Sosa - AgêNcia EpistêMica

download Sosa - AgêNcia EpistêMica

of 7

Transcript of Sosa - AgêNcia EpistêMica

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    1/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    23

    Ernest Sosa

    AGNCIA EPISTMICA1

    Ernest Sosa*

    O texto explora uma srie de distines entre estados mentais que podem ser cognitivamenterelevantes, bem como entre aqueles que podem ser autoapresentantes, a fim de analisar asrelaes entre eles e o mundo exterior e compreender os tipos de crenas e juzos epistmicosque podem ensejar. Busca, ainda, reconsiderar o estatuto (porventura epistmico) de experin-cias sensrias com contedo. O objetivo desse percurso fazer frente a objees cticas justi-ficao epistmica do tipo daquelas levantadas pelo trilema de Agripa, segundo o qual a avali-ao reflexiva no pode regredir infinitamente, circular infinitamente, nem depender de algu-ma instncia arbitrria. Trata-se, tambm, finalmente, de esclarecer, com as nuances relevan-tes, a relao entre juzo e liberdade esclarecimento relevante para a anlise mais geral daagncia epistmica.PALAVRAS-CHAVE: Juzo. Agncia epistmica. Liberdade. Conhecimento. Trilema de Agripa.

    DUAS VARIEDADES DE AGNCIA ENORMATIVIDADE EPISTMICA

    A nossa vida mental compreende estadosou eventos de trs tipos: (a) sofrimentos doresou coceiras, por exemplo, oumeros fazeres, taiscomo aes reflexas e desempenhos; (b)funcio-

    namentos(estados funcionalmente avaliveis) e(c) diligncias (com uma finalidade livrementedeterminada). Essa tricotomia tem um lado pr-tico, tico, e um lado teortico, epistemolgico.Aqui nos concentraremos nesse ltimo.

    As diligncias povoam uma regio de li-

    berdade.2

    Diligncias derivam de escolhas e juzos

    livremente determinados. A liberdade que defi-ne a regio de diligncias pode ser bem recortada,libertria e fundamental, ou ela pode ser uma ques-to de grau, compatibilista, e derivada. Aqui dei-xamos todo esse conjunto de questes metafsicasem aberto.

    A regio no extremo oposto contm sofri-mentos (sufferings) emeros fazeres, em que o fei-tor (doer) relevantementepassivo. Se empurra-do de um penhasco, voc cai passivamente, a des-peito do quo rapidamente voc se desloque, evoc mata um coelho passivamente se o esmagaao atingir o cho. O martelo de um mdico pode

    fazer com que o paciente chute uma enfermeirase ela estiver no caminho do movimento reflexo.Assim, o paciente faz algo (ao chutar a enfermei-ra) mesmo que no se trate (num sentido rele-vante) de um feito seu, um feito atribuvela si,como responsabilidade sua (as his own doing).Ele no exerce uma agncia real ao chutar a en-fermeira, ou simplesmente ao mover a perna na-quela ocasio. A passividade, que relevante parao nosso projeto, a passividade epistmica. Anatureza dessa passividade emergir em breve.

    * Doutor em Filosofia. Professor do Departamento deFilosofia da Universidade Rutgers (EUA).Department of Philosophy. Rutgers University. CollegeAvenue Campus. 1 Seminary Place. New Brunswick, NJ08901. [email protected]

    1Original Epistemic Agency, traduo de Rafael LopesAzize.

    2Poder-se-ia optar, alternativamente, por uma noo maisampla de diligncia segundo a qual toda busca de umobjetivo, toda teleologia, mesmo que meramente funcional,envolveria diligncias para atingir um fim, tal como faz ocorao quando bate regularmente para fazer circular o san-gue. Opto aqui, antes, por uma noo mais restrita de dili-gncias que so livres, e que, juntamente com os funciona-mentos, perfaro uma classe ampla de objetivos (aimings).

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    2/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    24

    AGNCIA EPISTMICA

    Em epistemologia, justificao envolvede fatoo que? Como, por exemplo, pode o con-

    texto dentico lhe dizer respeito? Refiro-me aoquadro relativo ao que devemos crer, quilo emquepodemos(may) crer, e mesmo ao que obri-

    gatriooupermissvelem termos de crena.A regio em que o quadro epistmico

    dentico mais claramente aplicvel aquela daliberdade; a regio em que ele mais claramenteinaplicvel aquela da passividade. H, contu-do, uma regio intermediria, a qual admite umtipo de agncia, mesmo que desempenhos na-quela regio no sejam diligncias (endeavors)

    livremente determinadas, que constituem ouderivam de escolhas ou julgamentos. Desempe-nhos podem ser racionalmente determinadosmesmo quando no so livremente determina-dos. Depois de uma medio ter mostrado quecerta linha tem uma polegada, revele-se uma se-gunda linha, de maneira a formar o conhecidopadro de Mller-Lyer. Isso induz a iluso, e tam-bm a aparncia (seeming) derivada, de que asegunda linhatemmais do que uma polegada.Nenhuma ponderao ou deciso foi necessria;o processo assaz involuntrio. Uma aparncia(seeming), uma inclinao pelo assentimento,deriva racionalmente de outras, por uma esp-cie de embasamento racional. Uma aparncia racionalmente baseada em outras aparncias,mesmo que nenhuma delas constitua ou derivede um juzo ou escolha livre.

    Ainda que o quadro dentico no se apli-que estritamentea essa regio intermediria, elese aplica de maneira solta. Podemos, assim, dis-

    tinguir entre dois quadros. Em primeiro lugar,h o quadro estritamente dentico, que pressu-pe determinao livre, tal como aquele que en-volve escolhas livres e julgamentos livres. Mash, em segundo lugar, um quadro funcionaldentico mais solto, que no contm diligncias(endeavors) livremente determinadas.

    No quadro epistmico normativofuncio-nal, pelo contrrio, avaliamos o funcionamentopropriamente dito, seja ele servo-mecnico, bio-lgico, etc. Nesse quadro funcional, distingui-

    mos entre desempenhos que satisfazem ao me-nos os padres mnimos de operaes epistmicas

    apropriadas e aqueles que no os satisfazem. Asnossas atitudes quanto a desempenhos funcionaisno envolvem gratido, ressentimento, ou outrasatitudes reativas. Podemos, claro, ter atitudes deaprovao ou desaprovao, mas essas no encon-tram expresso no elogio, que correlato da repre-enso. Sim, h um elogio mais amplo que requerto somente avaliao favorvel, e que se alinha tan-to com admirao quanto com a avaliao da agn-cia. Podemos distinguir o elogio ou a desaprovaoque se aplicam estritamente apenas ao agente livre

    de correlatos mais amplos, aplicveis tambm aoagente funcional. Agentes que meramentefuncio-

    namesto sujeitos a falhas ou responsabilizaes,mais do que a pecados ou infraes, ou a outrasviolaes que pressupem liberdade.

    Contudo, noprecisamosnos comprome-ter com nenhuma tese lingustica sobre elogioou responsabilizao ou as suas aplicaes apro-priadas ou estritas. Basta que distingamos as ati-tudes reativas de atitudes mais amplamente ava-liadoras, independentemente da expresso queelas encontrem em ingls estrito.3

    O quadro dentico mais solto ainda re-querfuncionamentos, avaliveis como apropria-dos ou no. Funcionamentosracionais, em par-ticular, envolvem motivao racional de um cer-to tipo. Aqui uma pessoa funciona de certa ma-

    3 Eu fiz uma distino entre as atitudes reativas que se apli-cam regio da liberdade e a nossa aprovao ou desapro-vao na regio dos funcionamentos. Dou por assente queelogio pode ir de par com admirao, que no pressupo-ria agncia livre. E fato que ns estendemos o idioma atmesmo da responsabilizao muito para alm da regioda liberdade, como quando culpamos uma escora fracapela queda de uma ponte. E h tambm o peso daquelanegligncia que inteiramente digna de responsabilizao.Tomemos um agente que d livre curso s suas atitudesirrefletidas, embora devesse ter pensado melhor. De fato,responsabilizamos esse agente, mas no necessariamenteo inculpamos simplesmente por ter agido de acordo comas suas crenas e desejos irrefletidos, no nvel animal.Responsabilizamo-lo, mais centralmente, em razo da ne-gligncia da qual ele culpado. Alm disso, quando eleapropriadamente no reflete, quando age instintiva e auto-maticamente de acordo com as suas crenas e desejos irre-fletidos de nvel animal, ns no necessariamente o elogi-amos simplesmente por ter agido de acordo com essas ati-tudes irrefletidas. Elogiamo-lo, mais centralmente, por eleter tido o bom senso de se mostrar implicitamente sensvelquando necessria reflexo, e de omitir a reflexo sem ne-gligncia. Porventura (mas no discutirei isso aqui) tal sensi-bilidade e negligncia residam na regio da liberdade.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    3/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    25

    Ernest Sosa

    neira com base em aes motivadoras, razespelas quaisuma pessoa funciona como o faz.4

    Quando uma linha me parece mais longa do queuma polegada, funciono de uma certa maneira,tal como quando chuto a enfermeira por causado martelo do mdico. Certo, um tipo passivode funcionamento. No resisto a dar certo peso,nas escalas de juzo, ao fato de a linha ter mais doque uma polegada. Dou-lhe tal peso na qualidadede um ser cognitivo plenamente funcional, e comdeterminado fundamento: baseado no fato de essalinha parecer mais longa do que a linha adjacen-te, e tambm na minha memria clara e vvida de

    que a outra linha mede uma polegada.Trato como equivalentes trs formulas ver-

    bais: (a) estou inclinado (attracted), nalgum grau,a pensar que p; (b) parece-me, nalguma medida,que p; (c) dou certo peso (positivo) defesa deque p. A primeira dessas frmulas conota passi-vidade, a ltima conota atividade, e a interme-diria no conota nenhuma das duas coisas; pa-rece neutra em termos de agncia. Proponho,contudo, que, de um ponto de vista normativo,as trs diferem, no mximo, trivialmente, que es-sas diferenas entre passividade e atividade sonormativamente negligenciveis. Isso j foi suge-rido pelo quo pouco um agente pode realmentepossuir algo que, no entanto, ele faz, mesmoque isso soe paradoxal. Pensemos em quo passi-vos podemos ser ao chutar a enfermeira, mesmoque verbalmente faamos algo nesse caso. Ain-da que o faamos, no faanha nossa.

    Compare o fazer implicado no dar al-gum peso defesa de que uma de duas linhas

    tem mais do que uma polegada. Isso tambm

    no acrescenta agncia significativa inclina-o a que estamos sujeitos quando nos inclina-

    mos a assentir nessa direo. Seja como for, existeum tipo de agncia, mas a agncia no livre dofuncionamentoapropriado, como quando a per-na se levanta em resposta ao martelo. Funciona-mos de maneira apropriada justamente por es-tarmos inclinados passivamente na medida cer-ta, tal como um artefato magnetizado funcionabem ao ser passivamente atrado por um mprximo. A distino entre o passivo e o ativo aqui negligencivel por comparao com a dis-tino entre estados que so funcionalmente ava-

    liveis e os que no o so. H fazeres passivosquenoso avaliveis dessa forma (como o chu-te da enfermeira pelo paciente, ou o esmagamen-to do coelho ao final da queda), ao contrrio deoutros fazeres passivos (como os nossos funcio-namentos perceptivos quando estamos inclina-dos a certa proposio sobre a cor ou a forma deum item percebido). Finalmente, os funciona-mentos, na nossa regio intermediria, so ava-liveis num aspecto epistmico especfico, o quesignifica que a sua avaliao deve ser feita comrelao verdade.

    O TRILEMA DE AGRIPA

    A avaliao reflexiva no pode regredirinfinitamente, tampouco circular infinitamente.Tambm no pode depender, ao final, de algu-ma instncia arbitrria. Ainda precisamos fazerface a esse trilema de Agripa se quisermos en-

    tender a justificao epistmica.Juzos que empreendem uma busca daverdade esto sujeitos ao trilema de Agripa. Nemregresso infinito nem circularidade so aceit-veis. Contudo, apenas juzos fundacionais racio-nalmente apropriados poderiam fundamentaroutros juzos e crenas, de maneira que essesltimos tambm se tornem racionalmente apro-priados. Juzos arbitrrios, livremente determi-nados, so racionalmente repugnantes. Mas comopoderia um juzo evitar arbitrariedade seno atra-

    4Novamente, mesmo que no precisemos muito deles, osseguintes pontos lingusticos parecem suficientementeplausveis. plausvel dizer que no tecemos, em termosestritos, elogios em piloto automtico ao bom funciona-mento epistmico: a aquisio de crenas triviais que ori-entam a conduta cotidiana. Tampouco estritamente re-preendemos algum que funciona mal, prtica outeoreticamente. O mau funcionamento pode ser devido abebida ou drogas ou falta de sono, ou pode simplesmen-te revelar ausncia de capacitao relevante. Deploramos ofato, mas no tendemos a repreender o agente, no caso deele estar apenas a funcionar automaticamente e no a deci-dir ou a julgar livremente. claro que precisamos aqui dedistines mais finas, em particular quanto a umametafsica compatibilista da liberdade (mas a metafsicano consta da nossa j profusa lista de preocupaes).

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    4/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    26

    AGNCIA EPISTMICA

    vs de uma base racional apropriada? Contudo,o estatuto propriamente racional de um juzo

    verdadeiramentefundacional, por outro lado,no pode derivar inteiramente de alguma baseracionalmente apoiante. Somos, assim, condu-zidos de volta ao crculo ou ao regresso.

    Estamos agora interessados em avaliaoepistmica, na avaliao de juzos e de outros esta-dos cognitivos a respeito do tipo de estatutonormativo que constitutivo do conhecimento. desse tipo de estatuto que uma crena verdadeiraprecisa para constituir conhecimento, seja no n-vel animal, seja no nvel reflexivo.5Como pode-

    mos parar o regresso da justificao de juzos raci-onais e, ao mesmo tempo, evitar arbitrariedade?

    Em seguida, experimentaremos freios(stoppers) de regresso que no so diligncias(endeavors), mas que ainda so desempenhos(performances) com bvia relevncia epistmica,como os funcionamentos (functionings) racionaisque no derivam de escolha ou juzo livre porparte do agente. Passamos, agora, para a regiointermediria entre liberdade e passividade.Dili-

    gnciasepistmicas livremente determinadas po-dem basear-se em desempenhosfuncionalmenteracionais, escapando, dessa maneira fundacional,ao trilema de Agripa relativo a diligncias.

    No entanto, o trilema se aplica novamen-te, agora em uma forma nova. Consideremos de-sempenhos em geral, mesmo aqueles que no sodiligncias livres. Como poder tal desempenholograr o estatuto epistemicamente normativo exi-gido para o conhecimento, como poder isso serexplicado em termos gerais, quando incluirmos

    tanto os funcionamentos quanto as dilignciasentre os nossos desempenhos? Uma vez mais,precisamos de freios de regresso fundacional,mas agora fundamentos que freiem o regressono cumpririam essa funo apenas por residi-rem fora da regio da verdade. Precisamos, ago-

    ra, de estados para alm da regio da verdade,mas tambm para alm da regio intermediria,

    a regio do funcionamento. A nossa busca porfreios de regresso deve, em seguida, voltar-se paraa regio da passividade no funcional.

    Sendo o nosso projeto epistemolgico, osnossos freios de regresso devem ser no funcio-nalmente passivos em termos epistmicos. Umprurido pode ser funcionalmente avalivel comoapropriado por demandar que se coce o local, oque pode servir a algum propsito biolgico. Maso prurido no avalivel epistemicamente se noserve a nenhum propsito epistmico. Portanto,

    no o tipo de coisa que poderia ter um estatutoepistmico, nem mesmo um estatuto epistmicofuncional, muito menos um estatuto epistmicoagencialmente livre (free-agential). Compativel-mente com tudo isso, contudo, ainda pode servircomo base de um freio de regresso para um fun-cionamento propriamente epistmico, se o sujei-to ganha imediatamente conscincia proposicionaldo seu prurido com base racional em nada maisdo que o prurido ele mesmo. O que o torna pro-priamente consciente do prurido o prprio pru-rido, autoapresentante (self-presenting).

    Tal as diligncias, tal os funcionamentos.No mais plausvel que devesse haver todo umconjunto de funcionamentos, cada um delesepistemicamente justificado inteiramente pormeio de suporte racional por outrosmembrosdo conjunto.Diligncias fundacionaisestariamdesprovidas de bases motivadoras racionais paraexplicar o seu estatuto como racionais. Tais dili-gncias pareceriam, assim, arbitrrias, e, portan-

    to, irracionais.Funcionamentos fundacionaisnopartilham do mesmo estatuto problemtico. Noenvolvendo escolhas de todo, no envolvem es-colha arbitrria. Considere-se, no entanto, umconjunto de credos (credences) em graus varia-dos de confiana, estados funcionais que no soescolhidos livremente pelo sujeito. muitoimplausvel que tal conjunto pudesse alcanarpleno estatuto epistemicamente normativo perti-nente ao conhecimento simplesmente em virtudedas inter-relaes racionais dos seus membros,

    5Alguns procuraram tal estatuto entre as nossas atitudesprticas. Na sua busca por um estatuto que freasse o re-gresso, voltaram-se para atitudes pragmticas. No estoupersuadido de que isso possa nos fornecer justificao deinteresse distinto em epistemologia, nomeadamente, jus-tificao epistmica, o tipo apropriadamente atrelado verdade. Assim, procuro noutro lado.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    5/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    27

    Ernest Sosa

    isoladamente do mundo exterior que determinao seu estatuto como verdadeiro ou falso.

    De acordo: estados autoapresentantes (self-presenting), a se incluindo dores e pruridos, tmtido um papel proeminente em epistemologiah muito tempo. Parece indubitvel que pode-mos conhecer diretamente quando sofremos umprurido ou uma dor. No precisamos obter esseconhecimentomeramentepor meio de infernciaa partir de outras coisas que sabemos. Isso co-nhecimento fundacional, conhecimento do dadoou do autoapresentante. Como se deve entendero seu estatuto fundacional especial? Como pode

    ter esse estatuto sem o apoio de razes?

    RAZES E FUNDAMENTOS

    H razes de pelo menos dois tipos dis-tintos: as fticas (factive) e as estativas (stative).Considere um calibre para certo tipo de tanquede combustvel. Como que uma leitura se tor-na razo para a crena de determinado sujeito(ou, alternativamente, para um credo positivo:para um grau positivo de confiana) sobre aquantidade de combustvel no tanque? O sujei-to precisa estar conscienteda leitura, e essa cons-cincia pode, ento, servir como uma base raci-onal estativa para a crena (credo) (credence)sobre o tanque. Que forma essa conscincia podetomar? Com frequncia, ela toma a forma deuma crena (ou credo), claro, e essa crena(credo) pode ento associar-se a outras crenas(credos) ou com pr-atitudes, de maneira a fun-

    damentar crenas ou pr-atitudes ulteriores. Essa a forma que a orientao pode tomar por meiodo raciocnio inferencial, prtico ou teortico.

    O fato de uma pessoa estar com dores ,por certo, uma razo ftica para a crena (oucredo, ou confiana) de que se est com dores.Geralmente, se um fato deve servir de base auma crena, uma pessoa precisa de alguma cons-cincia dele. Mas a conscincia que leva crenade que se tm dores seria intil a tal orientao,j que a pessoaj teriade haver sido orientada

    na formao da crena relevante. Eis por quetais fatos ou os seus feitores de verdade (truth-

    makers) precisam ser autoapresentantespara quecumpram o seu papel fundacional. No poderiaser o caso que eles guiassem uma pessoa da ma-neira como normalmente o fazem as razes fticas,ou seja, atravs de conscincia cognitiva prviadelas (por via das quais so apresentadas), atravsde alguma crena ou credo prvio. Portanto, se-gue de p a questo acerca do tipo de conscinciadeles que servir orientao requerida.

    Uma distino entre conscincia constitutivae conscincia de ateno (noticing awareness)

    pode ajudar. Quando voc salta um salto, ouchuta um chute, ou sorri um sorriso, isso nodeveria ser observado segundo um modelo atoobjeto, em que o fazer tem um objeto separado.Antes, o salto apenas o saltar de certa maneira,o chute o chutar de certa maneira, e bem as-sim para o sorriso, etc. Da mesma forma, quan-do voc experimenta uma experincia diga-mos, a experincia da dor, quando voc senteuma dor , isso no tem uma anlise plausvelatoobjeto. De fato, experimentar tal experin-cia experiment-la de certa maneira.6E, postoque a experincia uma forma de conscincia(no um tipo de conscincia de ateno, mas,ainda assim, uma forma de conscincia), vocno pode evitar, portanto, ser consciente das suasexperincias, uma vez que deve experiment-las.

    Assim, uma pessoa no pode experimen-tar dor sem estar consciente (aware) dela. E plausvel que tal conscincia possa, em seguida,orientar a formao de uma crena ou credo

    (credence) correspondente. Voc pode, ento,crer ou estar inclinado a crer que tem dores, e a

    6No se pretende, aqui, defender uma teoria adverbial radi-cal, j que a maneira pela qual voc experimenta a expe-rincia quando tem uma experincia visual pode exigir ahospedagem de um contedo proposicional. Esse conte-do proposicional pode, contudo, ser falso, de forma queno haja nenhum feitor de verdade (truth-maker) que fun-cione como o objeto da experincia da pessoa. Tampoucoo contedo proposicional o objeto. No experimenta-mos sensoriamente contedos proposicionais. Antes, ocontedo proposicional oferece o contedo, no o objeto,da experincia. Alojar (hosting) o contedo proposicionalest essencialmente envolvido na maneira de experimen-tar envolvida no ter (in the having) daquela experinciasensria, que no precisa ter nenhum tipo de objeto.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    6/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    28

    AGNCIA EPISTMICA

    base racional para a sua crena, ou a sua inclina-o crena, seria a sua conscincia da sua dor.

    Essa conscincia pode ter um papel apropriadona sua dinmica cognitiva ao dar origem a umcredo ou crena correspondente.

    Isso nos fornece um caminho para alm dotrilema agripiano relativo ao nvel epistmicomdio, povoado por credos involuntrios que for-mam uma estrutura racional, j que alguns deri-vam o seu estatuto apropriado do fato de estaremracionalmente baseados em outros. Puras experi-ncias (como as dores experimentadas) na regioda passividade podem funcionar como estados

    freantes do regresso que sequer so desempenhos,que no so motivados por razes pelas quais vocos hospeda.7Mesmo a sua conscincia de tal estadono um desempenho. Isso verdadeiro pelo me-nos da conscinciaconstitutivada dor, a conscinciadela que voc tem simplesmente em virtude de so-frer a dor. A dor , portanto, autoapresentante, jque a conscincia constitutiva que voc dela temvem necessariamente com a dor ela mesma. E ador no motivada por nenhuma razo (Aquinos concentramos em dor fsica, que ocorre poruma razo um corte ou machucado, etc. , masno motivada por razes pelas quaisvoc asofre. Dores emocionais parecem diferentes de ma-neira importante, mas pomo-las de parte.)

    As dores admitem, contudo, no apenasconscincia constitutiva, mas tambm conscin-cia de ateno (noticing awareness). Aplicamosconceitos s nossas dores. Pensamos nelas comodores, e, na verdade, como dores de vrios ti-pos. Pense agora no hipocondraco que pode to-

    mar as suas dores imaginadas por reais, ou podeao menos confundir com dor o que , no mxi-mo, um desconforto, e no dor. Suponha queele esteja prximo regio em que a dor gradu-almente se esmaece em desconforto, uma regioem que, amide, ele est equivocado. Sabe eleque realmente tem dores simplesmente porque,desta vez, , de fato, uma dor que est a fazer

    com que lhe parea que tem dores? Isso parecebastante implausvel.8

    QUE TIPO DE ESTADO PODE CONSTITUIRUMA BASE RACIONAL?

    Faamos uma pausa e retomemos de trs.Postulamos vrios estados mentais comocognitivamente relevantes, e anotamos as relaescognitivas entre mente e mundo a que eles doensejo. Numa ponta, esto fazeres (doings) passi-vos e outros estados mentais autoapresentantes

    (self-presenting). Esses inclinam o sujeito a as-sentir, quer queira quer no. Poderiam apropria-damente dar origem a tal inclinao de qualquerdas duas formas seguintes. Aquilo em que umapessoa est inclinada a crer talvez que a pessoaest num estado tal como quando uma dor decabea a inclina a crer que ela est com dor decabea. A pessoaparece, assim, sofrer de dor decabea e precisamente o sofrer de dor de cabe-a que d propriamente origem a esse parecer.Tem a pessoa umarazopara esse parecer, umarazo pela qual ela, ento, se inclina a aceitarque sofre de dor de cabea? Certamente ela tem;ainda assim, a inclinaopor aquela razonorequer uma conscincia separada de que se temdor uma crena, talvez, de que se tem dor ,baseada na qual, pormodus ponens, se poderiachegar a crer que, de fato, se tem dor, ou ao me-nos a se inclinar a crer assim. Isso est fora dequesto, posto que exigiria que a pessoaj hou-vesseformado a crena de que tem dor. Antes, a

    base racional precisa envolver, como base, a pr-pria dor de cabea, a qual deve prover a basemotivadora para o parecer, para a inclinao aassentir. Essa inclinao deve, em seguida, rivali-zar com o que quer que pese motivacionalmentesobre o que se pensa acerca de se estar realmen-

    7Penso, aqui, num caso normal, no em dores autoinfligidas,o que introduz complicaes irrelevantes.

    8O nosso problema do hipocondraco assemelhado ao Pro-blema da Galinha Pintada (Speckled Hen) para o internalismodo dado (givenist). Um problema desse tipo se aplica tanto crena ou credo baseada na experincia acerca da cenadiante de voc quanto crena ou credo introspectiva so-bre estados de conscincia no interior de voc.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    7/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    29

    Ernest Sosa

    te com dor (por contraste com, digamos, des-conforto). Do embate desses vetores emerge uma

    resultante (a includo, como caso limitante, ovetor nulo). Esse vetor resultante correspondera um parecer (seeming) ou inclinao resultan-te. Quanto dor de cabea, o vetor resultanteser um credo (credence) de certa magnitude,qui um credo positivo com alta magnitude.

    Essa uma forma pela qual se pode ade-quadamente derivar um credo com alta magni-tude. Mas possvel faz-lo de maneira bem di-ferente, tal que o estado mental que inclina apessoa a assentir tem ele mesmo um contedo

    proposicional. Pode, por exemplo, ser uma ex-perincia visual, como se uma pessoa estivesse aver uma superfcie branca e quadrada. Agora, apessoa pode inclinar-se a aceitar no apenas quetem essa experincia visual, mas tambm que,de fato, v essa superfcie. E, repito, precisamosconceder que a experincia visual pode serautoapresentante, de tal forma que a sua merapresena fornea uma base racional ao corres-pondente fato de parecer pessoa que ela v talsuperfcie. Ou seja, a sua capacidade para atrairo nosso assentimento no precisa, por sua vez,ser mediada pela conscincia proposicional dela.Pareceres (seemings), que so, assim, baseados,perceptualmente ou experiencialmente, devemconfrontar-se em seguida com quaisquer outrasforas racionais parecenas racionais ou incli-naes racionais a assentir que venham ao caso.Desse confronto emerge um parecer resultante,um credo cuja magnitude pode ser alta.

    Examinamos as maneiras pelas quais voc

    funciona aqum de escolhas livres e conscientespara adquirir um credo de alta magnitude quan-to ao fato de que p. Mas e se voc agora pe aquesto sobre se p? Tomar voc nota, explicita-mente, do seu alto grau de confiana do seucredo de alta magnitude e aplicar uma polti-ca que pede pela afirmao de que p com baseem tal credo? Aplicar voc aqui a sua polticaatravs de um silogismo prtico?

    No, esse um beco sem sada. Como jvimos, todas as trs opes agripianas esto in-

    terditas se nos restringirmos regio das dili-gncias (endeavors). Juzos livres no podem ga-

    nhar um estatuto epistmico arbitrariamente,sem base racional para o ganho. Tampouco podehaver um conjunto de juzos livres, cadaum dosquais derive sua propriedade epistmicainteira-

    mentedo fato de se basear racionalmente em ou-tros membros do conjunto. No importa muitose o conjunto finito (no caso de circularidade)ou infinito (no caso de regresso infinito). Emnenhum dos casos plausvel que tal conjuntopudesse alcanar, numa maneira puramente in-terna ao conjunto, propriedade epistmica para

    as crenas que o componham. Em nenhum doscasos poderiam esses membros alcanar, assim, ajustificao epistmica requerida, um tipo de es-tatuto normativo especfico exigido de uma crenacandidata a constituir conhecimento. Ou seja,em nenhum dos casos se lograria esse estatuto atravs meramente de tal inter-relao mtua para as crenas membras do conjunto. parti-cularmente implausvel que tal estatuto pudesseser adquirido dessa maneira (interna ao conjun-to) para crenas acerca dum mundo exterior almda mente do sujeito, a despeito do isolamentode todo o conjunto relativamente quele mundocircundante. E o isolamento relevante o iso-lamento da base racional que privaria os nossosjuzos livres de qualquer fiabilidade epistmica.

    Mas por que deveria isso impedir que osilogismo prtico explique de que forma juzospodem ser formados livre e fundacionalmente?Eis a razo. Vimos acima por que se precisa deestados racionalmente embasantes para alm de

    juzos livremente determinados. Precisamos des-sas razes para obviar arbitrariedadefundacional. Mas, ao vermos por que precisa-mos de tais freios de regresso, torna-se claro porque precisamos restringir a maneira como umjuzo livre pode ser apropriadamente baseadoem tal razo. Esse embasamento no pode serdo tipo que envolve conscincia judicante dabase, juntamente com a crena de que talembasamento carreia a verdade da crena a serbaseada nele. Isso envolveria um raciocnio por

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    8/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    30

    AGNCIA EPISTMICA

    modus ponens, com premissas livremente ajuiza-das revestidas de uma crena livremente ajuizada.

    E isso no escaparia regio da liberdade damaneira exigida.Ainda precisaramos consideraro estatuto epistmico das premissas livremente ajui-zadas (e porventura tambm aquele da generaliza-o livremente ajuizada que as revestiria).

    Portanto, isso no pode estar certo. Ao in-vs disso, precisamos lanar mo do estado fun-cional ele mesmocomo uma base racional. Preci-samos transpor o hiato entre a regio da liberda-de e a regio dos funcionamentos. Precisamosduma relao de embasamento racional que enseje

    uma base no interior da regio dos funcionamen-tos para um juzo livre na regio da liberdade.

    Eis por que precisamos de embasamento ra-cional trans-regional. Esse embasamento transpe afronteira entre duas regies epistmicas de estadosmentais: a regio dos funcionamentos e a regio daliberdade; e um raciocnio similar revela a nossanecessidade dele tambm na fronteira entre a re-gio da passividade e a regio do funcionamento.

    A IMPORTNCIA DA COMPETNCIA

    Falamos sobre o lugar crucial do embasamentoracional trans-regional na economia cognitivahumana. No entanto, o nosso razoamento tam-bm releva a importncia da competncia paraa justificao epistmica que constitutiva doconhecimento. Por vezes, no plausvel que apropriedade racional de um credo (credence)derive inteiramente se que o faz de todo de

    embasamento racional. As crenas de pessoascom super-viso cega (super-blindsighters) soaqui pertinentes, bem como as nossas crenasaritmticas, geomtricas e lgicas mais simples,e outras crenas simples que no exigem baseracional. O que importa para a propriedadeepistmica dessas crenas variadas , em boamedida, simplesmente que elas derivem da com-petncia epistmica apropriada, que, nesses ca-sos, no precisa estar baseada na razo. Emboraa crena humana seja amide competente por

    meio de embasamento racional, pode tambmser competente atravs de meios subpessoais.

    Presume-se que seja por meios subpessoais queas pessoas com viso cega conhecem. Subpessoaltambm parece ser o conhecimento de que jfazem mais de dois segundos que uma pessoadespertou, quando ainda est na cama em viasde se levantar.

    O nosso razoamento diz respeito no ape-nas justificao funcional de desempenhos ra-cionais na regio do funcionamento apropriado.Tambm diz respeito justificao dentica dedesempenhos racionais na regio do juzo livre e

    responsvel. verdade que as competncias per-tinentes a esse ltimo, a diligncias livres, en-volvem, crucialmente, a vontade, como Descar-tes viu claramente ao reconhecer uma faculdadevolitiva de juzo livre, juntamente com a sua fa-culdade funcional de entendimento determina-do divinamente.

    Contudo, a mera correspondnciaentreum credo ou crena e um dado, um estadoautoapresentante mera coincidncia de con-tedo , no h de bastar para a justificaoepistmica que o conhecimento requer. Tome-sea correspondncia entre o meu campo visual sub-jetivo com dez manchas e a minha crena diretade que h dez manchas naquele campo visual.Esse fato correspondente no basta para assegu-rar que a minha crena seja epistemicamentejustificada. Tambm preciso, alm disso, havercompetncia relevante. A minha habilidade desenso numrico (subitize) deve estender-se ao casode dez itens, o que ela est longe de fazer.

    Os fenmenos de viso cega e percepodo tempo tornam duvidoso, ademais, que ofundacionalismo deva se fiar essencialmente emestados psicolgicos pr-crena com base nosquais possamos crer racionalmente. Embora acompetncia relevante ao conhecimento possaoperar baseada em tais estados estados de dor,por exemplo, ou de experincia visual bsica ,no precisa faz-lo. Novamente, ela tambmpode operar por meio de mecanismos subpessoaisque ensejam crena ou credo diretamente atra-

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    9/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    31

    Ernest Sosa

    vs deinputscausais via luz, olhos abertos e umcrebro e sistema nervoso que viabilizam crena

    responsiva e discriminatria.Algo semelhante parece verdade, adicio-nalmente, sobre conhecimento introspectivo.O que poderia embargar o conhecimento diretoe fivel das disposies mentais da prpria pes-soa? Mesmo o autoconhecimento pode estar as-sim assegurado atravs de competncia direta,sem uma conscincia orientadora prvia.

    Lembre por que a circularidade e o regres-so parecem viciosos independentemente de nosrestringirmos a juzos livres ou incluirmos tam-

    bm funcionamentos racionais. Parece fora dequesto que todo um conjunto de juzos ou cren-as ou credos possam todos ser epistemicamentejustificados ou competentes simplesmenteem vir-tude das suas inter-relaes racionais embasantes.De novo, isso se torna implausvel pelas duasconsideraes seguintes: primeiro, que a justifi-cao epistmica no poderia ser completamen-te isolada da verdade; segundo, que tal conjun-to, com as suas inter-relaes racionais,poderiaser relevantemente isolado da verdade, o quedespojaria os seus membros de justificao ple-na, no importando o quo bem inter-relaciona-dos fossem. At mesmo inter-relaes racionaisintrincadas no interior de tal conjunto podemainda no estar relacionadas a quo provavel-mente verdadeiros possam ser os seus membros.Uma estria intrincada existente na mente deum grande romancista poderia conter muitasinter-relaes racionais sem vestgio de verdaderelevante. Um romancista suficientemente per-

    turbado ao ponto de comear a crer na sua est-ria no lograria, por isso, justificao epistmica,um estatuto exigido para conhecimento, aquelede crena epistemicamente competente. E issono pode ser remediado simplesmente pela adi-o de membros, de crenas ulteriores, nemmesmo ad infinitum.

    O remdio preferido por muitos requerrelaes a estados dados, autoapresentantes, naregio da passividade epistmica. Parece que, defato, freamos o regresso da justificao atravs

    de tais fundamentos, j que esses estados dadosautoapresentantes no so de um tipo a ser jus-

    tificado, tampouco precisam ser justificados demaneira a prover justificao para credos oucrenas ulteriores baseadas neles. Podemos, ade-mais, obter, assim, a relao exigida com o mun-do para alm de crenas e credos (credences), jque tais estados autoapresentantes so, eles mes-mos, parte daquele mundo alm e j que eles po-dem, alm disso, prover um canal fivel com omundo inteiramente exterior mente do sujeito.

    Mesmo que tudo isso parea correto, o queno parece correto que apenas atravs da

    postulao de semelhantes estados mentaisautoapresentantes, fundacionalmente embasantes,ns possamos assegurar as relaes relevantesde fiabilidade veritativa com o mundo alm dasnossas mentes. No poder haver mecanismossubpessoais que, com fiabilidade semelhante,relacionem as nossas crenas com o mundo ex-terior? Os casos de viso cega e de percepo dotempo mostram que isso mais do que apenasuma possibilidade conceitual.9

    Ademais, temos agora razes para recon-siderar o estatuto de experincias sensrias comcontedo. Havamo-las situado na regio da pas-sividade epistemicamente no funcional, em queo sujeito de modo algum um agente epistmico.Essa regio, supostamente, reside alm da regiodos funcionamentos epistmicos, alguns racio-nalmente motivados por outros, mesmo que ne-nhum mero funcionamento seja livremente de-terminado. Mas agora encontramos razo parasancionar tais funcionamentos das pessoas com

    viso cega, por exemplo, e dos nossos perceptoresdo tempo que no tm base na regio da passi-vidade, uma vez que no esto baseados, de modoalgum, em estados mentais apropriados. Assim,os credos das pessoas com viso cega no preci-

    9 Alm disso, nossas crenas mais simples de lgica, aritm-tica e geometria oferecem outros exemplos em que crenasfundacionais alcanam justificao epistmica sem a ajudade estados mentais dados, pr-crenas, autoapresentantes.O mero entendimento nos d, plausivelmente, o acessode que precisamos ao conjunto relevante de verdades sim-ples, desde que sejamos suficientemente fiveis em taiscrenas baseadas em entendimento.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    10/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    32

    AGNCIA EPISTMICA

    sam, de todo, de base mental apropriada. Deri-vam, antes, de estados subpessoais que envol-

    vem transmisso de energia do meio ambienteatravs dos receptores do sujeito e seu crebro esistema nervoso, onde tudo isso acontecesubpessoalmente e, ainda assim, de alguma ma-neira que epistemicamente competente e fivelem termos de verdade.

    Tais credos subpessoalmente competen-tes podem, assim, adquirir um estatuto propria-mente epistmico e prover base epistmica paraulteriores credos, e nalgum ponto at mesmo parajuzos livres. Isso dito, experincias sensrias com

    contedo no esto propriamente relegadas regio da pura passividade epistmica; elas me-recem um lugar na regio dos funcionamentos.Pois tambm elas derivam deinputs subpessoaisatravs do crebro e do sistema nervoso do su-jeito, e tambm elas podem ser mais ou menoscompetentes quanto verdade. No h, assim,razo aparente para no as situarmos na regiodos funcionamentos, juntamente com credos epareceres (seemings), mesmo que esses ltimosenvolvam, distintamente, conceitos. Credos epareceres, verdade, distintamente envolvemalguma aplicao mais estrita de conceitos. Po-dem, portanto, ainda merecer que se distingamdas experincias sensrias, medida que os seuscontedos esto imediatamente disponveis paraservir de premissas a raciocnios conscientes.Experincias, ao contrrio, podem no estar ime-diatamente disponveis para tal razoamento com-petente,nem mesmo atravs do uso de demons-trativos.10Essa uma lio do Problema da Gali-

    nha Manchada. No obstante, experincias ain-da podem ser competentemente verdicas, as-

    sim manifestando um tipo de competnciaperceptiva do sujeito que percebe. Isso distin-gue, por exemplo, as pessoas com boa e claraviso daquelas menos dotadas.

    ESCOLHA, JUZO E LIBERDADE

    A nossa distino entre dois tipos de agn-cia epistmica, livre versusno livre, inscreve-seno trilema agripiano brandido pelos cticos

    pirrnicos, que tomamos como se segue. Primei-ro, distinguimos escolhas e juzos que solivresdaqueles quenoo so. Em algumas opes os-tensivas, o agente no plausivelmente livre paraescolher. No me considero livre para escolherpegar agora a minha caneta e enterr-la fundono meu olho direito. Sou talvez livre para fazerisso se assim o escolher. O meu brao est livre,o meu aperto de mo est bom, a minha canetaest disponvel, a minha pontaria est boa, e as-sim por diante. Mas no creio que possa agorafazer aquela escolha. Tampouco acho plausvelque, dada a minha situao atual efetiva, eu pu-desse escolher divorciar-me da minha esposa eabandon-la antes do anoitecer. Examinando-semais de perto, o escopo das escolhas livres pare-ce mais estreito do que poderia parecer a umprimeiro olhar distrado. Mas isso est longe demostrar que no temos nenhum tipo de liberda-de de escolha. De fato, parecemos livres paraescolher quando se exige racionalmente de ns

    que elejamos entre duas opes nenhuma dasquais prefervel outra. Do momento em queescolhemos qual dos lados do sapato calar pri-meiro ao nos levantarmos pela manh at ao mo-mento em que escolhemos qual remover primei-ro quando nos recolhemos, enfrentamos escolhasdesse tipo muitas vezes. Em muitas escolhas quese nos apresentam num dia comum, ademais,mesmo quando existemboas razes em favor deescolher numa certa direo (diferentemente docaso dos sapatos), amide haver contrarrazes,

    10Tome-se um padro que, para mim, tem significncia reli-giosa, de tal forma que eu posso reconhec-lo e armazenarcrenas com conceitos que correspondem quele padrovisual. Para voc, esse padro pode ser apenas um garran-cho. Nesse caso, as minhas crenas podem apresentar(feature), nos seus contedos, o padro ele mesmo de umamaneira que no est disponvel a voc. Ao voltar os olhospara longe do garrancho, o seu acesso sua crena prim-ria (prior) se restringe a o garrancho para o qual aponteih pouco ou algo assim. Ao contrrio, posso esquecercomo adquiri a minha crena sem nenhum prejuzo parao seu contedo pleno, que posso agora reter guardado. Pos-so, por exemplo, reter uma crena religiosa importante detal forma que instncias daquele padro sejam dignas devenerao. O tipo anterior de crena no garrancho, com oseu contedo puramente demonstrativo/indexical, alimen-taria o nosso corpo de crenas de maneira insuficiente.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    11/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    33

    Ernest Sosa

    e nos caber encontrar um equilbrio.O caso do juzo diferente daquele da

    escolha em pelo menos um aspecto importante,qual seja, no existe algo como um juzo propri-amente arbitrrio. Quando o peso da evidnciano favorece a afirmativa nem a negativa, no sepodejulgararbitrariamente, no propriamente.Antes, devesuspender-se o juzo. Quando a ba-lana das razes no favorece calar primeiro osapato direito nem deixar de faz-lo, contudo,

    possvelpropriamente escolherqualquer uma daspossibilidades, a despeito do quo arbitrariamen-te a pessoa deva faz-lo.

    Essa uma razo pela qual talvez parea,inicialmente, que o escopo da livre escolha exce-de em muito o escopo do juzo livre. Pode pare-cer que no h escopo para o juzo arbitrrioapropriado, ao passo que h um vasto escopopara a escolha arbitrria apropriada. Uma vezque somos levados a ser racionais, salvo quandoforas especiais nos conduzem irracionalidade,somos assim forados, aparentemente, a julgarcomo o fazemos sempre que julguemos efetiva-mente. Ouestamos sujeitos fora da razo, ouestamos sujeitos a alguma fora irracional, a al-gum vis, talvez, ou a alguma superstio cultu-ralmente derivada. Por contraste, a escolha podeser arbitrria sem ser irracional, de modo quepode ser feita livremente sem a necessidade defora, racional ou irracional.

    Isso revela uma diferena digna de nota en-tre escolha e juzo no que respeita liberdade. Noobstante, gozamos de ampla liberdade tantode es-colhaquantode juzo. Basta lembrarmos a frequncia

    com que conclumos livremente deliberaes ouponderaes. Decidimos, em seguida, se o equil-brio de razes favorecesuficientementeum lado emdetrimento do outro. Com muita frequncia, emquestes de peso ou triviais, est nas mos do agen-te inclinar-se para um lado ou outro.

    A nossa distino entre animal e reflexivopode ser til neste momento. Muitas crenasanimais gerais so adquiridas ao longo da infn-cia conforme se desenvolve o nosso crebro e anossa identidade cultural vai-se formando. Ou-

    tras crenas so adquiridas mais tarde e ficamarmazenadas mesmo depois de havermos esque-

    cido como foram adquiridas. Tanto as crenasanimais primeiras quanto as tardias podem ori-entar a nossa conduta subconscientemente, sejaa conduta fsica ou intelectual. Vieses, por exem-plo, podem orientar at mesmo algum que osrejeitaria se trazidos conscincia. Tais crenasdirigentes implcitas esto, com frequncia, almdo controle da nossa agncia livre consciente.Pelo menos no esto sob o controle direto deuma escolha livre nica. No podemos modific-las dessa maneira. Isso parece plausivelmente

    verdadeiro tanto de crenas gerais profundasadquiridas atravs do desenvolvimento infantilnormal quanto do nosso fluxo constante de cren-as perceptivas.

    A nossa distino apresenta, de um lado,crenas animais, que guiam a ao, e, de outrolado, juzos reflexivos. Essa distino afim que-la entre vieses profundos e rejeies (disavowals)sinceras e conscientes. De modo similar, quandoum pirrnico nos diz que ele suspende o juzo,ele no precisa estar a negar que tem uma cren-a animal fora do seu controle. Precisa apenasestar a abster-se de endossar livre e consciente-mente aquela crena animal. As distines sosimilares mesmo que o fantico (bigot) negue oseu vis, ao passo que o ctico no precisa negara sua crena animal; precisa apenas furtar-se aendoss-la atravs de um juzo consciente.

    Isso no significa dizer que o juzo livresempre diverge da crena animal. Suponha queadicionemos uma longa coluna na nossa cabea

    enquanto a vemos numa folha de papel. Pode-mos faz-lo sem falhas, e, ainda assim, descrerna nossa operao e nos recusar a endossar oresultado. Ponderamos sobre crermos ou no nanossa computao e decidimoscontra ela. Su-ponha que, em seguida, usamos caneta e papel.Agora, podemos sopesar novamente a crena nonosso resultado. E aqui podemos de novo exer-cer liberdade, medida que est em nossas mosacreditar no resultado. Dessa maneira, ns po-demoscontrolar as nossas crenas animais. Se

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    12/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    34

    AGNCIA EPISTMICA

    adotarmos e armazenarmos livremente o resul-tado da nossa computao, isso pode orientar a

    nossa conduta no futuro, mesmo aps haver-mos esquecido a fonte da nossa crena.Esse um caso em que parecemos livre-

    mente responsveis pela crena animal relevante.Mas h abundantes casos em que o raciocnio cons-ciente atual no capaz de afetar crenas animaisarraigadas, adquiridas por meio de percepo atualou passada, da infncia. O caso do vis sincera-mente negado sugere, contudo, que o endossoconscienteno precisaser motivado pela crenaanimal correspondente. No fora assim, note-se,

    ademais, o que se seguiria, implausivelmente, acer-ca do ctico pirrnico: que ou ele deve ser ummentiroso ou estar a enganar-se a si mesmo quan-do professa suspender o juzo sobre crenas dosenso comum.

    O nosso arrazoado sugere uma distinoentre tal crena animal e a crena reflexiva(reflective). A crena animal constituda porum estado armazenado que pode guiar a condu-ta subconscientemente. A crena reflexiva, porcontraste, uma disposio para julgar afirmati-vamente em resposta a uma pergunta se sob ainfluncia de nenhum objetivo alm daquele deresponder corretamente com verdade. E essejuzo que a pessoa est disposta a emitir umato consciente distinto ou um estado conscien-temente mantido. esse ato ou estado que estno mbito do nosso controle livre quase to fre-quentemente e plausivelmente quanto o esto asescolhas que fazemos ordinariamente e as inten-es conscientes que mantemos.

    Note-se, finalmente, a maneira peculiar comque ns controlamos livremente tais crenas. Su-ponha-se que a crena relevante constitutivamenteuma disposio para assentir com liberdade, apsponderao, sob a influncia de nenhum outroobjetivo consciente para alm daquele de res-ponder corretamente. Distingamos, agora, entredisposies baseadas na vontade e aquelas queso passivas. Uma disposio pode ser passivaporque o seu hospedeiro no , de modo algum,um agente, como no caso da solubilidade de um

    cubo de acar. E uma disposio pode tambmser passiva mesmo quando o hospedeiro um

    agente, mas ainda passivo no tocante quela dis-posio, como quando voc est disposto a chu-tar com a sua perna por efeito do martelo domdico. Por contraste, uma disposio baseadana vontade pode dar em uma poltica livrementeescolhida ou mantida. Tome-se a poltica de sina-lizar as converses ao dirigir. Isso pode levar auma escolha, consciente ou subconsciente, de si-nalizar, em certa ocasio, ao aproximar-se de umaesquina. A escolha livre especfica implementa,ento, o procedimento, o compromisso geral li-

    vremente escolhido de sinalizar as converses.Voc est disposto a sinalizar conforme se aproxi-ma das converses, e os sinais escolhidos espec-ficos so guiados por essa poltica, e manifestamessa disposio livremente mantida.

    Essa mesma ideia aplicvel aos tipos decrenas em que ora estamos interessados. Sodisposies, supostamente, para afirmar com li-berdade, e tal disposio pode ela mesmaresi-dir na vontade; ela mesma pode equivaler a umapoltica evidencial livremente adotada. Aqui noadquirimos uma crena animal por meio do fun-cionamento apropriado automtico, no livre,dos nossos mecanismos cognitivos. O compro-misso, ao invs disso, escolhido livremente, talque o mecanismo ele mesmo voluntrio. Oque esse compromisso governa, contudo,no crena animal armazenada automaticamente pormeio do funcionamento apropriado das nossasfaculdades animais. Antes, os nossos compro-missos livremente escolhidos governam os nos-

    sos juzos livres quando sopesamos consciente-mente uma questo luz de todas as razessincronicamente em vista.

    Ademais desses comprometimentos queenvolvem a vontade, no entanto, h competnci-as de raciocnio involuntrias que tambm im-portam nos nossos juzos. Essas competnciasinvoluntrias envolveriam funcionamento apro-priado inscrito nos nossos crebros conformeamadurecemos intelectualmente. Elas no seriam,est claro, elas mesmas, escolhidas livremente. Por

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    13/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    35

    Ernest Sosa

    outro lado, as nossas crenas disposicionais vo-luntrias so disposies particulares livremen-

    te adquiridas e mantidas, como quando a pessoaadquire e mantm a crena de que Steve Jobsera brilhante, mas moralmente falho. Isso im-plica uma livre escolha de assim ajuizar afirma-tivamente ao pr-se a questo, pendente de ul-terior evidncia relevante. Essa poltica pode sermodificada, livre e racionalmente, uma vez mais,se alguma evidncia ulterior chegar a emergir. Serpreciso sopesar a nova evidncia juntamente comquaisquer outras razes relevantes que possamestar vista, e decidir sobre a modificao ou no

    da crena; ou seja, decidir sobre modificar ou noa poltica (policy) de responder pela afirmativa,a si prprio e aos outros, quando sincero.

    HAVER AFASTAMENTO SEGURO COMRELAO AO CTICO DETERMINADO?

    Camos, uma vez mais, em um predica-mento similar? Afinal, o ctico poderia replicaras suas dvidas na segunda ordem. Poderia prem questo a nossa confiana na nossa prpriacompetncia de segunda ordem, ao tempo emque recomendaria a qualidade da sua prpriaautoconfiana correspondente. De novo, pare-ceria teimosamente irracional alinhar-se conoscosem razes para tal. A racionalidade pareceriaexigir razes sincronicamente disponveis a ns,caso quisssemos defender a nossa autoconfianade forma apropriada contra a dvida do nossooponente.

    irracional ignorar tal oponente? Issodepende do contexto. O que mais solicita a nos-sa ateno na altura? Suponha-se que ponha-mos de parte consideraes prticas. Ainda as-sim, que outras preocupaes intelectuais ouepistmicas solicitam a nossa ateno na altura?Certamente pode chegar um momento em que omelhor a fazer para ns, intelectualmente, in-sistir no nosso lado de uma controvrsia sim-plesmente com base em autoconfiana. E o nos-so juzo acerca da ordem inferior pode tambm

    ser suficientemente bem executado, como delese requer caso deva constituir conhecimento. Um

    juzo constituinte de conhecimento precisa ape-nas obviar afalhasepistmicas relevantes mes-mo que ele pudesse ser melhorado acima do seuestatuto adquirido, por meio de mais escrutnioe raciocnio.

    Tomemos dois oponentes que procedemde formas parecidas, com justificao igualmen-te plausvel. Suponhamos que estejam em con-dies simtricas no tocante a qualquer arrazoa-do consciente que empreguem ou possam facil-mente empregar. Cada qual se considera fivel

    relativamente questo que os divide. Cada qualtem coisas melhores para fazer, alm disso, doque resolver a sua querela, mesmo considerandoapenas preocupaes intelectuais ou epistmicas.Nessa medida, e por consequncia, ambos soigualmente racionais em concordar em discordar,em seguir adiante com as suas vidas intelectuais.Contudo, disso no decorre que esto em condi-o simtrica epistemicamente ao faz-lo,tampouco que as suas crenas, e correspondentesjuzos de primeira ordem, esto igualmente justi-ficados em termos epistmicos, se o que selecio-namos por tal justificao o estatuto normativoexigido para o conhecimento.11Uma das crenasem desacordo poder estar muito melhorjustificada epistemicamente do que a outra.

    Tais oponentes so notavelmente simila-res das formas especificadas. No obstante, umdeles pode acreditar em si mesmo com uma basediacrnica muito melhor do que o faz o outro.No podemos subir ladeiras infinitas de endosso

    sincrnico.Nalgum ponto a nossa defesa devese assentar, e, nessa altura, importar quo bemfundadas as nossas disposies relevantes sejam.Nalgum ponto haveremos atingido o fim da li-nha sincrnica. Apenas fatores diacrnicos pe-saro, ento, sobre a autoconfiana residentenaquele nvel, e esses fatores devem receber o

    11Esse o estatuto selecionado por justificao epistmica,o que no significa que essa expresso deva ser definidacomo o estatuto exigido para conhecimento proposicional.No fim de contas, pessoalmente, eu prefiro uma termino-logia de competncia para esse estatuto.

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    14/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    36

    AGNCIA EPISTMICA

    que lhes devido. Se voc raciocina to bem, nemmelhor nem pior do que um dado oponente num

    certo nvel de reflexo, ao tempo em que aindaassim vocs diferem epistemicamente na qualida-de das suas disposies diacrnicas, ento pre-ciso conceder a isso o seu peso devido na avalia-o dos seus juzos e crenas relevantes. Seria agorade bom alvitre respirar fundo e seguir adiante.

    Como vimos, elevamo-nos acima do nvelanimal por meio de endossos baseados em ra-zes no interior da nossa esfera sincrnica. Isso

    nosignifica que ns fracassemos como huma-nos reflexivos se incapazes de alcanar nveis in-

    finitos de reflexo, disponveis, no mximo, aosinfinitamente omniscientes. Antes de mais, deve,

    implica, podepara a agncia epistmica, no me-nos do que para a agncia moral.12E, alm disso,

    12No menos, digo, deixando um espao para questesimportantes e sutis no caminho, nas quais, e na medidadas quais, o dictum se aplica at mesmo no domnio moral.

    13 Essa posio conclusiva ganha plausibilidade quandodistinguimos entre (a) suspenso positiva da crena e(b) simplesmente no considerar uma questo, mesmoestando ela em nossas mentes (before our minds). Asegunda uma recusa em envolver-se mais no assuntode qual atitude tomar frente questo, at mesmo aatitude de suspender. Ver o Apndice para mais sobre osuspender.

    14 Ou pode apenas ser o caso que a prtica cognitiva humanaapropriada no exige tal defesa. Dadas todas as trocas en-volvidas no florescimento humano (a includos os com-ponentes cognitivos de tal florescimento), talvez a nossaprtica cognitiva no requeira essa ascenso ulterior, adespeito do melhoramento cognitivo que sobreviria. Issolevanta questes, algumas das quais claramente no tri-viais. O que prtica cognitiva? O que uma prticacognitiva? Haver uma nica tal prtica, parte de uma for-

    ma humana de vida? Ou haver (tambm?) prticas cul-turalmente especficas que incidem (tambm) sobre um tipode justificao epistmica disponvel a membros da cultu-ra relevante? Tm todas essas prticas um peso normativoapropriado, ou h lugar, nelas, para iluso, e mesmo parasuperstio, pelo menos nas culturalmente especficas?Essa abordagem geral pode revelar variedades de justifica-o epistmica especficas a espcies ou mesmo culturas,ainda que todas compartilhem de importantes similarida-des estruturais e um objetivo comum de alcance fivel daverdade. Intuies de escritrio podem refletir, ento, osnossos comprometimentos com tais prticas, sejam elasinevitveis por meio do desenvolvimento infantil normal,ou embebidas na cultura. Contudo, dado que iluso e su-perstio tambm so adquiridas dessas maneiras, essasprticas requereriam avaliao. E a avaliao epistmicade prticas epistmicas deve, claro, envolver fiabilidadequanto verdade (truth-reliability).

    suponha que nspudssemosascender a um nvelainda maior, impelidos por desacordo num dado

    nvel. Suponha, ainda, que as nossas crenas rele-vantes seriammelhoradas epistemicamente pelosucesso nessa diligncia ulterior. Ainda assim, omelhor no necessariamente o obrigatrio. A nos-sa crena pode ser epistemicamente no provvel(improvable) por meio de tal ascenso semserdefei-tuosa, mesmo que declinemos de ascender, e mes-mo que nem sequer consideremos a possibilidadede ascender. possvel que simplesmente tenha-mos coisas melhores a fazer epistemicamente do quedefender as nossas crenas naquele plano mais ele-

    vado.1314

    Recebido para publicao em 28 de julho de 2012Aceito em 04 de novembro de 2012

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    15/16

    CADERNO

    CRH,

    Salvador,v.

    25,n.spe02,

    p.

    23-37,

    2012

    37

    Ernest Sosa

    EPISTEMIC AGENCY

    Ernest Sosa

    The paper explores a series of distinctionsbetween mental states that might be cognitivelyrelevant, as well as between those that might beself-presenting, so as to analyze the relationsbetween these and the external world, andunderstand the types of beliefs and epistemicjudgments for which they allow. The paper alsoaims to reconsider the (perhaps epistemic) statusof contentful sensory experiences. The goal ofthe journey is to face skeptical objections toepistemic justification akin to those raised bythe Agrippan trilemma, according to whichreflexive evaluation cannot regress infinitely, beinfinitely circular, nor depend upon some

    arbitrary instance. It is also question of clarifying,with the relevant nuances, the relation betweenjudgment and freedom a clarification that is ofimport to the more general question of epistemicagency.

    KEY-WORDS: Judgment. Epistemic agency.Freedom. Knowledge. Agrippan trilemma.

    AGENCE PISTMIQUE

    Ernest Sosa

    Le texte explore toute une srie dedistinctions entre des tats mentaux qui sont ounon cognitivement pertinents, ou qui sont aussiou non auto-prsentants, comme maniredanalyser les relations entre ceux-ci et le mon-de extrieur, et de comprendre les types decroyances et de jugements pistmiques quilspeuvent faire surgir. Notre tude cherchegalement reconsidrer le statut (peut-trepistmique) dexpriences sensorielles ayant uncontenu. Lobjectif de ce parcours est de faireface aux objections septiques quant lajustification pistmique de celles souleves parle trilemme dAgrippa selon lequel lvaluation

    rflexive ne peut rgresser indfiniment, circulerindfiniment ni dpendre dune quelconqueinstance arbitraire. Il sagit aussi, finalement,dclaircir avec des nuances la relation entrejugement et libert clairage significatif pourlanalyse plus gnrale de lagence pistmique.

    MOTS-CLS: Jugement. Agence Epistmique.Libert. Connaissance. Trilemme dAgrippa.

    Ernest Sosa- Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Rutgers (EUA). Foiprofessor de Filosofia da Universidade Brown de 1964 a 2007. Foi professor visitante nas universidades deWestern Ontario, Miami, Mexico, Harvard, Michigan, Texas e Salamanca. Foi Visiting Fellow na St.Catherines College, Oxford (Trinity, 1997), na Universidade Nacional da Austrlia em Canberra (2002) e naAll Souls College de Oxford (Trinity, 2005). Editor dePhilosophy and Phenomenological Research(desde1983),Nos(desde 1999), e Editor Geral dos Cambridge Studies in Philosophyde 1992 a 2003 (CambridgeUniversity Press). Fez extensas contribuies epistemologia, metafsica e filosofia da mente, entre outrosinteresses. Entre as suas principais publicaes esto Knowledge in Perspective(Cambridge, 1991) eApt

    Belief and Reflective Knowledge(v. 1,A Virtue Epistemology, 2007; v. 2,Reflective Knowledge, 2009, OxfordUniversity Press).

  • 7/26/2019 Sosa - AgeNcia EpisteMica

    16/16