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Concerto encenado

cenografia e figurinos

Ana Luena

música original e

direcção musical

Rui Lima

Sérgio Martins

Peixe

textos

Daniel Jonas

desenho de luz

José Nuno Lima

vídeo

Pedro Azevedo

desenho de som

Pedro Lima

interpretação

Pedro Mendonça

(actor)

Rui Lima

Sérgio Martins

Peixe

Samuel Coelho

(músicos)

montagem e

construção de

cenário

Américo Castanheira

– Tudo Faço

cabelos

Carlos Almeida

Manu (Anjos

Urbanos)

participação especial

em vídeo

Sacha

produção executiva

Ana Fernandes

produção

Teatro Bruto

apoio

Fundação Calouste

Gulbenkian

Esta encenação constitui

o projecto prático que

integra o trabalho final de

Ana Luena para a obtenção

do grau de Mestre em

Teatro, especialização

em Encenação, da Escola

Superior de Teatro e

Cinema do Instituto

Politécnico de Lisboa.

sáb+dom 21:30

dur. aprox.

[1:00]

classif. etária

M/16 anos

Estreia absoluta

STILL FRANKENCENAÇÃO ANA LUENA

Teatro Carlos Alberto

11+12 Dez2010

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A proposta para a criação deste concerto

encenado insere ‑se no programa de reflexão

da companhia para o biénio 2009/2010,

um programa centrado no eterno conflito

interior entre o bem e o mal.

Still Frank desenvolve ‑se em torno

do conceito de “monstro” – ou figura

monstruosa e contraditória que provoca

terror, uma vez que representa uma

alteração maldita das regras conhecidas

e estabelecidas, e ao mesmo tempo gera

fascínio, curiosidade e desejo, pois a

advertência sobre os riscos estimula a

vontade de visitar a degradação.

Pretende ‑se que o dispositivo cénico de Still

Frank seja uma máquina viva, produtora

de experiências sonoras e cénicas, que

entremeia momentos de tensão e horror

com momentos de canção melódica. Esta

máquina‑monstro, provocadora e virtuosa,

é o veículo artificial criado para aceder a

uma dimensão distorcida, como se de uma

droga se tratasse. Uma reflexão negra sobre

a criação e a relação entre o criador e a

criatura. •

Ana Luena/Teatro Bruto

Reflexão negraCaso de estudo

Um espectáculo é um aglomerado processual

que requer uma arrumação e síntese que

clarifique a narrativa – ou não. Pode seguir

o caminho contrário à iluminação e ser

uma informidade assumida, um objecto

extravasante, extravagante.

Retomando o tema do Monstro, criatura e

objecto, Still Frank(enstein) reflecte sobre

a construção desenhada por uma criadora

(e seus cúmplices) que permeia diversas

valências: cenografia, figurinos, encenação

– os elementos dramatúrgicos somados

para a definição monstruosa do objecto

cénico, a partir do laboratório engenhoso

das palavras, da música. Território de sons,

corpos ao vivo e imagens, a caminho da

abstracção.

Tratar o Monstro pode e deve ser um

exercício de reconhecimento. Existe ou não

um método autoral para a concretização

do objecto informe? Uma boa metáfora

do confronto do ser em circunstância,

enquanto aluno em fim de curso com

percurso profissional assinalável.

A “monstruosidade” faz parte do real com

o qual nos deparamos com inesperada

regularidade (ora como espectadores, ora

enquanto protagonistas), e que tentamos

“domar”, se para tal não desviarmos o olhar

à deformidade que nos assalta. Disso resulta

a transformação que permite a partilha,

a obra e a reflexão – neste caso, caso de

estudo, sentido dos sentidos. •

Nuno CarinhasDirector Artístico do TNSJ

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In the Bible Cain slew AbelAnd East of Eden he was cast,You’re born into this life paying,for the sins of somebody else’s past,Daddy worked his whole life, for nothing but the pain,Now he walks these empty rooms, looking for

something to blame,You inherit the sins, you inherit the flames,Adam raised a Cain.

Lost but not forgotten, from the dark heart of a dream,Adam raised a Cain.Bruce Springsteen – “Adam raised a Cain”

Levemente inspirado no universo da ópera ‑rock e do concerto conceptual, procurei uma versão do mito prometeico que funcionasse mais difusamente enquanto fusão fragmentária de colagens a que a figuração folclórica da criatura de Victor Frankenstein mais organicamente pertence. Quis, assim, que o meu texto fosse um torso que deveria ser conjugado com outros materiais plásticos, articulando no seu todo um animal à uma possante e fragilizado, segregando uma espécie de saliva colectiva da manta de retalhos comum. Edifiquei a minha própria criatura frankensteiniana a partir da expectativa de que esta conhecesse outras e juntas erigissem um todo maior, ainda que notavelmente desmembrado e de juntas truncadas. O todo deveria, afinal, ser uma aberração inoperante, uma imposição enciumada das suas partes.

Isto não significa que o meu trabalho seja um objecto unificado que vai ser contaminado pela carga vírica dos outros media. Ele é, pelo contrário, e desde a nascença, uma manta de retalhos estilística, mal aparentada, descosida. Os textos são heteróclitos, adensando um desejo de base deste projecto que tinha no recontro das expressões artísticas o seu próprio fundamento, como se o monstro de Frankenstein surgisse precisamente dessa marquesa criativa onde os eléctrodos da palavra, da música, da luz, da encenação, do

figurino se inflamam para dar vida a uma criatura nascida da ambição de Prometeu. O próprio idioma dos textos dá conta disso. A convocação, por exemplo, da língua inglesa é parte dessa deriva. Em todo o caso, o que fiz foi apanhar uns quantos desgarrados, juntá ‑los inopinadamente e lançá‑‑los ao convívio com as outras formas. Still Frank não aspira a qualquer decalque da narrativa clássica de Mary Shelley. É, antes, só um fantasma aparentado, um nado ‑morto, polimórfico e polifónico. A transfiguração plena de um motor criativo sem leis internas de coesão, exasperando, assim, a ordem divina da criação, a sua harmonia, o seu belo, a sua narrativa. Ei ‑lo, a este, imobilizado. Ou reanimado a cada quadro do espectáculo, como se a sua existência fosse uma ilusão criada por um cinetoscópio.

Esta narrativa anómala em Still Frank serve a função de fazer falar um monstro. Entendido de um ponto de vista bastante antropomórfico, como se o monstro, na sua colagem de órgãos de cadáveres – aqui estilísticos – reunisse toda a humanidade. A sua visão é uma confissão de experiências e sentimentos que poderemos interpretar como flagrantemente humanos. Devemos lê ‑lo concretamente, procurando atribuir a cada quadro uma nova criatura, um monstro singular, e depois, abstractamente, como se apenas da reunião conclusiva dos vários quadros nos chegasse essa figura compósita, excêntrica e eufórica que logo se esvazia na sua impossibilidade real. Mas este é um humano erróneo. Embora, em todo o caso, o seu carácter bestial esteja notavelmente ausente, a não ser na expressão do seu sofrimento, lugar para onde confluem homem e besta. Seja como for, esta é a história estática de um Caim. E de como Adão educou um Caim. Chamemos ‑lhe agora Frank. Não um. Vários Franks. Nominalmente já amputados. Mas ainda Frank. •

Adam raised a CainDaniel Jonas

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Isto não vai acabar nada bem. Na verdade, isto nem sequer começa lá muito bem.No início, em plena “Criação”, há um actor cansado e agoniado que põe a rolar, mecânica e ruidosamente, uma máquina de costura. A velha e inútil escultura funcional de ferro e madeira ganha vida, tanta vida que o som que faz parece o som de uma locomotiva a vapor correndo, dentro do horário previsto, rumo a um inferno. A correria da máquina é amplificada, e amplificada, e amplificada. A pulsação começa a ser insustentável para as suas próprias veias, que parecem esperar que a agulha salte do seu lugar e rebente o que tem de rebentar.

Este actor cansado é Frank. Frankenstein. Still Frank. Ainda franco. Ainda Frank. Frank imóvel. E a vetusta máquina de costura, que cria o primeiro de diversos instantes de música concreta neste concerto encenado, é da marca Mundlos. Mundlos, sem boca. Mundlos, uma marca alemã que também forneceu, por exemplo, baionetas às tropas alemãs na II Guerra Mundial. Frankenstein, a pedra de Frank.

A máquina de costura ruidosa, a locomotiva fumarenta, Frankenstein: tudo construções da revolução industrial. O futuro é moderno, o futuro vem coberto de fuligem, o futuro trabalha por turnos e sem dias de descanso. Nesta revolução cria ‑se a semana inteira. Logo, nesta revolução rouba‑‑se o fogo divino e cria ‑se… algo. Mary Shelley deu pela primeira vez à estampa Frankenstein; Or, the Modern Prometheus em Londres, 1818, após uma inspiradora digressão pela Alemanha e Suíça na companhia do amante (e poeta) Percy Bysshe Shelley, que incluiu uma longa estadia na casa de Lord Byron, junto ao Lago Genebra. Nesse tomo, Frankenstein cria um monstro a partir da reciclagem de cadáveres. Fechando o círculo, o monstro criará morte, acidental ou nem por isso. “Cuidado com o que crias/ Pode ser que o temas/ Cuidado com o que querias/ Pode ser que o negues.”

Still Frank contém um pesadelo, um nascimento que é uma descida amparada rumo a uma luz e a um fogo que nada têm de etéreo. É uma fundição (em

bom rigor, um outro tipo de matéria primordial) encenada por Ana Luena a partir de versos hipnotizantes e vívidos de Daniel Jonas. O parto é doloroso, suado. Na enfermaria passa música que partilha a mesma nascente incandescente, adequadamente industrial, os Throbbing Gristle levantando uma nuvem de terror que uiva aos ouvidos de rádios preparados por John Tilbury. Quando a tempestade acalma, pode também escutar ‑se o rock geométrico e nada apaziguador dos King Crimson, ou um pós ‑rock metronómico que espera que algo aconteça. E quando se pensa que sobra apenas o silêncio, percebe ‑se que há no ar o zumbido da estática de um aparelho de televisão que ninguém quer ter. Mas esta é só parte da música desenhada por Rui Lima, Sérgio Martins, Peixe e Samuel Coelho.

Frank arrepende ‑se de ser Frankenstein. Tal como vem acontecendo nos últimos 200 anos de literatura e cinema, o criador surge misturado com a criatura, “a grande besta”. A criatura, suprema negação da existência, não tem nem nunca virá a ter nome. O criador ambiciona ser Prometeu mas falha estrondosamente, e nem sequer é evidente que Victor Frankenstein tenha fígado para tão grande desígnio. A criatura lamenta ‑se: “Sou de aço inolvidável/ Açaime o nome/ Barras de ferro os braços/ Sou entre grades”. O criador apercebe ‑se demasiado tarde do perigo de esgaçar a ambição para lá das suas capacidades. A criatura é abandonada no nascimento, fica órfã mal se vê coisa feita: “Ó mãe, quem és, se és alguém, que eu não/ Nasci, enfim, de mera combustão…”

O monstro com que se lida em Still Frank não é bem a máquina destruidora, acidental ou nem por isso, gerada por Mary Shelley. Mesmo que, por alturas de “A criatura mata”, a contenção abra brechas e, cercado por um bando de músicos subitamente portáteis, ele clame: “Loucura/ Acometido de loucura/ Saltei ‑lhe ao pescoço/ Fiquei com a faca/ E experimentei ‑lhe/ O gume”. Sim, a criatura mata. Dito isto, e imaginando que

Maus fígados

Jorge Manuel Lopes

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se desconhecem os seus crimes, é evidente que a tragédia existencial se revela matéria suficiente para o ocupar “vida” afora, por muito breve que ela venha a revelar ‑se. Este Frankenstein criador‑‑criatura é um Frankenstein fixado e transtornado com o seu próprio vácuo: “Baptisfério fotovoltaico/ Meu mestre, quem és?/ Vate que me adivinhas/ Vade retro/ O que me querias?/ Porque me criaste?” Uma história de incompreensão, pulsão mortífera e solidão, que pode ou não ir parar ao círculo polar árctico.

E o resto da música desenhada pelo quarteto? O resto é um rock que anda perdido num suave remoinho (suave mas, como tudo nesta história, com tendência a piorar), rodeado por uma parede de ecos. Aqui há vozes descarnadas, ali um violino conferindo um tom carmim aos lábios gélidos do som. Às vezes a música também é praticamente minimal, muito provavelmente repetitiva. Em Still Frank, e em putativa homenagem ao que se seguiu à revolução industrial, a representação física de um conjunto de músicos num espaço de comunicação e cumplicidade é impiedosamente estilhaçada: esta é uma banda atomizada, cada intérprete confinado ao seu próprio paralelepípedo e rodeado de diversas manifestações de tecnologia.

Frankenstein persegue o remorso perseguindo o seu monstro pelo gelo. Gelo e fogo. “O frio chama o fogo/ Um fogo indomável/ Um pesadelo deflagrando/ Nos teus sonhos”. O monstro morre no gelo? Para que lhe interessa ser um produto de um tempo em que a ciência já produz maravilhas quando ele se sente sem lar, sem mãe, sem deus e sem companheira? Retorne ‑se ao vácuo: o monstro de Frankenstein é um monstro sem nome; um vazio mais, a juntar a tantos outros vazios. O monstro é um receptáculo que não pode ser preenchido, uma cratera repulsiva. Porque com a morte não se brinca, e com a vida a partir da morte muito menos.

A descida ao inferno: é nisto que dá meter ‑se com o criador, aquele que se escreve com C maiús‑culo. As oscilações de altitude são acentuadas em

Still Frank, pelo que, se está a ler estas linhas já depois de ter encontrado o seu lugar na plateia e não trouxe garrafa de oxigénio, apele à compreensão do assistente de sala e corra atrás de uma.

Frankenstein é pai e mãe. Frankenstein é o titã que roubou o fogo aos céus e que paga pela ousadia. Frankenstein teria maus fígados – ou, se calhar, bons fígados. Há águias em Still Frank? Nem por isso, mas há, lá está, muito fogo. Não daquele literal, mas o que sai da sinfonia abrasiva dos músicos; dos movimentos ora arrastados, ora violentos, ora cambaleantes, de Pedro Mendonça; da escuridão; do ar. Também não há Hércules, e só Frankenstein sabe a falta que ele lhe faz.

Ser monstro é uma profissão dura. O de Still Frank até trabalha como deve ser (usa pedra e terra), mas o seu destino está escrito – mais concretamente, está escrito nos baldes que carrega, letra a letra: S, T, I, L, L. Ainda Frank. Frank imóvel. Resta ‑lhe suspirar por um post mortem minimamente decente: “We all have our dreams and mine are cellophane/ wrapped up and ready to go”. No final de tudo, a criatura nada mais deseja do que o final de tudo. No final de tudo, o espectador pode aperceber ‑se que a sonolência que o guiou por este breve pesadelo deixou ‑o prostrado sobre uma cama de pregos.

Vai ‑se a ver, Still Frank é uma tragédia edipiana sem mãe à vista. Só um pai que se confunde com a monstruosa criação. Frankie não vai para Hollywood tão cedo. E isto não vai acabar nada bem. •

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I. Criação

Cuidado com o que crias

Cuidado com o que criasPode ser que o temasCuidado com o que queriasPode ser que o negues

Teme ‑oNega ‑o

O frio chama o fogoUm fogo indomávelUm pesadelo deflagrandoNos teus sonhos

TemeNega

Não o criesNão o queiras

Apaga o fogoO ardor do fogoNão ardas em desejoNão jazas nas suas cinzas

·························Prometeu

Super ‑vermeVoo rasanteNovo rastejanteRojando o pó de estrelas Esta é a matériaDos sonhosTrama, trama,Reciclando tecidosStillQuedoJazente, já gentePastando o pó prostradoSe ergue a grande besta

Limalha O aço soçobra

Faísca ardente Metal fundido, braço soldadoAltas temperaturasForja, forjado serBerbequim, língua de ferro

Pescado do porãoDa ponte lancei meu gritoNa faina a fauna é findaPor entre as redes o miúdo escapaNossa esperançaNão cresças!Mãe!, mãe!, estou lentoEstou tão lindo de algasO que foi feito de mim?Onde estás, mãe?Sou de aço inolvidávelAçaime o nomeBarras de ferro os braçosSou entre grades

·························Pedi ‑te eu, Senhor, que ao barro

Pedi ‑te eu, Senhor, que ao barroPor homem me tomasses, roguei ‑te euDas trevas promoção?

Eis o monstro de barro!O deus de barro!O ídolo de pés de barro!Homem.Homem.Homem

– Ó mãe!

·························A fria mão contempla o seu vazio

A fria mão contempla o seu vazio.É pássaro branco a céu aberto.Hesita na tonsila do silêncioe reage ao verbo, faz sombras chinesas,diz Mão,

Still Frank

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e um bestiário obedece ‑lhee o papel arca é p’ra grandes chuvase a mão primeira, bíblica e lógica,como nuvem postada à travessia,pulsão genial, bordão mosaico, origem.

Falou e houve, a luz foi mão e abriuas sombras do que é lá na grande ideia.

Derrame de luz líquida no mundo.

A fria mão completa o seu vazio,Sombra de si, inscreve ‑se, é seu espelho.

·························II. O génio do frio

Numa lúgubre noite de Novembro

Numa lúgubre noite de NovembroNas têmporas sonhando sanguessugasNasci, morto acordei, senti as rugas…Sentir? O que é? Sentira? Nem me lembro…Meu pai um fogo, um lume líquido, ódioAo vazio, uma ordem, de acordar.Marquesa que me mandas despertarPorque fui eu subir do cavo pódio?Ó mãe, quem és, se é que és alguém, que ventreMe vomitou assim na lama a alma?Multidão é meu nome… quem me acalma?Por mim rasteja o sangue qual serpente.

Da distracção de uma ideia nasceUm monstro… a deus aspira e homem faz ‑se.

·························O que foi fogo

Aquele que tirita aquece

O que foi fogo hoje gelaSe se esquece de sié porque o fogo se esvaio primeiro fogode serdo ser

·························III. Viagem

Vivo morto

Vivo mortoMorto ‑vivoMe sobrevivoMinha carnePele e membrosTudo oferta

Meu pai cangalheiroMinha mãe a de outroAcidente intumescidoContuso, traumatismoEmurchecidoSou o que fuiFui o que souNem sei se fuiNem sei se souToco ‑me e descarno ‑meQuantos anos tenho eu?A humanidade.

·························A humanidade

A humanidadeHúmusHúmusA humanidade

Humano húmusHumano húmus

À humanidadeImuneImuneÀ humanidade

Imune ao húmus?Imune ao húmus?

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Jonah’s Wreck

I’ve been standing right here since the golden rushI’ve been weeping over zion this gentile’s flushI turn to the sweet lord and there’s no sweet lord to

turn toand then I’m punished by turning to another tooland I miss my little pumpkin, I miss my little mammal it was oedipal and hymenal oh I miss my little rorqual and I miss my little town, I miss my town a lotI seem to bet on bad moves, I keep missing the same

shot

everytime I’m on board I sinkeverytime they ship me off I drop my inkthe wreckage is about to begincome on everybody come on income on everybody come on in

·························Não tenho sítio a que possa chamar meu

Não tenho sítio a que possa chamar meu.Porque o meu sítio eu o sitio e o conquisto depondo ‑lhe o despojo de mim.Achá ‑lo é pois perdê ‑lo, porque logo chego comigoe comigo – no sítio que sou – o deixoque o chegar comigo é já deixá ‑lo,sítio que já não é mais…Movimento tolo e errático, monção patética,bicho obscuro, nexo nenhum de se procuraro que encontrado é em mim perdido.Que sou? Que faço aqui? Que fiz ali? Que fui?De que fujo senão de mim, que nunca se escapa?Assíduo a uma falta.Brio de não lhe faltar pontualmenteà hora marcada,pêndulo indeciso que de mim depende.Aqui espero, percutindo meus dedos na membrana da minha pele.Percutirei até que a mão me doa,até que a mão me seja já marteloe a pele uma bigorna,até que o martelo seja baquetae a pele címbalo,até que o estrépito seja música,música que ressoa.

IV. A criatura mata

Am I still Frank?

Am I still Frank?

O pai deixou o filho!

Motel desertoSalsola aos chutos,Luz perene acesaLosangos, artérias Cicatrizes, centopeiasFósseis, tecido suturadoÀ lapela levo um tomoDe botânica aplicadaOxido, ó deus!, oxidoComo adormecer Sobre pregos?

Traça esquartejadaAdoro vê ‑la drapejarEm tonta valsa invadindoO manicómio bulboso Parede aquarteladaPiche esquizofrénicoBranco puroUm ponto, trevo adejandoTrevo obliterado, traça por fimTraça, o teu caminhoEscreve ‑se no estuque

The moth is on the mat!Have we killed it?

The moth is on the mat!Have we killed it?

The moth is on the mat!Have we killed it?

Moths have no mother!

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Ponte

EE seE se euE se eu nãoE se eu não vacilasse…?

·························Matei!

É de loucos como o sangue jorra!Uma picada apenas, erva lanceoladano lado mergulhandocomunicando com a alma,e um transe imensona terra.

Sangue!poça de chapinhar

(o mesmo sangue que um dia gotejara sobre o lavatório branco…ali debruçado eu viaa imagem terrível,a invasão terrívelda cor)

loucuraacometido de loucurasaltei ‑lhe ao pescoçofiquei com a facae experimentei ‑lheo gume

É de loucos como o sangue jorra!Vermelho nascendo do branco.Um lençol vermelho cobrindoa fria cama do mármore.

V. She Frank

Outro não amo eu que não a mim

Que bela princesinha que hoje sou!Se falo não é doutro e outrossimDe mim me falo, e outro me falhou.Amo p’ra além de mim, sou extravasadoE às vezes amo tanto só de verMas no fim por mim espero emboscadoE em breve dou ‑me o outro a conhecer.Não me cumpro em mim, noutro me adivinhaQue me cumprir me possa, possa ele!Ali!, lá vai! Que triste que é e eu amo ‑o,Pudesses tu, ó bela, ser rainha!

Quem sou? Alguém o sabe? Alguém o quer?Em dois me caso, noivo e mulher.

·························Still Born

This song is likely to be the saddest thingShe hanged herself with a guitar stringThis song gave birth to a still ‑bornShe was carrying the loss forlorn

Crying What have I done?How can one give birth to death?Crying How can one go back?How to go back when you lost the path?How can one go hence When hence is this very fence?

·························VI. Em busca da criatura

Eu sou de Frida Khalo o Cristo vivo

Eu sou de Frida Khalo o Cristo vivo;As juntas me desmontam, vivo em cravos;Mau pano de pespontos e alinhavos…Assim – alheio a mim – me sobrevivo.Em pele escassa sinto‑me a milhas…E as centopeias cosem‑me os brocados.São pontos, cicatrizes, são bocados

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De tudo, dos cadáveres, de cavilhas…No museu anatómico um feto…Ali no ventre vítreo do formol…Eu sou aquilo, fóssil do incerto,Criança que eu não fui e que me engole.

Sou muitos. O meu nome é multidão.E neste aperto sou minha prisão.

·························Eu que sinto co’a pele do pensamento

Eu que sinto co’a pele do pensamentoQueria que os meus nervos fossem mais,Já que o que sinto não é pele mas vento,E só de te pensar me esqueço (De monstro já houve quem me chamasse…Mas como posso sê ‑lo se o ressinto?)Sinto as pedras nas mãos mas se as pensasseTocava ‑lhes e tanto que já minto.Sentisse coisas outras, por exemploO teu corpo que é meu porque o pensei,E indigno me acharia do teu temploQual vassalo que não sabe que é rei.

’Inda assim insensível sei que sou:Sei quem matei, não sei quem me criou.

·························Burn Away

If you’ll ever get to know my namedon’t trouble yourself in writing it downfor as the lover that comes one night and goes awayI’ll soon be on my way

If you’ll ever learn about my facedon’t go on finding beauty in its linesyou know that flowers bloom in sweet days of maybefore those months of decay

if you’ll ever hear the words I saydon’t believe a thing of what you hearfor words are mistresses revolving on the hayif you call them they’ll stay

if you think that wine pours from my skinthen it’s only your thirst speaking not mine

my skin is hard and dry as old cork with no bouquetsmy thirst burns away

like a match I burn awaylike a witch I burn awaylike a knight who goes astraylike a loss that comes to staylike a cloth I burn awaylike a star I burn awaylike a widow who cries awaylike the moth that fears the day

you claim you don’t understand my griefso what? I don’t understand your joy anywayyou boast of what you’ve done today today I’ve just filled my ashtray

dear mother of those winter afternoonswhere are you and your sewing ‑machineI hold so dear the words: a stitch in time saves nineI wish you’d stitch your heart to mine

·························VII. Morte da Criatura

I don’t want to go to sleep

I don’t want to go to sleepfor fear that time runs awayI don’t want to stay awakefor fear that time should staypins and needlespawns and noodlesneedless punsnuns and poodleseverywhere is where the needle doodlesnowhere where to aim the guns

so I look and face my mirrorit doesn’t recognise me backI try to open the soul boxI cut my finger on the crack

so I rush straight to the coronerask him “have you seen my insides?”and his cold eyes shining he says“no, I know all my brides”

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if I put an end to lifeshould I be sober or drunk?sometimes the spirit risesin flesh that has gone shrun

·························Consolation Road

you can ditch me here on Consolation Roadamong the hobos and the homelessthat look for cardboard beds and endless nightsand late night coffee shops with maternal neon lightsand rusty and tired doorsand ads and dusty floorsand toothless motionless employees of freightragged as tobacco paper in their white shirtsslowly trading like death’s pages on a late shiftthe human dirt for a last drift

you can ditch me here on Consolation Roadamong kaddish minstrels and pissed cheapjacks among silent poets and troubadors of lessthat come in waves to this strange contest of sadness and regretwell, Drake never wins it, he sticks to this sad sad consolation prizebut even when he weeps the most there’s something

in his eyeslike hope to foreign hearts of mandolins and sitarsand ways to blue and ways to stars

you can ditch me here on Consolation Roadpaying my respects to the brethren of fear you can say you knew me and you knew me dearand you left me abiding near the never nearunder cryptograms of lovefrom pagan unfaithful lipsas in times not far away yours and all of your bodyand the sun shall not set on these cellophane dreamswe all have our dreams and mine are cellophanewrapped up and ready to go

you can ditch me here on Consolation Roadthere’s always a chance of meeting someone new who doesn’t blame the rain on you tonight who holds your hands and looks you in the eyethere’s always someone there

there’s always someone dearwho greets you with flowers and drums that beat on

your backthat come from pedlar wars with a lexicon of peaceI wish you could meet the cripple and the outcasttheir lazy eyes lost in the past

you can ditch me here on Consolation Roadat this very levee in the trade union of loss no clouds over our heads, just the furtive birdsthat come to steal crumbles and left over sighsand the white night of their flight to sweep the dirty skiesleaving us cigarette butts and long nails dazzling the science of the drunk with swift sobrietyand that’s when the morning comes, and that’s when the morning solvesour bones broken society

·························Estranho para o mundo ousei sentir

Estranho para o mundo ousei sentirO rente chão das coisas, a crisálidaManhã, o dilatar da tarde, a pálidaViúva e o seu cortejo a reluzir.Sentindo um sentimento pleno, fundo,Só de ver uma aldeia que dormisse,Um cão que ladrasse, um trem que partisse…E eu se ficasse um pouco mais no mundo!…E adeus, porém, às coisas, eis que parto,Do mundo não sou, fui um ser de nada,A aldeia, o cão, o trem só uma estradaE tudo o que não tive aqui reparto.

Curioso como um monstro se afeiçoaAo mundo mau dos homens que o magoa… •

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Teatro Bruto

Companhia fundada em 1995, no Porto, produziu até ao momento 32 espectáculos teatrais, cuja organização em ciclos (Quatro Elementos Primordiais 1997/1999; Círculo da Cor, 2000/2001; De Coração nas Mãos, 2002; Margem, 2003; Fio Condutor, 2004/2006; Projecto Raiz, 2007/2008; Monstro Bruto, 2009/2010) tem propiciado uma múltipla experimentação cénica de um conjunto de temas. Investindo ao longo dos anos no desenvolvimento de uma estética arrojada, o Teatro Bruto explora o carácter sensorial da aventura cénica, privilegiando o envolvimento plástico e sonoro das suas produções, articulado com o aprofundamento dos aspectos referenciais da criação teatral. A par de uma estratégica alternância entre o recurso a criadores exteriores e a aposta nos elementos que constituem o Teatro Bruto – garantindo assim, simultaneamente, a afirmação de uma identidade artística e a renovação das suas perspectivas de criação –, uma das matrizes mais relevantes do trabalho da companhia consiste em privilegiar a encenação de textos originais, escritos especificamente para produções próprias. O interesse dramatúrgico da companhia incide, em particular, sobre universos de inspiração surrealista, cujas personagens reais se encontram em contextos irreais, e em que regras absurdas e acontecimentos ilógicos favorecem a multiplicação de sentidos. •

F IC h A TéCNICA

TNSJ

coordenação de produção

Maria João Teixeira

assistência de produção

Eunice Basto

direcção de palco (adjunto)

Emanuel Pina

direcção de cena

Ricardo Silva

maquinaria de cena

António Quaresma, Joel Santos

luz

António Pedra, Abílio Vinhas,

José Rodrigues

som

António Bica

vídeo

Hugo Moutinho

electricistas de cena

Júlio Cunha, Paulo Rodrigues

Teatro Bruto

Fábrica Social

Fundação Escultor José Rodrigues

Rua da Fábrica Social, s/n

4000 ‑201 Porto

T 22 339 51 26

www.teatrobruto.com

[email protected]

Teatro Nacional São João

Praça da Batalha

4000 ‑102 Porto

T 22 340 19 00 F 22 208 83 03

Teatro Carlos Alberto

Rua das Oliveiras, 43

4050 ‑449 Porto

T 22 340 19 00 F 22 339 50 69

Mosteiro de São Bento da Vitória

Rua de São Bento da Vitória

4050 ‑543 Porto

T 22 340 19 00 F 22 339 30 39

www.tnsj.pt

[email protected]

edição Departamento de Edições do TNSJ

coordenação Pedro Sobrado

design gráfico João Faria, João Guedes

ilustração (capa) Luís Silva

fotografia João Tuna

impressão Multitema – Soluções

de Impressão, S.A.

apoios TNSJ

apoios à divulgação

agradecimentos TNSJ

Polícia de Segurança Pública

apoios Teatro Bruto

agradecimentos Teatro Bruto

Américo Castanheira

Ana Gonçalves

Anita Morais

Artur Fonseca

Aventino da Silva – Barbearia Invicta

Cécile Osório

Diego Sanchidrián

Eduardo Abdala

Escola de Treino Paolo Picariello

Escola Superior de Teatro e Cinema/

Instituto Politécnico de Lisboa

Jorge Correia

Leonardo Afonso

Manuela Leal

Marco Oliveira

Nuno M Cardoso

Parque de S. Roque

Pedro de Nóbrega

Rui Monteiro

Rui Rodrigues

Talho Bem Servir

O Teatro Bruto é uma estrutura financiada

pelo Ministério da Cultura/Direcção ‑Geral

das Artes.

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar

durante o espectáculo. O uso de telemóveis,

pagers ou relógios com sinal sonoro é

incómodo, tanto para os intérpretes como

para os espectadores.

SAPATOS

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