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SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: DILEMA PARA O BIBLIOTECÁRIO César Augusto CASTRO UFMa Maria Solange Pereira RIBEIRO UNICAMP RESUMO Analisa-se alguns aspectos atinentes à Sociedade da Informação contrapondo-a com a esfera da Sociedade que encontra-se à margem do saber e do conhecimento. Neste contexto situamos a formação do bibliote- cário. Palavras-chave: Sociedade da informação; Bibliotecário-formação. Com as novas tecnologias de informação/comunicação, a produção e circulação do conhecimento neste final de século aumen- tou vertiginosamente, dificultando o seu estoque e originando uma Crise Informacional, entendida como mudanças nos paradigmas do fazer científico e nas concepções sobre verdade. Tal fato, tem levado a diferentes e inúmeros questionamentos sobre a legitimidade e natureza do saber, na medida em que se perde o controle do que é produzido em espaços e tempos determinados. Para Baudrillard (1992, p.38) não há crescimento de informações, mas excrescência, um descontrole dos sistemas, ou seja, está ocorrendo, apesar do grande fluxo de informações, um espaço vazio de sentidos: a crise, Transinformação, v. 9, n. 1, p.17-25, janeiro/abril, 1997

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SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO:DILEMA PARA O BIBLIOTECÁRIO

César Augusto CASTROUFMa

Maria Solange Pereira RIBEIROUNICAMP

RESUMO

Analisa-se alguns aspectos atinentes à Sociedade da Informaçãocontrapondo-a com a esfera da Sociedade que encontra-se à margem dosaber e do conhecimento. Neste contexto situamos a formação do bibliote-cário.

Palavras-chave: Sociedade da informação; Bibliotecário-formação.

Com as novas tecnologias de informação/comunicação, aprodução e circulação do conhecimento neste final de século aumen-tou vertiginosamente, dificultando o seu estoque e originando umaCrise Informacional, entendida como mudanças nos paradigmas dofazer científico e nas concepções sobre verdade. Tal fato, tem levadoa diferentes e inúmeros questionamentos sobre a legitimidade enatureza do saber, na medida em que se perde o controle do que éproduzido em espaços e tempos determinados. Para Baudrillard(1992, p.38) não há crescimento de informações, mas excrescência,um descontrole dos sistemas, ou seja, está ocorrendo, apesar dogrande fluxo de informações, um espaço vazio de sentidos: a crise,

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que entendemos como processo intermediário e necessário, pararestituir a ordem. Caos/Ordem/Desordem são fatores imprescindí-veis para regular os sistemas, regular a ciência, regular os homens,regular a vida. Estamos vivendo sobre: "A sombra de Dionísio, odeus dos 'cem rostos, o deus da versatilidade, do jogo, dotrágico, do desperdício de si mesmo" (Maffersoli, 1995, p.80),das ambigüidades.

As ciências mudam de direção: se antes o interesse eraentender a complexidade dos fenômenos, hoje interessa verificar osnadas, o cotidiano:

"Não convém esquecer, porém, que as rotinas da vidacotidiana não se reduzem àquelas do dia-a-dia e são elaspróprias, às vezes, que preparam o tempo da sua inter-rupção, da festa. A divisão física e social do tempo (dia enoite, semanas, meses, anos), os ciclos da natureza e davida impõe rotinas diferenciadas, diuturnas ou intermiten-tes, à vidacotidiana. Além disso, a própria movimentaçãodohomem nos espaçose nas esferasdo cotidiano (centro,periferia, trabalho, lazer, e vida familiar) é complexamenteinfluenciada pela ordenação sócio-cultural do tempo(Azanha, 1992, p. 116-117).

A título de exemplo, das mudanças dos paradigmasinvestigativos das ciências, em especial, as chamadas sociais, pode-mos citar a histórica, que volta sua atenção para os fatos insignifican-tes: a pobreza, (Geremek, Bronislaw, em Os Filhos de Caim) aloucura, o sexo, (Foucault, em História da Loucura e História daSexualidade), os pequenos homens (Ginzburg, em O Queijo e osVermes), a cultura popular, (George Rudé e Bakhtin).

"u.os historiadores [...] abandonaram os mais tradicionaisrelatos históricos de líderes políticos, instituições políticase direcionaram seus interesses para as investigações decomposição social e da vida cotidiana de operários, cria-dos,mulheres,gruposétnicosecongêneres"(Hunt,1992,p.2).

O isolamento científico, tecnológico (e pessoal) cedemlugar para as disciplinaridades (inter, multi, trans) para apoliepistemologia, para o intercâmbio de informações e dados atra-vés dos chips. "Interneticamente" falando, pode-se sem sair de casavisitar o Vaticano, conhecer o Louvre, participar das novas descober-

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tas da ciência na França ou Estados Unidos e, até, manter relaçõesíntimas com uma pessoas do outro lado do mundo. A única regra é ouso da criatividade.

Essanovaordemcientíficadesordenouosaber,desordenouas guardiãs e transmissoras desse saber (escolas, bibliotecas, mu-seus, arquivos etc.). Os profissionaisda chamada ciência da informa-ção, deixam os tradicionais postos e vagueiam entre as "NET'S". Osconceitos e nomenclaturas perderam os seus domínios. Asmetodologias de investigação científica fragmentam-se, não é maisconcebível encarcerarmos uma produção ou um intelectual em umacamisa de força: positivismo, marxismo, funcionalismo etc. Portanto,tudo exige uma (re)leitura, uma adaptação aos novos tempos. Asteorias de Marx, Comte e, até, os apóstolos Mateus, Marcos e osdemais, devem ser entendidos sob umaoutra ótica, a ótica do terceiromilênio, da era pós-industrial e pós-moderna.

Essa ruptura com os velhos objetos da ciência não signi-fica um abandono do passado, mas estes tomados sobre outrasdimensões, perspectivas e discursos. Sem dúvida, estamos vivendoum novo ciclo de construção do conhecimento, que assume o valorde mercadoria, obedecendo as leis de oferta e procura:

"O momento é de negar os princípios da era industrial,provocando o abalo das teorias já consolidadas. Nestecontexto da crise, desenvolve-se o conceito de sociedadedo conhecimento comonovoparadigma sócio-econômico.Surgem questionamento e polêmicas no âmbito das ciên-cias econômicas, uma vez que os modelos conceituaisvigentes - taylorismo, fordista, materialismo histórico -,nãose adequam a essa orientação econômica, totalmentediversa da ideologia e princípios que fundamentam asociedade industrial" (Borges, 1996,p. 181).

Esse novo paradigma emergente que se processa emtodos os aspectosdavida cotidiana,em especial noscampos daC&T,

"...tende a ser um conhecimento não dualista, um conhe-cimento que se funda na superação das distinções tãofamiliares e óbvias que até pouco tempo considerávamosinsubstituíveis, tais como natureza! cultura, natural/artifi-cial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observa-do, subjetiv%bjetivo, coletivo/individual, animaVpessoa"(Sousa, 1995,p.40).

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Associedades evoluírame comelas novas determinaçõeseconômicas, informacionaise sociais estabeleceram-se até alcan-çarmos no presente a denominadaSociedadeda Informação,onde:

"As cadeias da tradiçãosão substituídas por cadeias detransferência da informação: a testemunha pelo documen-to e pela prova; a experiência, pela experimentação; oancião e o viajante, pelas bibliotecas; os arquivos, osjornais, o rádio, a telecomunicação; a comunidade deinterlocução da narrativa, pela solidão dos homens dainformação"(Gomes, 1995,p.78).

No quadro abaixo, há uma tentativa de demarcarmoscaracterísticas das diversas sociedades,da primitiva à atual, denomi-nada da informação/ conhecimento. Contudo, não se deve entenderestas demarcações como contrapontos ou aspectos evolutivos, mascomo fatores da relação do homem com a cultura em tempos eespaços determinados.

SociedadePrimitiva Sociedade Feudal

.Natureza- fatordeagregação;.Economia cen-trada na troca;.Informação locali-zada e rudimentar;.Atividadesmanuais.

.Terra-fatordeagre-gação;.Economia agricolae monetária;.Atividadesmanuaisdesenvolvidas e emsistema de coope-rativas;.Informação localiza-da e centralizada

em espaços deter-minados (mostei-ros, universidades)e privilegiados (en-sino humanista paraos nobres e "sub-leitura/informação" -

bibliotheque bluepara a plebe).

Sociedade Industrial

.Relação homem-má-quina;.Produçãoem série;.Economiacapitalista;.Conhecimento tecno-lógico em detrimento dointelectual;.Relações de trabalhoconflituosas;.Cidadenolugardecam-po;.Mão-de-obraespeciali-zada em maquinários;.Informação sigilosa e"localizada" ;.Redes e sistemas de in-formação nacionais;.Atividadesprofissionaiscentradas em empre-sas.

Sociedade daInformação

.Relação homem!conhecimento;.Informação dester-ritorializada;.InteligênciahumanaX inteligência artifi-cial;.Conhecimento de-termina as leis demercado;.Economianeo-libe-ral;.Metalinguagens eMeta-informação;.Redes de sistemasde informaçãotransnacionais;.Atividades profis-sionais destitu idas

do lugar físico..Redes e sistemasde informação na-cionais;.Atividades profis-sionais centradasem empresas.

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A literatura no campo da Biblioteconomia nacional,(Araújo, 1995; Masuda, 1982;Barreto, 1994e outros) e internacional(Belkin, 1978; Lancaster, 1994 e outros) se reporta a denominadaSociedade de Informação como dado concreto e estabelecido. Emparte não discordamos destes autores, no entanto, cremos que o quehá em nossa realidade são Núcleos Sociais de Informação, restritosa espaçosdeterminados como Universidades e outras InstituiçõesdePesquisa e, ainda, fortemente localizados, especialmente nas "re-giões mais desenvolvidas". A sociedade brasileira caracterizadahistoricamente por alarmantes índices de desigualdades regionais,sociais, educacionais, culturais, provavelmente não nos permite, nomomento, generalizarmos que estamos em uma sociedade de infor-mação.

Ao ladoda Sociedade da informação, há sem dúvida umaoutra - a Sociedade da Desinformação -que pouco é retratada, porque

aquelaescondeesta,ouestanãoéobjetododesejodaBiblioteconomia.Ao tratarmos da primeira, sem desviarmos o olhar para a "outra",construímos um discurso vazio de sentidos.

Notícias retiradas de jornais de grande circulação doEstado de São Paulo, evidenciam o porquê da colocação acima.Cabe ressaltar que estas notícias foram aqui resumidas:

Silvana, 17anos, abandonada desde os 5 anos na Praçada Sé, faleceu de AIOS na noite de ontem em um hospitalpúblico dagrande São Paulo,afirmoudesconhecerpreser-vativos.

João deDeus, lavrador,roubadoem umaagênciabancáriaao entregar a sua senha escrita, em um pedaço de papel,a umjovem de 15anos. Ao ser questionado pelo gerenteafirmou que pediu ajuda por não saber ler.

Estes são apenas dois exemplos, mas poderíamos citarvários. Provavelmente a sociedade da informação não atingiu ainda,parte significativa da população brasileira. Este alcance só serápossível na medida em que outras necessidades forem atingidas,quando o fosso das desigualdades estiverem minimizados: pobre/rico, semterra/latifundiário, favela/mansão, alfabetizado/ analfabeto.

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A relaçãosociedade da informação/desinformação,nosalcançacotidianamentenas ruas,naspraçaspúblicas,nas conversasde bar e, contrariamentenas Universidades.Deum lado,encontra-mos cientistasque descrevemcom propriedadeas mais recentesdescobertas nos camposda biogenética,da física,da cibernéticaeem direção contrária,pessoas que não sabem sequer decifrar ocódigoescrito,quadroque exigedos profissionaisda informação,uma dupla e diferenciadaatuação: atender a uns poucos, queconstituem a sociedade da informaçãoe à grande maioria, osdesvalidos infomacionais. É evidente que se torna mais fácil lidar como conhecido, menos problemático, ou com aquilo que nos dá maisreconhecimento e "status profissional".

Por outro lado, a formação destes profissionais por forçadas pressões curriculares, envoltas nos discursos da modernidade,centra-se na primeirasociedade, enquanto a segunda apresenta-secomo diletantismo, coisa menor, dos pobrezinhos, como habitual-mente ouvimos de alguns companheiros que se encontram imersosnas novas tecnologias, com os chips. Sem dúvida, há um imaginário,construído pelos e para os bibliotecários,de que as novas tecnologiasda informação, engrandecem a profissão, resolvem velhos proble-mas de armazenamento e transferência do conhecimento. Estediscurso serve para escamotear uma prática onde mudaram osmeios, mas a essência éa mesma. Melhor.dizendo,substituímos osvelhos catálogos em fichas paraas telas docomputador, substituímoso empréstimo manual por códigos de barras. Em resumo, o quemudou? Provavelmente só utilizamos os novos recursos paraagilizarmos as atividades.

Contudo,os serviçosde referênciacontinuamos mesmos,os acervos permanecem desatualizados, o empréstimoe a cataloga-ção cooperativa entre bibliotecas ainda é uma realidade distante:

Embora seja verdadeque desenvolvimentos tecnológicoscolocaram algumas ferramentasnovasdentro das bibliote-cas e nas mãos dos bibliotecários, estas ferramentas nãotêm sido necessariamente usadas sabiamente ou comimaginação dentroda nossaprofissão. Por exemplo, siste-

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mas de circulação automatizados são vistos como equipa-mentos que economizam trabalho,e como meios deempréstimo de livrosmais rápidos e mais baratos, e nãocomo ferramentas importantes na análise e desenvolvi-mento de coleções; na verdade, catálogos on-line nadamais são do que catálogos de cartões em formato eletrô-nico.Não produzimos uma nova ferramenta,simplesmen-te automatizamos uma que já existia" (Lancaster, 1994,p.23).

A formação dos profissionais da informação, como qual-quer outro campo, deve ter como matriz as mudanças operadas nasociedade, mas considerando também e, principalmente,a cultura, ocontexto e as necessidades dos indivíduos.Para atender a emergên-cia da sociedade da informação, que em parte, centra-se no uso edisponibilidadedas novas tecnologias, é mister uma adaptação dastécnicas de armazenamento e recuperação da informação, em espe-cial, a indexação. O livro,ou melhor,os impressos em geral, aliam-sea outros materiais e suportes de informações. Daías regras e códigosaté então utilizados serem (re)vistos, (re)lidos, (re)adaptados, Le.,não adianta substituirmos o serviço do homem pela máquina, éindispensável transformá-Ioe adequá-Io. Neste sentido, a formaçãodo bibliotecárioainda está presa ao passado - apesar dos discursos(pós)modernos e cibernéticos. Astécnicas, práticasdemarcadoras docampo da Biblioteconomia, não dão mais conta de responder asnecessidades crescentes da C&T.

Por outro lado, para atender à sociedade da desinformação,deverão de ser revistas e incorporadas, novas questões, comometodologias de trabalhos comunitários, animação cultural, práticasestimuladoras de leitura, recursos e técnicas de alfabetização dejovens e adultos, dentre outras.

Talvez estejamos oferecendo a alguns a bibliotecaVirtuale "internética"e para outros a bibliotecacom paredes. Infelizmente,esta deve permanecer por muitas décadas do terceiro milênio,enquanto existiremjogos de interesse político,educacionais, sociais

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e informacionais e, também, enquanto nós profissionais da informa-ção, não virarmos nossa atenção para os dois lados da mesmamoeda, ou seja, para a sociedade da informação e para a sociedadeda desinformação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ABSTRACT

This paper analises some aspects regarding to the Information Societyset against the layer of the society that is alongside the knowledge. In this

context we try to situate the librarian background.

Key words: Information society; Librarian education.

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