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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php SÉRIES DE TRIBUNAL E APRENDIZADO DE ARGUMENTAÇÃO PERSUASIVA: efetividade interna e esboço de experimento 1 TELEVISION LAW SHOWS AND LEARNING OF PERSUASIVE ARGUMENTATION: internal effectiveness and outline of an experiment Renato Luiz Pucci Jr. 2 Resumo: Exame de séries de tribunal em vista da identificação de produtos que possam levar os espectadores a desenvolver a capacidade para a argumentação persuasiva. Parte-se da hipótese de trabalho de que a exposição a séries em que os personagens ficcionais tenham casos difíceis e que, portanto, exerçam a argumentação persuasiva em alto nível, faria com que espectadores desenvolvessem a aptidão intelectual. Um episódio de The Defenders (1961-1965) e outro de For the People (2018- ) são analisados a fim de avaliar sua adequação ao critério de efetividade interna, que estipula que a argumentação persuasiva exibida poderia funcionar na vida real. É esboçado um experimento para testar a ocorrência de aprendizado e de transferência de conhecimentos, tendo como referência um trabalho realizado por Levine, Serota e Shulman. O experimento levará em conta a necessidade de mediação, no sentido utilizado por Feuerstein, para que o conhecimento possa transferir-se para outras áreas da vida profissional e cotidiana. Palavras-Chave: Séries televisivas. Aprendizado. Argumentação persuasiva. Abstract: Examination of television law shows in order to identify products that may lead viewers to develop the capacity for persuasive argumentation. This paper starts from the working hypothesis that exposure to series in which fictional characters have difficult cases and therefore engage persuasive argumentation at high level would cause viewers to develop that intellectual ability. An episode of The Defenders (1961-1965) and another of For the People (2018-) are analyzed in order to assess their suitability for the internal effectiveness criterion, which stipulates that the persuasive argumentation displayed might work in real life. An experiment is outlined to test the occurrence of learning and knowledge transfer, with reference to a study by Levine, Serota and Shulman. That experiment will take into account the need for mediation, in the sense used by Feuerstein, so that knowledge could be transferred to other areas of professional and everyday life. Keywords: Television series. Learning. Persuasive argumentation. 1. Introdução 3 Este trabalho resulta de uma investigação sobre a possibilidade de que espectadores desenvolvam aptidões intelectuais ao assistir a determinadas séries televisivas de ficção. Trata- 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão, do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 Universidade Anhembi Morumbi, doutor pela ECA-USP, e-mail: [email protected] 3 A pesquisa contou com a participação de Karen Juliana Priebsch e Cecilia Nogueira Ribeiro da Costa, orientandas de Iniciação Científica e alunas do curso de RTVI da Universidade Anhembi Morumbi.

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SÉRIES DE TRIBUNAL E APRENDIZADO DE ARGUMENTAÇÃO PERSUASIVA: efetividade interna e

esboço de experimento1 TELEVISION LAW SHOWS AND LEARNING OF

PERSUASIVE ARGUMENTATION: internal effectiveness and outline of an experiment

Renato Luiz Pucci Jr.2

Resumo: Exame de séries de tribunal em vista da identificação de produtos que possam levar os espectadores a desenvolver a capacidade para a argumentação persuasiva. Parte-se da hipótese de trabalho de que a exposição a séries em que os personagens ficcionais tenham casos difíceis e que, portanto, exerçam a argumentação persuasiva em alto nível, faria com que espectadores desenvolvessem a aptidão intelectual. Um episódio de The Defenders (1961-1965) e outro de For the People (2018- ) são analisados a fim de avaliar sua adequação ao critério de efetividade interna, que estipula que a argumentação persuasiva exibida poderia funcionar na vida real. É esboçado um experimento para testar a ocorrência de aprendizado e de transferência de conhecimentos, tendo como referência um trabalho realizado por Levine, Serota e Shulman. O experimento levará em conta a necessidade de mediação, no sentido utilizado por Feuerstein, para que o conhecimento possa transferir-se para outras áreas da vida profissional e cotidiana.

Palavras-Chave: Séries televisivas. Aprendizado. Argumentação persuasiva.

Abstract: Examination of television law shows in order to identify products that may lead viewers to develop the capacity for persuasive argumentation. This paper starts from the working hypothesis that exposure to series in which fictional characters have difficult cases and therefore engage persuasive argumentation at high level would cause viewers to develop that intellectual ability. An episode of The Defenders (1961-1965) and another of For the People (2018-) are analyzed in order to assess their suitability for the internal effectiveness criterion, which stipulates that the persuasive argumentation displayed might work in real life. An experiment is outlined to test the occurrence of learning and knowledge transfer, with reference to a study by Levine, Serota and Shulman. That experiment will take into account the need for mediation, in the sense used by Feuerstein, so that knowledge could be transferred to other areas of professional and everyday life. Keywords: Television series. Learning. Persuasive argumentation.

1. Introdução3 Este trabalho resulta de uma investigação sobre a possibilidade de que espectadores

desenvolvam aptidões intelectuais ao assistir a determinadas séries televisivas de ficção. Trata-

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão, do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 Universidade Anhembi Morumbi, doutor pela ECA-USP, e-mail: [email protected] 3 A pesquisa contou com a participação de Karen Juliana Priebsch e Cecilia Nogueira Ribeiro da Costa, orientandas de Iniciação Científica e alunas do curso de RTVI da Universidade Anhembi Morumbi.

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se de uma pesquisa de efeitos da mídia (media effects), campo cujo alcance parece não ter

limites, ainda que pesem dúvidas sobre as reais consequências da exposição do público aos

meios audiovisuais. Há décadas os estudos têm constatado que cinema, televisão e internet não

são inócuas em sua ação sobre leitores, ouvintes, espectadores e usuários, em termos de

supostos malefícios ou benefícios. Que os meios audiovisuais propaguem ideologias, que

espectadores assimilem a noção de cidadania ao assistir a telenovelas, que séries policiais

americanas levem a acreditar que os índices de criminalidade nos EUA são mais elevados do

que na realidade, ou que espectadores façam interpretações a contrapelo em relação a produtos

ficcionais — tudo isso parece incontestável. No entanto, aqui tem-se em vista um ponto menos

comum em pesquisas: efeitos positivos em termos de aptidões intelectuais.

O objetivo do texto é delinear as condições para a realização de experimentos que testem

a hipótese de que seja possível o aprendizado de uma aptidão específica por meio de séries

ficcionais de televisão.4 Trata-se de examinar se assistir a certos produtos seriados permitiria

que espectadores aprendessem como realizar argumentações persuasivas. Eis a primeira

questão que se coloca: como deveriam ser esses produtos? Entende-se que, no mínimo, seria

necessário expor espectadores a cenas em que se possa acompanhar personagens no exercício

da argumentação, durante um tempo que permita a assimilação dos procedimentos pertinentes.

Entre as aptidões intelectuais, a argumentação persuasiva foi escolhida por três motivos:

primeiro, a necessidade universal de convencer outras pessoas; em segundo lugar, a tendência

generalizada de tentar fazê-lo por meio de argumentos pífios, da elevação do tom de voz, da

linguagem corporal intimidadora ou mesmo da violência; por fim, a aparente disponibilidade

de incontáveis produtos da ficção televisiva que incluem situações nas quais se exige dos

personagens o exercício da persuasão. Um dos casos com essa característica é o de séries de

tribunal. São histórias que envolvem, em papeis proeminentes, advogados, promotores e juízes

em seu trabalho. Investigam-se séries de tribunal a fim de nelas descobrir elementos que

poderiam ser utilizados no sentido do aprendizado da argumentação persuasiva. Em outras

palavras, buscam-se produtos que contenham cenas nas quais as partes procuram convencer os

juízes, palavra aqui entendida em sentido aristotélico: aqueles que julgam (ARISTÓTELES,

2011, 1354a20).5 Como será visto adiante, nem todas as séries de tribunal possuem ênfase na

4 Por televisão entenda-se televisão expandida, ou seja, alcançando a TV a cabo, streaming e repositórios audiovisuais, como o YouTube. 5 Os textos da Antiguidade grega receberam uma numeração específica que não se confunde com a paginação. Com isso, a localização de trechos citados pode ser feita mesmo em edições e línguas diferentes.

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argumentação persuasiva, entretanto é nelas que, por hipótese, há maior probabilidade de haver

ocorrências pertinentes, em comparação com outros gêneros ou subgêneros televisivos.

Por que seria possível a assimilação de princípios da argumentação persuasiva por quem

está diante de representações ficcionais assistidas em alguma tela? Em especial, tem-se em

vista o aprendizado por meio de produtos que os espectadores normalmente encaram como

mero entretenimento. Sem motivação prévia quanto ao aprendizado e sem necessariamente ter

consciência de que possa estar aprendendo – a situação dos espectadores poderia talvez ser

considerada um caso do que já foi chamado de passive learning (KRUGMAN; HARTLEY,

1970). Por hipótese, esse processo chegaria a resultados semelhantes ao obtido por meio de

contato direto e pessoal entre um ou mais ouvintes e sujeitos que exercitem a argumentação

persuasiva.

Aposta-se que esse resultado poderia ser obtido a partir de uma característica da imensa

maioria dos produtos audiovisuais: o seu naturalismo, isto é, que o mundo representado na

ficção pareça tão real quanto se fosse presenciado por alguém. Em cenas de tribunal, poder-

se-ia talvez aprender a prestar atenção aos argumentos alheios, a manter o foco da própria

argumentação, a usá-la para contradizer argumentos opostos por meio de entimemas, a não

cometer erros que comprometam a própria credibilidade ou a capacidade persuasiva dos

argumentos, etc.

Após explicações sobre o sistema jurídico de um país com grande produção de séries de

tribunal, será definido o que denomino critério de efetividade interna, que auxiliará na escolha

do corpus. Ao final, será esboçado um experimento para testar a hipótese de que se possa

aprender por meio do processo indicado.

2. Adversary system O objetivo da pesquisa não é identificar uma série específica para tecer elogios à sua

qualidade estética ou ideológica, tomando-a como modelo para a aprendizagem em questão.

Trata-se de descobrir elementos que favoreçam o aprendizado da argumentação persuasiva,

sejam roteiros, recursos linguagem audiovisual, estilística, composição de personagens, etc.

Por isso, independentemente de outros aspectos, o corpus da pesquisa será composto por séries

que apresentem esses elementos. Mais à frente, cenas serão analisadas a fim de explicar por

que motivo o episódio de que foram tiradas poderiam servir ao experimento projetado.

Segundo um critério enciclopédico (ERICKSON, 2009), os Estados Unidos produziram

cerca de trezentas séries televisivas de tribunal desde os anos 1940; ou cerca de cem, de acordo

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com fontes mais estritas (GREENFELD; OSBORN; ROBSON, 2009, pos. 1625). Algumas

tiveram existência efêmera, não passando da primeira temporada ou mesmo de alguns

episódios; outras tiveram vida longa, como Law & Order (NBC, 1990-2010). Com o exame

dessa produção, espera-se aumentar a chance de obter os elementos procurados.

Outro fator a conduzir a pesquisa para as séries norte-americanas é o de que naquele país

a justiça funciona segundo o chamado adversary system: O núcleo do adversary system é o choque de advogados em oposição, cada qual representando zelosamente um cliente. […] No adversary system, os advogados - não o juiz - tomam as decisões táticas, como ir a julgamento ou negociar e como apresentar o caso. Um árbitro neutro (o júri ou o juiz) toma a decisão final sem receber

qualquer informação adicional senão as que os advogados optem por fornecer (ASIMOW, 2009: pos. 2085-2090).6

Daí as incontáveis cenas em que advogados ou seus funcionários realizam investigações

em busca de provas que possam auxiliar o cliente, ou altercam com promotores públicos

tentando levar o juiz ou o júri a desqualificar a acusação.

Qual o sentido dessa forma jurídica? Eis a explicação da American Bar Association’s: A melhor maneira de chegar à verdade é permitir que todas as partes concorrentes apresentem seus pontos de vista, a um terceiro imparcial, como adversários ou

oponentes, sob regras que permitam que as provas sejam apresentadas de forma justa

e ordenada (FERGUSON, 2007, pos. 200).7

O juiz escuta, impõe as regras do tribunal, decide ou, se for o caso, passa a decisão ao

júri. Aqui entende-se que esse sistema é amplamente favorável à observação da argumentação

persuasiva. De fato, o adversary system reproduz em modo formal a situação corriqueira em

que um ouvinte acompanha a exposição de arguidores em uma discussão qualquer.

Argumentos e contra-argumentos se sucedem, portanto, ora olhando para um interlocutor, ora

para o outro, o ouvinte escuta e avalia – eis a situação básica naturalisticamente reproduzida

nas séries televisivas.

Percebe-se o quanto o sistema judicial norte-americano difere do vigente em outros

países, como Brasil, França e Itália. Nestes, em geral o papel do juiz é mais ativo, por vezes

aliado à investigação, quase sempre à frente da inquirição dos acusados. Sua decisão levará em

6 The heart of adversary system is the clash of opposing lawyers, each zealously representing a client. […] In the adversary system, the lawyers – not the judge – make the tactical decisions, such as whether to go to trial or plea bargain and how to present their case. A neutral arbiter (either the jury or the judge) makes the ultimate decision without receiving any informational input other than those the lawyers choose to provide. Tradução do autor. 7 The best way to get to the truth is to allow all the competing parties to the present their views to an impartial third party as adversaries, or opponents, under rules that permit the evidence to be presented fairly and in an ordely fashion. Tradução do autor.

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conta somente o que consta nos autos, portanto as falas dos advogados, por mais retóricas que

sejam, dificilmente demovem o juiz de uma decisão desfavorável. Nesses países, a persuasão

oral tem menos ocasiões para se fazer valer e, por conseguinte, quando julgamentos são

representados nos meios audiovisuais, os espectadores pouco ou nada assistem em termos de

argumentação persuasiva. Eis por que as séries desses países não favorecem a busca dos

elementos envolvidos na pesquisa.8

Evidentemente, não se supõe que as séries norte-americanas de tribunal sejam realistas,

isto é, que componham uma representação verídica daquilo que existe no sistema judiciário

daquele país. São comuns os textos de autores dos Estados Unidos a apontar a infidelidade de

séries televisivas em relação ao que efetivamente acontece nos tribunais. Muitas dessas

reclamações são incisivas a ponto de diagnosticar graves problemas resultantes de concepções

equivocadas que a ficção transmite a jurados, testemunhas e público (ex.: BRUDY, 2006, p.

02-29). Em contrapartida, há roteiristas que não apenas confessam o irrealismo desse tipo de

série como também o defendem porque, dizem, sem as licenças criativas as séries não seriam

interessantes para o público leigo (BRINKERHOFF, 2009, pos. 3303-3429). A controvérsia é

grande, mas não concerne ao objetivo do artigo. Aqui não se pergunta pelo aprendizado do

sistema jurídico norte-americano. Importa tão somente que, assistindo a cenas com

argumentação persuasiva, o público tenha a possibilidade de adquirir essa aptidão.

3. Corpus Para que se atinja o objetivo da pesquisa, é fundamental examinar séries segundo um

critério de efetividade interna. Em outras palavras, a investigação deve buscar produtos

ficcionais que realmente exponham espectadores à argumentação persuasiva.

A exigência de efetividade interna pode ser ilustrada por meio de um artigo da área da

Comunicação (LEVINE; SEROTA; SHULMAN, 2010). Os pesquisadores avaliaram o

resultado da exposição de voluntários a episódios da série Lie to Me (Fox, 2009-2011), cujo

protagonista, o Dr. Lightman (interpretado por Tim Roth), é capaz de perceber quando uma

pessoa mente por meio da observação de sinais de linguagem corporal. A composição da série

chega a ser didática, de modo a sugerir que seria possível o aprendizado por parte de

espectadores. No episódio 1.019, quando das explicações de Lightman sobre como descobriu

8 Os tribunais ingleses também adotam o adversary system, porém, em vista de existir muito menor quantidade de séries de tribunal daquele país, o exame dessa produção foi postergado para outra fase da pesquisa. 9 Primeira temporada, episódio 1. Os episódios serão adiante indicados nesse formato.

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uma mentira no caso que ajuda a solucionar, surgem imagens documentais de pessoas que

notoriamente mentiram em público (por exemplo, Bill Clinton), cada um deles fazendo uma

diferente expressão facial a denunciar a falsidade do que disseram.

No experimento de Levine, Serota e Shulman formaram-se três grupos de voluntários:

a) 33 deles assistiram a Lie to Me;

b) 40 assistiram a Numb3rs (CBS, 2005-2010), um drama criminal sem a premissa

de que seria possível descobrir mentiras por meio de expressões fisionômicas; e

c) no grupo de controle, 35 não assistiram a nenhum drama televisivo.

Em seguida, cada participante assistiu a uma série de entrevistas gravadas, em metade

das quais o entrevistado dizia a verdade e no restante dizia mentiras. Consultaram-se então os

voluntários para que dissessem quais afirmações seriam verdadeiras e quais falsas. O resultado

foi o de que pessoas expostas à série Lie to Me obtiveram um maior índice de erros do que

aquelas que assistiram a Numb3rs e mesmo que as do grupo que não assistiu a série alguma.

Em suma, assistir a Lie to Me não desenvolve a aptidão intelectual em questão, mas, ao

contrário, prejudica a distinção entre falas mentirosas e verdadeiras.

O artigo fornece duas explicações para esse desaprendizado. Em primeiro lugar, inexiste

base científica para a ideia de que a atenção a trejeitos faciais resulte em elevada capacidade

de detectar mentiras – em outras palavras, Lie to Me não atende ao critério de efetividade

interna. Em segundo lugar, os voluntários expostos a Lie to Me ficaram mais suscetíveis de

desconfiar de quem quer que seja, mesmo que de fato lhe digam a verdade, porque na série

proliferam mentiras desmacaradas (LEVINE; SEROTA; SHULMAN, 2010, p. 852-853). Essa

distorção do aprendizado seria um exemplo do que se pode qualificar como não atendimento

do critério de efetividade externa: o experimento mostrou que os voluntários não aprenderam

o que deles se esperava.

Para os fins do presente texto, eis a conclusão que se pode tirar do experimento acima

descrito: é necessário que a argumentação persuasiva entre os personagens seja internamente

efetiva, isto é, que esteja de acordo com princípios ou teorias que sustentem o acerto dos

procedimentos exibidos. Em outras palavras, que não seja não uma fantasia de roteiristas, por

mais fascinante que pareça.

Aqui estão os três elementos cruciais para uma persuasão efetiva, segundo Aristóteles

(2011, 1356a1 e 1403b10):

1) o caráter (ethos) do sujeito que tenta persuadir,

2) procedimentos que permitam levar os juízes à emoção favorável e

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3) argumentos propriamente ditos.

Evidentemente, para que esses elementos tenham peso na ficção, os casos em julgamento

devem ser difíceis, com adversários que também sigam princípios da retórica e não cedam ao

primeiro contra-argumento.

O critério interno de efetividade será considerado à frente quando do exame das séries

de tribunal a fim de verificar em quais delas há de fato argumentações persuasivas.

A fim de estabelecer o corpus da pesquisa, considerou-se a classificação de Rosenberg

segunda a qual há duas categorias de séries de tribunal (“dramatic legal TV series”): as

character-driven e as plot-driven, ou seja, dirigidas respectivamente para as personagens ou

para a trama (ROSENBERG, 2009, pos. 597-611). Quando o que mais importa são as vidas

das personagens, suas emoções e problemas pessoais, fica-se no primeiro grupo. Uma trama

instigante, bem elaborada e capaz de criar expectativas inclui o produto no segundo grupo. A

classificação de Rosenberg é útil; no entanto, a pesquisa identificou dois tipos de séries plot-

driven: aquele em que a argumentação funciona apenas na ficção e o que possui características

que possam torná-la efetiva no mundo real.

Eis, portanto, as categorias propostas:

1.ª) Séries character-driven: a vida pessoal das personagens assume o foco, com emoção

e melodrama dando o eixo da trama. Em consequência, ficam em segundo plano o

trabalho profissional e a argumentação persuasiva. O esquema produziu L.A. Law

(NBC, 1986-1994), Ally McBeal (FOX, 1997-2002), Judging Amy (CBS, 1999-2005),

Suits (2011- ) entre outros produtos.

2.ª) Séries plot-driven internamente não efetivas: sempre com cenas de tribunal, embora

nelas assista-se a pouca ou nenhuma argumentação persuasiva, até porque os casos

são de resolução comparativamente simples. Esse esquema foi adotado inúmeras

vezes, por exemplo em Perry Mason (CBS, 1957-1966, sua versão mais famosa),

em Reasonable Doubts (NBC, 1991-1993) e, mais recentemente, Bull (CBS, 2016-

) e For The People (ABC, 2018- ).

3.ª) Séries plot-driven internamente efetivas: apresentam sérios conflitos entre os

advogados ou entre estes e a promotoria, com maior complexidade na resolução dos

casos e desfecho imprevisível. Este último ponto significa que, por vezes ocorre o

insucesso do protagonista e de seus argumentos. Em princípio, esse aspecto

aproxima esta categoria da realidade dos tribunais, em que se ganham e se perdem

causas, evidenciando-se também que é impraticável ir ao tribunal sem estar muito

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bem preparado. São exemplos dessa categoria The Defenders (CBS, 1961-1965), The

Practice (ABC, 1997-2004).

A fim de que as características de cada categoria fiquem mais claras, aqui estão

comentários sobre três séries que serviram de matrizes narrativas para outras produções:

Em L.A. Law, a atenção se volta basicamente para a vida pessoal das personagens. A

título de exemplo, mencione-se uma cena, do episódio 1.01, na qual promotor e advogada, que

mantêm um relacionamento íntimo, discutem seus problemas pessoais diante do juiz em plena

sessão do tribunal. Trata-se, por consequência, de uma série que, assim como as demais da

primeira categoria, pouco ou nada oferece em termos de exposição à aptidão intelectual em

foco.

Em Perry Mason, em cada episódio acompanha-se a investigação e o julgamento de um

caso criminal, sempre do ponto de vista do advogado de defesa. Não são mostrados

preparativos para a argumentação, que, se exibidos, teriam aspectos didáticos para o público.

O resultado é que Mason parece vencer os casos automaticamente, sem muita variação entre

sua performance. Mason prova sempre a inocência de seus clientes, até porque o promotor é

um personagem medíocre e ridículo. Em suma, essa caracterização, que em linhas gerais pode

ser atribuída às demais séries da segunda categoria, leva aos espectadores um tipo de

argumentação que não é efetiva em verdadeiros tribunais e, portanto, nada indica que

funcionaria na vida cotidiana ou profissional de seus espectadores. As séries da segunda

categoria incorrem em um problema análogo ao acima apontado acerca de Lie to Me: supor

que a persuasão aconteça de modo tão fácil quanto em Perry Mason e afins leva à conclusão

de que espectadores que se mirem naquelas cenas, incorrerão em sucessivos fracassos nas

tentativas de persuadir. Evidentemente, não se exclui a possibilidade de que episódios isolados

de produtos dessa segunda categoria apresentem a argumentação persuasiva em primeiro plano.

Isso pode acontecer devido à mudança de roteiristas ou de equipes de roteiristas, fato comum

na produção ficcional da TV norte-americana. De qualquer modo, uma quantidade significativa

de séries de tribunal é excluída em termos de relevância para a pesquisa que aqui se apresenta.

Na terceira categoria, The Defenders apresenta pai e filho advogados criminais. Além,

das cenas de tribunal, a cada episódio expõem-se os bastidores das audiências, com declarações

de possíveis testemunhas, posições conflituosas entre as partes e negociações entre advogado

e promotor. Em geral, o espectador assume um ponto de vista similar ao de alguém presente

ao julgamento. Enquadramentos, trilha sonora, iluminação e outros recursos de linguagem

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audiovisual facilitam distinguir que argumentos funcionam ou não em relação ao juiz ou ao

júri.

Está claro que as séries do terceiro grupo são privilegiadas em termos de cenas que, por

hipótese, levariam espectadores ao aprendizado da argumentação persuasiva.

4. The Defenders A fim de confirmar a detecção de efetividade interna foi escolhido para análise um

episódio de The Defenders.

A série foi criada por Reginald Rose, roteirista que já possuía um nome em relação a

tramas em tribunal. Foi dele o roteiro de um dos mais relevantes filmes desse subgênero: 12

Homens e uma Sentença (12 Angry Men, Sidney Lumet, 1957), que teve origem num episódio,

roteirizado por Rose, da série televisiva Studio One (CBS, 1948-1958), em seguida

transformado por ele em peça teatral. The Defenders, por sua vez, era originária de outro

episódio de Studio One, “The Defender”, exibido em 1957, que também tinha pai e filho

advogados em um caso bastante complexo.

O escrutínio de The Defenders apresenta a dificuldade de que mesmo nos EUA inexistem

cópias em circulação comercial, com exceção da primeira temporada, lançada em DVD em

2016. Na internet, está disponível um único episódio, adiante analisado.10 Outra dificuldade

em relação a The Defenders é o fato de que vários episódios se voltavam para ousadas questões

sociais, que, no dizer de Charles B. Rosenberg, “envelhecem mal” (2009, pos. 659-660). Em

outras palavras, questões sociais que eram prementes e suscitavam discussões acirradas, com

o tempo perderam essas características. Hoje em dia, mal se pode imaginar um julgamento em

torno da legitimidade de cometer eutanásia num recém-nascido com síndrome de Down,

contudo esse é o ponto do episódio 1.01 de The Defenders. Em casos assim, é atualmente difícil

avaliar a efetividade da argumentação persuasiva em jogo.

Entretanto, alguns episódios poderiam ser utilizados num processo de aprendizado de

argumentação persuasiva (ou, ao menos, avaliado em termos de aproveitamento de recursos

para futuras realizações audiovisuais). O episódio 1.25 – “The Iron Man” é um deles, até

porque a sua história envolve um problema ainda debatido nos dias atuais. A fim de que se

entenda melhor as cenas de tribunal, primeiramente um resumo do enredo. Lawrence Preston

(E.G. Marshall) e seu filho Kenneth (Robert Reed) são encarregados da defesa de um

10 Disponível em: https://www.dailymotion.com/video/x5m8udt. Acesso em: 16 fev. 2019.

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universitário fascista, envolvido numa agressão física a outro estudante. Num comício no

campus, Jack Powers discursa ferozmente contra a democracia americana, acusando-a de

deixar as decisões para os eleitores, uma multidão de idiotas, gente de pouca inteligência; por

isso, clama por um “iron man”, ou seja, “um líder com a vontade de se opor à pretensa vontade

do povo” e que “seja responsável apenas diante de si mesmo e de Deus”. Entre os ouvintes, um

estudante protesta contra o orador: “um Adolf Hitler, um Mussolini, um Stalin!”. O discurso

fica mais e mais agressivo, dizendo da necessidade de esmagar os opositores: “atirá-los por

terra, esmagá-los sem misericórdia, impor silêncio”. Dois militantes, que faziam a segurança

do evento, caminham na direção do estudante que protesta e o agridem brutalmente. Levado a

um hospital, entra em coma. Caso morra, o fascista será acusado de homicídio em primeiro

grau por dirigir os agressores, o que o levaria à pena de morte. Como diversas vezes na série,

o caso é difícil, pois, conforme se ouve num diálogo, como um advogado honesto e amante da

liberdade pode defender um sujeito que, se tomasse o poder, acabaria com a Justiça no país?

Em certo momento, o fascista pergunta a Lawrence por que o ajuda a defender-se, ao que o

outro responde: “Não acredito que um homem deva ser condenado pelo que ele pensa”. Powers

retruca: “Eu acredito.” Acresce que o próprio filho de Lawrence é contrário a que assumam a

defesa. Jovem ainda, mal saído da universidade, Kenneth adota com frequência posições

progressistas e, portanto, repudia o íntegro conservadorismo do pai e mostra-se favorável a

uma posição menos pautada por uma concepção abstrata de justiça. A pressão social sobre

ambos é intensa. Um cliente rico, por exemplo, retira seus negócios do escritório dos

protagonistas em protesto contra defesa daquele inimigo da democracia. É conveniente

ressaltar que o episódio foi originalmente exibido em março de 1962, apenas dezessete anos

desde o término da II Grande Guerra: o fantasma do nazismo e das demais forças do Eixo ainda

estava muito próximo, e eram então bem verossímeis reações drásticas em oposição à defesa

de seus adeptos. Ainda assim, Lawrence não hesita em assumir a função.

Antes do julgamento, Kenneth inquere possíveis testemunhas acerca do acontecido e do

caráter do acusado: uma aluna e um professor que estavam no comício, uma vizinha da época

em que o acusado era criança e adolescente, o pai de Powers. Todos dizem que o acusado

realmente ordenou a agressão ou que desde pequeno já era mau caráter (“Um rato!”, diz a

vizinha). Essa primeira parte do episódio, que ocupa cerca de 26 minutos, leva a crer que se

trata de um caso perdido para a dupla de advogados. A essa altura, chega a notícia de que o

agredido saiu do coma e não corre perigo de morrer, o que não livra Powers da Justiça, pois o

processo ainda pode acarretar-lhe dez anos de prisão.

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A seguir, será feita uma análise de trechos do julgamento, a fim de examinar se se trata

realmente de efetiva argumentação persuasiva. Além disso, procura-se verificar como as cenas

são construídas em termos estilísticos e narrativos que possam atingir os espectadores de forma

favorável ao aprendizado.

Começa o julgamento com a fala inicial do promotor ao júri: “Mostraremos que o

espancamento foi planejado e dirigido por Jack Powers (...), o ataque jamais aconteceria sem

que o tivesse instigado. E isso o torna não apenas culpado, mas mais culpado”. Nesse ponto, já

está em cena a argumentação persuasiva. Provém de trás do local reservado ao júri o ponto de

vista segundo o qual a cena é exibida. Por consequência, veem-se os jurados de costas, o

promotor de frente, ao fundo o juiz, os advogados, réu, plateia (FIG. 1). Assim, os

telespectadores têm a oportunidade de receber aquele discurso, tanto em termos verbais quanto

de mise en scène, segundo a perspectiva de quem emitirá o veredito. As palavras do promotor

são breves, mas denotam gravidade e convicção; é manifesta a sua seriedade, tanto nos gestos

quanto em expressões de rosto. Obviamente não é esse o momento para o promotor enunciar

argumentos em favor da culpabilidade do réu. Todavia, o telespectador já sabe que as

testemunhas não serão favoráveis ao acusado.

FIGURA 1 – The Defenders, epis. 1.01

FONTE - DVD The Defenders – Season One

Na plateia, soam gritos de militantes fascistas em favor do companheiro e acusando o

julgamento de ser uma farsa. Em meio ao tumulto, são expulsos do recinto. O incidente apenas

piora a situação da defesa: Lawrence: “O juiz dirá ao júri para ignorar a manifestação, mas você ignoraria se fosse do júri?” Powers: Eu nem acredito em julgamento. [...] Lawrence: Vamos convencer aqueles idiotas [os jurados] a salvá-lo.

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Usando palavras que o acusado utilizara para designar pessoas comuns, Lawrence está

sendo irônico e mordaz quanto à qualificação que seu cliente faz quanto àqueles que o julgarão.

Ocorre o depoimento do professor que estava no comício e testemunhou o ocorrido. Após

um primeiro plano do personagem, a câmera posta-se um pouco atrás de seu ombro direito,

muito próxima à cabeça, assumindo, portanto, um ponto de vista praticamente idêntico ao da

testemunha, com o promotor à sua frente. Ao final do segmento, o enquadramento se fixa na

testemunha, em primeiro plano, enquanto se escuta a voz off do promotor (ou seja, a voz de

quem não é visualizado na tela). A ênfase visual, portanto, está mais no professor do que em

seu inquiridor. O professor é taxativo: o acusado continuou o discurso enquanto a vítima era

agredida, sem esboçar um gesto para impedir o que acontecia. De fato, foi a isso que se assistiu

na cena de abertura do episódio; contudo, há uma premissa oculta na forma como o promotor

encaminha o depoimento: a de que uma pessoa que não compactuasse com a agressão teria

tentado impedir a agressão ou ao menos interromperia a fala agressiva. Essa forma

argumentativa é um caso do que os antigos gregos denominavam entimema: uma argumentação

que não é propriamente lógica, pois se pauta por tomar como premissas opiniões meramente

aceitáveis, porém compartilhadas pelos ouvintes (ARISTÓTELES, 2011, 1395b20 e ss.).

Entimemas são a substância da argumentação retórica, uma vez que silogismos estritamente

lógicos e com premissas indiscutíveis resultariam em argumentos longos e cansativos,

produzindo-se incomunicabilidade do orador em relação aos seus ouvintes. Destaque-se, por

conseguinte, que nada há de errado em utilizar entimemas nos tribunais (e na vida profissional

ou cotidiana); ocorre apenas que entimemas estão sempre sujeitos ao debate e eventualmente

a refutações.

Sucede-se então a inquirição do professor agora pela defesa, numa composição visual

diferente da anterior. De pé e caminhando por trás do réu e de seu filho, Lawrence é enquadrado

em plano americano. Um travelling lateral acompanha o seu movimento. Ao dirigir-se para a

frente do banco das testemunhas, aproxima-se da câmera e anda para a esquerda da tela,

enquanto a câmera o acompanha nesse movimento até enquadrá-lo em primeiro plano (FIG.

2). Não é necessário prosseguir no detalhamento da composição visual do trecho, pois já está

claro que o ponto de vista segundo o qual Lawrence é enquadrado não é o da testemunha, que

está imóvel. Depreende-se que a ênfase visual foi colocada no advogado, não no promotor ou

na testemunha. A Lawrence deve ser dirigida a atenção, o que favorecerá a percepção de sua

postura e argumentação. Ele então pergunta à testemunha se, por ser professor de Psicologia,

não teria realizado encenações didáticas para avaliar a credibilidade de testemunhas oculares.

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Aí está, portanto, a linha da defesa para derrubar as acusações: questionar a validade

indiscutível que o senso comum atribui a testemunhas que presenciaram o fato sem questão. A

inquirição é contida e cordial, porém firme, o que sem dúvida compõe a forma como o

advogado quer ser visto pelos juízes. O professor confirma ter feito experimentos que seguiram

padrões dos estudos de Psicologia. Lawrence lhe pede que descreva para o júri um experimento

em que se encena um assalto. O professor descreve o experimento em que testemunhas oculares

se enganam completamente quanto a um ataque simulado no meio de uma palestra. O

experimento mostra o que acontece com testemunhos em meio a intensa emoção. Estudantes

testemunharam que o ataque fora feito com revólveres, mas na verdade os agressores

empunhavam bananas (risadas no julgamento), e ruídos de palmas foram tomados por tiros de

pistolas. O professor declara que ele mesmo, quando aluno, fora submetido ao mesmo

experimento e então reagira como os seus atuais alunos. Evidentemente, o depoimento levanta

uma séria dúvida sobre o testemunho do professor e das demais testemunhas da agressão no

comício: num ambiente de grande comoção, como aquele, a percepção perturbada das pessoas

pode levá-las a testemunhos sujeitos a graves erros, mesmo quando enunciados com convicção.

FIGURA 2 - The Defenders, epis. 1.01

FONTE - DVD The Defenders – Season One

O próximo depoimento é da estudante que estava no comício, ao lado do estudante

agredido, como ele protestando contra o fascista. Como dito, a Kenneth ela dissera que não

tinha dúvida de que o fascista incitara os agressores contra o estudante. Lawrence a inquere,

tentando reconstituir a aqueles momentos. Ele pergunta se ela viu o orador fazer gestos na

direção do estudante que protestava ou fazer qualquer menção ao seu nome, ao que a moça,

relutante, responde negativamente. Está derrubado o testemunho acusador da moça,

evidentemente com o reforço da descrição que o professor fizera sobre testemunhas oculares

que, em ambientes de excitação emocional, enganam-se acerca de ocorrências sobre as quais

em circunstâncias normais não se equivocariam.

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Adiante, um dos agressores é inquirido pelo promotor e, com um sorriso sarcástico,

declara que o orador havia dado ordens para que atacassem o estudante: “Se abrir a boca, batam

nele!”. Lawrence indaga-lhe se a promotoria teria feito com ele um acordo, expediente

absolutamente normal na Justiça americana: em troca da diminuição da pena, eles acusariam

Powers de os ter dirigido no ataque. Quando o agressor repete a acusação, Powers tem uma

reação inesperada e inadmissível naquela circunstância: avança na direção do juiz gritando que

o comparsa está mentindo. Note-se que essa atitude é vista estritamente do ponto de vista do

júri, inclusive com a panorâmica a simular o movimento da cabeça virando na direção do

acusado. Antes que os guardas do tribunal o imobilizem, Powers corre na direção do júri e fala

para a câmera: “Ouçam-me!” (FIG. 3). Trata-se de um caso de câmera subjetiva, recurso

tradicional e extremamente eficiente para pôr os espectadores na posição dos personagens. No

caso, os espectadores de The Defenders ficam por instantes no lugar de um dos membros do

júri, ou seja, de quem julgará o acusado.

FIGURA 3 - The Defenders, epis. 1.01

FONTE - DVD The Defenders – Season One Por fim, faltava ainda uma testemunha decisiva: o próprio estudante agredido. Como diz

um velho professor de Direito, admirado por Lawrence, é sempre perigoso tomar a vítima como

testemunha da defesa. Entretanto, logo ficará claro por que o advogado decidiu fazer a

inquirição. O estudante ainda está hospitalizado e, portanto, todos os participantes do

julgamento, com exceção da plateia, devem-se dirigir ao quarto de hospital para que o

depoimento tenha validade. Não importa aqui se em tribunais americanos esse tipo de

ocorrência é admissível – para a pesquisa, é relevante tão somente o efeito que o recurso possa

ter sobre aqueles que julgarão.

Inicialmente, os presentes são enquadrados, a maior parte deles em closes realizados com

a câmera imóvel, a começar da vítima, na cama e com o rosto apresentando um enorme

hematoma e com uma atadura na cabeça (FIG. 4). O júri, por sua vez, é visualizado por meio

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de uma lenta panorâmica, na verdade a primeira vez em que os membros do júri são

visualmente individualizados, sinal da ênfase narrativa sobre eles.

FIGURA 4 - The Defenders, epis. 1.01

FONTE - DVD The Defenders – Season One

O advogado começa a inquerir o estudante agredido: Lawrence: Por que estava ouvindo [o discurso do réu]?

Vítima: Eu me interessava.

Lawrence: Interessava-lhe também desnortear o orador?

Vítima: Sim, eu queria fazer-lhe algumas perguntas.

Lawrence: Não seriam provocações?

Eles trocam frases incisivas: Lawrence: Qual o regime político que o Sr. defende?

[...]

Vítima: Acredito na democracia [...].

Lawrence: Então deve crer também que numa democracia o homem pode cultivar quaisquer ideias, não importa o quanto essas ideias possam ofendê-lo.

Vítima: Acredito também nisso, com limitações. [...] liberdade de expressão não dá a homem algum o direito de gritar “fogo” num cinema lotado.

Lawrence: Por que poria em perigo a segurança coletiva?

Vítima: Sim.

Lawrence: Diga-me então se considera que os ideais políticos de Jack Powers, desde que somente ideias, podem representar uma ameaça coletiva?

Vítima: Ora, são insanos.

Lawrence: Mas perigosos?

Vítima: Apenas se por um descalabro imprevisível viessem a ser postos em prática.

Lawrence fez a própria vítima desfazer a analogia entre o ocorrido no comício e o

exemplo do grito de “fogo” no cinema. Em outras palavras, numa democracia a liberdade de

expressão não pode ser coibida, a não ser que aquele que fala provoque diretamente uma

transgressão da Lei.

Em seguida, Lawrence diz querer confirmar o testemunho da vítima. Com a anuência do

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juiz, Lawrence reconstitui no quarto do hospital a cena do crime, isto é, a situação do comício.

Ele dá a palavra ao fascista para que repita exatamente, no mesmo tom usado no comício, o

que então dissera. A vítima intervém como fora visto no início do episódio, entre outras falas,

a de que as massas seguirão os passos do “iron man” como um rebanho a caminho do

matadouro. Lawrence e Kenneth interpretam os comparsas e, ao ouvirem-se os protestos, vão

até o estudante, que ainda está na cama, e iniciam o gesto de agressão (FIG. 5). Enquadramento

fechado no rosto da vítima, que coloca as mãos à frente para proteger-se.

FIGURA 5 - The Defenders, epis. 1.01

FONTE - DVD The Defenders – Season One

Prossegue a inquirição: Lawrence: Não foi isso que aconteceu, Sr. White?

Vítima: Eu não sei.

Lawrence: Powers não indicou especificamente você. Aliás, ele nem se referia a você no momento da agressão.

Vítima, em close: Não me lembro.

Lawrence: A verdade, Sr. White, os fatos com o máximo de isenção. Quero repetir-lhe as últimas palavras ditas por Jack Power: “Só existe um meio de tratar os subversivos – é atirá-los por terra e esmagá-los, impor-lhes o silêncio. “Eles”, Sr. White, não o senhor. Não foi isso que aconteceu?

Vítima: Não sei.

Lawrence: Você tem preconceito contra Jack Powers?

Vítima, após hesitar bastante: Sim.

Lawrence: Não é possível que tenha deixado o preconceito obscurecer a verdade? Nesse caso, não estaria agindo exatamente como Jack Powers age sempre?

Vítima: Sim.

Lawrence pôs o testemunho da vítima em xeque: o réu falava em agressão, mas não

especificamente sobre a vítima. Está encerrado o depoimento.

Entenda-se como a situação é inapelável. Lawrence mostrou ao estudante espancado que,

ao testemunhar, ele estava agindo como o acusado: faltando com a verdade para liquidar o

autor de um discurso ideológico com o qual não concorda. Tão ou mais relevante para a

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obtenção do veredito favorável, que acontece ao final do episódio, é a reconstituição

especialmente dramática do ocorrido no comício. Trata-se de um exemplo de uma das três

exigências detectadas por Aristóteles ao definir em que condições acontece a persuasão: levar

os juízes à emoção favorável ao veredito desejado. O promotor pode ter protestado (“Eu não

sei se isto é um julgamento ou um espetáculo teatral...”), contudo a estratégia não poderia ser

mais adequada: assistiu-se à própria vítima, toda ferida, na cama do hospital, reconhecer que o

preconceito contra o fascista pode estar interferindo na sua exposição dos fatos.

Em suma, tomando-se por base um dos textos fundamentais para o entendimento da

persuasão, a Retórica, de Aristóteles, pode-se dizer que o episódio de The Defenders atende ao

critério de efetividade interna. Ressalte-se que, além de pôr os telespectadores na posição de

juízes, a narração também lhes propicia o contato com uma eficiente argumentação persuasiva.

5. Paralelo com uma série atual

A título de contraposição, examine-se um episódio de For the People, que foi incluída

na categoria de séries de tribunal que não atendem ao critério de efetividade interna. Trata-se

do episódio 1.02 – “Rahowa”, que possui notáveis similaridades em relação ao episódio

analisado de The Defenders. Um jovem advogado judeu é encarregado pela defensoria pública

de defender um supremacista branco acusado de atirar contra uma política numa reunião de

feministas. Este é um sujeito enorme, mal-encarado, ameaçador, que abomina judeus, com

tatuagens intimidadoras pelo corpo, inclusive uma suástica e a palavra “Rahowa”, que significa

Racial Holy War, o que bem anuncia a sua ideologia. O advogado não quer de maneira alguma

realizar a defesa porque supõe pressões sociais que partiriam até daqueles que lhe são mais

chegados: os pais, donos de uma lavanderia em que trabalham arduamente, que veriam o

próprio filho “defender alguém que os vê como animais”. Não tendo como fugir à obrigação,

ele pensa em estratégias para vencer a acusação, que se funda em testemunhas oculares. Em

primeiro lugar, tenta apagar as marcas que, no corpo do acusado, autodenunciam seu caráter e

ideologia, a começar pela suástica tatuada. O plano era mostrar a infância do acusado e como

ele teria sido levado para um mau caminho. Entretanto, o advogado muda de opinião e, no

julgamento, mostra-o como o que ele é: “um nazista”.

Primeiramente, interroga uma mulher que testemunha contra o acusado. Ela diz que,

apesar de estar numa posição visualmente desfavorável na reunião feminista, não tem dúvida

de que foi ele o atirador pois o sujeito é inconfundível, “único”. O advogado mostra-lhe então

fotos de outros homens que estavam no local, todos com os traços característicos de

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supremacistas brancos. Com argumentos semelhantes, ele desqualifica outra testemunha

ocular. Eis as partes mais relevantes de sua fala final: Nossas liberdades estão sendo testadas como poucas vezes antes em nossa história. [...] Se Carl Clarke [o supremacista] usa seu corpo para divulgar ideias que talvez achemos repugnantes, por que eu não posso julgá-lo? Porque neste tribunal nós julgamos fatos, não ideias. [...] Talvez seja justo julgá-lo do mesmo jeito [que ele julga, i.e., pela aparência das pessoas, pela sua cor de pele, etc.]. Mas se vocês considerarem apenas a evidência contra ele, vocês não podem condená-lo por este crime. Por que prender alguém por causa de sua aparência ou pelo que vocês pensam sobre a ideia dele, não é como os Estados Unidos funcionam. Não os meus Estados Unidos.

A trama acima resumida pode ser considerada uma variação do episódio de The

Defenders. Essa fala final, por exemplo, possui o mesmo espírito das ideias de Lawrence.

Entretanto, o caso de For the People quase nada deixa ver do processo argumentativo. Na

verdade, a própria trama é extremamente reduzida, com imensas elipses. Para começar, em

momento algum escuta-se o promotor. As falas do advogado são enunciadas como se

bastassem para produzir um veredito favorável, independentemente do que a promotoria

pudesse contra-argumentar ou inquerir das testemunhas. Em consequência da estrutura

narrativa de For the People, sempre com várias tramas em paralelo num único episódio, tudo

é muito rápido. Assim o caso do judeu e do supremacista é inteiramente contado em 9min55seg,

do total de 42min06seg do episódio. Compare-se com o episódio de The Defenders, com seus

48min30seg voltados para a trama do fascista e do espancamento do estudante. O resultado

óbvio é o de que os casos de For the People pareçam incrivelmente fáceis, mesmo quando de

início afiguravam-se complexos.

Um dos problemas recorrentes em séries de tribunal é a pouca disponibilidade de tempo

de exibição das cenas com argumentação persuasiva. Outro caso exemplar é Law & Order,

visto que metade de cada episódio é destinada à investigação criminal, restando escasso tempo

para desenvolver argumentações persuasivas minimamente fieis a situações reais. Esse é o

problema de For the People, que, além de também dar ênfase à relação pessoal entre as

personagens, desenvolve em cada episódio três ou quatro casos paralelos, fazendo com que

reste a cada um deles pouco mais do que a enunciação da fala inicial do advogado ou do

promotor (ou, em troca, algumas inquirições ou a fala final) seguida da sentença. Em suma,

não há a formulação do contraditório, mesmo em casos complexos, como se bastasse afirmar

algo importante no tribunal para que a outra parte se calasse.

For the People apresenta atualizações frente a The Defenders: produzida em cores, seus

personagens usam figurinos do século XXI; no episódio acima comentado, em vez de o

supremacista fazer um comício, ele transmite sua ideologia pelas tatuagens e por vídeos em

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redes sociais. Todavia, o confronto com The Defenders mostra que suas tramas são

esquemáticas e não reproduzem satisfatoriamente, em termos naturalísticos, situações em que

a argumentação persuasiva é de fato exercida para convencer o juiz ou os jurados, até porque

os argumentos contrários com certeza não seriam desprezíveis.

7. Esboço de experimento Seria precoce estabelecer um protocolo para experimentos que mostrem que, além de

atender ao critério de efetividade interna, o episódio de The Defenders permitiria o aprendizado

da argumentação persuasiva, atendendo ao critério de efetividade externa. No projeto de

pesquisa, está prevista a formação de um grupo de pesquisa interdisciplinar, com integrantes

de ao menos uma área mais afeita a testes de hipóteses. Por ora, a pesquisa está limitada a

fornecer indicações de possíveis parâmetros.

Obviamente o experimento de Levine, Serota e Shulman constitui uma referência por ter

ocorrido entre pesquisadores da Comunicação. Fazendo a transposição de seu esquema, haveria

dois grupos de voluntários, cada qual exposto a séries que atendam ou não ao critério de

efetividade interna, além de um grupo de controle, que não assistiria a série alguma – eis uma

composição básica que poderia ser útil.

Entretanto, aqui se propõe uma diferença na estrutura do experimento: em vez do grupo

que assistiria a uma série de antemão considerada inócua, poderia haver um grupo de

voluntários que, após assistir ao episódio de The Defenders, passaria por um processo de

mediação. Entende-se este conceito no sentido utilizado pelo educador e pesquisador Reuven

Feuerstein: “mediação é uma interação intencional com o educando, cujo objetivo é promover

seu entendimento para além da experiência imediata e ajudá-lo a aplicar o que é aprendido em

contextos mais amplos.” (FEUERSTEIN; FEUERSTEIN; FALIK, 2010, pos. 313-315).11

Assim, “o mediador torna cada evento e cada experiência numa oportunidade para mudar e

expandir os schemata da atividade para quem experimenta a mediação” (FEUERSTEIN;

FEUERSTEIN; FALIK, 2010, pos. 1034-1035).12 A ideia é não limitar o experimento à

exposição de espectadores às séries, mas também inserir a mediação na experiência de um

grupo de voluntários. Em outras palavras, incluir algo que educadores consideram necessário

11 “Mediation is an intentional interaction with the learner, the purpose of which is to enhance the learner’s understanding beyond the immediate experience and to help the learner to apply what is learned in broader contexts”. Tradução do autor. 12 “The mediator turns every event and every experience into an opportunity for change and for expanding the schemata of the activity for the recipient of the mediation.” Tradução do autor.

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para que a experiência do aprendizado não se limite aos elementos a que o educando foi

diretamente exposto. Como dito, o projeto não visa o aprendizado do Direito; por conseguinte,

o que é aprendido por meio de cenas de tribunal deve-se aplicar em outros contextos. O mediador não se contentaria em simplesmente dirigir os educandos a chegar à solução de certo problema, mas os ajudaria a entender o processo de pensamento que devem experimentar para que cheguem à solução. O mediador analisa o processo com os educandos, tornando-os conscientes dele, e também os capacita a chegar ao insight: “Ah-ha! Posso usar em outro lugar o método que usei aqui (FEUERSTEIN;

FEUERSTEIN; FALIK, 2010, pos. 2465-2467).13

Considerando-se os infinitos recursos disponibilizados pelos meios digitais, talvez o processo

de mediação possa ser realizado por meio de aplicativos, sem contato pessoal com o mediador.

Esse ponto seria um passo no sentido da exposição de uma quantidade imensa de espectadores

a ficções televisivas que lhes pudessem proporcionar o desenvolvimento de aptidões

intelectuais.

Assim, haveria três grupos de voluntários:

a) os que assistiriam ao episódio de 1.25 de The Defenders, sem mediação;

b) os que assistiriam ao episódio de 1.25 de The Defenders, com mediação; e

c) no grupo de controle, os que não assistiriam a nenhum drama televisivo.

Os grupos a e b receberiam questionários sobre o que assistiram e sobre situações que

envolveriam argumentação persuasiva em outros contextos. O grupo c receberia questionário

apenas sobre a argumentação persuasiva em outros contextos. Todos os grupos seriam

submetidos a uma situação em que seus componentes teriam a oportunidade de realizar

argumentação persuasiva, por exemplo, tentar convencer outros sujeitos sobre a veracidade ou

não de uma notícia, tendo que levar em conta questionamentos contrários à sua posição.

8. Comentários finais Os resultados de um experimento como o proposto são sempre incertos, mesmo que as

expectativas sejam elevadas. No presente caso, a maior delas é a de que se confirme que

algumas séries televisivas possibilitem o desenvolvimento de aptidões intelectuais. Essa é uma

razão para que seja o trabalho envolva um grupo de pesquisa e não um pesquisador isolado:

13 “The mediator/teacher is not content to simply direct learners to arrive at the solution of the certain problem, but helps them to understand the thinking process they have gone through in order to arrive at the solution. The mediator analyzes the process with the learners, makes them conscious of it, and also enables them to arrive at the insight: “Ah, ha! I can use the method I used here in another place.”. Tradução do autor.

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XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

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com mais profissionais competentes é menos provável que um viés deturpe resultados, de modo

a inadvertidamente tê-los como favoráveis à corroboração das hipóteses.

Outro ponto está na escolha no produto a ser exibido aos voluntários. O fim último da

pesquisa é fazer com que se estimule a produção de novas séries com características que

proporcionem o aprendizado em questão. Mas isso, evidentemente, será um esforço de anos,

levando a ideia a roteiristas, mostrando-lhes os testes realizados. Até o momento, The

Defenders é uma das duas séries que se habilitam a proporcionar resultados positivos.14 No

entanto, o fato de ter ido ao ar há tantos anos, pode ocasionar obstáculos na percepção dos

voluntários que passarão pelo experimento. Portanto, antes de executar o experimento, ainda

serão examinadas séries mais atuais que possam ter características positivas para a pesquisa.

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14 A outra é The Practice, examinada por Pucci Jr. (2018). Entretanto, a série também apresenta alguns dos problemas detectados em The Defenders, como o de ter sido lançada originalmente décadas atrás.

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