Stanislavski e a Construção Da Personagem

6
Stanislavski e a construção da personagem O conceito de criação da personagem reconhece que todos os seres humanos são diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguais na vida, também nunca encontraremos duas personagens idênticas em peças teatrais. Aquilo que faz suas diferenças faz delas personagens. O público que vai ao teatro tem o direito de ver Treplev (personagem de A Gaivota, de Tchekov) hoje e Hamlet na semana seguinte, e não o mesmo ator com sua própria personalidade e seus próprios maneirismos. Embora possam ser desempenhados pelo mesmo ator, são dois homens distintos com suas personalidades e características próprias. Mas não se pode vestir uma personagem do mesmo jeito que veste um figurino. A criação da personagem é um processo. O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer através dela. Mas, para fazer isso, é importante lembrar que a personagem também tem sua própria perspectiva, a ótica através da qual ela percebe seu mundo. Ao longo da peça, a personagem passa pelas duas horas mais importantes de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E, portanto, muitas vezes não tem uma maneira habitual de agir. Por isso, a personagem é capaz de se surpreender e até, às vezes, ser contraditória. Nenhum personagem é completo, mesmo os heróis gregos tinham suas falhas trágicas. Modernamente, a dramaturgia nos

Transcript of Stanislavski e a Construção Da Personagem

Stanislavski e a construo da personagem

O conceito de criao dapersonagem reconhece que todos osseres humanos so diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguaisna vida, tambmnunca encontraremos duas personagens idnticas em peas teatrais. Aquilo quefaz suas diferenas faz delas personagens. O pblico que vai ao teatro tem odireito de verTreplev (personagem de A Gaivota, de Tchekov) hoje eHamlet na semana seguinte, e no o mesmo atorcom sua prpria personalidade e seus prprios maneirismos. Emborapossam ser desempenhados pelo mesmo ator, so dois homens distintos com suaspersonalidades e caractersticas prprias. Mas no se pode vestir uma personagem do mesmo jeito que veste umfigurino. A criao da personagem umprocesso. O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer atravs dela. Mas, para fazer isso, importante lembrar que apersonagem tambm tem sua prpriaperspectiva, a tica atravs da qual ela percebe seu mundo. Ao longo da pea, apersonagem passa pelas duas horas mais importantes de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E,portanto, muitas vezes no tem uma maneira habitual de agir. Por isso, apersonagem capaz de se surpreender e at, svezes, ser contraditria. Nenhum personagem completo, mesmo os heris gregos tinham suas falhas trgicas. Modernamente, a dramaturgia nos oferece pais exemplares que se apaixonam perdidamente por travestis. O primeiro contato do ator com a personagem se d por intermdio do seu problema humano. Esta relao entre a situao objetiva dapersonagem e a ntima necessidadepessoal de transform-la, cria uma sntese dos ladosobjetivo e subjetivoda personagem. A ao torna visvel a vida interna e cria uma base para aexperincia vivenciada. Esta sntese leva a uma viso artsticado papel onde a expresso externa no est separada do contedo da experincia humana. Os objetivos a serematingidos orientam apersonagem aolongo da pea. A cada instante a personagem reavalia sua situaoperante seu objetivo e disso surgea necessidade de agir. comum identificar olado psicolgico (a vida interna)da personagem com as suas emoes. Na verdade, Stanislavski, elaborador dosistema para o ator, sepreocupou durante toda sua vida artstica como problema da criao daexperincia verdadeira. Ele entendeu que as emoes no esto sujeitas a nossa vontade, esim ao resultado de umprocesso de vida. Elas no podem ser atingidas diretamente. A ao o indicador maispreciso da personagem. intil elaborar como a personagem vai agir sem saber qual ao que vai fazer. Por ao entendemos um ato queenvolve o ser humano inteiro natentativa de atingirum objetivo especfico. Na ao orgnica odesejo, pensamento, vontade, sentimento e corpo esto unidos. De fato, ohomem inteiro participa da ao, porisso sua importncia na criao da personagem. Agimos a partirde nossas percepes. Elas e nossas aes expressam quem somos ns. Percebemos, avaliamos e depois agimos.O interior, que invisvel, se torna externo, visvel e artstico atravs daao. Entendido que as emoes surgem durante o processo de ao. A lgica dospensamentos gera algica das aes, que gera algica das emoes. A personagem se diferencia do atorde duas formas distintas, ambas relacionadas com a ao. Como indivduos, somos capazes deempreender uma grande variedade deaes. A personagem ameaa e o atortambm pode ameaar. A personagem consola, mas opersonagem tambm o faz. Mas odiferencia o ator dapersonagem no so as aes simples, individualmente (ameaar, consolar, desejar), mas a ao complexa o conjunto dessas aes simples que est dirigida a umobjetivo, nico, provido de coerncia e lgica prprias. Trabalhando e experimentando esta coerncia ou lgica de aes que no pertencem ao ator e sim personagem, o ator comea a entrar no fluxo devida da personagem.Ao longo de umapea, a personagem capaz de realizar umnmero significante de aes que constituem uma linha contnua que atravessa todo otexto. A linha contnua de aes alinha consecutiva de aes de uma personagem que o atordesenvolve a fim de reforar a lgicae sequncia de seu comportamento no papel. Serve-lhe damesma forma que uma partituraserve ao pianista, dando ao seu desempenho unidade, ordem eperspectiva. Um conceito bsico de criao dapersonagem: ela existea partir desua lgica de aes. Criar a linhacontnua de aes de uma personagem com sua lgica deaes envolve o ator com sua mente, almae corpo juntos, numa pesquisa psicofsica.A personagem se diferencia do ator no que diz respeito lgica de aes e no que diz respeito maneira de agir.Alm da linha contnua das aes comsua coerncia prpria, o ator tambm sepreocupa com as caractersticas da personagem. A composio de hbitos de comportamento chamada decaracterizao. Muitos atores encaram seu trabalho como o descobrimento do gestual particularda personagem. O problema da caracterizao tem duas vertentes. Oser humano existe como indivduo e como integrante de umgrupo social. Dar individualidade e agregar caractersticas que situem a personagem a seus respectivos grupos sociais. As classes sociais, asprofisses, as faixas etrias,demonstram comportamento compartilhado que imediatamentereconhecvel. Ocomportamento humano tambm muda de pas para pas e de poca para poca.Os atores de Agaivota, que retrata vrias camadas da sociedade russa do finaldo sculoXIX precisam ser sensveis ao fatode que suas personagens se apropriam dos padres de comportamento de um outro pase de uma outrapoca. Tambm, dentro dessa sociedade, as pessoas esto separadas pelas classes e funes sociais uma amplapesquisa necessria para qualquer pea que fuja de nossa poca atual. Mas precisamos ficar atentos a observaes superficiais e tentao de criarverdades absolutas. verdade que militares, em geral, compartilham caractersticas prprias que osdiferem dos surfistas, por exemplo, mas nem todos os militares so, e pode mesmo haver um militar/surfista. O que querodizer que hmuitas personagens pertencentes a quadros muito caractersticos, mas que fogem s caractersticas mais marcantes deseus quadros.Dentro dos grupos, cada ser humano um indivduo com suas caractersticas prprias. E o que as determina comocaractersticas individuais, ou, melhor dizendo, como modos de comportamento so peculiaridades interessantes, como umandar diferente, porexemplo, ou um andar desleixado, ou umfalar montono e agudo, uma risada histrinica, etc. Enfim, caractersticas que se somem emum indivduo e que componham sua personalidade. evidente queessas manifestaes externas devem estar associadas s realidades interna e mais profundas dapersonagem.Na descoberta de uma lgica deao nica eindispensvel, o ator percebe que apersonagem demonstra certas tendncias de ao. Por exemplo: Treplev explode em quase todas as suas cenas, mas ao invs de reconhecermos nele unicamente umpersonagem explosivo, devemos estar atentos para os motivos queo levam a explodir. preciso lembrar queo tempo da pea o tempo emque a vida dapersonagem est no limite. Questionando os fatos que o levam a perder a cabea, temos um primeiro passopara estabelecer uma fisicalidade dapersonagem. Temos a base de sua composio fsica, temos o como fazer. Ao adaptar seu corpo a situao em que se encontra apersonagem, o ator comea a compor seu papel. Finalmente, o que vai distinguir a personagem do ator a forma como a ao dapersonagem executada. Hamlet vai inevitavelmente ameaar de formadiferente da que faria o ator, pois, alm do fatode que cada ser humano ser nico e a personagem ser um ser humano, para caracterizar o atorprecisa recompor seu prprio comportamento. Para fazer isso, sem cairna imitao fcil, necessrio transformar os componentes da ao interna e externa que so suscetveis aonosso controle: ao fsica, estado fsico, tempo e ritmo, monlogo interior,pensamentos. Este processo se estende pelo perodode ensaios e temporada, e at depois. comum umator inexperiente e mesmo experientes rejeitarem novos modos de agir mais cmodo apostar nanaturalidade, no espontneo e mesmo nos clichs para compor aspersonagens porque compor uma personagem meticulosamente, passo apasso, rejeitando diversas tentativas at encontrar um caminho satisfatrio tarefa rdua. Adescoberta de uma ao psicofsica nica e indispensvel da personagem, que o sintetize, significa tambm em certa medida, a morte do ator e sua reencarnao dentro dapersonagem, e isso gera medo e nemsempre desejadopelos prprios atores.