Sociedade da desinformação; 2004 - UNESDOC...

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  • UNESCO Brasilia Office Representao da UNESCO no Brasil

    Sociedade da desinformao

    Severino Francisco

    Braslia

    2004

  • Artigo publicado em 07 de outubro de 2004, no Observatrio da Sociedade da Informao, de responsabilidade do Setor de Comunicao e Informao da UNESCO no Brasil.

    UNESCO, 2004

    BR/2004/PI/H/19

    O autor responsvel pela escolha e pela apresentao dos fatos contidos nesta publicao e pelas opinies aqui expressas, que no so necessariamente as da UNESCO e no comprometem a Organizao. As designaes empregadas e a apresentao do material no implicam a expresso de qualquer opinio que seja, por parte da UNESCO, no que diz respeito ao status legal de qualquer pas, territrio, cidade ou rea, ou de suas autoridades, ou no que diz respeito delimitao de suas fronteiras ou de seus limites.

  • Sociedade da desinformao

    Severino Francisco

    Jornalista, Editor do Jornal Radcal, Mestre em Literatura pela Universidade de Braslia e

    professor de jornalismo do Uniceub

    A cada novo cacareco tecnolgico surge um profeta anunciando um novo tempo. claro que qualquer inveno tecnolgica provoca mudanas em nossos valores, mentalidades, hbitos e comportamentos. Mas discutvel se essas inovaes produzem necessariamente e automaticamente mudanas qualitativas. Os profetas da era virtual vaticinaram que as tecnologias da informao propiciariam a emergncia de um admirvel mundo novo de seres humanos mais inteligentes, ilustrados, criativos, imbudos de conscincia sobre questes coletivas, noes de cidadania e direitos humanos. Se quisessem justificar as suas teses, no incio do novo milnio, esses profetas estariam em uma situao muito semelhante a do filsofo Hegel de uma clebre piada. Segundo a piada, ao ser questionado sobre a evidncia de que os fatos desmentiam as suas teorias, Hegel teria respondido: Pior para os fatos. Simultaneamente ou paralelamente a abertura de inmeras possibilidades de experincias de comunicao e educao proporcionadas pelas novas tecnologias, a sociedade da informao convive com a realidade de um inquietante crescimento do nmero de analfabetos funcionais, tanto em pases em desenvolvimento quanto em pases desenvolvidos.

    No caso de pases como o Brasil, em que a era virtual chegou sem que tivesse se sedimentado uma tradio letrada, a situao adquire um acento mais dramtico. Pesquisa realizada numa parceria entre a ONG Ao Educativa e o Instituto Paulo Montenegro, no ano de 2003, revela que o analfabetismo funcional atinge a 38% dos brasileiros, sendo que deste percentual 8% constitudo por analfabetos absolutos. Somente 1 em cada 4 brasileiros com mais de 15 anos tem pleno domnio das habilidades de leitura e escrita. Numa outra dimenso, uma srie de pesquisas constata tambm que a tiragem dos jornais despencou, em escala progressiva, nos ltimos 10 anos.

    Evidentemente, esse quadro delineado em rpidas pinceladas implica em graves conseqncias para a educao, a cultura e a democracia. Se a leitura e os livros sempre foram instrumentos essenciais para o desenvolvimento da reflexo, da imaginao, do domnio da linguagem e do exerccio do senso crtico, eles adquirem uma relevncia ainda maior no contexto de uma sociedade da informao, marcada por inovaes tecnolgicas vertiginosas, pulverizao das mensagens, disperso das fontes de conhecimento, imprio do mercado e das dissimulaes do marketing .No caso da cultura, se preciso reconhecer a vitalidade de novas linguagens (rap, videoclip, grafite, sites, entre outras), de outra parte necessrio registrar que a ausncia de contato dos adolescentes com o livro implica em uma ruptura com todo o legado cultural da humanidade acumulado durante sculos. como se a histria da humanidade tivesse comeado com o roqueiro Charlie Brown Jr ou com a dupla Sandy e Jnior.

  • Do ponto de vista da democracia, ocioso lembrar sua condio quase indissocivel da imprensa escrita.Se as notcias de uma proposta de educao ou de uma denncia de corrupo forem veiculadas na tev certamente alcanaro um impacto mobilizador muito maior do que na imprensa escrita. Em contrapartida, se publicadas na imprensa escrita, as mesmas notcias seriam dotadas de um maior poder de anlise, permanncia e memria. A imprensa escrita exerce uma funo de documento da histria cotidiana, de acesso e reproduo muito mais fcil do que a televiso, meio marcado pela fugacidade.

    Estranhamente, este estado de coisas tem suscitado, com raras excees, uma resposta muito mais defensiva do que afirmadora, da parte dos sistemas de educao, das instituies pblicas e da imprensa escrita. Novamente, com raras excees, apesar das tiragens continuarem desabando, ao invs de buscar o seu lugar de singularidade como espao de anlise, reflexo, inteligncia e cultura em um cenrio mutante de novas tecnologias da informao, a imprensa escrita insiste em permanecer a reboque da pauta eletrnica da televiso.

    No campo da educao, essa postura defensiva se traduz em uma melanclica diviso, para as crianas e os adolescentes: de um lado a televiso, com seus mil e um jogos de seduo, apelos ao prazer, artimanhas ldicas, promessas de felicidade e de outro o livro, concebido como objeto de conhecimento, razo, disciplina, conhecimento. No Brasil, graas a uma gerao de escritoras de grande talento, como o caso de Ruth Rocha e Ana Maria Machado, a professores abnegados e a uma lei que abriu espao para a literatura infantil nos currculos das escolas do Ensino Fundamental, as crianas tem contato com o livro como objeto de prazer. Toda criana gosta de ouvir histrias. Mas a situao se complica na passagem da infncia para a adolescncia.

    Existe um abismo em termos de polticas pblicas de leitura para os jovens. Faltam bibliotecas, acervos atualizados e professores preparados para iniciar os jovens no prazer da leitura e realizar conexes entre o livro e outras linguagens. As chamadas fichas de leitura, instrumentos criados com o suposto objetivo de explorar as potencialidades didticas do livro, so o melhor exemplo dos equvocos da escola. Alguns dos mais eminentes autores de livros infantis e infanto-juvenis j confidenciaram que no conseguem preencher as fichas de leitura dos seus prprios livros. O Ministrio da Educao est anunciando um programa ambicioso para enfrentar a questo. Esse estado de coisas exige no propriamente uma defesa, mas um ataque do livro.

    Em um dos seus ensaios, o cientista e escritor de fico cientfica Isaac Asimov anuncia uma nova e fantstica inveno tecnolgica, dotada das qualidades inimaginveis de, ao mesmo tempo, promover links entre imaginao e memria como nenhum computador seria capaz de fazer, condensar uma quantidade enorme de informao em um espao mnimo, expandir as fronteiras do conhecimento para alm dos limites da sala de aula, depurar a linguagem, aguar o senso crtico, propiciar conexes mente a mente, proporcionar a oportunidade de entrar em contato com pessoas de todos os tempos ( vivos e com os mortos), adequar-se subjetividade do portador. E tudo isso funcionando sem bateria.

    Para quem julgar inverossmil o artefato idealizado por Asimov bastaria evocar que, a partir da metade do sculo 20, robs, clones, satlites e sistemas virtuais de informao e outras invenes da mais descabelada imaginao de fico cientfica invadiram o nosso cotidiano. Mas, depois de enumerar exaustivamente as qualidades da nova inveno tecnolgica, Asimov revela que ela j existe: o livro. E, finalmente, lana um desafio: quando os novos meios virtuais de informao alcanassem a sofisticao do livro como tecnologia cultural e educacional seria possvel levar a srio os profetas da era virtual.

  • O escritor argentino Jorge Luis Borges tambm vai na mesma direo de Asimov:Dos diversos instrumentos inventados pelo homem, o mais espetacular, sem dvida, o livro. Os demais so extenso do seu corpo. (...) O livro, porm, outra coisa: o livro uma extenso da memria e da imaginao. Os argumentos tanto de Asimov quanto de Borjes sugerem uma nova perspectiva para o debate, muito mais afirmadora e positiva. Ou seja: necessrio dizer, com todas as letras, que o livro permanece uma tecnologia de ponta, a ser no apenas preservada, mas integrada e articulada com as outras tecnologias de comunicao e de arte. As novas tecnologias descortinam possibilidades de experimentaes inditas de educao e cultura para crianas e adolescentes. Mas, sem a conexo com o legado inscrito nos livros, as mais sofisticadas tecnologias de comunicao, se reduzem a cacarecos eletrnicos, explorados de uma maneira mecnica, rasa ou mesmo deletria : Somos o que lemos, mas tambm o que no lemos, alerta o escritor argentino Alberto Menguel..

    No livro A Televiso Levada a Srio, o crtico e professor Arlindo Machado reivindica uma tradio inventiva para a televiso no mesmo plano de todas as outras linguagens contemporneas. Contudo, insolitamente, em sua lista dos 30 melhores programas de televiso, nos deparamos com Glauber Rocha, Guel Arraes, Jean-Luc Godard, Peter Greeneway, Micheangelo Antonioni, Num June Paik, Robert Altman, Ingmar Bergman, John Cage, gente que no nasceu dentro de um tubo de televiso ou de uma rede da Internet. Gente com amplo trnsito pelas mltiplas tecnologias (fotografia, literatura, artes plsticas, teatro, cinema, vdeoarte) mediadas pelo livro. Por isto seria importante fazer com que as novas geraes superassem a relao antagnica e maniquesta livro versus televiso, livro versus Internet, livro versus rock. O livro uma tecnologia cultural que intensifica, amplia e sofistica as possibilidades expressivas de qualquer outra mdia ou tecnologia de informao. Mas, para que isso ocorra, de fato, necessrio o empenho de educadores, meios de comunicao eletrnicos, artistas, escolas e outras instituies no sentido de se formular uma pedagogia do prazer para os jovens no contato com os livros. a nica possvel em uma sociedade mediada pela interveno de meios de comunicao regidos por princpios hedonistas e ldicos.

    O escritor e semilogo francs Roland Barthes afirmava que, da mesma maneira que h um obscurantismo do saber, ou seja, h coisas que ignoramos, existe um obscurantismo do prazer. Ou seja: existem prazeres que desconhecemos. E um destes prazeres a leitura. Seria imprescindvel promover aes no sentido de que os jovens percebam o livro, essencialmente, como um objeto de desejo. E tambm para que compreendam que nos livros no h separao entre jogo, imaginao, razo, prazer, conhecimento. O livro uma mdia to democrtica que permite at uma crtica to radical e divertida contra si mesma ou contra o excesso de intelectualismo, como a desfechada pelo grande poeta portugus Fernando Pessoa: Ai que prazer, ter um livro para ler/E no o fazer/Ler maada/Estudar nada/Estudar uma coisa em que est indistinta a distino entre nada e coisa alguma. Detalhe: Fernando Pessoa criou a concepo do poeta como fingidor, inventor de mscaras ficcionais, capaz de viver outras vidas. E, na vida real, lia um livro por dia.

    Em Braslia, desde 1996, edito o jornal Radcal, de 16 pginas coloridas, publicado pela Fundao Athos Bulco, dirigido ao pblico dos adolescentes, distribudo a 100 mil adolescentes da rede pblica do ensino do Distrito Federal. O que se diz dos jovens da era virtual? Que no apreciam a leitura, mas gostam de televiso, Internet, revistas em quadrinhos, fanzines, videogames. Pois bem, em sntese, a proposta do Radcal mobilizar todas essas linguagens na tentativa de seduzir os jovens para a leitura, estabelecer conexes com a tradio cultural da humanidade, mixar os poemas de Carlos

  • Drummond de Andrade com letras de rap, cultura popular e signos virtuais, preveno a doenas sexualmente transmissveis e arte ertica, grafite e a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre, humor e direitos humanos.

    Pesquisa realizada pelo Instituto Who, com apoio do Unicef, em 1999, revelou que 99% dos entrevistados liam o jornal, 96% que o Radcal proporciona uma leitura prazerosa, 33% consideravam o jornal leitura obrigatria em sua ntegra e 62% reconheceram que o Radcal faz o jovem pensar e muitas vezes mudar de comportamento. Recebemos tambm cartas de adolescentes que tm o valor de um prmio tais como: Este o primeiro jornal que me deu o prazer de ler. Ou: O Radcal melhor do que o Wasghinton Post e o New York Times. Essa singela experincia desmente muitos lugares comuns e revela que existe todo um campo a ser explorado na relao entre jovens e leitura na era virtual. O livro no pode ser associado a um objeto de interesse arqueolgico, cheio de poeira, teias de aranha, lagartixas e outros bichos. Mas sim a uma tecnologia cultural de ponta a ser conectada a qualquer outra tecnologia.

    Por mais que esteja armada por um poderoso arsenal de tecnologias de informao, uma sociedade que produz uma legio de analfabetos funcionais uma sociedade da desinformao. Para que cumprissem as predies dos profetas da era virtual, as tecnologias da informao precisariam agregar valores ticos, educacionais, sociais, humanistas, culturais, artsticos e espirituais. Valores que se encontram encerrados no livro como em nenhuma outra tecnologia da informao: A cincia exasperadamente lenta, j nos alertava, em pleno sculo 19, o poeta-vidente Jean-Arthur Rimbaud.