se apenas as TIs identificadas, declaradas, reservadas, homologadas e registradas em

cartório ou SPU

Page 13: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

2

A questão da sobreposição de Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação

(UCs) é usualmente tratada como um conflito de terras e interesses entre índios /

indigenistas e ambientalistas. Entretanto, em face do quadro atual, a disputa entre estas

categorias de áreas protegidas enfraquece o discurso sobre a necessidade e importância

dessas áreas protegidas frente a grandes pressões por terras e recursos naturais nelas

existentes como o agronegócio, mineração e exploração madeireira. Pelo contrário, a

situação poderia ser aproveitada para maior proteção das TIs e melhor uso das UCs.

A lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, no

art. 57 prevê a instituição de grupos de trabalho entre FUNAI – Fundação Nacional do

Índio e ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (à época,

atribuição do IBAMA3 – Instituto Brasileiro dos Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis) – para “propor as diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das

eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação”. O decreto

5758/2006, que institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP, tem

como um de seus objetivos “solucionar os conflitos decorrentes da sobreposição das

unidades de conservação com terras indígenas e terras quilombolas”. No entanto, até hoje

poucas iniciativas foram realizadas neste sentido, sobretudo levando-se em consideração

a quantidade de conflitos existentes (MLYNARZ, 2008; FALEIRO, 2005b).

MARETTI (2004) expõe casos interessantes de alguns países – Bolívia, Colômbia,

África do Sul e Austrália – em que os territórios indígenas (ou tradicionais, no caso de

África do Sul, ou aborígenes, no caso da Austrália) fazem parte do sistema nacional de

áreas protegidas. Em todos os casos, há processos de gestão compartilhada, em que a

comunidade local participa das decisões de manejo. Quando há participação e

envolvimento destes grupos locais, há maior comprometimento para a conservação a

longo prazo, e quando essa participação ocorre desde o início, os resultados são mais

benéficos tanto para os grupos sociais como para a as áreas protegidas4. CASTRO, ALFARO

E WERBROUCK (2001) explanam o processo de parceria entre governo e indígenas para a

gestão de áreas protegidas no Peru, em defesa da idéia de que a sustentabilidade dessas

áreas é bastante aumentada quando a sua implementação beneficia diretamente as

populações locais.

3 A atribuição de gestão das UCs federais, de responsabilidade do IBAMA até 2007, passou a ser do ICMBio,

autarquia federal criada através da Lei 11.516/2007. 4 FUKUDA (2006) demonstrou que esta relação também existiu nas UCs marinho-costeiras de uso sustentável

no Brasil.

Page 14: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

3

Pretende-se neste trabalho discutir a questão de sobreposição de Unidades de

Conservação e Terras Indígenas, tendo como foco a área do Parque Nacional do Monte

Roraima (PNMR) / Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS). Recentemente, em abril

de 2009, foi finalizado o plano para gestão compartilhada desta Unidade de Conservação,

envolvendo ICMBio, FUNAI e indígenas. Por outro lado, a disputa ambientalistas x índios /

indigenistas foi utilizada por críticos à demarcação da TIRSS como um dos argumentos

para o pedido de anulação da demarcação da TI junto ao Supremo Tribunal Federal, cuja

ação foi também recentemente encerrada, em março de 2009.

As informações para este trabalho foram obtidas em referências bibliográficas e na

internet, em documentos institucionais da FUNAI e ICMBio e em entrevistas5 com pessoas

que tiveram participação em aspectos relativos à sobreposição da Terra Indígena Raposa

Serra do Sol e Parque Nacional do Monte Roraima – técnicos da FUNAI, ICMBio e

indígenas (Apêndice 1).

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. A área de estudo

A área de estudo situa-se na porção mais setentrional do estado de Roraima, divisa

com a Guiana e a Venezuela. A Terra Indígena Raposa Serra do Sol6, demarcada em

1998 e homologada em 2005 (Anexo 1), tem 1.743.089 hectares e abrange parte dos

municípios de Pacaraima, Uiramutã e Normandia. Na região habitam cerca de 15 mil

índios, distribuídos em 152 aldeias das etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang, Wapixana e

Patamona (BRASIL, 2005; SANTILLI, 2006b).

Na parte norte desta Terra Indígena, em total sobreposição à mesma, encontra-se o

Parque Nacional do Monte Roraima (Figura 1). Esta Unidade de Conservação tem

aproximadamente 116 mil hectares, abrangendo terras do município de Uiramutã. Foi

criada através do decreto 97.887 de 28/06/1989 (Anexo 2), tendo como objetivo:

proteger amostras dos ecossistemas da Serra Pacaraima, assegurando a preservação de sua flora, fauna e demais recursos naturais, características geológicas, geomorfológicas e cênicas, proporcionando oportunidades controladas para visitação, educação e pesquisa científica (BRASIL, 1989).

5 As conversas foram realizadas sem um roteiro, mas na forma de perguntas e respostas.

6 Anteriormente, em 1989,na parte norte do que hoje é a TIRSS, havia sido demarcada a Área Indígena Ingarikó,

que ocupava 90 mil ha.

Page 15: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

4

Principal chamativo cênico da região, o Monte Roraima é considerado pelos

indígenas venezuelanos (Pémon) e brasileiros (Ingarikó e Macuxi) como "A Casa de

Macunaíma"; os Pémon ainda o chamam de "Madre de todas las Águas" (IBAMA, 2004).

Outro atrativo do PNMR é o Monte Caburaí, ponto mais setentrional do país.

Figura 1 – Localização da TI Raposa Serra do Sol e Parque Nacional do Monte Roraima -

Fonte: ISA (disponível em <http://www.socioambiental.org/nsa/mapas/img/map_raposa_ 15042005.gif/mapa>).

Na área do PNMR habitam cerca de 1120 índios Ingarikó, grupo indígena

pertencente à família lingüística Karib, também conhecidos como Kapon ou Akawaio.

Page 16: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

5

Ocupam tradicionalmente as serras da região norte do estado de Roraima. Estão presentes

também na Venezuela e na Guiana, sendo freqüente o contato entre si. Como a área é de

difícil acesso, e como há um histórico de guerras deste povo, estes índios permaneceram

livres dos vários recrutamentos de mão-de-obra indígena que têm afetado, há séculos,

povos vizinhos ao sul (ISA, 2009; MLYNARZ, 2008; RORAIMA, 2009).

2.2. Por que há discórdias entre defensores acirrados de UCs e TIs? Faz sentido?

É inegável a discórdia existente entre indigenistas e ambientalistas radicais, que

defendem os índios ou a natureza, um desdenhando a importância do outro. Aqueles que

criticam as TIs alegam que várias delas encontram-se degradadas, que os índios

comercializam os recursos naturais de suas terras ou os utilizam de maneira muito

impactante, por exemplo, através da caça e agricultura de corte-e-queima. Já os que

criticam as UCs dizem que, se há a presença de índios na região, eles habitavam ou

utilizavam a área muito antes da criação da UC. Além disto, alegam que as UCs não contam

com estrutura física nem de pessoal para proteger e manejar o que está no ato de criação,

fazendo com que muitas delas fiquem bastante degradadas. Esta disputa se torna ainda

mais acirrada nas áreas de sobreposição.

Eticamente, geneticamente, antropologicamente e culturalmente, pelo menos, é

indiscutível a necessidade de proteger áreas utilizadas pelos índios que resistiram – e ainda

resistem – ao processo de colonização do Brasil. Cabe lembrar que as estimativas da

população indígena no Brasil à época da chegada dos primeiros europeus às Américas

variam entre 1 e 8,5 milhões de pessoas, falantes de cerca de 1250 línguas. Hoje, mesmo

com o aumento populacional indígena nos últimos anos, são cerca de 600 mil pessoas (20%

em áreas urbanas), falando somente 180 línguas, aproximadamente (RICARDO & RICARDO,

2006; CUNHA, 1992; RODRIGUES, 2009).

O Brasil é reconhecidamente um dos países com maior riqueza de espécies e

diversidade de ecossistemas do mundo. BRANDON ET AL. (2005), baseados em outros

autores, citam que há no país mais de 13% da biodiversidade e 40% do que resta de

florestas tropicais no planeta. A proteção deste patrimônio natural, seguindo convenções

internacionais, como a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB, do qual o Brasil é

signatário), tem como um de seus instrumentos a criação e a implementação de áreas

protegidas para conservação biológica (UCs). A criação de novas Unidades de Conservação

tem buscado proteger áreas com alta importância biológica que estejam sob forte ameaça

de degradação devido a ações antropogênicas (SILVA, 2005).

Page 17: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

6

CASTRO, ALFARO E WERBROUCK (2001) bem estabelecem o balanço que deve haver

entre indigenismo e ambientalismo, para embasar o seguinte: os objetivos aparentemente

complementares de conservação biológica e empoderamento das populações indígenas têm

custos para a natureza, já que todo uso de recursos naturais afeta alguns atributos ou

componentes da biodiversidade, não somente o recurso-alvo mas também outros

elementos. Desta forma, somente áreas de proteção integral conseguiriam preservar

completamente todos os atributos e componentes da biodiversidade. No entanto, a

conservação da biodiversidade pode e deve ser estabelecida em áreas com ocupação

humana. O desafio está em equilibrar, através de processos participativos, as necessidades

das populações locais com os objetivos de conservação da biodiversidade.

FERREIRA, VENTICINQUE E ALMEIDA (2005), analisando o desmatamento entre 2002 e

2003 nos estados de Mato Grosso (MT), Pará (PA) e Rondônia (RO), demonstraram que

existe uma grande diferença na proporção do desmatamento dentro ou fora das áreas

protegidas – considerando-se UCs e TIs – que variou aproximadamente 10 vezes em MT e

RO a aproximadamente 20 vezes no PA (Figura 2). Isso mostra claramente a importância

das UCs e TIs como instrumento para conter ou diminuir o desmatamento nos três estados

que mais contribuíram com o desmatamento na Amazônia Legal. De algum modo isso

também contraria a idéia generalizada de que as áreas protegidas na Amazônia não

cumprem a função de conservação e uso racional dos recursos na região, somente pelo fato

de muitas não estarem ainda implementadas.

Figura 2 – Relação ente o desmatamento ocorrido fora e dentro das áreas protegidas na Amazônia Legal e nos estados de Mato Grosso (MT), Pará (PA) e Rondônia (RO) – modificado de FERREIRA, VENTICINQUE E ALMEIDA (2005)

Page 18: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

7

Na região da PNMR / TIRSS, CHERNELA (2001) aponta que houve convergência

entre ambientalistas e indigenistas quando donos de terra, opositores à demarcação da

TIRSS, pretendiam que o Estado não reconhecesse a TI. Então o Conselho Indígena de

Roraima (CIR) teria feito forte campanha internacional, via mídia eletrônica, defendendo os

índios e o meio ambiente brasileiro.

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), da qual mais de 180 países são

signatários, ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo 02/1992, aponta a

necessidade de que haja convergência de interesses:

Cada Parte Contratante deve (...) estabelecer em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas (BRASIL, 1992, art.8, j).

Assim, ambientalismo e indigenismo não devem ser bandeiras contrárias, pois os

interesses comuns podem fortalecer tanto UCs quanto TIs.

2.3. Sobre o reconhecimento de Terras Indígenas e Unidades de Conservação na

legislação brasileira

Pode-se dizer que uma das causas da discórdia entre aqueles que defendem

acirradamente as TIs ou as UCs é a falta de entendimento de que os procedimentos para o

reconhecimento de cada um desses tipos de áreas protegidas são bastante distintos. Essa

diferença ocorre pois os históricos jurídicos desses dois assuntos seguiram caminhos

próprios.

Na Constituição Federal, legislação máxima do país, é colocado, no artigo 231:

São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Page 19: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

8

(...)

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

Aqueles que criticam as TIs alegam que este artigo da Constituição Federal deixa

vaga a idéia quanto aos limites destes territórios.

Administrativamente, os processos de reconhecimento das TIs são conduzidos pela

FUNAI, de acordo com o Estatuto do Índio – Lei 6.001/1973 – e com o Decreto 1.775/1996.

Neste decreto estão definidas as etapas do processo de demarcação das TIs, que incluem a

identificação e delimitação, demarcação física, homologação e registro de terras indígenas.

Um resumo desses estudos iniciais é publicado no Diário Oficial da União.

Segundo a FUNAI (2009), o início do processo de reconhecimento de uma Terra

Indígena se dá por meio da identificação e delimitação, realizado por um grupo técnico de

trabalho, composto por técnicos da FUNAI, do INCRA e/ou da secretaria estadual de terras.

A comunidade indígena é envolvida diretamente em todas as fases. O resultado - um

relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área estudada – tem seu resumo

publicado no Diário Oficial da União, no diário oficial do estado e uma cópia da publicação é

afixada na sede municipal da comarca de situação da terra estudada. Com base nesses

estudos, que são aprovados pelo Presidente da FUNAI, a área será declarada de ocupação

tradicional do grupo indígena a que se refere, por ato do Ministro da Justiça - portaria

publicada no Diário Oficial da União – reconhecendo-se formalmente o direito originário

indígena sobre uma determinada área. Após esta publicação, podem ser apresentadas

contestações um prazo de 90 dias.

Ainda de acordo com a FUNAI, os estudos e pareceres são encaminhados para o

Ministério da Justiça, que faz a análise referente aos limites da terra indígena e das

alegações apresentadas pelos contestantes. Após aprovação pelo MJ, a terra é declarada

de ocupação tradicional do grupo indígena especificado, indicando a superfície, o perímetro

e os limites, e determinada então a sua demarcação física. O resultado final da demarcação

é apresentado em mapa e memorial descritivo. De posse disso, prepara-se a documentação

para confirmação dos limites demarcados, o que corresponde à homologação, efetivada por

meio de um decreto do Presidente da República. O processo administrativo de regularização

de uma terra indígena termina com o seu registro no cartório imobiliário da comarca onde o

imóvel está situado e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

Page 20: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

9

Já a regularização das Unidades de Conservação segue o previsto na Lei 9.985/2000,

que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), e no seu

respectivo Decreto 4340/2002. Elas são assim definidas:

espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção.

Sem a denominação de “UC”, mas com a mesma intenção, a Constituição Federal

estabelece que incumbe ao Poder Público “definir, em todas as unidades da Federação,

espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a

alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que

comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção” (art.225, § 1º, inc. III).

A Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA), instituída pela Lei 6.938/1981, considera

estas áreas protegidas como um dos instrumentos da PNMA (art. 9º, inc. VI).

As UCs tornam-se oficiais perante decreto presidencial, após estudos de criação

realizados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Nesse ato

devem constar a denominação, a categoria de manejo, os objetivos, os limites, a área da

unidade e o órgão responsável por sua administração. Posteriormente as regras de visitação

e proteção da Unidade são definidas pelo seu Plano de Manejo, oficializado em portaria

publicada no Diário Oficial da União. Vale lembrar que as UCs podem ser também estaduais

ou municipais (ou particulares, o que não é relevante para a discussão deste trabalho),

sendo então criadas e geridas pelo órgão de mesma esfera administrativa.

A lei do SNUC ainda contempla a situação de áreas protegidas que estão “próximas,

justapostas ou sobrepostas”, devendo a gestão ser feita de forma integrada:

quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional (BRASIL, 2000, art. 26).

Apesar de o artigo 26 da lei 9.985/2000 recomendar este tipo de gestão, a maior

parte de mosaicos são constituídos somente por Unidades de Conservação, como o

Mosaico Bocaina (Portaria MMA 349/2006); Mosaico da Mata Atlântica Central Fluminense

(Portaria MMA 350/2006), Mosaico da Serra da Mantiqueira (Portaria MMA 351/2006) e

Mosaico das Ilhas e Áreas Marinhas Protegidas do Litoral Paulista (decreto estadual

53.528/2008). Os únicos mosaicos que se conseguiu identificar a inclusão de UCs foram:

Page 21: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

10

Mosaico de Áreas Protegidas Sertão Veredas-Peruaçu (Portaria MMA 128/09), que inclui a

TI Xacriabá, o Mosaico de Áreas Protegidas do baixo Rio Negro, onde estão presentes

índios Kambeba, Baré, Tukano, Saterê-Maué, Karapanã e Desana (IPÊ, 2009), e o Mosaico

de Áreas Protegidas do Planalto das Guianas, onde estão inseridos índios Tiriyó, Kaxuyana,

Wayana, Aparai, Zo’é, Wajãpi, Galibi-Kalinã, Karipuna, Palikur, Galibi-Marworno e Wai-Wai

(IEPE, 2007).

2.4. As Terras Indígenas no SNUC

Na lei do SNUC, há uma única menção à questão indígena, justamente para tratar

da questão de sobreposição entre TIs e UCs:

os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas ambiental e indigenista deverão instituir grupos de trabalho para, no prazo de cento e oitenta dias a partir da vigência desta Lei, propor as diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação (BRASIL, 2000, art. 57).

Segundo MLYNARZ (2008), em 2000, houve apenas uma reunião com esta intenção,

envolvendo Ministério da Justiça, FUNAI, Ministério do Meio Ambiente, IBAMA e Ministério

Público, tendo o prazo expirado e o grupo se dissolvido.

SANTILLI (2004) e SANTILLI (2006a) comentam que, à época da discussão do projeto

de lei do SNUC no Congresso Nacional, foi proposta uma categoria de unidade de

conservação que seria específica para as Terras Indígenas. Esta categoria foi denominada

Reserva Indígena de Recursos Naturais (RIRN). Ela seria criada através de decreto

presidencial, por solicitação do grupo indígena, e seria gerida pela comunidade indígena

ocupante. A proposta teria sido incluída no relatório pelo relator do projeto, deputado

Fernando Gabeira, mas teria sido excluída posteriormente por pressões do IBAMA, da

FUNAI e de organizações indígenas.

Esta interessante proposta é semelhante ao que foi aprovado no SNUC para

Reservas Extrativistas (RESEX), categoria que tem como um dos seus objetivos básicos

proteger os meios de vida e a cultura das populações tradicionais e assegurar o uso

sustentável dos recursos naturais. As RESEX são de domínio público, com uso concedido

às populações extrativistas tradicionais. Ressalta-se que a necessidade de solicitação por

parte da comunidade para a criação desse tipo de UC também é a forma que havia sido

proposta para as RIRN.

Page 22: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

11

Compreende-se, entretanto, que a criação de uma categoria indígena no SNUC não

seria excludente à existência das TIs, sendo que o processo para reconhecimento das

mesmas não mudaria. Para que a TI fosse reconhecida como RIRN (ou qualquer outra

denominação), os índios daquela área teriam que solicitar ao órgão responsável para que

a mesma fosse reconhecida como UC. A crítica então de que algumas TIs são demais

degradadas para serem consideradas UCs não procederia, pois a TI passaria por outro

processo – desta vez, então, de verificação quanto à importância e relevância ambiental

da área – para ser considerada UC. ABI-EÇAB (2008) sugere que o ideal seria a

composição de mosaicos deste tipo de UC proposto (RIRN) com UCs de Proteção

Integral, de forma a conciliar a preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável

das comunidades indígenas.

2.5. As sobreposições entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação federais

Como citado, no Brasil as terras indígenas são demarcadas através de ato do

Ministério da Justiça e homologadas por decreto do Presidente da República, sendo,

portanto, atribuição exclusiva da esfera administrativa federal. As Unidades de

Conservação podem ser criadas e geridas tanto pelos poderes federal, estadual,

municipal, ou ainda serem particulares.

De acordo com levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental até setembro

de 2004 havia no Brasil 55 casos de sobreposição de UCs e TIs, envolvendo 33 UCs

federais, 9 UCs estaduais e 37 TIs, totalizando uma área de 12.941.061 ha (Rolla &

Ricardo, 2004). Há casos em que as UCs foram criadas anteriormente à demarcação da TI

e há casos inversos.

FALEIRO (2007) reconhece diferentes graus de contato dos grupos indígenas

afetados por sobreposições: grupos isolados que não têm contato com a sociedade

nacional, grupos de pouco contato, grupos em contato constante e grupos em processo de

reconhecimento ou revitalização cultural. Também por conta disto, os vários grupos

indígenas apresentam modos de vida muito diferenciados, levando a FUNAI a adotar

diferentes estratégias de contato.

Trataremos aqui somente das situações de sobreposição entre TIs e UCs federais

por causa da dificuldade de acesso a informações sobre UCs de outras esferas

Page 23: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

12

administrativas – conforme informações do MMA, o próprio Cadastro Nacional de

Unidades de Conservação7 é de difícil atualização.

Em abril de 2008, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

promoveu uma oficina de trabalho, em que se reuniram gestores de UCs federais com

sobreposições atuais ou potenciais com TIs e técnicos da instituição. Estiveram presentes

gestores de 2 Estações Ecológicas, 2 Reservas Biológicas, 10 Parques Nacionais – UCs

de Proteção Integral8 – e de 4 Florestas Nacionais, 7 Reservas Extrativistas e 1 Área de

Proteção Ambiental – UCs de Uso Sustentável9 (ICMBIO, 2008). Nas diferentes situações

de sobreposição, as relações entre FUNAI, ICMBio e indígenas são variadas, incluindo

áreas de conflito intenso, áreas onde já houve ou onde está em processo a desafetação

da UC, áreas onde há ou se está em processo de construção de uma gestão

compartilhada, áreas onde os índios participam do conselho consultivo10 da UC. Entre

algumas opiniões do encontro, citam-se alguns pontos interessantes:

“Dupla afetação é um erro (...) tem que ser uma coisa ou outra.”

“Sobreposição é indesejável também para categorias de uso sustentável, pois o

usufruto passa a ser exclusivo dos indígenas em detrimento das comunidades

tradicionais. Deve-se evitar, pois os enfrentamentos são muito graves.”

“A situação atual não é de se optar por extremos. Uma possibilidade seria resgatar

a proposta da categoria de manejo RIRN, ou outra a ser incluída no SNUC.” De

qualquer forma, “desafetação de UC não é uma estratégia adequada, é melhor a

re-categorização, pois se trata de uma área de relevância ambiental”

“Uma das possibilidades para as sobreposições é que a UC seja considerada como

zona intangível que deverá ter sua forma de gestão regulamentada.”

Com o intuito de buscar soluções para a gestão de UCs e TIs em áreas de

sobreposição, há esforços de alguns gestores para a construção de planos de gestão

7 De acordo com a Lei 9.985/2000 (art. 50), este cadastro deve ser organizado e divulgado pelo Ministério do

Meio Ambiente, devendo conter os dados principais de cada UC, incluindo características relevantes.

8 UCs onde não é permitido o uso direto dos recursos nem a presença de moradores

9 UCs onde é permitido o manejo, desde que controlado, e nas quais é admitida a presença de moradores

10

É previsto no SNUC que as UC devem ter conselhos – consultivos nas UCs de Proteção Integral e Florestas Nacionais (FLONAs) – e deliberativos nas Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

Page 24: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

13

compartilhada. Citam-se, além do PNMR/ TIRSS, objeto deste trabalho, o caso do Parque

Nacional Pacaás Novos / TI Uru-Eu-Wau-Wau/, em Rondônia, onde avanços têm ocorrido

para a proteção da UC com apoio dos índios (os índios não aceitaram que houvesse

visitação na área de sobreposição); no Parque Nacional do Araguaia / TI Boto Velho há

um processo de cooperação em construção, e no Parque Nacional do Monte Pascoal / TI

Barra Velha, há um acordo de cooperação técnica entre FUNAI e ICMBio (ICMBIO, 2008,

PONCIANO FO, comunic. pess.)

No evento referido foram levantadas ainda sugestões que podem ser utilizadas em

relação à questão de sobreposição como: formação de agentes ambientais voluntários

indígenas e uso de recursos disponíveis (PPTAL11, PDPI12, etc.) para estudar a proposição

de novas TIs em conjunto com ICMBio (ou financiar ações específicas de solução de

problemas de sobreposição).

Como propõe FALEIRO (2007), é essencial ampliar e divulgar o conhecimento de

experiências similares em outros países e avaliar a possibilidade de aplicar o mesmo no

Brasil.

2.6. Aspectos positivos advindos da sobreposição

As situações de sobreposição entre UCs e TIs, apesar de não serem desejáveis,

devem (ou deveriam) ser encaradas como forma de minimizar os conflitos e gerir a área

da melhor maneira possível para que se cumpram os objetivos de conservação ambiental

e de proteção da cultura indígena. Além disto, a sobreposição destes dois tipos de

territórios traz alguns benefícios que podem ser aproveitados para os objetivos de UCs e

TIs. Alguns aspectos em que as TIs podem se beneficiar por estarem sobrepostas a UCs

podem ser levantados:

ICMBio tem poder de polícia e FUNAI não. A lei que cria o Instituto Chico Mendes de

Conservação da Biodiversidade prevê que uma das finalidades da autarquia é “exercer o

poder de polícia ambiental para a proteção das unidades de conservação instituídas pela

11

O Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL) é vinculado à

FUNAI e faz parte do Programa Piloto para a Conservação das Florestas Tropicais do Brasil. Seu objetivo é melhorar a qualidade de vida das populações indígenas e promover a conservação dos recursos naturais por meio da regularização das terras indígenas e medidas de proteção a essas áreas. 12

Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI) é um programa do governo brasileiro que tem por objetivo melhorar a qualidade de vida dos povos indígenas da Amazônia Legal brasileira, fortalecendo sua sustentabilidade econômica, social e cultural, em consonância com a conservação dos recursos naturais de seus territórios.

Page 25: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

14

União” (lei 11.516/07, art. 1º, inciso IV). Veja-se ainda o reconhecimento dos índios da TI

Igarapé Lourdes, sobreposta à REBIO Juro (RO), de que a existência da UC protege a TI,

já que as duas estão em área muito pressionada por alterações antrópicas (ICMBIO,

2008).

Sanções mais rigorosas no interior de UCs. O decreto relativo à lei de crimes

ambientais prevê que as multas para as infrações cometidas ou que afetarem unidade de

conservação ou sua zona de amortecimento13 serão cobradas pelo menos em dobro

(decreto 6514/2008, art. 93). Além disso, há nove artigos específicos “das infrações

cometidas exclusivamente em Unidades de Conservação” (decreto 6514/2008, subseção

VI). Não há nenhuma referência na lei e no decreto de crimes ambientais a infrações

cometidas em Terras Indígenas.

Compensação ambiental – UCs recebem, TIs não. Os empreendimentos de

significativo impacto ambiental, se licenciados, devem repassar um percentual do valor da

obra para a(s) UC(s) mais próxima(s), mesmo quando estas não são diretamente afetadas

pelo empreendimento (Lei 9.985/2000, art. 36). Essas quantias podem ser utilizadas para

regularização fundiária, proteção, estruturação física etc. Isso representa um recurso

financeiro considerável a ser usado para a implementação de algumas UCs. As TIs não

têm direito a receber algo equivalente.

Subsolo e espaço aéreo pertencem à UC – De acordo com a lei do SNUC, “o subsolo

e o espaço aéreo, sempre que influírem na estabilidade do ecossistema, integram os limites

das unidades de conservação” (art. 24). Não há dispositivo legal que preveja este tipo de

proteção às TIs. Este ponto é especialmente importante em relação à mineração, pois, em

uma UC, mesmo que a perfuração ocorra fora da área protegida, é proibida (a não ser nas

categorias que permitem este uso) a extração de recursos do subsolo da UC.

As TIs podem receber intervenção da União. As TIs são de posse permanente dos

índios (Constituição Federal, art. 231), mas de acordo com o Estatuto do Índio (Lei

6.001/1973, art. 20), a União poderá intervir nelas mediante decreto presidencial por

motivos tais como segurança nacional, obras públicas de interesse ao desenvolvimento

nacional e exploração de riquezas do subsolo. Já para as UCs não há intervenção prevista

desta natureza.

13

“o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (lei 9.985/2000, art. 2º, inciso XVIII)

Page 26: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

15

Renda alternativa para a comunidade indígena. A estruturação da visitação

etnoturística da UC, desde que desejado pelos índios, permite que eles prestem serviços

como de guiagem. Há outras possibilidades no entorno, como comércio de artesanato

local, podendo gerar renda para a comunidade.

Divulgação da cultura indígena local. Aproveitando-se a abertura à visitação turística

da UC, aspectos da cultura indígena local poderiam, dentro do acordado pela comunidade,

ser mostrados, de forma a diminuir o preconceito e obter mais respeito da sociedade não-

indígena, e até a promover a auto-estima do grupo indígena.

Por outro lado, TIs apresentam alguns aspectos dos quais as UCs podem se

beneficiar devido à sobreposição.

Maior proteção da área devido à presença dos índios. Estudos realizados pelo ISA

(2004) demonstraram que na Amazônia, em 2001, o desmatamento em TIs representava

1,14% de suas áreas, enquanto nas UCs federais era de 1,47% (e nas UCs estaduais,

7,01%). Apesar de o estudo não citar se as UCs eram de uso sustentável ou não, mesmo

que todas assim o fossem, já se demonstraria o menor grau de degradação das TIs (áreas

protegidas com pessoas no seu interior, tal quais as UCs de uso sustentável) em relação

às UCs. Ainda se pode citar a Floresta Nacional do Bom Futuro, sobreposta à TI Karitiana

(RO), onde as áreas mais próximas da Terra Indígena e a área sobreposta são as mais

preservadas, o que indica que a presença dos indígenas ajuda na proteção da UC

(ICMBIO, 2008).

As TIs são rapidamente demarcadas, com sinalização clara. Assim que a Portaria

Declaratória de uma TI é assinada, rapidamente os limites e acessos são sinalizados de

forma bem clara quanto à existência de um território especial, sendo o acesso restrito. O

art. 1914 do Estatuto do Índio expressa claramente este ponto. Nas UCs, apesar da

importância semelhante da demarcação, a maioria delas não tem qualquer tipo de

sinalização, facilitando invasões e dificultando ações de retirada posteriores.

Cultura indígena como aspecto positivo da UC. A manutenção de uma cultura

indígena, além da biodiversidade e de seus elementos paisagísticos, é um aspecto a ser

reconhecido como finalidade diferencial da UC. Além disso, se for de vontade dos índios

divulgar a sua cultura, isto se torna mais um atrativo para a região.

14

“As TIs, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente

demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”

Page 27: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

16

2.7. Os Ingarikó e o Parque Nacional do Monte Roraima

Apesar de o termo de referência para a contratação de consultoria para elaboração do

plano de manejo do PNMR ser de dezembro de 1997, o convênio15 que possibilitou essa

contratação só foi celebrado em abril de 1999. Os trabalhos ocorreram em 1999 e 2000,

período em que foram realizadas duas viagens de campo. A primeira teve o objetivo

principal de ter uma visão geral sobre a UC, a segunda visou à realização da oficina de

planejamento para a elaboração do plano de manejo (SCARDUA, 1999; IBAMA, 2000).

Como expõe LAURIOLA (2004), a primeira vez que os Ingarikó ouviram falar no Parque

Nacional do Monte Roraima foi em março de 2000, já na oficina para a elaboração do plano

de manejo16 da UC. No evento não esteve presente nenhum representante da FUNAI

(IBAMA, 2004). Estiveram presentes três indígenas, convidados pela prefeitura de Uiramutã.

Alegam os Ingarikó que não compreenderam naquele momento as implicações da

existência daquele Parque Nacional sobre os seus modos de vida. Começaram a discutir

então a questão junto ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), que teria relatado o fato

junto à FUNAI.

Foi realizada então uma viagem a campo por técnicos da FUNAI em agosto/setembro

de 2000. Diante das exposições feitas por estes técnicos, os indígenas teriam se

manifestado contrários ao Plano de Manejo e ao próprio Parque Nacional. No processo da

FUNAI referente a este assunto (Processo 2165/2000 – DV), há abaixo-assinados de várias

comunidades Ingarikó, que, pelas datas, parecem ter sido redigidas nas reuniões

promovidas durante a citada viagem de técnicos da FUNAI. Eis o texto de parte do abaixo-

assinado da comunidade indígena Ingarikó - Aldeia Awendei para o presidente da FUNAI, o

procurador-geral da República, o superintendente do IBAMA Boa Vista e o diretor da

Eletronorte Boa Vista RR, em 01/09/2000:

Nós índio Ingaricó não aceitamos este plano de manejo, nós pescamos, caçamos, trabalhamos em artesanato, visitamos nossos parentes Akawayo, Macuxi, Patamona e Taurepang, façamos todo esse tipo de movimento sem nenhuma preocupação. Agora aparece esse tal manejo, nós entendemos ainda que a criação desse Parque significa a destruição do nosso grupo e o surgimento de problema, não queremos ser morto e preso pelo IBAMA e turismo. A terra é nosso meio, não é dos brancos. Queremos viver tranqüilo, nosso povo está aumentando e também estão criando gado,

15

Convênio Eletronorte/Abes/Ibama para fortalecimento do PNMR como compensação ambiental da construção

da linha de Guri da Eletronorte.

16 “Documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma UC, se estabelece o seu

zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade” (lei 9.985/2000, art.2º, inciso XVII).

Page 28: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

17

cavalo, galinha e plantando os legumes necessários. Por isso precisamos dessa terra livre.

Por outro lado, em março de 2004, a administração do PN do Monte Roraima elaborou

um documento intitulado “SOS Monte Roraima”. De acordo com o mesmo (IBAMA, 2004), a

UC vinha sendo contestada pela FUNAI, que defendia a extinção do PNMR por

homologação da TIRSS de forma contínua, com apoio de ONGs nacionais e estrangeiras.

Naquele momento, comissões especiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal

haviam sido instituídas para estudar a questão.

Entre os anos de 2000 e 2005, os documentos que constam na FUNAI e no IBAMA

contêm críticas mútuas. Por um lado, de fato não deve ter havido consulta às comunidades

locais para a criação do PNMR, procedimento que atualmente contraria a lei do SNUC.

Indígenas foram convidados a participar da oficina de planejamento para elaboração do

Plano de Manejo, mas não se levou em consideração a forma de participação e de

organização dos índios da região, onde os representantes devem ser escolhidos pelas

bases; o Plano de Manejo cita a homologação da TIRSS como ameaça ao PNMR. Por outro

lado, a FUNAI realizou uma expedição para falar sobre o PNMR aos índios, mas não

convidou o IBAMA para participar da atividade; nas reuniões com os índios, foi mostrado o

zoneamento previsto no Plano de Manejo, sem esclarecer que o documento explicita que o

zoneamento proposto tem caráter empírico, devendo ser revisto e modificado. E nem que o

referido Plano não foi oficializado pelo IBAMA, não tendo valor legal, então.

Os pontos de divergência acima mencionados foram repetidamente levantados,

gerando cada vez mais tensões entre FUNAI / índios e IBAMA. Ressalta-se que alguns

pontos de convergência deste processo não foram citados. Por exemplo, um dos objetivos

específicos do PNMR, tal como apresentado no plano de manejo é: “contribuir para a

valorização e resgate cultural indígena dos Ingarikó”. Num dos relatórios de viagem há uma

idéia de aproveitamento do potencial turístico do PNMR pelos índios:

Dada a proximidade das aldeias indígenas dos ingaricós e do tipo de UC, é de se esperar que no programa de uso público, o Parque Nacional possa explorar em comum acordo entre a FUNAI e os índios ingaricós através do resgate cultural dos índios, sua cultura, seus modos de vida (pesca com timbó, forma de caça e artesanato). Essa parceria poderia se constituir na primeira e bem-sucedida experiência brasileira de exploração ecoturística em área indígena, em associação com a exploração de um Parque Nacional (SCARDUA, 1999)

No processo 2165/2000-DV da FUNAI há uma grande lacuna de documentos entre

fevereiro de 2002 e julho de 2005. Em 2005, já se cita a possibilidade de gestão

compartilhada. Todos os entrevistados para este trabalho enfatizaram a mudança nas

Page 29: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

18

relações entre IBAMA e FUNAI/índios a partir da homologação da TIRSS, quando o decreto

presidencial explicita o regime de dupla afetação na área sobreposta entre essa TI e o

PNMR. De alguma forma, o IBAMA teria passado a “respeitar” ou “reconhecer” a TIRSS e os

índios e a FUNAI teriam aceitado a existência e gestão do PNMR.

2.8. Os trabalhos para a gestão compartilhada (ICMBio, indígenas e FUNAI) do PNMR

O decreto sem número, de 15/04/2005, que homologa a TIRSS (Anexo 1), apresenta

que “O Parque Nacional do Monte Roraima é bem público da União submetido a regime

jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos

direitos constitucionais dos índios” (Art. 3º). De acordo com o ISA (2009), o termo “dupla

afetação” foi utilizado para explicitar a condição jurídica do PNMR, de coexistência em um

mesmo espaço de um Parque Nacional e de uma Terra Indígena, e a necessidade de um

plano de gestão, a ser elaborado pelos órgãos ambiental e indigenista e pela comunidade

Ingarikó.

A II Assembléia Geral do Conselho do Povo Ingarikó (COPING) e a VII Assembléia

Geral do Povo Indígena Ingarikó ocorreram poucos dias após a homologação da TIRSS.

Foram então discutidas as novas políticas a serem implementadas após a homologação da

TIRSS (bem como outros temas de importância para o desenvolvimento das comunidades

Ingarikó). Uma das exigências feitas ao final do encontro foi a formação de um grupo de

trabalho para discutir a gestão compartilhada do PNMR:

Exigimos que o MJ e o MMA, juntamente com a FUNAI, IBAMA e com a COPING formem um grupo de trabalho, em até 60 dias, pra juntos com o Povo Ingarikó discutirem o processo de planejamento e elaboração de um Plano Administrativo e/ou Gestão conjunta do bem público denominado PNMR, em conformidade com os parágrafos 1º e 2º do art. 3º do decreto de homologação da TIRSS, assim como o entorno que se constitui, em que se localiza o Povo Ingarikó” (COPING, 2005).

A partir de então, iniciaram-se os trabalhos para que fosse construído o plano de gestão

compartilhada do PNMR. Em 07 de julho de 2005, o chefe do PNMR fez a primeira

proposta de plano de co-gestão.

Na III Assembléia Geral do COPING, ocorrida de 6 a 19 de agosto de 2005, várias

deliberações do encontro foram relativas à formação do grupo de trabalho (GT) desejado

além da formação do GT, necessidade de união para proteger e resguardar suas

habilidades naturais e promover a continuidade de sua cultura, necessidade de promover o

desenvolvimento sem interferir nos costumes tradicionais de seu povo e de forma a

preservar os lugares sagrados e a cultura Ingarikó.

Page 30: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

19

Em 10 de novembro de 2005 ocorreu a primeira reunião para a formação do GT para a

gestão compartilhada do PNMR. Dilson Ingarikó, presidente do COPING, chamou atenção

para a importância de a FUNAI e o IBAMA se entenderem bem, pois isto nunca havia

acontecido. Nesta reunião ficou decidido que COPING seria gestor do GT, e que seria

criada uma secretaria executiva. O GT também defendeu a participação do Conselho

Indígena de Roraima (CIR) e da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de

Roraima (SODIUR).

No período de 2005 a 2008 foi discutido e trabalhado o “Plano de Administração da

Área sob Dupla Afetação pelo Parque Nacional Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa

Serra do Sol”, cuja área de abrangência é a área sob dupla afetação e o entorno de 10 km.

Participaram do processo de elaboração deste documento: técnicos do ICMBio e da FUNAI,

o Conselho do Povo Indígena Ingarikó, o Conselho Indígena de Roraima, a Organização dos

Professores Indígenas de Roraima (OPIR) e o povo indígena Ingarikó.

À época da conclusão deste trabalho (abril/2009), o plano já havia sido formalmente

apresentado ao ICMBio e estava sendo analisado no seu setor jurídico. Deverá ser

apresentado à FUNAI no dia 04 de maio de 2009, para ser juridicamente avaliado também

nesta instituição. O passo seguinte é a assinatura de um decreto pelo presidente da

República aprovando o referido plano.

Da maneira como foi apresentado, o plano administrativo deve ser gerido por três

instâncias já existentes: Assembléia do Povo Indígena Ingarikó, com função deliberativa;

Comitê Executivo do Plano de Administração – composto pelo COPING, Administração

Executiva Regional (AER) da FUNAI em Boa Vista e PNMR – com função operacional; e

Conselho Pikatîninnan17– composto por instituições18 que de alguma forma se relacionam

com a área – com função consultiva.

Este plano geral contém uma parte de gestão territorial, que foi denominado de Plano

Pata Eseru19, que equivale ao plano de manejo das UCs. Esse instrumento foi planejado

17

Pikatîninnan significa apoio, ajuda, no idioma Ingarikó (Ponciano Fo, comunic. pessoal)

18

Identificaram-se alguns parceiros estratégicos que podem ser mobilizados para compor o Conselho em caráter permanente: Prefeitura do Município de Uiramutã; Sociedade dos Índios Unidos de Roraima; Universidade Federal de Roraima, Secretaria de Educação, Cultura e Desportos de RR; Secretaria de Estado do Índio de RR; Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de RR; Distrito Sanitário Leste em Roraima da Fundação Nacional de Saúde; 7º Comando Aéreo Regional da Força Aérea Brasileira; IBAMA; Comitê Gestor da Casa Civil da Presidência em Roraima; MMA; MDA; e Serviço Nacional de Aprendizagem Rural. Também foram identificados parceiros estratégicos eventuais: Exército do Brasil; Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (MRE); EMBRAPA; Centro Federal de Educação Tecnológica; Polícia Federal; SEBRAE; Departamento Estadual de Turismo de Roraima; IPHAN; Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca; e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. 19

Pata Eseru significa lugar bonito no idioma Ingarikó (Ponciano Fo, comunic. pessoal)

Page 31: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

20

para ações emergenciais em 2009 e 2010, envolvendo as seguintes ações: diagnóstico nas

aldeias a fim de detalhar as atividades a serem desenvolvidas; atividades emergenciais que

garantam a segurança alimentar; vigilância em três postos nos limites da área; estudos

sobre uso público e turismo na área do Parque Nacional Monte Roraima, considerando os

elementos étnicos e culturais da região.

Através de entrevistas com algumas pessoas que participaram do processo de

elaboração deste plano de co-gestão, tentou-se identificar aspectos positivos e negativos

deste instrumento, e como elas entendem o momento atual.

O chefe do Parque Nacional do Monte Roraima, José Ponciano Dias Filho, declarou

que os índios acreditam na gestão compartilhada para fortalecer a cultura deles e melhorar

a sua atividade produtiva no entorno da UC, vendo o plano de co-gestão como uma

oportunidade. Teme que, por problemas institucionais e de outras ordens, não seja possível

corresponder a esta expectativa dos índios, que estão confiando no ICMBio. Acha que as

ressalvas apresentadas na decisão do STF sobre a demarcação contínua da TI Raposa

Serra do Sol (ver item 2.8 deste trabalho) não mudará muita coisa na ponta, pois houve um

longo processo de construção, e que a parceria deve continuar, sendo os índios

protagonistas do plano.

O representante titular do ICMBio/sede, Rodrigo Paranhos Faleiro, entende que a

única opção para áreas de sobreposição entre UCs e TIs, no atual contexto legal, é gerir a

UC com os indígenas. Trata-se de gestão territorial e há necessidade de adequar modelos à

realidade local. A categoria de Parque Nacional prevê o uso da área para visitação, e há

interesse dos Ingarikó em explorar a atividade, já que os Pémon (do mesmo tronco dos

Ingarikó) há vários anos trabalham com visitação no Parque Nacional Canaima, na

Venezuela, contíguo ao PNMR. O único receio é que lideranças não-legitimadas pelas

bases, buscando poder, queiram dominar o plano. De qualquer forma, acredita que a

experiência pode se tornar uma boa referência para outras áreas de sobreposição entre TIs

e UCs.

A representante titular da FUNAI/Brasília, Ludmilla Guerra, considera que a gestão

compartilhada é benéfica, no sentido de que instituições e entidades com interesses

diversos trabalham para achar pontos comum para acordos de convivência. As leis estão

postas, então é preciso trabalhar para frente, com elas. Os índios Ingarikó têm interesse em

educação ambiental, proteção e recuperação de áreas degradadas, e o trabalho em

conjunto com o PNMR pode promover isso, além de chamar a atenção da mídia – uma

oportunidade de divulgar a sua cultura e valorizar os seus lugares sagrados. Ela teme que a

decisão do STF (tratada a seguir neste trabalho) modifique os rumos do plano de co-gestão,

Page 32: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

21

e que mudanças na equipe que conduziu o plano alterem a forma como o processo vinha

sendo conduzindo.

O presidente do COPING, Dilson Domente Ingarikó, declarou que, antes mesmo da

homologação da TIRSS, os Ingarikó vinham trabalhando planos de gestão ambiental e

territorial de sua área20, sendo a região do PNMR sagrada para eles. Os Ingarikó aceitaram

participar do plano desde que os povos indígenas liderassem a elaboração e a execução do

plano – toda a comunidade deve ser protagonista. Para tal decisão o assunto foi discutido

em várias assembléias. Ressaltou que o plano de co-gestão do PNMR é a primeira

experiência de cooperação entre ICMBio, FUNAI e povo Ingarikó, e por isso não tem idéia

se vai funcionar ou não. Acha que se realmente o ICMBio respeitar a deliberação nas

assembléias, o plano será positivo, mas que pode dar errado se o ICMBio fizer qualquer

pesquisa na região sem consultar os Ingarikó.

Dilson citou que com o PNMR há possibilidade de investimento na região, não

somente para a questão ambiental, mas também para fins sociais, econômicas e culturais,

inclusive capacitando os índios para trabalharem em prol do PNMR. Como eles vivem em

região de fronteira, muito isolados, não espera que haja muita mudança, com a

implementação do PNMR, mas querem pelo menos promover a suficiência da produção

agrícola, trabalhando com criação de pequenos animais e agricultura.

Sobre as ressalvas feitas pelo STF ao processo de demarcação contínua da TIRSS, o

presidente do COPING as considerou ruim, pois o plano fica praticamente sob a

responsabilidade do ICMBio, suprimindo o papel da FUNAI e deixando as comunidades só

como opinativas. Mas já teriam conversado com representantes do ICMBio e estavam tendo

bom entendimento sobre isso. Comentou ainda que os Ingarikó fizeram proposta junto à

FUNAI para que, a partir desta experiência das comunidades Ingarikó na região da Serra do

Sol, seja criada uma nova categoria de UC em terra indígena, e que o nome do PNMR fosse

alterado para Parque Nacional Indígena do Monte Roraima.

Vincenzo Lauriola não participou diretamente da construção do plano de co-gestão do

PNMR, mas foi assessor externo do CIR na época em que era professor visitante da UFRR.

Ele comentou que o trabalho do GT para elaboração do plano de co-gestão é importante,

pioneiro, mas também delicado, pois é difícil ter garantia de que os pontos discutidos lá

tenham o mesmo entendimento nas bases. Pensa que os verdadeiros desafios serão

colocados agora, em que coincide com outros eventos da dinâmica externa – finalização do

20

Os Ingarikó defendem que eles ocupam uma área “deles”, e que possuem uma cultura diferenciada das demais etnias da TIRSS. Tanto é que antes da TIRSS, foi proposta a área indígena Ingarikó, que foi incluída na

TIRSS (Processo 2165/2000 – DV da FUNAI)

Page 33: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

22

julgamento no STF sobre a demarcação contínua e retirada final dos não-índios da TIRSS.

O maior receio é que os tempos da burocracia (processos de política governamental) não

estejam sincronizados com o tempo dos índios, que envolve repasse de informações,

entendimento, compreensão.

Apesar de não existir normatização sobre a atividade de turismo em TIs, há cada vez

mais opções sendo oferecidas, tanto pelos próprios índios como por empresas do setor.

Mesmo com os problemas que a atividade turística em TIs pode trazer, PASCA (2007 apud

MMA, 2007) aponta que há um mercado para o turismo ecológico que tem apresentado

crescente interesse para visitação em TIs. Pode-se citar mesmo o caso em que isto ocorre

dentro de uma UC – no Parque Nacional do Monte Pascoal (BA) índios trabalham como

guias e levam visitantes para uma aldeia, onde são mostrados alguns aspectos da cultura

local. No entanto, isto vem sendo feito sem acompanhamento do órgão indigenista. A

experiência de etnoturismo no PNMR / TIRSS poderá servir como um projeto-piloto para que

a FUNAI estabeleça normas gerais para todas as TIs.

2.9. O Parque Nacional no processo da demarcação contínua da Terra Indígena

Raposa Serra do Sol junto ao Supremo Tribunal Federal

Em 19 de março de 2009 foi encerrado, no Supremo Tribunal Federal, o julgamento

da Petição (PET) 3388, que tratava da demarcação em área contínua da Terra Indígena

Raposa Serra do Sol. Foi uma ação que mobilizou a sociedade brasileira, recebendo

grande cobertura da mídia por causa da importância que representava para outros casos

semelhantes no país.

A ação foi proposta pelo senador Augusto Botelho (PT-RR) contra a Portaria

534/2005 do Ministério da Justiça, que declarou a TIRSS e o contra o decreto presidencial

que homologou essa TI. Na ação, o senador afirma que todo o processo administrativo

que resultou na edição da portaria e na homologação da demarcação continha vícios de

origem, tais como ter ouvido apenas os indígenas favoráveis à demarcação em área

contínua, não ter ouvido o município de Normandia, não ter considerado os produtores

agropecuários, os comerciantes, os garimpeiros, os arrozeiros e outros atores que vivem

na região (STF, 2008a).

O julgamento teve início em agosto de 2008, quando o relator, ministro Carlos Ayres

Britto, votou pela manutenção integral da Portaria do Ministério da Justiça que determina a

demarcação contínua da área. À época, a discussão foi interrompida por um pedido de

vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Em dezembro do mesmo ano, a ação

Page 34: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

23

voltou ao plenário e foi suspensa por pedido de vista do ministro Marco Aurélio de Melo,

após mais sete votos favoráveis à demarcação contínua. Na ocasião, porém, o ministro

Direito impôs dezoito ressalvas ao processo.

Como afirma RUFINO (2004), em Roraima dissemina-se a idéia de que as áreas

protegidas do estado atrasam o crescimento econômico da região, e que tais áreas servem

de ponto de infiltração de estrangeiros interessados em saquear a Amazônia e o Brasil.

Políticos locais e grandes empresários fazem discursos e ações pelo país para convencer

toda a sociedade brasileira sobre este “absurdo”.

Neste contexto, vem à tona a disputa entre defensores de TIs e UCs – um desses

tipos de área protegidas é usado, por uma terceira parte, para criticar o outro. Na ação

proposta pelo senador Augusto Botelho, afirma-se que uma comissão criada pelo Senado

elaborou relatório propondo a demarcação descontínua da Terra Indígena Raposa Serra

do Sol, com a exclusão, entre outros pontos, das áreas necessárias à exploração

econômica, das sedes do município de Uiramutã e de algumas vilas; das estradas

estaduais e federais da área, com o livre trânsito garantido; de faixa de 15 quilômetros ao

longo da fronteira do Brasil com a Guiana e a Venezuela21; e da área do Parque Nacional

do Monte Roraima.

Ao final do julgamento no STF, colocações como a da ministra Carmen Lúcia

Antunes Rocha respaldaram o termo “dupla afetação” utilizado no decreto de

homologação da TIRSS. Segundo ela, poderia haver a demarcação concomitante da

TIRSS e do PNMR, que “guarda a alma” de algumas etnias presentes na região. Excluir

essa parte da reserva, para ela, abalaria a história, os usos e costumes imemoriais da

cultura das etnias da região (STF, 2008b).

Ficou decidido que a demarcação da TI deve ser feita de forma contínua e que os

não-índios devem deixar a área da TI. Porém, foram fixadas dezenove ressalvas. Destas,

dezoito foram apresentadas pelo ministro Direito, mesmo tendo sido favorável à

demarcação contínua das terras da região (STF, 2008c). Três das ressalvas se referem à

questão do PNMR:

O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições

21

Em abril de 2008, o general Augusto Heleno, o então comandante militar da Amazônia, declarou à imprensa nacional que a transformação da faixa da fronteira norte do país em terras indígenas era uma ameaça à soberania nacional (MENEZES & TABAK, 2008). Este tipo de argumentação também foi largamente utilizado pelos que eram contrários à homologação e à demarcação contínua da TIRSS, como o governo de Roraima.

Page 35: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

24

estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da FUNAI. O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração.

Os técnicos da FUNAI, ICMBio e o representante Ingarikó entrevistados e que

participaram diretamente da elaboração do plano de co-gestão, têm opiniões semelhantes

quanto às ressalvas acima. Eles acreditam que, na prática, não deve haver mudanças

quanto à co-gestão, pois o processo foi longo e construído com muita participação de

instituições e dos índios. Entretanto, temem que, se os representantes institucionais forem

alterados, a implementação do plano seja afetada. Esta influência da pessoalidade na

gestão pública foi discutida por FALEIRO (2004), que lembra que a gestão pública também

está repleta de relações pessoais que fazem funcionar ou não o Estado.

Já LAURIOLA (comunic. pess.) compreende que as ressalvas feitas pelo STF devem

mudar sensivelmente as relações no processo de co-gestão do PNMR, pois entende que

anteriormente o plano estava sendo conduzido igualmente por ICMBio, FUNAI e indígenas,

e que com a decisão do STF, o papel dos indígenas passa a ser secundário e o da FUNAI,

apenas consultivo.

3. CONCLUSÕES

A conservação da biodiversidade pode e deve ser estabelecida em áreas com

ocupação humana. O desafio está em equilibrar, através de processos participativos, as

necessidades das populações locais com os objetivos de manter os recursos naturais em

boas condições.

O Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP) é um instrumento pioneiro

na política brasileira, de muita valia, pois considera como áreas protegidas, entre outras,

as UCs, TIs e remanescentes de quilombos. A possibilidade de gestão compartilhada de

áreas protegidas em mosaico, prevista na Lei 9.985/2000, é um instrumento interessante e

que vem sendo pouco utilizado em conjunto com as TIs.

Page 36: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

25

Certamente as sobreposições entre TIs e UCs não são desejáveis, nem são simples

os trabalhos para tratar da questão. Entretanto, a disputa entre estas categorias de áreas

protegidas enfraquece o discurso sobre a importância da proteção dessas áreas frente a

grandes pressões por terras como a exploração madeireira, o agronegócio e a mineração.

Um exemplo disto ocorreu na ação que julgou a demarcação contínua da TIRSS no

Supremo Tribunal Federal, em que o PNMR foi utilizado como um dos argumentos

contrários àquela TI.

Pelo contrário, a situação de sobreposição poderia ser aproveitada para maior

proteção das TIs e melhor uso das UCs. Foram levantados neste trabalho alguns pontos

nesse sentido, sobre as vantagens que as sobreposições entre TIs e UCs podem trazer,

tanto para os índios como para o meio ambiente, tal como: 1) TIs podem receber

intervenção da União; 2) renda alternativa para a comunidade indígena; 3) divulgação da

cultura indígena local; 4) maior proteção da área devido à presença dos índios; 5) TIs são

rapidamente demarcadas, com sinalização; 6) cultura indígena como aspecto positivo da

UC.

Apesar de não existir nenhuma normatização sobre a atividade de turismo em TIs, a

experiência no PNMR / TIRSS poderá servir como um projeto-piloto para que a FUNAI

estabeleça normas gerais para as TIs.

Não foi pretensão deste trabalho supervalorizar um ou outro segmento, mas sim

destacar a importância da construção democrática e participativa – das comunidades e das

instituições interessadas – de um plano de gestão compartilhada para uma área de

sobreposição de UC e TI. Durante o processo de implementação, certamente modificações

terão que ser feitas e talvez alguns pontos se mostrem ineficazes. Mas o fato de as ações

terem sido longamente discutidas dá consistência para que essa co-gestão se concretize.

Independente da questão de sobreposição entre TIs e UCs, a inclusão de uma

categoria relativa a áreas indígenas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação

poderia significar um avanço para a conservação da biodiversidade no país, bem como

assegurar maior proteção à cultura indígena.

Page 37: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

26

REFERÊNCIAS

ABI-EÇAB, Pedro. 2008. Presença Indígena em Unidades de Conservação. 160 p. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Sociais). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

BRANDON, Katrina; FONSECA, Gustavo A.B. da; RYLANDS, Anthony B.; SILVA, José Maria Cardoso da. 2005. Introduction. Conservation Biology 19 (3): 595-600.

BRASIL. 1989. Decreto 97.887, de 28 de junho de 1989 (cria o Parque Nacional do Monte Roraima).

BRASIL, 1992. Decreto Legislativo 02/1992 (aprova o texto da Convenção sobre Diversidade Biológica).

BRASIL, Ministério da Justiça. 2005. Portaria 534, de 13 de abril de 2005 (homologa a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

BRASIL. 2006. Decreto 5.756/2006 (institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP).

CASTRO, Gonzalo; ALFARO, Luis; WERBROUCK, Pierre. A partnership between government and indigenous people for managing protected areas in Peru. Parks 11 (2): 6 -13, 2001.

CHERNELA, Janet M. Fractured Lands: The Politics of Conservation in North-Central Brazil. Entrecaminos: An Interdisciplinary Journal of Latin American Affairs, vol. 6, 2001.

COPING, 2005. Documento final II Assembléia Geral do COPING e VII Assembléia Geral do Povo Indígena Ingarikó, comunidade Serra do Sol. 18-21/04/2005. Cunha, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992. 609p.

FALEIRO, R.P. Retomada ou invasão: percepção das instituições governamentais sobre a ocupação do Monte Pascoal pelos índios Pataxó. In: LIMA, A.C.de S. & BARRETO Fo, H.T. (orgs). Antropologia e identificação: os antropólogos e as definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2005a, p.299-322.

FALEIRO, Rodrigo Paranhos. 2005b. 130 p. Unidade de Conservação versus Terra Indígena, um Estado em conflito: estudo da influência da pessoa na gestão pública. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília.

FALEIRO, Rodrigo Paranhos. 2007. Informe Brasil sobre Áreas Protegidas y Pueblos Indígenas: La construcción de la diferencia y de las igualdades. Brasília, Ministério do Meio Ambiente. 39 p.

FERREIRA, Leandro Valle.; VENTICINQUE, Eduardo; ALMEIDA, Samuel. 2005. O desmatamento na Amazônia e a importância das áreas protegidas. Estudos avançados 19 (53): 157-166.

FUKUDA, Juliana Cristina. 2006. 172 p. Avaliação de variáveis para delimitação de áreas protegidas costeiras e marinhas: sugestão de limites para uma Unidade de Conservação costeira de Uso Sustentável na região das Reentrâncias Maranhenses

Page 38: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

27

(Estado do Maranhão, Brasil). Dissertação (Mestrado em Sustentabilidade de Ecossistemas). Depto de Oceanografia e Limnologia, Universidade Federal do Maranhão, São Luís.

FUNAI. 2009. As Terras Indígenas. <http://www.funai.gov.br/indios/terras/conteudo.htm>

Acesso em 14/03/2009.

IBAMA. 2004. Plano de Manejo do Parque Nacional do Monte Roraima (mídia digital).

ICMBIO. 2008. Relatório da Oficina de Trabalho “Sobreposição entre Unidades de

Conservação Federais e Terras Indígenas”. Brasília, 29-30/04/2008.

IEPÉ. 2007. Boletim Povos Indígenas e Meio Ambiente: Amapá e Norte do Pará. <http://www.institutoiepe.org.br/media/boletins_ambientais/Boletim_externo_numero_4-2007.pdf>. Acesso em 16/03/2009.

IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) Projeto Mosaico de Áreas Protegidas.

<http://www.ipe.org.br/html/programas_proj_int.asp?id=17>. Acesso em 21/03/2009.

ISA (Instituto Socioambiental). Ingarikó. <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ingariko>. Acesso em 15/03/2009.

LAURIOLA, Vincenzo. Parque Nacional? Kaané! Os índios dizem não à implementação do Monte Roraima. In: RICARDO, F. (org.). Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004, p.422-431.

LAURIOLA, Vincenzo. Recursos comuns indígenas ou conservação global na Amazônia? In: In: LIMA, A.C.de S. & BARRETO Fo, H.T. (orgs). Antropologia e identificação: os antropólogos e as definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2005, p.205-248.

MARETTI, Cláudio C. Conservação e valores – Relações entre áreas protegidas e indígenas: possíveis conflitos e soluções. In: RICARDO, F. (org.). Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004, p.85-98.

MENEZES, Maiá & TABAK, Flávio. General diz que política indigenista do governo é um caos e

alerta para risco à soberania. O Globo Online.

<http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/04/16/general_diz_que_politica_indigenista_do_g

overno_um_caos_alerta_para_risco_soberania-426883967.asp>. 16/04/2008.

MLYNARZ, Ricardo Burg. 2008. 141 p. Processos participativos em comunidade indígena: um estudo sobre a ação política dos Ingarikó face à conservação ambiental do Parque Nacional do Monte Roraima. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental). Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo, São Paulo.

MMA. Informe Nacional sobre Áreas Protegidas no Brasil. Série Áreas Protegidas no Brasil, 5. Brasília, MMA, 2007, 124p.

RICARDO, Beto & RICARDO, Fany (ed. gerais). Povos Indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2006, 879p.

Page 39: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

28

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna A originalidade das línguas indígenas brasileiras. <http://www.unb.br/il/lali/publicacoes/publ_001.html>. Acesso em 25/03/2009.

ROLLA, Alicia. & RICARDO, Fany. Mapas das sobreposições. RICARDO, F. (org.). Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004, p.591-619.

RORAIMA, Governo do Estado. 2009. Povos Indígenas. <http://www.portalroraima.rr.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=91&itemid=1>. Acesso em 01/04/2009.

RUFINO, Marcos Pereira. O fio da meada. In: RICARDO, F. (org.). Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004, p.417-421.

SANTILLI, Márcio. A Cilada Corporativa. In: RICARDO, F. (org.). Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004, p.11-15.

SANTILLI, Juliana. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação: Uma Visão Socioambiental. In: BORGES, L. & OLIVEIRA, P.C. (coords.). Socioambientalismo: uma realidade. Curitiba, Juruá, 2006a., p.136 -167.

SANTILLI, Paulo. Dilemas do reconhecimento de um território indígena. In: Ricardo, B. & Ricardo, F. (eds. gerais). Os Povos Indígenas do Brasil: 2001-2005. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2006b, p.303-306.

SCARDUA, Fernando. 1999. Relatório de viagem ao Parque Nacional do Monte Roraima, de 01 a 16/10/1999.

SILVA, Marina. The Brazilian Protected Areas Program. Conservation Biology 19 (3): 608-611, 2005.

STF. 2008a. Conheça os argumentos da ação em julgamento pelo Plenário do STF sobre Raposa Serra do Sol.

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=95027>. 27/08/2008. STF. 2008y. Ministra Cármen Lúcia vota pela demarcação contínua da Raposa Serra do Sol <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100632> 10/12/2008

STF. 2008c. Ministro Menezes Direito estabelece condições para índios viverem na Raposa Serra do Sol. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100568>. 10/12/2008

Page 40: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

29

APÊNDICE 1

LISTA DE ENTREVISTADOS

Dilson Domente Ingarikó, presidente do COPING. Participou da oficina de elaboração

do Plano de Manejo do PNMR e desde então vem participando do processo sobre a

co-gestão do PNMR. Entrevista realizada por telefone (de Brasília para Uiramutã) em

06/04/2009.

José Ponciano Dias Filho, chefe do PN do Monte Roraima (desde 1994). Entrevista

realizada por telefone (de Brasília para Boa Vista) em 01/04/2009.

Ludmilla Guerra, técnica da Coordenação de Meio Ambiente da FUNAI, participa do

processo de discussão com Ingarikó desde 2002. Entrevista realizada na sede da

FUNAI/Brasília em 31/03/2009.

Rodrigo Paranhos Faleiro, analista ambiental da Coordenação do Bioma Amazônico

do ICMBio. Começou a participar formalmente do processo sobre a co-gestão do

PNMR em 2005. Entrevista realizada por telefone, ligação local, em 09/04/2009.

Vincenzo Lauriola, assessor técnico da Coordenação de Meio Ambiente da FUNAI.

Participou da oficina de elaboração do Plano de Manejo do PNMR enquanto

pesquisador da UFRR. Foi consultor da FUNAI para explicar o PNMR aos Ingarikó.

Entrevista realizada na sede da FUNAI/Brasília em 01/04/2009.

Page 41: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

30

ANEXO 1

DECRETO DE 15 DE ABRIL DE 2005.

Homologa a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada nos Municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, no Estado de Roraima.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos arts. 19, § 1

o, da Lei n

o 6.001, de 19 de

dezembro de 1973, e 5o do Decreto n

o 1.775, de 8 de janeiro de 1996, e

Considerando o imperativo de harmonizar os direitos constitucionais dos índios, as condições indispensáveis para a defesa do território e da soberania nacionais, a preservação do meio ambiente, a proteção da diversidade étnica e cultural e o princípio federativo;

DECRETA:

Art. 1o Fica homologada a demarcação administrativa, promovida pela Fundação Nacional

do Índio - FUNAI, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, destinada à posse permanente dos Grupos Indígenas Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana, nos termos da Portaria n

o 534, de 13 de abril de 2005, do Ministério da Justiça.

Art. 2o A Terra Indígena Raposa Serra do Sol tem a superfície total de um milhão,

setecentos e quarenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e quatro hectares, setenta e oito ares e trinta e dois centiares, e o perímetro de novecentos e setenta e oito mil, cento e trinta e dois metros e trinta e dois centímetros, situada nos Municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, e circunscreve-se aos seguintes limites: NORTE: partindo do marco SAT RR-13=MF BV-0, de coordenadas geodésicas 05º12’07,662" N e 60º44’14,057" Wgr., localizado sobre o Monte Roraima, na trijunção das fronteiras Brasil/Venezuela/Guiana, segue pelo limite internacional Brasil/Guiana, passando pelos Marcos de Fronteira B/BG-1, B/BG-2, B/BG-3, B/BG-4, B/BG-5, B/BG-6, B/BG-7, B/BG-8, B/BG-9, B/BG-10, B/BG-11, B/BG-11A, B/BG-12, B/BG-13, até o Ponto Digitalizado 01, de coordenadas geodésicas aproximadas 05º11’54,8" N e 60º06’32,0" Wgr., localizado na cabeceira do Rio Maú ou Ireng; LESTE: do ponto antes descrito, segue pela margem direita do Rio Maú ou Ireng, a jusante, acompanhando o limite internacional Brasil/Guiana, passando pelos Marcos de Fronteira B/5, B/4, até o Ponto Digitalizado 02, de coordenadas geodésicas aproximadas 04º35’25,5" N e 60º07’42,7" Wgr., localizado na confluência com um igarapé sem denominação; daí, segue pela margem direita do referido igarapé, a montante, até o Ponto-03, de coordenadas geodésicas aproximadas 04º35’44,7641" N e 60º10’45,7776" Wgr., localizado na confluência de um igarapé sem denominação; daí, segue por uma linha reta até o Ponto-04, de coordenadas geodésicas 04º34’40,1683" N e 60º11’24,6414" Wgr., localizado na nascente de um igarapé sem denominação; daí, segue pela margem esquerda do referido igarapé, a jusante, até o Ponto Digitalizado 05, de coordenadas geodésicas aproximadas 04º33’43,1" N e 60º09’32,3" Wgr., localizado na sua confluência com o Rio Maú ou Ireng; daí segue pela margem direita do citado rio, a jusante, acompanhando o limite internacional Brasil/Guiana, passando pelos Marcos de Fronteira B/3 e B/2, até o Ponto Digitalizado 06, de coordenadas geodésicas aproximadas 03º51’56,5" N e 59º35’25,1" Wgr., localizado na confluência com o Igarapé Uanamará; SUL: do ponto antes descrito, segue pela margem esquerda do Igarapé Uanamará, a montante, até o Marco 04, de coordenadas geodésicas 03º55’15,4420" N e 59º41’51,6834" Wgr., localizado na confluência com o Igarapé Nambi; daí, segue por uma linha reta até o Marco 05 (marco de observação astronômica, denominado Marco Pirarara), de coordenadas geodésicas 03º40’05,75" N e 59º43’21,59" Wgr.; daí segue no mesmo alinhamento até a margem direita do Rio Maú ou Ireng; daí, segue por essa margem, a jusante, acompanhando o limite internacional Brasil/Guiana, até a sua confluência com o Rio Tacutu, onde está localizado o Marco de Fronteira 1, de coordenadas geodésicas

Page 42: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

31

03º33’58,25" N e 59º52’09,19 Wgr.; daí, segue pela margem direita do Rio Tacutu, a jusante, até o Ponto Digitalizado 07, de coordenadas geodésicas aproximadas 03º22’25,2" N e 60º19’14,5" Wgr., localizado na confluência com o Rio Surumu; OESTE: do ponto antes descrito, segue pela margem esquerda do Rio Surumu, a montante, até o Ponto Digitalizado 08, de coordenadas geodésicas aproximadas 04º12’39,9" N e 60º47’49,7" Wgr., localizado na confluência com o Rio Miang; daí segue pela margem esquerda do Rio Miang, a montante, até o Marco de Fronteira L8-82, de coordenadas geodésicas 04º29’38,731" N e 61º08’00,994" Wgr., localizado na sua cabeceira, na Serra Pacaraima, junto ao limite internacional Brasil/Venezuela; daí, segue pelo limite internacional, passando pelos Marcos de Fronteira BV-7, BV-6, BV-5, BV-4, BV-3, BV-2, BV-1 e BV-0=Marco SAT RR-13, início da descrição deste perímetro. Base cartográfica utilizada: NB.20-Z.B; NB.21-Y-A; NB.20-Z-D; NB.21-Y-C; NA.20-X-B e NA.21-V-A - Escala 1:250.000 - RADAMBRASIL/DSG - Anos 1975/76/78/80. As coordenadas geodésicas citadas são referenciadas ao Datum Horizontal SAD - 69.

Art. 3o O Parque Nacional do Monte Roraima é bem público da União submetido a regime

jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios.

§ 1o O Parque Nacional do Monte Roraima será administrado em conjunto pela Fundação

Nacional do Índio - FUNAI, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA e pela Comunidade Indígena Ingarikó.

§ 2o O Ministério da Justiça e o Ministério do Meio Ambiente, ouvidos a Fundação Nacional

do Índio - FUNAI, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA e a Comunidade Indígena Ingarikó, apresentarão, para homologação do Presidente da República, plano de administração conjunta do bem público referido no caput.

Art. 4o É assegurada, nos termos do Decreto n

o 4.412, de 7 de outubro de 2002, a ação

das Forças Armadas, para a defesa do território e da soberania nacionais, e do Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, para garantir a segurança e a ordem pública e proteger os direitos constitucionais indígenas, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Parágrafo único. As Forças Armadas e o Departamento de Polícia Federal utilizarão os meios necessários, adequados e proporcionais para desempenho de suas atribuições legais e constitucionais.

Art. 5o Fica resguardada a prerrogativa do Presidente da República de, em caso de real

necessidade, devidamente comprovada, adotar as medidas necessárias para afetar os bens públicos da União de uso indispensável à defesa do território e à soberania nacional, bem como de exercer o poder de polícia administrativa para garantir a segurança e a ordem pública na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Art. 6o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 15 de abril de 2005; 184o da Independência e 117

o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Márcio Thomaz Bastos

Page 43: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

32

ANEXO 2

DECRETO N° 97.887, DE 28 DE JUNHO DE 1989

Cria o Parque Nacional do Monte Roraima e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , usando das atribuições que lhe confere o artigo 84, inciso IV,

da Constituição, e considerando o que dispõe o artigo 225, § 1°, item III, da Constituição, e o

artigo 5º, alínea a, da Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965

DECRETA:

Art. 1° Fica criado, no Estado de Roraima, o Parque Nacional do Monte Roraima, com o objetivo

de proteger amostras dos ecossistemas da Serra Pacaraíma, assegurando a preservação de sua

flora, fauna e demais recursos naturais, características geológicas, geomorfológicas e cênicas,

proporcionando oportunidades controladas para visitação, educação e pesquisa científica.

Art. 2° O Parque Nacional do Monte Roraima tem os seguintes limites, descritos a partir das

folhas planimétricas na escala 1:250.000 N°s NB.20-Z-D/B, editadas pelo Departamento

Nacional da Produção Mineral DNPM em 1975: Começa no marco de fronteira internacional

entre o Brasil, a Venezuela e a Guiana, n° BV-0 (ponto 01); segue no rumo geral leste, pela linha

de limite internacional Brasil-Guiana, passando pelos marcos B/BG-1 a B/BG-13 e atingindo o

ponto de coordenadas geográficas aproximadas (c.g.a.) 05°08"23"N e 60°05"32"WGr, situado na

confluência do Rio Dacá com o Rio Maú ou Ireng (ponto 02); deste ponto, segue por uma linha

reta de rumo 226°30" e distância aproximada de 3.800 metros, até atingir o ponto de c.g.a.

05°06"58"N e 60°07"06"WGr, situado na cabeceira de um formador do Igarapé Amolia (ponto

03); segue a jusante, pela margem esquerda do Igarapé Amolia, até sua foz no Rio Uailam

(ponto 04); daí, segue pela margem esquerda do Rio Uailam até atingir o ponto de c.g.a.

04°55"00"N e 60°11"45"WGr, situado na confluência do Rio Uailam com um seu afluente, pela

margem direita (ponto 05); deste ponto, segue a montante, pela margem direita deste igarapé,

até atingir a cabeceira de um de seus formadores, ponto de c.g.a. 04°59"27"N e 60°15"16"WGr

(ponto 06); daí, segue por uma linha reta de rumo 243°00" e distância aproximada de 3.300

metros, até atingir o ponto de c.g.a. 04°58"39"N e 60°16"53"WGr, situado na cabeceira de um

igarapé sem nome, afluente do Igarapé Uarainu ou Pipi, pela margem esquerda (ponto 07);

segue a jusante, pela margem esquerda deste curso d"água, até atingir o ponto de c.g.a.

04°57"18"N e 60°18"55"WGr, situado na sua foz no Igarapé Uarainu ou Pipi (ponto 08); segue a

montante, pelo Igarapé Uarainu ou Pipi, até atingir o ponto de c.g.a. 05°00"39"N e

60°19"13"WGr, localizado na margem do Igarapé Uarainu ou Pipi (ponto 09); daí, segue por uma

linha reta de rumo 03°30" e distância aproximada de 15.700 metros, até o ponto de c.g.a.

05°09""14"N e 60°18"47"WGr (ponto 10); desse ponto, segue por uma linha reta de rumo

290°00" e distância aproximada de 3.200 metros, até atingir o ponto de c.g.a. 05°09"53"N e

60°20"38"WGr, situado na margem do Rio Panari (ponto 11); daí, segue por uma linha reta de

rumo 280°00" e distância aproximada de 8.600 metros, até o ponto de c.g.a. 05°08"25"N e

60°25"12"WGr, situado na confluência de dois pequenos igarapés sem denominação (ponto 12);

deste ponto, segue por uma linha reta de rumo 282°30" e distância aproximada de 2.500 metros,

até atingir o ponto de c.g.a. 05°08"35"N e 60°26"30"WGr, situado na margem direita do Rio

Cotingo (ponto 13); deste ponto, segue pela margem direita do Rio Cotingo, até o ponto de c.g.a.

05°08"41"N e 60°35"26"WGr, localizado na foz do Rio Maurucaua (ponto 14); segue a montante,

pela margem direita do Rio Maurucaua, até atingir o ponto de c.g.a. 05°07"52"N e

Page 44: Sobreposição de Unidades de Conservação e Terras Indígenas: o caso da área do Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol

33

60°35"58"WGr, localizado na confluência do Rio Maurucaua com um igarapé sem denominação

(ponto 15); segue por uma linha reta de rumo 113°30" e distância aproximada de 4.800 metros,

até atingir o ponto de c.g.a. 05°06"44"N e 60°34"08"WGr, localizado na confluência de dois

igarapés sem denominação, que formam um afluente do Rio Cotingo (ponto 16); segue a

montante, pela margem direita de um desses igarapés, até atingir o ponto de c.g.a. 05°03"55"N e

60°33"55"WGr, situado na cabeceira do igarapé (ponto 17); deste ponto, segue por uma linha

reta de rumo 169°00" e distância aproximada de 19.800 metros, até atingir o ponto de c.g.a.

04°53"27"N e 60°31"51"WGr, localizado na cabeceira de um igarapé sem denominação, afluente

do Igarapé Chitu (ponto 18); deste ponto, segue a jusante, pela margem esquerda deste igarapé,

até atingir sua foz no Igarapé Chitu, de c.g.a. 04°51"04"N e 60°32"23"WGr (ponto 19); daí, segue

por uma linha reta de rumo 190°30" e distância aproximada de 5.200 metros, até atingir o ponto

de c.g.a. 04°48"21"N e 60°32"56"WGr, localizado na confluência do Igarapé Cumaipá com um

igarapé sem denominação (ponto 20); segue pela margem direita deste igarapé até atingir o

ponto de c.g.a. 04°48"15"N e 60°33"51"WGr, situado na confluência com outro igarapé sem

denominação (ponto 21); daí, segue a montante, pela margem direita deste igarapé, até atingir

sua cabeceira, no ponto de c.g.a. 04°51"08"N e 60°36"13"WGr (ponto 22); deste ponto, segue

por uma linha reta de rumo 332°00" e distância aproximada de 4.600 metros, até atingir a

fronteira internacional Brasil-Venezuela, no ponto de c.g.a. 04°63"06"N e 60°37"26"WGr (ponto

23); segue no rumo geral norte, pela linha de limite internacional até atingir o marco BV-1, ponto

inicial desta descrição, fechando o perímetro do Parque Nacional do Monte Roraima e

perfazendo uma área de aproximadamente 116.000ha.

Art. 3° O Parque Nacional do Monte Roraima fica sujeito ao que dispõem com relação à matéria,

a Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965, e o Decreto n.° 84.017, de 21 de setembro de 1979.

Art. 4° O Parque Nacional do Monte Roraima fica subordinado ao Instituto Brasileiro do Meio

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBAMA, estabelecendo-se um prazo de cinco

anos para a elaboração do Plano de Manejo desta unidade

Art. 5° A demarcação dos limites do Parque Nacional do Monte Roraima será executada pelo

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis com recursos do

Projeto Calha Norte.

Art. 6° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em

contrário.

Brasília, 28 de junho de 1989; 168° da Independência e 101° da República.

JOSÉ SARNEY

José Carlos Mello