Sofrimento Mental Em Vendedores Na Grande São Paulo

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    Relato de experincia

    Sofrimento mental em vendedores na Grande So Paulo:

    a destituio do ser pela organizao do trabalho

    Suffering of sales associates in So Paulo metropolitan area: thedestitution of being by work organization

    Eliana A. S. Pintor

    Mestre em Psicologia da Sade. Psic-

    loga da Secretaria Municipal de Sade

    e do Centro de Referncia em Sade do

    Trabalhador de Diadema, SP.

    Contato:

    Eliana A. S. Pintor

    Cerest Diadema

    Avenida Antonio Piranga, 614 Centro

    Diadema-SP

    CEP: 09911-000

    E-mail:

    [email protected]

    Recebido: 13/12/2009

    Revisado: 13/08/2010

    Aprovado: 18/08/2010

    Resumo

    Este trabalho relata a experincia de um servio de psicologia no atendimento

    de vendedores com transtornos mentais, discutindo riscos e malefcios causa-dos pela organizao do trabalho no ramo de servios. O sofrimento mental enfocado a partir da falta de reconhecimento, do conflito famlia versustrabalhoe tambm pelo conflito tico instalado nos vendedores por uma das empresasfocalizadas na pesquisa. So apresentados relatos de oito trabalhadores colhi-dos por meio do mtodo de entrevistas semiestruturadas e material clnico desesses de psicoterapia. Todos foram atendidos entre os anos de 2006 e 2009 noCentro de Referncia em Sade do Trabalhador de Diadema, cidade da GrandeSo Paulo. Os dados revelam como a identidade dos trabalhadores ameaadapor inmeras estratgias provocando um vazio existencial que leva ao adoeci-mento mental. Nesta estrutura, a correlao do ldico com o trabalho na vidaadulta se perde, interrompendo a continuidade do desenvolvimento do ser.

    Palavras-chave: sade mental e trabalho; riscos ocupacionais; ambiente detrabalho; psicanlise; vendedor.

    Abstract

    This article reports the experience of a psychology service treating sales associateswith mental disorders, and aims at discussing the deleterious effects caused bywork organization risk factors within the service sector. Mental suffering is studied

    focusing on workers complain of lack of recognition, their conflict between familyand work, and on the ethical conflict presented by some employees of one of thecompanies.Data of eight workers were collected by semi-structured interviews aswell as through the clinical material during psychotherapy sessions. All workers

    received care at the Workers Health Reference Center, in Diadema, in So Paulometropolitan area, from 2006 to 2009. Data revealed how workers identity wasthreatened by numerous strategies causing an existential vacuum that led to

    mental ilness. In this structure, the association between ludic and work in adult

    life was lost, causing a discontinuity of the development process of the being.Keywords:mental health and work; occupational risks; work environment;psychoanalysis; sales associate.

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    Introduo

    Estamos habituados a entrar nas lojas e encontrarpessoas prontas para nos atender, sempre solcitas, comum sorriso no rosto, o mximo de gentileza possvel eo costumeiro: Posso ajudar?. O ambiente de uma loja

    tambm nos parece tranquilo, amistoso, ficando agita-do apenas em datas especiais, como Natal ou Dia dasMes. Uma realidade de trabalho que em princpio nosugere a existncia de sofrimento mental. Porm, estecenrio tem sido contrastado com um nmero crescen-te de trabalhadores oriundos do comrcio que chegamaos Centros de Referncia em Sade do Trabalhador(Cerest) trazendo queixas compatveis com quadros dedepresso, ansiedade, sndrome do pnico e sndromedo esgotamento profissional.

    O presente relato tem como objetivo focar a subjetivi-dade dos vendedores em trs aspectos da organizao dotrabalho identificados como cruciais no seu adoecimento:

    conflito tico, conflito trabalho versusfamlia e reconhe-cimento. O sofrimento mental ser apresentado por meiode vinhetas de oito casos atendidos no Cerest Diadema/SPno perodo de 2006 a 2009. Deste total de trabalhadores,quatro so funcionrios de uma mesma empresa (rede delojas de varejo eletrodomsticos, mveis, eletroeletrni-cos de grande porte, com filiais em todo o Brasil), doisde uma empresa de venda de mveis com lojas no Estadode So Paulo e duas do ramo de alimentos (rede de res-taurantes de shoppinge rede de restaurantes de estrada).Os relatos de casos ajudam a descrever estes ambientesde trabalho e permitem uma aproximao vivncia coti-diana que auxilia na anlise da relao entre adoecimentomental e trabalho nesta categoria profissional.

    Ser e fazer: necessidades da infncia e da vida adulta

    Aps ser, fazer e deixar-se fazer.Mas ser, antes de tudo.

    Winnicott, 1971, p. 120

    Faremos uma aproximao terica da situao vi-venciada pelos vendedores partindo de algumas neces-sidades que se fazem presentes desde os primrdios denossa existncia e nos acompanham at o entardecerda vida. Abordaremos primeiramente a necessidadede reconhecimento do ser humano. Zimerman (2010)cita um filsofo irlands George Berkeley o qual fezuma articulao entre o se reconhecer e o ser reco-nhecido. Segundo o autor, sua afirmao de 1710 quedizia Ser, ser percebido o equivalente de Ser, ser reconhecido. O ser humano, desde os primeirosmomentos de vida, necessita do reconhecimento do ou-tro. Winnicott (1971) afirma que a construo de umasegurana bsica ou do prazer pela vida se d atravsdo olhar amoroso da me para a criana, a qual espelhapara o beb o encantamento. O beb olha e visto e en-to sente que existe, se sente valorizado. Este espelha-mento acontece no decorrer da vida e, de acordo comZimerman (2010, p. 212):

    [...] no possvel conceber qualquer relao huma-na em que no esteja presente a necessidade de al-gum tipo de um mtuo reconhecimento.

    Traando um paralelo com o cenrio laboral, fcilperceber que esta necessidade tambm se far presenteno local de trabalho para haver uma relao saudvel.

    Em segundo lugar, nos aproximaremos da noo dobrincar, no aspecto ldico da constituio do ser, pois,segundo Safra (2006), no jogo de uma criana, encon-tra-se a matriz do que sero as suas necessidades funda-mentais nas fases da vida adulta e no envelhecimento.Para Winnicott (1971, p. 80):

    no brincar, e somente no brincar, que o individuocriana ou adulto, pode ser criativo e utilizar suapersonalidade integral: e somente sendo criativoque o indivduo descobre o eu (self).

    Desta forma, o trabalho se configura como uma dasoportunidades de brincar na vida adulta. Enfocando a ati-vidade de vender, podemos dizer que o modo de vender,

    as estratgias, o gestual, a voz, enfim, tudo o que compeo ser est em jogo no momento da ao. O vendedor se dao consumidor para realizar a sua tarefa. Safra (2006), aofalar do brincar infantil, esclarece que, ao brincar, a crian-a institui situaes organizadas em termos de espao ede tempo. A criana, ao brincar, ressignifica o ambiente,transforma a realidade por meio do seu gesto:

    Isto significa que todo brincar demanda um tipo deruptura com o que dado. O brincar funda mundos,funda a possibilidade de a criana estar no mundo einstituir modos de ser.(SAFRA, 2006, p. 13)

    Fazendo a transposio para o mundo do trabalho,evidencia-se a necessidade de haver o espao para a cria-

    tividade, uma margem de liberdade onde possa transitar oimaginrio, o ldico, o ser total do indivduo e uma formade organiz-lo que contemple a essncia do humano.

    Freud escreveu, em 1930, que:

    [...] a fora motivadora de todas as atividades huma-nas um esforo desenvolvido no sentido de duasmetas confluentes, a de utilidade e a de obteno deprazer [...]. (FREUD, 1930, p. 154)

    O trabalho nos traz estas duas possibilidades, oupelo menos deveria trazer. Quando isto acontece, o tra-balho se torna um correlato do brincar. O quintal danossa infncia ganha nova dimenso, a qual engloba otrabalho, as artes e outras manifestaes culturais.

    A tarefa, ao ser constituda, nos constitui e, ento,somos aquilo que fazemos. Antunes (1999) afirma que osentido assumido pelo trabalho que o indivduo realizase torna um aspecto muito relevante para a sade men-tal, porque tem profunda ligao com a autoimagem ea autoestima, ou seja, com a identidade. Deste modofica claro que o trabalho assume um papel central navida do indivduo, encerrando alguns aspectos vitaispara o existir humano: sobrevivncia, criatividade, sen-timento de pertena e reconhecimento. Estes elementostambm constroem o autoconceito, o que confere umaidentidade ao sujeito.

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    No comrcio, geralmente se trabalha para ganhar ovalor: piso da categoria profissional acrescido de por-centagem de comisso, nas vendas. O piso o certo e acomisso, o incerto. Este um ponto de tenso da ati-vidade dos vendedores. A sobrevivncia em uma socie-dade capitalista e, por conseguinte, consumista implicaque s aquele que consome. Para se conseguir o pata-

    mar mnimo para sobreviver no possvel contentar-secom o piso da categoria. H que se fazer um esforo paraampliar este ganho. Isto j explicitado no ato da con-tratao. Algumas empresas propem somente a comis-so, este o contrato. Porm, adicione-se a essa tenso,j esperada, metas ou cotas de vendas. Segundo o relatodos trabalhadores, as metas no so fceis de serem al-canadas e isto incrementa a incerteza, pois, se j in-certo o que se ganha, o no atendimento expectativada empresa torna incerta a manuteno do emprego. Umvendedor que no atinge a meta est na lista de corte.O temor de demisso abre caminho para um tipo de an-siedade paranide: Quem ser a prxima vtima?. Osgerentes ou encarregados lembram a todo o momento que

    as metas precisam ser atingidas. Os vendedores contamque os gerentes tambm so pressionados, o que constrio efeito domin, ou seja, forma uma cadeia a organi-zao do trabalho contra a qual se sentem impotentespara lutar. Estudo realizado com 39 vendedores de umshopping center em Florianpolis/SC identificou que aansiedade est muito presente na rotina de trabalho devendedores. Mais da metade da amostra demonstrou quemuito frequentemente ou sempre ficava ansiosa quan-do no cumpria as metas estipuladas pela organizao(MACHADO, 2009).

    Se o vendedor no produz o esperado, gera um de-sapontamento, porque ele aquilo que produz. Algunsdos vendedores atendidos no Cerest Diadema relatamque no importa se faltou muito pouco para atingir ameta ou se faltou bastante, todos so tratados da mes-ma maneira, ou seja, aqueles que no conseguem soos incapazes. Isto funciona como uma ameaa perma-nente identidade dos trabalhadores, o que gera maisuma incerteza e, agora, no campo da constituio do ser:Quem eu sou de verdade?

    A presso para atingir metas tambm leva a um incre-mento da competio e por este motivo muitos colegaspassam a se tratar como rivais. Nesse caso, o suporte afeti-vo que poderia existir no ambiente de trabalho dentro deuma equipe fica difcil ou muito difcil de acontecer. Ape-sar de existirem amizades, a forma de organizar o trabalho

    colabora para a rivalidade, o distanciamento, ataques m-tuos devido sobrecarga, tenso. Observamos nos rela-tos dos vendedores afastados que no recebem ligao deamigos do trabalho, apesar de serem funcionrios antigosda empresa. Falam de um amigo ou outro. Trata-se de umaforma de desamparo e solido. Vasques-Menezes, Codo eMedeiros (2000) estudaram a relao entre trabalho e ado-ecimento mental em professores e demonstraram que afalta de suporte afetivo tem forte influncia na exaustoemocional sentida pelos profissionais e provoca, de ma-neira inconsciente, um endurecimento emocional (des-personalizao), tornando-os indiferentes aos problemasdo dia a dia e s demandas. Isto significa que esse fator

    pode contribuir para o desenvolvimento da sndrome doesgotamento profissional.

    O cumprimento das cotas de vendas acarreta aindauma dedicao total ao trabalho. frequente ouvir destestrabalhadores que no faziam hora de almoo, no desfru-tavam de sua folga, viam-se obrigados a fazer hora extrapara atingirem a meta estabelecida. Toda esta dedicaoao trabalho cria outro problema: o afastamento da fam-lia. O relato destes trabalhadores carregado de culpapela pouca ateno dispensada aos filhos e aos cnjugesou culpa pela impacincia, pelo nervosismo com os fa-miliares, pois j haviam dado o melhor de si mesmos aosclientes e no sobrava nada para a famlia. O fato de tra-balharem aos domingos e feriados impe um afastamentodos momentos festivos em famlia (festas de aniversrio,churrasco, casamentos). Este outro aspecto engendradopela organizao do trabalho que colabora grandementepara o surgimento de sofrimento mental e que se consti-tui num ataque ao autoconceito, autoestima, modifican-do aquela identidade j mencionada. Vasques-Menezes eGazzotti (2000) constataram o mesmo problema em pro-fessores e ficou provado que a existncia do conflito entretrabalho e famlia aumenta significativamente a exaustoemocional e a despersonalizao, os quais so caracters-ticos da sndrome do esgotamento profissional.

    Segundo alguns vendedores que nos procuraram noCerest Diadema, h outro fator que vem elevando a ten-so dos vendedores: a venda de garantia do produto e deseguro de vida associados venda do produto. Segundouma das vendedoras entrevistadas da rede de lojas de va-rejo, essa prtica foi implantada a partir do ano de 2004.Alm da meta de vendas geral, estabelecida uma metadesses novos produtos. A grande repercusso emocionaladvinda desta modalidade de venda se d no s pelo

    acrscimo de outra meta, mas principalmente pela formade alcan-la. Os vendedores dessa rede de lojas de vare-jo declararam que, como vendem para classes de menorpoder aquisitivo, possuem muitos clientes analfabetosou com baixa escolaridade. Diante disso, a ordem dadapela chefia aos vendedores foi que a garantia e o segurodeviam ser embutidos nas vendas sem que os consumi-dores soubessem ou consentissem. Nesse momento, aorganizao do trabalho instalou o conflito tico. Os ven-dedores contam que, quando esta venda foi implantada,eles explicavam e tentavam convencer o cliente, porm,posteriormente, veio a ordem de embutir. A identidadedo trabalhador aviltada mais uma vez, porque agora elesente que faz um trabalho sujo, desonesto e, assim, ele seconfunde mais uma vez com o produto do seu trabalho.

    O ambiente descrito evidencia uma influncia ne-fasta sobre o estado psquico. Melanie Klein (1932) ad-vertia que uma parte das situaes ansiognicas perma-nece inacessvel anlise e, por isso, pessoas normaisou j analisadas frente a uma situao orgnica ou ex-terna muito desfavorvel poderiam sofrer recadas (SI-MON, 1986). Podemos tomar essa afirmao como umalerta sobre a possibilidade de ocorrncia de transtor-nos mentais em toda e qualquer pessoa apesar da boaestrutura emocional. Os riscos pela organizao do tra-balho podem oferecer esse ambiente muito desfavor-vel, minando o equilbrio emocional do indivduo.

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    Winnicott (1971) se refere a indivduos dominadosno lar, prisioneiros em campos de concentrao ou vti-mas de perseguio poltica cruel, que, em sua maioria,abandonaram a esperana, deixaram de sofrer e perde-ram a caracterstica que os tornava humanos, no perce-biam o mundo de maneira criativa. Houve a destruioda criatividade pela ao de fatores ambientais, numa

    data tardia no crescimento pessoal. Os autores demons-tram que o sofrimento mental originado na conflun-cia de uma predisposio atrelada personalidade comum fator ambiental. No contexto aqui tratado, o fatorambiental representando pela organizao do traba-lho, na qual os estudos em sade mental no trabalhotm encontrado a fonte preponderante dos agravos ps-quicos relacionados ao trabalho (SELIGMANN-SILVA,2003). Esta organizao compreende a estrutura hierr-quica da empresa, o controle das tarefas, a diviso dasatividades, a estrutura temporal do trabalho, as relaesinterpessoais e intergrupais, que compem categoriasde anlise importantes para a compreenso das relaesentre trabalho e adoecimento mental (SELIGMANN--SILVA, 2003). Veremos a seguir, por meio dos relatosdos vendedores, como se d a organizao do trabalhono comrcio. Os vendedores descrevem um ambientecom vrios fatores que se predispem ao aparecimen-to de transtornos mentais, transformando o trabalhadorem algo destitudo de valor, significado, sentimentos,enfim, destitudo de uma subjetividade.

    Mtodo e material clnico

    O mtodo utilizado foi o de entrevistas semiestru-turadas, nas quais colhemos dados de identificao,

    queixa, os motivos que levaram ao adoecimento mental,ambiente profissional, histrico profissional anterior,histria de vida, histrico de sade (fsica e emocional),

    relaes afetivas, vida social. Os trabalhadores buscaramespontaneamente o Cerest Diadema almejando fazer arelao de sua doena com o trabalho. As entrevistasforam realizadas pela psicloga. Quatro deles, aps asentrevistas, fizeram acompanhamento psicolgico in-dividual no prprio Cerest e, em alguns dos relatos aseguir, foram includos fragmentos de material clnicodas sesses de psicoterapia. Desses que fizeram psico-terapia, trs deles passaram para psicoterapia grupal euma no concluiu a psicoterapia individual. O mate-rial clnico citado a seguir refere-se apenas ao perodode atendimento individual. Seis deles foram recebidosno Grupo de Orientao (grupo de recepo de novosusurios realizado pela assistente social ou enfermeira,alm de mdico do trabalho e auxiliar administrativo) e,depois, encaminhados para consulta psicolgica. Duastrabalhadoras chegaram trazidas por trabalhadoras quej estavam em atendimento no servio e foram encami-nhadas diretamente para consulta psicolgica. Trata-sede sete mulheres e um homem. Selecionamos trechos

    de oito entrevistas que trazem referncia aos aspectos daorganizao do trabalho; seis delas foram realizadas comvendedores de grande rede de lojas (quatro de uma mes-ma empresa rede de lojas de varejo com lojas em todoo Brasil, j citada anteriormente, e dois de uma empresade venda de mveis com vrias lojas no Estado de SoPaulo); alm de uma balconista de rede restaurante deestrada principais estradas do Estado de So Paulo; euma garonete de rede de restaurante de shopping cen-terspresente em vrias cidades brasileiras. Todos faziamacompanhamento psiquitrico (em convnio, rede mu-nicipal ou particular) quando chegaram ao Cerest.Os re-latos que seguem foram autorizados pelos participantes

    por meio de termo de consentimento livre e esclarecido.Os trabalhadores receberam nomes fictcios para preser-vao da identidade, conforme o Quadro 1:

    Nome (fictcio) idade Profisso Local de trabalho Tempo de empresa Perodo de atendimento no Cerest

    Aline 29 balconista Restaurante 05 anos Junho/06 a Maro/08

    Valria 42 vendedora Loja de movis 05 anos Outubro/06 a Dezembro/06

    Lucas 40 vendedor Loja de mveis 09 anos Maro/07 a Maro/08

    Marta 30 atendente Restaurante 03 anos Maro/08 a Maio/08

    Sueli 42 vendedora Loja de varejo 22 anos Dezembro/08 a Maio/09

    Vitria 46 vendedora Loja de varejo 20 anos Maro/09 a Maio/09

    Marina 34 vendedora Loja de varejo 06 anos Abril/09 a Maio/09

    Raquel 40 vendedora Loja de varejo 05 anos Junho/09 a Setembro/09

    Quadro 1 Caractersticas dos pacientes atendidos pelo Cerest-Diadema referidas neste estudo

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    O ambiente de trabalho e o sofrimento mental naspalavras dos vendedores

    Aline: Apesar de ser balconista no registro da car-teira profissional, sua atividade consistia em servir obalco, lavar utenslios, preparar o pedido do clientee oferecer outros produtos. O local era muito frequen-

    tado pela manh, devido ao caf da manh, no horriodo almoo, final da tarde e nos feriados, pois se tra-tava de rede de restaurante de Estrada. Havia cobran-a por meta de venda (20 mil reais por ms/por cadavendedor) e ameaa de desemprego caso no a atingis-se. Aline descreveu um ambiente muito competitivo erelatou que, quando se virava para preparar o caf docliente, vinha outro vendedor oferecer algum salgado elhe tirava a oportunidade de vender. Os encarregadosganhavam comisses sobre a meta dos vendedores efaziam presso para vender, alm de exigir rapidez noatendimento. Havia palestras para a venda de produtosadicionais (como vender, como servir, como incentivaro cliente a experimentar um produto).

    A atividade exigia muita ateno e memria, pois ha-via cdigo para cada tipo de produto, os quais eram di-gitados a cada venda; trabalhava em p e no fazia maisque quinze minutos de horrio de almoo. Os sintomasemocionais comearam aps quatro anos de trabalho: ir-ritao, insnia, medos (de carros, de andar na rua, depessoas), isolamento, ouvia vozes (algum lhe chaman-do ou uma zoada na cabea), dor no peito e nos ossos.Pouco antes de se afastar, passou a atender os clientessem cortesia, chorava com facilidade, no conseguiaatingir as metas. Fazia horas extras vrias vezes. SegundoAline, no havia participao dos funcionrios em nada:Tudo vem da matriz, nem o gerente d opinio.Relatou

    que, quando retornava ao lar, observava que continuavanum ritmo acelerado, fazendo tudo correndo e, muitasvezes, no dormia antes das duas da madrugada.

    Frases de Aline: Tinha vontade de ir pra casa corren-do pela Imigrantes [Rodovia]. Comecei a ficar com medode ir sozinha embora, parecia medo de me enfiar no meiodos carros; No consigo ir at l, nem levo o papel dapercia, fiquei com trauma do lugar[neste momento co-meou ter sudorese nas mos]; Ser que vou voltar a sercomo eu era? Nunca fui doente [...]. Lamentava o extre-mo nervosismo e a intolerncia com os filhos.

    Valria: vendedora de mveis, os seus sintomas co-mearam aps dois anos de trabalho: aflio, zonzeira,no podia ver muita gente. Atribuiu tais sintomas ao tra-balho, pois disse sofrer muita, muita presso. Alm devender, ela limpava o setor e acompanhava a venda ata entrega ao cliente. Tudo o que acontecesse de erradonesse percurso era da responsabilidade do vendedor. Re-clamou de muitos cdigos, tinha medo de falhar trocaralgum cdigo. Havia presso do gerente, do supervisor,da equipe. Geralmente atingia as metas, mas, para isso,trabalhava de domingo a domingo, mesmo no sendoobrigada, e no tinha hora para sair. A loja funcionavaem sistema de rodzio; s vezes esperava uma hora parachegar a sua vez de abordar o cliente. Aps seis meses

    de trabalho, mudou-se o supervisor e a presso por ven-das foi intensificada. Relatou que, aps um ano e meiode trabalho, comearam alguns sintomas menos graves:irritao, cansao, esquecimento, perturbao mental einsnia e, mais tarde, adoeceu propriamente.

    Na poca que veio ao Cerest, apresentava medo de

    andar de nibus, metr; no andava sozinha e, noite,tinha sensao de que ia morrer, sonhava muito com otrabalho: Venda, comisso... 24 horas no ar.

    Passou a se irritar com som (msicas), porque, naloja, o aparelho de som era ligado o dia todo; no queriamais conversar com as pessoas, mesmo em casa.

    Lucas: este trabalhador tinha grande identidade coma profisso, relatando que comeou a trabalhar aos 13anos na feira livre, mas sentia que adquiriu um saberque no era valorizado. J trabalhava com venda de m-veis h muitos anos. Quando Lucas foi transferido para aloja de Diadema, essa unidade vendia 150 mil reais/ms.Isso o assustou porque ele j tinha vendido sozinho este

    valor. Em poucos meses, ele elevou significativamenteo patamar de venda da loja. A empresa o chamou parainaugurar outras lojas. Porm, depois de algum tempo, aempresa mudou a forma de pagar comisso, o que veioa diminuir o salrio dos vendedores. Implantaram umamdia grupal que passou a diminuir seus ganhos no salrio individual salrio amarrado. Sofreu uma in-verso, pois passou a ganhar menos com os anos de casa.Se no passado chegou a ganhar mais de quatro mil reais,agora ganhava por volta de dois mil. Comentou que aempresa chegou a mudar a poltica de salrio mais deuma vez no ms. Essas mudanas constantes fizeramcom que ele no conseguisse vender mais como antes:Fiquei na lista de corte.Seu trabalho consistia em ar-

    rumar o setor, empurrar mveis e fazer esforos fsicos.Desenvolveu hrnia de disco, mas os peritos da Previ-dncia Social no caracterizaram como doena profissio-nal, porque ele era registrado como vendedor os peritosdesconhecem a rotina dos vendedores e no estabelecemo nexo causal. Sentia-se injustiado, apresentando gran-de desesperana, pensamentos de tirar a prpria vida,sensao de fracasso e extrema irritabilidade.

    Marta: embora fosse contratada como atendente norestaurante, alm de pegar os pedidos e entregar os pra-tos, ela tinha que fazer o cliente consumir pratos maiscaros; tambm revezava com a atividade de preparo dospratos na cozinha. Relatou ambiente de muita cobrana

    e sentia-se mais repreendida que os outros funcionrios(provvel assdio moral). Conversou com o chefe e me-lhorou este problema. O ritmo era acelerado, no tinhatempo para comer, disse: Chegava em casa eltrica.

    Seus sintomas comearam aps oito meses de traba-lho: irritao, choro frequente, agitao, sono alterado(no conseguia dormir ou pegava no sono s 4 ou 5 ho-ras da manh). Passou a ter alucinaes auditivas, ouviachamarem por ela. As alucinaes tinham cessado apso afastamento da empresa. Porm, ocorreu que, depoisde alguns meses, teve alta do benefcio concedido pelaPrevidncia Social e, retornando a exercer suas funes

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    no trabalho, as alucinaes voltaram. Queixou-se, almda presso da chefia, da presso dos clientes: O clientesempre tem razo. Quando reclamava, eu s chorava.

    A empresa tinha uma meta geral dividida pelo grupoe havia premiaes quando atingiam a meta (um bnus).O melhor do ms em atendimento ao pblico ganhava

    um presente, tendo-o conseguido uma vez. Se conse-guisse quatro vezes ganharia um prmio em dinheiro.

    O sofrimento de Marta era intenso. Parecia sempredesorientada e aflita. Tentava trabalhar e no conseguia.

    Sueli: relatou que os primeiros sintomas foram des-motivao, irritabilidade com clientes e colegas. Porvolta de 2006 aps 18 anos de trabalho na empresa passou a ficar sem vontade para nada, pedia forasquando levantava para ir trabalhar. Conseguiu vintedias de frias em janeiro de 2007 e j no conseguiu sairdo quarto, nem ver TV, porque aparecia a propagandada loja na qual trabalhava. s vsperas de retornar aotrabalho, relatou: Peguei o meu uniforme e piquei todo

    com a tesoura. Foi ao mdico porque achou que estavaficando louca. Foi afastada e at o momento do atendi-mento no conseguia ir loja, nem ao comrcio, nemandar sozinha, no suportava barulho. Quando indaga-da sobre os fatores de adoecimento, disse: uma tortu-ra, porque, por mais que se faa, nunca est bom:

    Tenho pesadelos com a empresa. J sonhei que mefalam que tenho que ficar num lugar e no sair. Jsonhei que estava morta no caixo e todos da lojaiam me ver e diziam: Olha, coitada, se doou tanto ecomo ela acabou!. Sonho que perdi o meu armrio eno tenho mais onde por minhas coisas.

    Sempre vendeu bem, cumpria as cotas estabeleci-

    das, apesar da ameaa de demisso caso no atingissea meta por trs meses consecutivos. A empresa fazia,pela manh, um teatro de vendas para melhorar o de-sempenho dos vendedores: Eu no suportava aquilo[...] porque eu tinha que participar daquilo se eu fecha-va as cotas? [chorou]. Se me falarem que tem cinco ouvinte mil reais dentro da loja pra eu pegar, no entro l,no passo nem em frente.

    Sueli contou que no faltava ao trabalho mesmo queestivesse doente, no podia levar as filhas ao mdico,porque, se faltasse, tinha que recuperar o que no ven-deu naquele dia. Observou com tristeza que, em todasas fotos de aniversrio da famlia, ela aparecia com ouniforme da empresa, porque saia do trabalho tarde e

    se dirigia para as festas. No tinha vida pessoal ou fa-miliar, no dia da folga s queria dormir. Chorou e seculpou por ter tratado mal a me que sempre cuidoudas filhas e disse: Eu tinha pacincia com os clientese me segurava, mas chegando em casa descarregava naminha me que fazia tudo por mim [chorou].

    Contou que recebeu viagens como premiao pe-las vendas, mas preferia no ter ganhado nenhumadelas. A sensao que tinha era de uma viagem re-lmpago: J passou, tenho que voltar. Relatou queuma mudana na direo da empresa modificou amaneira de tratar o funcionrio:

    Para o Sr. [antigo diretor da empresa], voc tinha va-lor, sabia o nosso nome. Agora parece que querem sever livre dos velhos [de empresa] porque os velhossabem como era [...] Os mais antigos eram mais valo-rizados e isso ajudava a vestir a camisa.

    Vitria: Sueli trouxe a Vitria, que estava afastadapor transtorno emocional e tambm apresentava afec-

    es do sistema musculoesqueltico e fibromialgia.Ela relatou que seu problema emocional ocorreu apsaumento de presso e ameaa de demisso por oca-sio de um evento grandioso da empresa no final doano. Saiu deste evento devendo para a empresa por-que as vendas foram inferiores ao ano anterior e haviarecebido um vale antes de se realizarem. Comeou aapresentar dores no corpo e sono excessivo. Disse quesua feio mudou, ficou com o olho morto at que,em 2003, teve um surto na loja, descrito como umasensao de que ia morrer, com falta de ar, tudo ro-dando, mos geladas, taquicardia e desequilbrio aoandar. Pensava durante a crise em como iria criar os fi-lhos. Foi levada ao hospital. Na recepo, antes de seratendida, deparou-se com um senhor lendo o jornalcom a propaganda da rede de lojas na qual trabalhava.Tomada pelo medo, virou-se de costas para o homem.Chorava e sentia medo.

    Descreveu a sua atividade profissional desde comofazia a abordagem ao cliente e toda a cortesia neces-sria, destacando que o cliente, s vezes, um olhei-ro (pessoa contratada pela empresa fazendo o papelde cliente para avaliar a qualidade do atendimento).Relatou que, alm da presso pelo cumprimento dascotas de vendas, existia a cota de vendas de garantiado produto e seguro de vida. Comentou que, no incio,essa garantia era explicada ao cliente e este escolhia

    se compraria ou no. Porm, devido s reclamaes es tenses que isso gerou, os vendedores receberam aordem de embutir a garantia na venda. Como a clien-tela da loja constituda majoritariamente por classesmenos favorecidas economicamente e com menor n-vel de escolaridade, a ordem era omitir; se o cliente fos-se uma pessoa de nvel de escolaridade maior, ento seprocedia s informaes adequadas. Relatou que ogerente passava pelos vendedores e batia nas costasdizendo: No esquece o embutex ou usava a palavraentubar grias usadas para embutir as garantias. Vi-tria comeou a chorar copiosamente, lembrando quefez isso com uma senhora cega que foi comprar uma

    TV para os netos. A senhora pediu a prestao maisbarata. Vitria fez o clculo da TV acrescido da garan-tia e colheu as impresses digitais no contrato; nose perdoava por isso. Comentou com outra vendedora,evanglica, se aquilo no era difcil para ela e esta lherespondeu: Estou fazendo o que me mandam. Quan-do foi sinalizado durante o atendimento psicolgicoque isto poderia ter sido um dos fatores de adoeci-mento, ela se surpreendeu e concordou, manifestouum insight sobre o que lhe acontecera. Acrescentoumais adiante que aquela vendedora evanglica que lhepareceu insensvel, tempos depois, caiu em depresso,porque que ningum aguenta isso.

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    Vitria era muito identificada com a profisso e,quando indagada sobre o que pensava sobre o seu tra-balho e porque escolheu a funo, ela respondeu:

    Quando uma pessoa entrava na loja, eu sentia comose eu realizasse sonhos, porque eram pessoas humil-des e me tratavam como se eu fosse importante. Eufazia de tudo para realizar aquele sonho.

    Na sesso seguinte, Vitria chegou com a xerox deuma circular do gerente datada de 29 de maro de 2006,na qual se lia:

    ATENODevido ao fechamento de cota, NO ESTAREMOSACEITANDO NENHUMA VENDA SEM SEGURO.Lembrando que existe uma cota diria para cada ven-dedor, e estamos sendo acompanhados pela regional.Portanto vamos fazer a nossa parte. Sem mais, Ge-rncia [e nde identificao]. [grifo da empresa]

    Esta circular estava assinada por todos os vendedo-res com o objetivo de comprovar cincia do contedo.No dia seguinte assinatura desta circular, ela pas-

    sou mal e foi afastada do trabalho. No final da sesso,contou um sonho e descreveu a cena onrica: Ela estatendendo o cliente e faz a venda, mas, quando vaifechar a venda no computador, sempre acontece al-guma coisa e no consegue operar o computador, nosabe a senha, algum a aconselha a ir embora e ela nofica na loja. Pedi para que fizesse associaes com suasituao e ela disse:

    Eu gosto de atender o cliente, fazer a venda, masno consigo trabalhar com o sistema [...] comose eu pudesse ser til em outra coisa, mas naquelesistema no.

    Marina: Veio encaminhada por Vitria que, apsuma visita, ficou muito preocupada com o estado emo-cional da colega de trabalho j afastada das funes.Marina se apresentou muito angustiada, o seu relatoera interrompido pelo choro vrias vezes. Relatou que,alm da presso por vendas, foi humilhada porque tra-balhava no setor de venda de celular quando houve umroubo noite. O fato gerou presso sobre os vendedo-res, ou seja: aumento de controle, contagem com acom-panhamento do repositor e do gerente. Passou por umasituao degradante e humilhante na poca, quandofoi fazer contagem dos celulares no estoque (local deaproximadamente trs metros quadrados) e o seguran-a que a acompanhava precisou sair e a deixou tran-cada dizendo que logo voltava. Marina estava grvida.Terminou o trabalho e o segurana no voltou, bateuinsistentemente na porta e no vinha ningum. Almdo mais, no havia janela na sala. O socorro veio, po-rm o tempo de espera lhe gerou grande trauma. Sofreudiscriminao racial por parte de uma colega do setormotivada pela competio por vendas. Chorou ao con-tar e acrescentou que um cliente testemunhou o fato ese ofereceu para ajud-la.

    Contou que no evento de fim de ano (prximo aoNatal), em que a empresa costumava montar uma loja es-

    pecial, ela retornava do trabalho s duas da madrugadae acordava s cinco horas porque morava em outro mu-nicpio. Emagreceu cinco quilos em um ms porque nohavia tempo para almoar e s vezes nem para jantar.

    Durante o relato suspirou, comeou a chorar e disse:

    A gente era obrigada a roubar o cliente e por o dedo

    da pessoa [para analfabetos]. Se a pessoa pergunta-va se estava pagando por isso [garantia], eu mentia[chorou]. Tinha clientes que voltavam para comprarcomigo porque confiavam em mim [chorou] eu sen-tia que estava fazendo tudo errado, tudo diferente doque minha me me ensinou [chorou].

    Contou que a venda cujo seguro e garantia no esti-vessem embutidos simplesmente no era considerada.

    Essa vendedora foi afastada em um dia que estavadecidida a se jogar do dcimo segundo andar da lojana qual trabalhava, local em que, segundo tinha sidoinformada, outro vendedor cometera suicdio temposantes. Apesar da medicao, Marina apresentava-se

    muito fragilizada. Tentou retornar ao trabalho, masno conseguiu ficar. Os seus sintomas apareceramaps quatro anos de exerccio da funo nesta loja. Jtinha sido vendedora antes e contou com alegria osbons momentos que teve como vendedora, o quantose destacou na empresa anterior e mesmo na atual em-presa: Antes eu no trabalhava como escrava igual na[nome da empresa atual].

    Raquel: Chegou ao Cerest encaminhada pela psi-quiatra que a acompanhava desde o incio do afasta-mento de suas funes. Queixava-se de presso porvendas, ameaa de desemprego, insistncia nas ven-das de seguro e garantia embutidas, sem consentimen-

    to do comprador. Os sintomas comearam no final de2007 aps trs anos na empresa com presso nacabea, falta de ar, dor na coluna. Passou a ficar rspi-da, sem pacincia com colegas de trabalho e comeoua ter que se controlar muito para no perder a calmacom os clientes: Me virava nos 30.Em casa no ti-nha vontade de conversar com o marido, s vezes nemjantava. Eu no conseguia me desligar do trabalho.Chegava no dia seguinte empresa e dizia: Pareceque passei a noite nesta loja.

    A sada do gerente influenciou muito o seu esta-do emocional, porque ela se sentia protegida por ele(ressalvou que no era s ela que sentia isso), uma

    vez que ele era justo e conhecia cada um. Com amudana de gerncia, quem no atingia a meta deseguros tinha o nome estampado prximo ao relgiode ponto. Relatou ser vendedora desde os 13 anos egostar do que fazia. Entrou na empresa mais recente-mente e no conheceu o antigo diretor, ouviu dizerque ele era bom. Comentou:

    Hoje os colaboradores no tm valor, no sou eu quedigo, so os antigos. Atualmente, por exemplo, seabrir minha tela e no tiver um atraso no significanada. Antes tinha prmio. Hoje querem quantidadesem qualidade. Hoje colocam jovem que no tmtanto compromisso.

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    Era incapaz de andar sozinha pelas ruas, teve umacrise ao sair do cabeleireiro, no conseguia raciocinar,ficou perdida. Apresentava averso propaganda daempresa na TV, no assistia mais parte de propagan-das e no ia ao local de trabalho.

    importante observar que nos oito casos relata-

    dos no havia evidncia de qualquer problema davida familiar ou pessoal que concorresse para o de-sencadeamento dos sintomas apresentados. Valria eVitria tinham histrico de separao conjugal antiga cinco e dez anos antes, respectivamente mas esta-vam bem adaptadas. Os demais relataram boa convi-vncia conjugal e familiar, sem outros problemas ouepisdios prximos ao aparecimento dos sintomas, oque evidencia a determinante influncia dos aspectosrelacionados ao trabalho no aparecimento de proble-mas de sade fsica e emocional na amostra aqui se-lecionada. Obviamente que para fazer a relao dostranstornos mentais com o trabalho no exigida ainexistncia de qualquer outro problema pessoal oufamiliar concomitante, mas sim a anlise da relevn-cia da influncia do ambiente de trabalho num deter-minado quadro de adoecimento mental.

    Aline e Vitria, aps acompanhamento psicolgi-co individual e grupal, conseguiram retornar ao tra-balho, superando o medo que as impedia de sequerpassar perto da empresa. Porm, o equilbrio emocio-nal no se manteve por muito tempo e Aline, emboracontinuasse trabalhando, solicitou retorno ao grupode psicoterapia. Vitria trabalhou alguns meses e foiafastada novamente. Raquel e Valria, aps aproxima-damente doze sesses de psicoterapia, voltaram a sairsozinhas pelas ruas, resgatando a autonomia. Soniae Marta no conseguiram aderir ao acompanhamentopsicolgico. Lucas passou a brigar judicialmente pe-los seus direitos, aumentando sua esperana. Marinapassou por poucas entrevistas e foi encaminhada paraum Cerest da Capital de So Paulo, porque moravamuito longe de Diadema.

    Discusso

    Partiremos dos denominadores comuns presentesnos relatos. O primeiro aspecto a ser destacado que to-dos os trabalhadores que chegam ao Cerest com trans-tornos emocionais relacionados atividade laboral tmaverso ao local de trabalho. Embora este fato no tenhasido citado em todos os relatos acima (apenas naquelesque no conseguiam nem ver a propaganda na TV ouno jornal impresso), esta informao apareceu espon-taneamente durante a entrevista. A averso perdurameses a fio e o tempo para conseguir dirigir-se ao localde trabalho varivel. No caso de Aline, estendeu-sepor mais de doze meses aps o incio da psicoterapia e,mesmo assim, ela apresentou intensos tremores e sudo-rese quando adentrou a loja, em seu retorno. Estamosfalando de um ambiente:

    Atemorizante: ameaas de demisses, metas di-fceis de alcanar, olheiro (pessoa contratadadisfarada de cliente) para avaliar o atendimentoao cliente;

    Massificante: mesmo atingindo a cota, necess-rio participar do teatro de vendas, no importa se

    faltou muito ou pouco para alcanar a meta; noh singularizao. A sada do gerente citada porRaquel a impactou porque ele conhecia cada um,segundo ela. Foi lembrado que o antigo diretor deuma das empresas chamava os funcionrios pelonome e, depois, a relao com os funcionriosmudou.

    Culpabilizante: responsabilidade sobre o processode vendas; o cliente sempre tem razo;

    Competitivo: colegas disputando os clientes; com-paraes e nomes estampados quando algum fra-cassava.

    Verticalizado: ordens vm da central, nem os ge-rentes opinam, com pouco ou nenhum espaopara a criatividade;

    Maante: com muita repetio, lembrando cons-tantemente a meta a ser alcanada; aparelho desom com volume alto para atrair clientes constan-temente; teatro de vendas todos os dias; inclusoda propaganda na TV (o que parece reproduzirem parte o clima organizacional citado pelos ven-dedores);

    Vemos que muitos so os fatores que se combinampara criar uma atmosfera facilitadora ao adoecimento. V-rios destes trabalhadores, no decorrer da entrevista, eram

    capazes de fazer comparaes com antigos ambientes detrabalho que eram agradveis ou calmos e tranquilos. Po-rm, estes depoimentos revelam a todo o momento a in-tranquilidade do local de trabalho e a transferncia desteestado para o ambiente familiar: no conseguiam se desli-gar, 24 horas no ar. Duas vendedoras relataram sonhosou pesadelos e uma apenas mencionou que sonhava como trabalho. As duas trabalhadoras de restaurante apresen-taram em comum um estado eltrico, que muito noslembra o Charles Chaplin em Tempos Modernos, quan-do saa pelas ruas apertando tudo o que se parecia comos parafusos apertados na fbrica. Ento, chegando ao lar,no conseguiam parar de trabalhar, no relaxavam, nodormiam. As duas tambm apresentavam alucinaes nolocal de trabalho, fato curioso e que mereceria mais acura-da investigao e comparao com profissionais de outrosrestaurantes de grande movimento ouviam vozes quelhes chamavam. Suponho que eram chamadas muitas ve-zes durante o expediente. Aline disse que pegou traumado lugar. A palavra trauma em grego quer dizer ferida(ZIMERMAN, 2005) e parece que os vendedores falamde um lugar que lhes machuca e faz doer internamente.Geralmente, estes trabalhadores com trauma do ambientede trabalho desenvolvem um quadro emocional compat-vel com o transtorno de estresse ps-traumtico [CID-10F-43.1], ou seja: repetidas revivescncias do trauma sob

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    a forma de memrias intrusivas (flashbacks), sonhos oupesadelos, embotamento emocional, afastamento de ou-tras pessoas, anedonia, evitao de atividades e situaesrecordativas do trauma, estado de hipervigilncia, insnia(ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE, 1993).

    A despersonalizao, ou seja, o endurecimento emo-

    cional expresso na atividade do comrcio como falta deateno e cortesia, impacincia para esclarecer o clientedurante a venda, distanciamento afetivo aparece clara-mente no relato de Aline. Raquel d indcios de que este-ve prestes a desenvolver a despersonalizao, pois decla-rou que se controlava muito para no perder a pacinciacom os clientes. Sueli declarou, durante as entrevistas,que muitas vezes no conseguia concluir uma vendaporque perdia a pacincia com o cliente e passava paraoutro vendedor. Lucas tambm citou nervosismo com osclientes pouco antes de se afastar do trabalho, quandopercebia que a compra no seria consumada. A exaustoemocional no ter mais o que dar de si aparece nosrelatos de que no conseguiam dar ateno aos familia-

    res. Sueli disse que pedia foras para enfrentar mais umdia de trabalho. Essa sensao de que eram sugados ficabem evidente em todos os relatos e Marina falou tambmda exausto fsica sem comer, sem dormir. Aline faloude ficar o dia todo em p.

    Valria, Sueli e Raquel compareciam ao Cerest Diade-ma acompanhadas de familiares, pois no conseguiam selocomover sozinhas. Inferimos que a desorientao apare-ce como uma das consequncias desta organizao do tra-balho. Uma desorientao interna, porque nunca se sabecomo agradar, se conseguir alcanar a meta, se mantero emprego, se ser percebido pela empresa, se dar contada tarefa. A carga psquica tambm sentida agudamente

    quando se queixam dos cdigos e da ateno exigida. Sotantas expectativas para atender, tantas tenses, as quaistransbordam para o externo em forma de desorientaoespacial: Onde estou? Para onde vou?. Perguntas que pa-recem oriundas de uma outra pergunta: Quem sou eu?.H uma perda de referenciais, o que sugere o aniquila-mento de uma identidade. Recentemente foi noticiado umdossi contando os suicdios ocorridos na France Tlcom(MERLO, 2009), onde um dos suicidas escreveu em suacarta de despedida: Aquilo desorganizou-me totalmente eperturbou-me [...]. As queixas dos funcionrios da FranceTlcom giravam em torno da urgncia permanente, dasobrecarga de trabalho, da gestoterrorentre outras,todas atinentes organizao do trabalho. Muito seme-

    lhante nossa realidade, pois a globalizao tambm uni-versaliza o sofrimento.

    O sentimento de inutilidade e ausncia de sadas pare-ce se expressar na desesperana de Lucas, no sonho maca-bro de Sueli estava num caixo e na idia de suicdiode Marina. Winnicott (1971, p. 95) afirma: A submissotraz consigo um sentido de inutilidade e est associada ideia de que nada importa e de que no vale a pena vivera vida. O clima presente nas entrevistas de desamparo,de horror, de ressentimento profundo. So pessoas ator-mentadas, que, mesmo afastadas do ambiente de traba-lho, carregam a tortura dentro de si mesmas. O sonho de

    Vitria muito interessante no que tange organizaodo trabalho, porque a tarefa lhe parecia muito agradvel;o que se tornava insuportvel era o sistema. No casodesta trabalhadora, como tambm do Lucas, havia umagrande identificao com a profisso. Vitria se dizia umarealizadora de sonhos, sentia-se importante ao poderviabilizar os sonhos dos compradores. Disse, inclusive na

    entrevista, que havia uma margem de desconto que elapoderia fazer. Enfim, ela via uma causa nobre associadaao seu fazer cotidiano, relatou isto com brilho nos olhos.Este um fator muito saudvel presente na tarefa:

    O que nos caracteriza no a nossa capacidade deproduzir mercadorias, mas sim a nossa possibilidadede emprestar, criar e revelar sentidos por meio donosso agir, de nosso trabalho. A vocao humana fundamentalmente potico-religiosa. Quero dizercom isso que inerente ao homem a capacidade deencantar-se com o cotidiano e enxergar nele o eterno.(SAFRA, 2006, p. 62)

    lamentvel que a organizao do trabalho prive os

    trabalhadores do prazer alcanado com a realizao daatividade, pois h uma sensao perene de que no sealcanou o desejvel. H uma desconfiana constante,visto ser preciso lembr-los a todo instante que precisamvender, como tambm contratar olheiros. O modo decobrar a tarefa e avali-la parece provocar uma infanti-lizao concomitante, porque como se no soubessemo que precisam fazer. Da uma das causas da revolta deSueli com o teatro de vendas. A presena do olheirono um relato oriundo de mania de perseguio dosvendedores. O fato foi confirmado em visita empresa,pelo Diretor de Recursos Humanos, o qual disse que ou-trora usaram deste expediente (equipe de tcnicos dosCerests da regio do grande ABC visitaram a empresa

    algumas vezes). Esta caracterstica de cobrana exage-rada aparece nas quatro empresas em questo. Inclusi-ve, parece gerar o presentesmo que transparece no re-lato de Sueli, a qual declarou no faltar ao trabalho nempara levar as filhas ao mdico, seno o cumprimentodas metas no se concretizava. E muitos j relataramque compareciam ao trabalho doentes, com dores e atcom atestado mdico em mos.

    O reconhecimento da pessoa falseado e por issoSueli disse que preferia no ter sido premiada com asviagens. A impresso que se tem que os prmios lem-bram o baile da Cinderela, pois o sonho acaba logo etudo volta a ser como antes. Os brindes e as viagens

    no so experimentados como conquista de prestgio,de afeto e estima. O efeito do descanso tambm pas-sageiro porque a rotina das empresas suga a energia ra-pidamente. Sueli chegou a citar que vendedores commenos tempo de servio que ela foram promovidos. Ho sentimento de injustia. Ela avalia que as promoesse do pela bajulao chefia e no por aquilo que sefaz. Percebe-se desta forma a distoro que ocorre comtais premiaes. Este um dos elementos que predis-pem ao transtorno emocional relacionado ao trabalho,uma vez que, segundo Zimerman (2010), todos neces-sitam vitalmente do reconhecimento das pessoas para amanuteno da autoestima. E afirma:

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    Portanto, a importncia mais significativa do termoreconhecimento alude a uma necessidade cru-cial de todo ser humano, em qualquer idade, cir-cunstncia, cultura, poca ou geografia, de desejarsentir-se reconhecido e valorizado pelos demais esentir que realmente existe como individualidade.(ZIMERMAN, 2010, p. 212)

    Ter uma individualidade e v-la respeitada fatorque favorece a manuteno da sade mental. Percebe-mos a lacuna da organizao do trabalho neste pontocom o fato agravante de gerar conflitos a esta individua-lidade quando uma norma antitica implantada. Seobservarmos as quatro vendedoras da mesma loja (Sue-li, Vitria, Marina e Raquel), que tm tempos de traba-lho na empresa diferentes, parece que o adoecimento mais recente e coincide com a mudana de direo daempresa e/ou com a implantao desta venda atreladade garantia e seguro, sendo que a direo mudou porvolta de 2003 e a venda de seguro posterior. A cir-cular de 2006 trazida por Vitria marca o momento daexigncia de vendas com seguro sob a ameaa de no

    serem computadas aquelas vendas.O conflito tico corri o indivduo que necessita do

    trabalho e no desejaria cumpri-lo na ntegra, como a em-presa exige. Sente-se um enganador. Caso engane a em-presa, sofre ameaa e, se engana o consumidor, sente--se vil. Marina expressa a vergonha de si mesma, a perdade identidade com a sua raiz representada pelos ensi-namentos da me. como se no fosse mais aceita pelaprpria me e a repercusso emocional profunda. Selig-mann-Silva (2003) pensa que, se cedem s presses de-formadoras ou at violentadoras quando diante de ame-aas sobrevivncia empresas ou pessoas , tendem degradao, deixando ruir os valores que constituam

    os alicerces do sentido de suas existncias.A ideia de suicdio de Marina parece ser decorrente

    de uma somatria de presses e dissabores no trabalho.Porm, h a hiptese de ter sido muito determinada peloconflito tico, porque boa parte dos suicidas no desejapor fim as suas vidas, mas pretendem dar um sinal dealarme, como um grito de socorro, ou ainda para casti-gar, culpar ou sensibilizar algum (ZIMERMAN, 2005).Isso nos leva a pensar que o suicdio seria cometido nolocal do trabalho, funcionando como uma comunica-o, um grito que precisa ser escutado naquele local.

    Outro aspecto a observar o conflito interno de Ma-rina com os ensinamentos da me e os comentrios dos

    demais vendedores sobre o prejuzo da relao familiar convvio familiar, afeto, presena , os quais provam queno h como separar o pessoal e o familiar do ambiente detrabalho. Esta ciso de colocar os ps no trabalho e esque-cer-se de casa no natural para o ser humano que carre-ga, a um s tempo, o ontem (herana gentica, lembrana,valores), o hoje e o seu anseio de futuro, o devir. O conflitofamlia versustrabalho est presente continuamente e, porisso, a organizao do trabalho tem que prever os limitesnecessrios para que no se instaure a desumanizao. Odesrespeito a estes limites leva sndrome do esgotamentoprofissional caracterizada pela exausto emocional umesvaziamento de si, no ter mais o que dar afetivamente;

    pela despersonalizao endurecimento emocional, in-sensibilidade com as pessoas atendidas, coisificao darelao; e pelafalta de envolvimento pessoal no trabalho

    sentimentos de diminuio de competncia, afetandoa habilidade para realizar o trabalho e o atendimentoou contato com as pessoas usurias do servio (CODO;VASQUES-MENEZES, 2000). Sintomas esses passveis de

    serem identificados na amostra apresentada.Lucas e Marina relatam ter trabalhado no comrcio

    desde o incio da carreira profissional, contam trajetriade sucesso e boa adaptao. Ambos tm identificaocom a profisso, assim como Vitria e Sueli. possvelperceber o quanto a organizao do trabalho distorceua relao saudvel entre profissional e empresa. in-dispensvel criar um ambiente propcio sade e aodesenvolvimento humano, pois a atmosfera criada teminterferncia direta na sade fsica e emocional.

    Estudos sobre a abordagem da psiconeuroimunologiamostram que uma interveno de enfermagem e relaxa-mento eleva o grau de defesas pr-sade, conforme o es-

    tudo de Amorim (1999, apud VIEIRA DA SILVA, 2001). Apesquisadora trabalhou com 60 mulheres com cncer demama buscando avaliar os efeitos da interveno no sis-tema imunolgico destas, sem diagnstico de metstase distncia. As coletas de sangue no grupo controle reve-laram que, aps a interveno enfermagem-relaxamento,houve um aumento significativo das clulas que pos-suem atividade antitumoral (clulas naturalkiller NK),podendo ser comparadas atividade de mulheres sadias.O resultado evidencia como somos permeveis a todasas experincias que nos cercam, com a possibilidadede grandes mutaes dos aspectos fsicos e emocionais.Neste sentido, mas sem esta pretenso, oferecemos noCerest grupos para os trabalhadores adoecidos como

    uma forma de acolhimento e minimizao das angs-tias. Os grupos de orientao que recebem os usuriospela primeira vez no servio, bem como os grupos psi-coterpicos para trabalhadores com sofrimento mental,funcionam como uma forma de berar, segurar e susten-tar pessoas atravessadas pelo despedaamento emocio-nal. Vieira Neto e Vieira (2005) explicam que as pessoastraumatizadas agem de modo semelhante a uma criana,que, aps uma queda, corre para os braos da me. Oabrao da me no tem o poder de cicatrizar a ferida,mas tem a capacidade de mostrar criana que est am-parada e que sua dor supervel.

    Comentrios finais

    Este breve relato da vivncia dos trabalhadores per-mitiu uma aproximao em relao importncia quedesempenha o ambiente de trabalho e s propores dosofrimento que esse ambiente pode causar. O esfacela-mento do ser se d de maneira lenta, mas contnua eprogressiva, sendo que o tempo e a intensidade da des-truio so variveis. Por outro lado, pode-se percebero trabalho como veculo de construo de autoestima,realizao e um espao para o desenvolvimento do ser,quando bem conduzido. O ambiente de trabalho sau-

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    dvel permitiria experimentar a atividade laboral comocorrelata do brincar infantil, tornando-se um espaopara o acontecer humano na sua plenitude. Aponta parao caminho da preveno, pois a organizao do traba-lho pode ser pensada de maneira que os trabalhadoresse sintam singulares, exeram sua criatividade, encon-trem orgulho no servio que prestam, sejam reconheci-dos nas suas habilidades e responsabilidades, possamter autonomia como, por exemplo, poder, no mnimo,escolher sobre o embutir produtos ou criar outras estra-tgias de convencimento , possam escolher se queremtrabalhar at mais tarde ou no. O trabalho precisa pre-encher uma parte importante do dia, da vida, mas no asua totalidade. H limite para o exerccio da funo emfavor da permanncia da sade de quem trabalha e dasatisfao com o que se faz. A famlia ocupa um lugarespecial na subjetividade de cada um e a organizaodo trabalho no pode desconsiderar esta dimenso.

    A realidade aqui apresentada vale tambm paraoutras categorias profissionais, da o fato de se agregarduas trabalhadoras do ramo de alimentos. Sabemos queos bancrios hoje so vendedores, os caixas de farm-cia, os frentistas de postos de gasolina, enfim, vriosprofissionais precisam oferecer produtos aos clientese faz-los consumir para obteno da meta desejvel.Com base no material apresentado, torna-se til incluira investigao deste aspecto em nossas entrevistas comtrabalhadores adoecidos mentalmente para identificarpossveis pontos de tenso relacionados com metas devendas ou outras de qualquer natureza.

    As anamneses ocupacionais devem atentar para asubjetividade dos trabalhadores, tentando captar o sen-

    tido de suas funes, se h reconhecimento explcitodo seu trabalho, se existem possveis conflitos ticos ouconflito famlia versustrabalho.

    O afastamento do contexto de trabalho por ocasiodo adoecimento cria um vazio existencial. de vitalimportncia haver um espao privilegiado Cerest,Sindicato, Unidades de Sade para a elaborao dosofrimento mental causado pelo ambiente de trabalho.Ter um lugar para ser escutado, compreendido, podeser restaurador, levando o trabalhador a reconstituir sua

    identidade. Tambm fornece condies para retornar atividade laboral, modificado ou mesmo reinventandoo seu caminho profissional.

    O material apresentado suscita perguntas e podemotivar vrias anlises e pesquisas na categoria. Pode-mos, a ttulo de exemplo, pensar sobre as anlises peri-ciais na Previdncia Social que, por desconhecimento,no consideram os riscos ocupacionais gerados pelaorganizao do trabalho. O perfil profissiogrfico previ-dencirio dos vendedores torna-se falso por no incluireste tipo de risco, bem como a excluso das atividadesreais exercidas pelos vendedores, as quais incluem: usodo computador para levantar preos, ver estoque e di-

    gitalizar as vendas; escrever; levantar carga; arrumar osetor fazendo esforo fsico, gerando afeces do sis-tema musculoesqueltico. Seriam muito teis estudoscomparativos entre empresas que atuam no ramo deservios com formas de organizao do trabalho diver-sas e seus consequentes efeitos.

    Torna-se primordial a disseminao dos conheci-mentos relacionados sade mental e trabalho para quetrabalhadores e profissionais se apropriem de um saberque pode evitar o aparecimento ou o agravamento detranstornos emocionais. Talvez possamos caracterizareste empenho como uma causa ecolgica para evitar aextino do respeito dignidade humana nos ambien-

    tes de trabalho. Como dizia Guimares Rosa (2006, p.311):Qualquer amor j um pouquinho de sade, umdescanso na loucura.

    Agradecimentos

    A autora expressa gratido Professora Doutora Jussra Van de Velde Vieira da Silva e ao Professor Cludio Ma-noel Gomes pela leitura atenta e pelas preciosas sugestes.

    Referncias

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