SOCIOEDUCAÇÃO E ONDA PUNITIVA: estudo sobre a ......comportamentalismo ou condutismo, que...

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SOCIOEDUCAÇÃO E ONDA PUNITIVA: estudo sobre a proposta socioeducativa do estado do Paraná Mariana Izabel Andrini 1 Viviani Yoshinaga Carlos 2 RESUMO: Este estudo buscou analisar a proposta socioeducativa dos centros de socioeducação do estado do Paraná, responsáveis pela medida socioeducativa de internação. As reflexões aqui apresentadas partem da atual conjuntura, em que se observa o avanço do neoliberalismo e o consequente avanço do braço penal do Estado. Através de uma pesquisa documental, o estudo demonstrou que diante da redução do Estado nas políticas sociais, se sobressai o poder repressivo estatal, indicando a tendência punitiva no sistema socioeducativo, em detrimento dos aspectos educativos, característica que se coaduna com a nova forma de gestão dos sobrantes. Palavras-chave: Socioeducação. Educação. Punição. Estado. Poder repressivo. ABSTRACT: This study aimed to analyze the socioeducative proposal of the socioeducational centers of the Paraná state, responsible for the socioeducational measure of internment. The reflections presented here depart from the current conjuncture, in which we observe the advancement of neoliberalism and the consequent advancement of the penal arm of the state. Through documentary research, the study showed that, in the reduction of the State in social policies, the state repressive power is highlighted, indicating the punitive tendency in the socio-educational system, to the detriment of educational aspects, characteristic that is consistent with the new form of management of the surplus. Keywords: Socioeducation. Education. Punishment. State. Repressive power. 1 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Paraná, campus Apucarana. Estudante de Iniciação Científica. E-mail: [email protected] 2 Professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Paraná, campus Apucarana. Doutora em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

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  • SOCIOEDUCAÇÃO E ONDA PUNITIVA: estudo sobre a proposta socioeducativa do estado

    do Paraná

    Mariana Izabel Andrini1

    Viviani Yoshinaga Carlos2

    RESUMO: Este estudo buscou analisar a proposta socioeducativa dos centros de socioeducação do estado do Paraná, responsáveis pela medida socioeducativa de internação. As reflexões aqui apresentadas partem da atual conjuntura, em que se observa o avanço do neoliberalismo e o consequente avanço do braço penal do Estado. Através de uma pesquisa documental, o estudo demonstrou que diante da redução do Estado nas políticas sociais, se sobressai o poder repressivo estatal, indicando a tendência punitiva no sistema socioeducativo, em detrimento dos aspectos educativos, característica que se coaduna com a nova forma de gestão dos sobrantes.

    Palavras-chave: Socioeducação. Educação. Punição. Estado. Poder repressivo.

    ABSTRACT: This study aimed to analyze the socioeducative proposal of the socioeducational centers of the Paraná state, responsible for the socioeducational measure of internment. The reflections presented here depart from the current conjuncture, in which we observe the advancement of neoliberalism and the consequent advancement of the penal arm of the state. Through documentary research, the study showed that, in the reduction of the State in social policies, the state repressive power is highlighted, indicating the punitive tendency in the socio-educational system, to the detriment of educational aspects, characteristic that is consistent with the new form of management of the surplus.

    Keywords: Socioeducation. Education. Punishment. State. Repressive power.

    1 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Paraná, campus Apucarana. Estudante de

    Iniciação Científica. E-mail: [email protected] 2 Professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Paraná, campus Apucarana. Doutora em

    Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

  • 1 INTRODUÇÃO

    A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1993), é comum o

    entendimento de que as medidas socioeducativas, destinadas aos adolescentes autores de

    ato infracional, se diferenciam das penas retributivas voltadas para os adultos, uma vez que

    nelas deve prevalecer o caráter educativo sobre o punitivo. Com tal premissa, a

    socioeducação foi concebida pelo pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa como uma

    modalidade de educação social, cuja essência de sua natureza é o preparo dos

    adolescentes para o convívio social (COSTA, 2006). Desta forma, entende-se que a

    socioeducação possui um caráter eminentemente pedagógico, condição reiterada no

    documento do SINASE (BRASIL, 2006)

    Todavia, os estudos de Silva (2011) apontam que o Estatuto, ao instituir garantias

    legais aos adolescentes autores de ato infracional, contribuiu para intensificar o controle

    socio-penal deste público, o que evidencia a prevalência do aspecto punitivo. Essa

    afirmativa pode ser melhor compreendida quando analisada no contexto neoliberal, no qual

    se evidencia, de um lado, a retração do Estado na reprodução da força de trabalho, com

    destaque para o desmonte das políticas sociais, e de outro, o aumento da repressão sobre a

    classe trabalhadora, sobretudo os sobrantes deste modo de produção. Para Wacquant

    (2007), trata-se de uma nova estratégia de gestão da miséria, adotada pelo Estado no

    neoliberalismo, que caracteriza a onda punitiva.

    Tendo em vista esses dois aspectos que norteiam o entendimento sobre as

    medidas socioeducativas, o educativo e o punitivo, e o atual cenário em que essas medidas

    são executadas, este estudo buscou analisar a proposta socioeducativa dos centros de

    socioeducação do estado do Paraná, responsáveis pela medida de internação, identificando

    se os aspectos educativos prevalecem, formalmente, sobre os punitivos.

    Através de uma pesquisa documental, utilizou-se como referência o Regimento

    Interno dos centros de socioeducação, documento que passou a ser obrigatório em todas as

    unidades socioeducativas de internação do país a partir da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro

    de 2012, conhecida como Lei do SINASE. Para Costa e Zanella (2015), o Regimento Interno

    é fundamental para a organização pedagógica no sistema socioeducativo, pois é ele que irá

    orientar o funcionamento de acordo com a legislação e normativas vigentes. Nesse sentido,

    Amarante et al (2013) explicam que o Regimento Interno é um instrumento orientador das

    diretrizes técnico-pedagógicas, administrativas e disciplinares, com vistas a alcançar o

    objetivo da ação sociopedagógica.

  • Desta forma, entende-se que o Regimento Interno apresenta não só os princípios

    burocráticos que regem a organização interna de uma unidade de socioeducação, como

    também especifica, formalmente, a proposta socioeducativa, objeto de análise deste estudo.

    Assim posto, as reflexões aqui apresentadas têm como base a compreensão dos aspectos

    educativos e punitivos que comportam as medidas socioeducativas no contexto neoliberal.

    2 EDUCAÇÃO E PUNIÇÃO NAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

    O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990,

    define, em seu Artigo 112, as medidas socioeducativas cabíveis aos adolescentes autores

    de ato infracional, conforme determinação judicial. Tais medidas tem sido objeto de

    discussão entre os profissionais que atuam e pesquisam na área de atenção aos

    adolescentes autores de ato infracional, pois são diversos os entendimentos sobre qual é a

    natureza do que se denomina de socioeducação.

    Para Costa (2006), a socioeducação se caracteriza como uma forma de educação

    social. Nesse sentido, Paiva (2016) esclarece que a educação social é uma disciplina da

    pedagogia social, compreendida como uma prática ou, como defende a autora, uma práxis

    da pedagogia social. É o campo de sistematização das práticas educativas que acontecem

    em diferentes espaços e que não adotam a didática escolar no processo de aprendizado.

    Por sua vez, a pedagogia social possui um tratamento científico, ou seja, é uma área de

    conhecimento da educação, constituindo-se como base teórica para as práticas de

    educação não formais.

    Caliman (2006) ressalta que a pedagogia social se desenvolveu de modo particular

    no século XIX nos países europeus, sob a influência do pensamento liberal, devido à

    necessidade de se educar crianças e adolescentes em condição de “marginalidade” e

    pobreza, as quais não frequentavam ou não podiam frequentar as instituições formais de

    educação (escolas). Para o autor, o objetivo da pedagogia social é recuperar e prevenir as

    deficiências de socialização, em especial de pessoas que não possuem suas necessidades

    fundamentais satisfeitas.

    No Brasil, estudos como os de Graciani (1997), Machado (2010) e Paiva (2016)

    apontam que a pedagogia social é ainda um campo em construção. Para Machado (2010),

    apesar da pedagogia social, enquanto área de produção científica e formação profissional,

  • ser recente3, as práticas educativas em espaços não escolares não representam uma

    inovação, sendo mapeadas pelo autor desde a década de 1930, período em que as políticas

    sociais começam a ser organizadas de forma sistemática no país, passando pela educação

    popular de Paulo Freire, na década de 1960, e pelas experiências dos educadores de rua,

    na década de 1980.

    Apesar da pedagogia social se constituir em um campo recente no Brasil, a ideia de

    uma educação voltada para o convívio social de crianças pobres e marginalizadas, tal como

    foi formulada a concepção de pedagogia social no século XIX na Europa, exerceu influência

    no debate sobre os ditos “menores” no início do século XX no país. À época, requeria-se um

    tipo de educação específica para os ditos não adaptados socialmente, que não se

    encaixavam no ensino propedêutico, nem no ensino de ofícios, o que resultou na criação de

    Escolas de Reforma (CARLOS, 2013).

    No mesmo sentido, Costa (2006) analisa que a educação brasileira está dividida em

    dois grandes campos: a educação geral (básica e superior) e a educação profissionalizante.

    Assim, a educação social surge, em seus escritos, como uma terceira vertente, defendida

    pelo autor como um sinônimo de socioeducação, que tem como objetivo preparar as os

    adolescentes autores de ato infracional para o convívio social pleno, assegurando os direitos

    humanos e a proteção integral. Nesta lógica, esse tipo de educação deve estar articulado

    diretamente com as políticas sociais. Sem elas, a ação pedagógica pode tornar-se uma

    mera idealização para aqueles que operam as medidas socioeducativas diante do conflito

    entre coerção e educação.

    Nesta perspectiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao instituir um sistema

    de garantia de direitos com vistas à proteção integral, instituiu também deveres ao Estado,

    família, sociedade e ao próprio adolescente. Para Silva (2011), ao garantir direitos e

    deveres, o Estatuto legitimou o direito penal juvenil, pois responsabiliza o adolescente pelo

    ato infracional cometido, atribuindo o devido processo legal, tendo como referência o Código

    Penal. Desta forma, o não cumprimento dos deveres do Estado, como por exemplo, a oferta

    de serviços públicos relacionados às políticas sociais, não exime o adolescente de ser

    responsabilizado pelo ato infracional cometido. Assim, o Estatuto não só reafirmou o

    controle social que já imperava nos Códigos de Menores de 1927 e 1979, como legitimou

    práticas de controle sócio penal.

    A esta reflexão acrescenta-se a atual conjuntura econômica que, em tempos de

    crise do capital, tem provocado o avanço de posicionamentos políticos que intensificam os

    3 Segundo Machado (2010), a Pedagogia Social começou a se estruturar no Brasil a partir das discussões do I e II Congressos Internacionais de Pedagogia Social, ocorridos na cidade de São Paulo, nos anos de 2006 e 2008, respectivamente.

  • processos de criminalização da pobreza e da punição como forma de controle por parte do

    Estado burguês. Contribui para essa discussão a análise de Wacquant (2007) sobre as

    práticas de endurecimento penal e de responsabilização individual, que atravessam as

    políticas sociais no contexto neoliberal, evidenciadas tanto em países avançados como em

    países de capitalismo atrasado, como no caso do Brasil.

    Em seus estudos, Wacquant (2007) avalia que na mesma medida em que o Estado

    se retira das frentes econômicas e sociais, o mesmo institui mecanismos de gerenciamento

    e controle das camadas pobres da sociedade, disseminando um discurso de insegurança

    social que reforça uma análise behaviorista4 do comportamento individual. Suas

    contribuições teóricas permitem compreender como a hegemonia do pensamento neoliberal

    e o avanço do Estado Mínimo intensificam o poder repressivo estatal. Por sua vez, essa

    ideologia atravessa o cotidiano da população, provocando a reprodução de discursos da

    mesma ordem.

    Na área da socioeducação, é comum o embrutecimento de discursos que tendem a

    exigir posturas mais firmes do Estado, como intensificação da segurança policial, a redução

    da maioridade penal e aumento do período de internação de adolescentes em instituições

    de socioeducação. De tal forma, esses discursos têm rebatimentos diretos no sistema

    socioeducativo, intensificando o conflito entre educação e coerção, exigindo mais punição

    aos adolescentes autores de ato infracional.

    Assim, em um cenário de insegurança social, forjado pela retração do Estado no

    campo das políticas sociais, há a tendência do enrijecimento do braço penal do Estado,

    sobretudo àqueles que não possuem utilidade para o modo de produção capitalista, ou seja,

    a população sobrante, que compõem o exército industrial de reserva. É a partir dessa

    compressão que a proposta socioeducativa no estado do Paraná foi analisada, identificando

    se os aspectos educativos prevalecem sobre os punitivos.

    2.1 A proposta socioeducativa do estado do Paraná

    O estado do Paraná possui, atualmente, 16 (dezesseis) centros de socioeducação,

    destinados especificamente à execução da medida socioeducativa de internação, que, no

    total, ofertam 648 vagas. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Nacional de

    4 Behaviorismo. Do termo inglês behaviour. Corrente da psicologia científica, também denominada comportamentalismo ou condutismo, que compreende o comportamento como objeto de estudo e a observação como método. O comportamento é avaliado em termos de ligações entre estímulos e respostas (DUARTE; MESQUITA, 1996).

  • Justiça, em 2018 havia 715 adolescentes internados nesses estabelecimentos, por ordem

    judicial (FLEISCHMANN, 2018).

    De acordo com o Artigo 123 do Estatuto, durante todo o período de internação é

    obrigatória a oferta de atividades pedagógicas (BRASIL, 1990). Assim, essas atividades

    deverão estar previstas na proposta socioeducativa, que se encontra sintetizada no

    Regimento Interno.

    Segundo o documento do SINASE (BRASIL, 2006), as unidades de socioeducação

    são responsáveis pela elaboração de seu Regimento Interno. A Lei nº 12.594, de 18 de

    janeiro de 2012, reitera tal condição, especificando que os municípios, os estados e o

    Distrito Federal, ao inscreverem um Programa de Atendimento Socioeducativo em seus

    respectivos Conselhos de Direitos da Criança e Adolescente, deverão, obrigatoriamente,

    apresentar o Regimento Interno que regule o funcionamento da entidade.

    No estado do Paraná essa orientação foi publicada inicialmente na Coletânea

    conhecida como Cadernos do IASP (PARANÁ, 2006). Constituída por cinco cadernos, a

    elaboração de um Regimento Interno que apresente “[...] os objetivos, o público alvo, os

    programas, as características, as estruturas formadoras e as responsabilidades de cada

    setor” (PARANÁ, 2006, p. 42) é enfatizada no Caderno Gestão de Centro de

    Socioeducação, no qual constam os parâmetros orientadores da organização e gestão das

    unidades socioeducativas.

    Nesse Regimento é preciso constar, no mínimo, o detalhamento das atribuições da

    equipe multidisciplinar; as condições do exercício da disciplina e da concessão de benefícios

    (regime educativo e disciplinar) e a previsão de concessão de benefícios e enaltecimento,

    complementar ao regime educativo e disciplinar (BRASIL, Art. 11, 2012). Ou seja, trata-se

    de um documento que sintetiza a proposta pedagógica da unidade.

    No Paraná, o Regimento Interno foi elaborado no ano de 2016. Trata-se de um

    documento comum para todos os centros de socioeducação e encontra-se disponibilizado

    para consulta pública no website da Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos

    Humanos (SEJU).

    O documento analisado possui 296 (duzentos e noventa e seis) artigos, distribuídos

    em 13 (treze) capítulos. Os assuntos regulados abrangem os objetivos dos centros de

    socioeducação; os direitos e deveres dos adolescentes privados de liberdade, bem como a

    acolhida e a integração desses adolescentes na unidade; os instrumentos pedagógicos; a

    integração com as políticas sociais; a disciplina; e os procedimentos de segurança e as

    formas de contenção.

  • Em relação à finalidade dos centros de socioeducação, consta no Regimento

    Interno o entendimento de que os adolescentes privados de liberdade serão atendidos na

    perspectiva da proteção integral, como definido no Estatuto. Para tanto, são garantidos aos

    mesmos todos os direitos fundamentais preconizados na Lei (Art. 4º), além daqueles

    específicos à aplicação das medidas socioeducativas, que se referem às garantias legais e

    processuais, como o direito de “ser informado de sua situação processual, sempre que

    solicitado” (BRASIL, Art. 124, 1990).

    Na perspectiva de proteção integral, o documento em análise também regula a

    oferta de serviços nos centros de socioeducação, relacionados às políticas sociais de saúde,

    de educação e de assistência social. Em relação à política de educação, no intuito de

    garantir o direto de “receber escolarização e profissionalização” (BRASIL, Art. 124, 1990), é

    prevista a oferta de oficinas pedagógicas, destinadas à “[...] aquisição e desenvolvimento de

    competências pessoais e sociais, habilidades, atitudes e valores básicos em termos de

    educação para a vida” (PARANÁ, Art. 248, 2016), ou seja, para o convívio social pleno,

    como defendeu Costa (2006) ao designar a socioeducação como uma modalidade da

    educação social. Não há no regimento, no entanto, a discriminação dessas oficinas, de

    forma a esclarecer como elas devem ser desenvolvidas e quais são os seus conteúdos

    abordados.

    O documento também indica, no Artigo 243, que os cursos profissionalizantes serão

    ofertados tendo em vista “o interesse do adolescente e a realidade local do mercado de

    trabalho” (PARANÁ, 2016). E, conforme se observa no Artigo 242, esses cursos objetivam a

    inclusão social do adolescente:

    Art. 242. As unidades devem executar os cursos de qualificação profissional ofertados pelo órgão gestor estadual ou encaminhar os adolescentes para aqueles oferecidos na comunidade, visando sua capacitação para o trabalho, inclusão social e o desenvolvimento socioeconômico do adolescente e sua família, fomentando a sustentabilidade financeira (PARANÁ, 2016).

    Todavia, considerando a atual conjuntura, em que se evidencia o aumento do

    desemprego, sobretudo entre os jovens com idade entre 15 a 24 anos5, combinado com a

    redução da intervenção do Estado na reprodução da força de trabalho, as condições

    concretas para a inclusão social desses adolescentes e para o aproveitamento dessa força

    5 De 1992 a 2001, a taxa de desocupação entre jovens de 15 a 24 anos aumentou significativamente:

    em 1992 havia 2.978.000 desempregados nesta faixa etária, saltando para 4.902.000 em 2001, com variação de 64% no período (QUADROS, 2003). De acordo com os dados do IBGE, a taxa de desocupação no último trimestre de 2018 foi de 40% nesta faixa etária, o que corresponde a aproximadamente 13.403.375 jovens.

  • de trabalho são bem reduzidas. Desta forma, o Regimento condiciona o acesso aos

    programas destinados à formação de aprendizes ao bom comportamento:

    Art. 245. O adolescente que apresentar bom comportamento e adesão à medida socioeducativa deverá ser inserido, conforme triagem realizada pela Equipe Técnica, no Programa de Adolescente Aprendiz, enquanto parte integrante do processo de reinserção social priorizando-se aqueles mais próximos de obter a liberdade (PARANÁ, 2016. Grifo nosso).

    Na condição de sobrantes do sistema econômico e social, a esses adolescentes se

    sobressaem as formas de controle, com ênfase nos comportamentos individuais, além de

    procedimentos de segurança para a contenção deste público. Dos 296 artigos constantes no

    documento analisado, 40,5% (120 artigos) detalham especificamente os procedimentos para

    o conhecimento do comportamento dos adolescentes e as formas de contenção.

    A ênfase no comportamento individual dos adolescentes, aliado aos seus deveres e

    à disciplina, é explicitada nos instrumentos pedagógicos, dentre eles o Plano Individual de

    Atendimento (PIA). Para a individualização do atendimento, o Regimento Interno determina

    a elaboração do diagnóstico polidimensional, que de acordo com Zanella (2013), é a

    avaliação feita pela equipe multidisciplinar a partir do primeiro levantamento de informações

    sobre o adolescente, antes da elaboração do PIA. Essa equipe geralmente é composta por

    pedagogo, assistente social e psicólogo, que tem a incumbência de reunir as informações

    referentes à família, à escola, à saúde, ao contexto social, dentre outros, objetivando

    “compreender as origens de sua personalidade, as causas do comportamento infrator e as

    possibilidades e potencialidades socioeducativas” (PAES, 2013, p. 110).

    O processo de individualização do atendimento pressupõe que os objetivos e as

    metas a serem alcançadas durante a medida socioeducativa serão projetadas pelo próprio

    adolescente, com a participação da família, observadas as necessidades, desejos e

    expectativas dos adolescentes:

    Art. 46. No Plano Individual de Atendimento - PIA, instrumento de previsão,

    registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente, deverá constar: I - resultados da avaliação multidisciplinar; II - objetivos declarados pelo adolescente; III - previsão das atividades de integração social e capacitação profissional; IV - atividades de integração e apoio à família; V - compromissos a serem assumidos pela família para o efetivo cumprimento do Plano Individual de Atendimento - PIA; VI - medidas específicas de atenção a sua saúde; VII – metodologia de

    aplicação das ações propostas (PARANÁ, 2016).

  • Ressalta-se que, se o Estado não cumprir a sua parte, o que significa a oferta dos

    bens e serviços através de políticas sociais, o plano ainda mantém sua força jurídica formal,

    devendo ser cumprido.

    No atual estágio do capitalismo, a adoção da agenda neoliberal no Brasil demonstra

    a tendência do aumento de ações repressivas do Estado em detrimento de investimentos

    em políticas sociais. Dito de outra forma, a retração do Estado frente a reprodução da força

    de trabalho, em um contexto de aumento expressivo do desemprego, de tendência mundial,

    reforça o poder coercitivo do Estado, principalmente sobre a população sobrante.

    No contexto neoliberal, em que se intensificam as estratégias de repressão sobre

    os sobrantes, a segurança policial atua como forma de contenção de uma população pobre,

    que não é aproveitada como força de trabalho na produção capitalista.

    Nessa lógica, o Regimento Interno dos centros de socioeducação do Paraná

    explicita a perspectiva repressiva sobre os adolescentes autores de ato infracional, sem

    romper, explicitamente, com a premissa de que os aspectos educativos devem prevalecer

    sobre os punitivos. De acordo com o Regimento Interno dos centros de socioeducação do

    estado do Paraná,

    Art. 99. A segurança deve contribuir para concretização dos objetivos e fundamentos pedagógicos da medida socioeducativa, para o respeito à dignidade humana, para a convivência institucional ordenada e para infundir no adolescente o respeito por si mesmo, pelos outros e pelos direitos fundamentais (PARANÁ, 2016).

    A segurança é apresentada na proposta socioeducativa como um elemento que

    deve contribuir para despertar no adolescente o respeito a si mesmo e ao próximo,

    disfarçando a sua natureza repressiva. É como se a segurança tivesse um fim

    essencialmente pedagógico, quando, na realidade, ela se refere às formas de contenção.

    Agrava-se o fato de que, no Paraná, a função de agente de segurança é exercida

    pelo educador social. Costa (2014), ao analisar a função do educador social nos centros de

    socioeducação paranaenses, demonstra em seus estudos que essa tem sido uma estratégia

    utilizada para dissimular a natureza punitiva das medidas socioeducativas. Desta forma, os

    procedimentos de segurança adquirem o mesmo grau de importância das atividades

    educativas, indicando um movimento tendencialmente voltado a prevalência dos aspectos

    punitivos, o que caracteriza uma forma de gestão desse segmento da população.

    3 CONCLUSÃO

  • As medidas socioeducativas foram introduzidas no Estatuto da Criança e do

    Adolescente com a finalidade de responsabilizar os adolescentes autores de ato infracional,

    com a perspectiva de que os aspectos pedagógicos deveriam se sobrepor sobre os

    punitivos. Todavia, foi justamente em 1990, ano em que o Estatuto foi promulgado, que o

    neoliberalismo passou a orientar a política econômica no país, reduzindo a ação do Estado

    na viabilização de políticas sociais de acesso universal. Soma-se, na atual conjuntura, o

    aumento expressivo do desemprego, que amplia o exército industrial de reserva, ou seja, a

    população sobrante, fato que deveria ter como consequência mais investimentos do Estado

    em políticas sociais. É nesse cenário que se sobressaem as ações de repressão como

    estratégia de gestão pública dos sobrantes, dentre os quais se enquadram os adolescentes

    autores de ato infracional.

    Atualmente, a realidade não aponta possibilidades concretas para que

    adolescentes pobres e autores de ato infracional sejam educados para serem inseridos

    formalmente no mercado de trabalho. Assim, o controle e a contenção desses adolescentes

    tornam-se parte da estratégia adotada pelo Estado. Tomando como exemplo o estado do

    Paraná, o estudo do Regimento Interno dos centros de socioeducação revela a

    intensificação da ênfase do comportamento individual aliado à questão disciplinar, indicando

    a tendência de normatizar os procedimentos de segurança de forma articulada com a ação

    educativa.

    O detalhamento dos procedimentos de contenção a um público específico, contidos

    no Regimento Interno dos centros de socioeducação do Paraná, demonstra a intensificação

    do braço penal do Estado, contribuindo para que os aspectos educativos e os punitivos

    sejam colocados no mesmo patamar. Nesse sentido, a proposta socioeducativa tende a se

    aproximar mais de uma perspectiva repressiva, em detrimento de ações pedagógicas. Isso

    indica que, no plano formal, há um movimento tendencialmente voltado para que os

    aspectos punitivos tenham prevalência sobre os educativos. Assim, é preciso aprofundar o

    debate sobre essa nova forma de gestão dos sobrantes do modo de produção capitalista, no

    intuito de fomentar estratégias de resistência no contexto neoliberal.

    REFERÊNCIAS

    AMARANTE, Beatriz de et al. Normas Complementares para Organização e Funcionamento do Sistema de Atendimento Socioeducativo Catarinense Regime Restritivo e Privativo de Liberdade. Florianópolis/SC: Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania/Departamento de Administração Socioeducativa, 2013.

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