SUBJETIVAÇÕES POLÍTICAS DO “POVO DE AXÉ”: modos de ...ticasdopovodeaxen… · PEOPLE”:...
Transcript of SUBJETIVAÇÕES POLÍTICAS DO “POVO DE AXÉ”: modos de ...ticasdopovodeaxen… · PEOPLE”:...
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
1
SUBJETIVAÇÕES POLÍTICAS DO “POVO DE AXÉ”: modos de existência afro-brasileiros no espaço público de Belo
Horizonte1 POLITICAL SUBJECTIVATIONS OF “THE ASHE’S
PEOPLE”: Afro-Brazilian modes of existence at public space of Belo Horizonte
Bárbara Regina Altivo 2
Resumo: O objetivo deste artigo é sondar as potências de subjetivação política
efetuada por comunidades de terreiro de Belo Horizonte em sua ocupação ritual de
espaços públicos. Buscamos pensar essa produção insurgente de si pelas religiões
afro-brasileiras dentro de uma proposta cosmopolítica que alarga a democracia
para nela coabitarem diferentes modos de existência. Em contraste com a
privatização capitalística da subjetividade, consideramos que as operações de
subjetivação das comunidades de umbanda e candomblé forjam resistências através
do direito à diferença e à variação, instaurando dobras nas dimensões 1) do corpo
intempestivo em transe e dos cuidados rituais de si e da relação com os mundos, 2)
das agências humanas e não humanas e de uma temporalidade mítica, 3) da
produção de novas coordenadas de enunciação sobre si, sobre a história da
experiência da escravidão, que desafia as estratificações de saber e 4) de projeções
potentes para o futuro através de contínuas transformações.
Palavras-Chave: Subjetivação 1. Cosmopolítica 2. Religiões afro-brasileiras 3.
Abstract: The objective of this article is to probe the potency of political subjectivity
made by afro religions communities of Belo Horizonte in their ritual occupation of
public spaces. We seek think this insurgent production of itself in accordance to a
cosmopolitical proposal that extends democracy to different modes of existence. In
contrast with the capitalistic privatization of subjectivity, we consider that the
operations of subjectivity of Umbanda and Candomblé communities forge
resistance through the right to difference and variation, introducing folds in the
dimensions 1) of the untimely body in trance and the ritual cares, 2) of the human
and non-human agencies and the mythic temporality, 3) of the production of new
coordinates of statement about yourself, about the history of the experience of
slavery, which challenges the stratifications of knowledge and 4) powerful
projections for the future through continuous transformations.
Keywords: Subjectivation 1. Cosmopolitics2. Afro-Brazilian religions 3.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXV Encontro Anual da
Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutoranda em Comunicação Social (PPGCOM-UFMG), email: [email protected]
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
2
1. Introdução
Em suas elucubrações sobre as derradeiras reflexões de Foucault, Deleuze (1995,
1998) discorre sobre os processos de subjetivação, a constituição de territórios existenciais
em uma formação histórica. Neste âmbito dos diferentes modos de constituição da relação
consigo e com o mundo, Deleuze vislumbra o terceiro eixo do pensamento foucaltiano – a
condição do si - como dimensão que abre caminho para múltiplas operações inventivas que
escapam aos dispositivos de saber e poder (os dois primeiros eixos) construídos pelas práticas
sociais. A ideia de subjetivação não remonta, contudo, ao sujeito ou ao indivíduo, construto
das máquinas capitalísticas que envelopam os modos intensivos da criação de si
(GUATTARI e ROLNIK, 1986). Ao contrário, é no processo de produção de subjetividades
que reside o foco da resistência possível aos modos de fabricação seriada, normalizada e
individualizante do capitalismo, que totalizam e centralizam a subjetividade no indivíduo.
Resistir através da subjetivação diz, portanto, da capacidade de colocar a força em relações
não calculadas pelas estratégias que vigoram no campo político, inventando possibilidades de
existência a partir da articulação de forças inéditas. Através das práticas de si, Foucault
percebe a potencialidade subversiva das “artes da existência”, de compor-se a si mesmo, “se
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer da sua vida uma obra” (FOUCAULT,
1984, p. 15).
Dentro de tal perspectiva, o objetivo deste artigo é sondar a resistência política dos
modos de subjetivação coletiva empreendidos por comunidades de terreiro de Belo Horizonte
em sua ocupação ritual de espaços públicos. Buscamos pensar essa produção insurgente de
uma relação consigo e com o mundo pelas religiões afro-brasileiras dentro de uma proposta
cosmopolítica (LATOUR, 2007; STENGERS, 2005) que alarga a democracia para nela
coexistirem diferentes mundos possíveis, agentes, tempos, espaços, corpos e narrativas. Em
contraste com a privatização da subjetividade encetada pela máquina capitalística,
consideramos que a produção de territórios de existência pelas comunidades de umbanda e
candomblé integra a luta por uma subjetividade moderna através do direito à diferença e à
variação (DELEUZE, 1995, p. 113), instaurando rupturas nas coordenadas de ação e
pensamento que ditam o ritmo da vida cotidiana na cidade.
Para isso, descrevemos e analisamos dois eventos realizados por comunidades de
candomblés e umbanda em espaços públicos de Belo Horizonte: a “Tarde de Liberdade”
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
3
(15/04/2015), ação organizada por coletivos de terreiros na Praça da Liberdade para celebrar
a força e diversidade das tradições culturais de matriz afro-brasileira em resposta aos
crescentes ataques de intolerância religiosa; e a “2ª Noite de Libertação” (16/05/2015), festa
umbandista que ocorreu na Praça Treze de Maio, no bairro da Graça, em homenagem aos
pretos velhos3 e à abolição da escravatura. Trataremos dos dois eventos, experienciados
através de observação-participante, em sua força singularizante que emerge das vivências e
possibilidades dos corpos presentes nos eventos descritos, a sua expressividade e existência
em modos de dança, canto e transe que convocam e propiciam a presença de agentes não
humanos, modos de existência que instauram nas praças um mundo em tensão com as formas
capitalísticas de vida nos espaços públicos.
2. Subjetivações políticas contra a privatização capitalística da subjetividade
Deleuze nos lança uma questão que consubstancia um dos principais aspectos
intrigantes da obra de Michel Foucault: diante da força opressiva dos diagramas de poder e
das estratificações de saber, como resistir? Afinal, “se o poder é constitutivo de verdade,
como conceber um “poder da verdade” que não seja mais vontade de poder, uma verdade
decorrente das linhas transversais de resistência e não mais das linhas integrais de poder?”
(DELEUZE, 1995, p. 101). É nos últimos escritos de Foucault, a partir da “História da
Sexualidade 3: O cuidado de si” [1984], que Deleuze encontra as pistas para o entendimento
de uma dimensão do existir que resiste aos códigos e aos poderes: a subjetivação.
De acordo com a leitura deleuziana (1995, 1998), Foucault encontra no contexto
grego as bases para pensar as operações subversivas de um ‘governar-se a si mesmo’ que
inventa o sujeito como uma derivada, o produto de uma subjetivação que dobra, gera a flexão
e curvatura de uma composição de forças. Sendo assim, o conceito deleuziano de dobra diz
respeito aos movimentos sempre históricos de torção das relações de poder e saber que
propiciam a expressão de um mundo possível. Esta ação permite à força entrar em relação
com outras forças oriundas de um lado de fora do poder. São essas as forças da mudança, do
3 Todas as expressões nativas, próprias às cosmologias de matriz africana, serão marcadas em itálico e
explicadas brevemente em nota de rodapé o no corpo do texto. Não poderemos infelizmente nos aprofundar aqui
na densidade simbólica do universo religioso afro-brasileiro. Somente apontaremos algumas de suas noções
articuladas nos eventos observados, de modo coerente com as exigências de compreensão do presente texto, ou
seja, o seu argumento centrado na resistência via subjetivação dentro da proposta cosmopolítica.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
4
devir, que criam novas possibilidades de vida4. O processo de dobragem se dá em quatro
etapas, segundo Deleuze: 1) a primeira diz respeito à nossa parte material cercada, apanhada
(o corpo entre os gregos, a carne entre os cristãos), 2) a dobra que coloca forças em combate,
3) a forma como se relaciona o saber e a verdade, e 4) as expectativas do sujeito em relação
ao seu exterior, suas problematizações. (DELEUZE, 1995).
Se as práticas de si engendradas pelos gregos produziram dobras formadoras de um
território existencial com aberturas para a emissão de singularidades, no cenário da
“sociedade disciplinar” e na mais recente “sociedade de controle” as dobras de subjetivação
capitalística atuam justamente coibindo, achatando e unificando as multiplicidades que
podem nascer do próprio processo de dobragem (GUATTARI e ROLNIK, 1986; SILVA,
2004). Pois que as máquinas de produção da subjetividade variam, e os modos de produção
capitalísticos não incidem somente nas relações de produção e no registro dos valores de
troca, eles atuam profundamente no controle da subjetividade, do inconsciente e do campo
dos desejos. “Essa grande fábrica, essa grande máquina capitalista produz inclusive aquilo
que acontece quando sonhamos, quando devaneamos, fantasiamos, nos apaixonamos e assim
por diante” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 16).
A principal característica das dobras operadas pela máquina capitalística é a
centralização, totalização e identificação da subjetividade com o indivíduo, gerando um
processo de privatiza a subjetividade. O corpo do indivíduo foi docilizado, esquadrinhado e
colocado em constante vigilância pelas técnicas disciplinares ligadas umbilicalmente à
escalada do capitalismo, como bem aprofundou Foucault. Contemporaneamente, o corpo
passa pelo paradoxo de ser cultuado, modificado em prol de padrões estéticos, numa
modelagem contínua e visibilidade permanente, ao passo que é “imaterializado” quando
conectado ao ciberespaço (SILVA, 2004). No âmbito das dobras de forças que instituem
regras, o “modo-indivíduo” do capitalismo trabalha com uma homogeneização na qual todos
os valores são colocados em equivalência, apagando modos de vida e agência que não se
enquadram nas dinâmicas produtivas do capital. Nesse mesmo sentido, a dobra do saber-
verdade que a subjetivação capitalística desenvolve silencia as várias fontes de
4 Pesquisas contemporâneas analisam essa potencialidade de resistência através dos processos de subjetivação
em relação a diferentes universos empíricos, como no caso de Margareth Rago a respeito das narrativas
femininas de si (RAGO, 2013) e Peter Pál Pelbart acerca da experiência de teatro com pacientes psiquiátricos
(PELBART, 2013).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
5
conhecimento, as múltiplas narrativas e pontos de vista que vicejam nos mais diferentes
grupos humanos e não humanos, elegendo o saber científico como detentor da verdade sobre
a vida, o cosmos e os indivíduos.
A partir dessa relação entre saber, poder e verdade, (...) podemos tentar
compreender a relação entre o modo de subjetivação capitalístico e o sistema de
racionalidade próprio às ciências modernas. Parece-nos que há uma
complementaridade intrínseca entre ambos e que esse sistema de racionalidade vai
proporcionar, de certo modo uma “legitimidade científica” ao princípio de
equivalência generalizada que se encontra na base do novo tipo de relação consigo
caracterizado pela invenção do indivíduo moderno. (SILVA, 2004 p. 10).
A racionalidade científica moderna funciona então em parceria com a subjetivação
capitalística, de forma antropocêntrica e humanista, tendo na consciência totalizante de um
sujeito cartesiano o seu fundamento. Diante das forças homogeneizantes deste maquinário de
produção de subjetividade em escala planetária, como pensar e onde vislumbrar aberturas
criativas que recusam esses modos de manipulação para construir, de outra forma, “modos de
sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que
produzam uma subjetividades singular”? (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 17). Tais focos
de resistência subvertem, ao seu modo, as forças de poder e saber que querem instituir um
pensamento e um mundo único, uma mononatureza. É o caso, como veremos, das tradições
de culto aos orixás no Brasil (ANJOS, 2006), dentro de uma proposta cosmopolítica que
promove diferenças no nível das próprias ontologias, fazendo coabitarem diferentes modos
de existência.
3. Guerra de mundos: a proposta cosmopolítica
Para Bruno Latour, as lutas e resistências contemporâneas devem nos fazer debater
sobre o modo no qual “nós estamos dispostos a levar em conta as dissidências no plano da
identidade humana mas também sobre o cosmos no qual vivem os homens”5 (2007, p. 2,
tradução livre). Colocar o “mundo comum” em jogo na discussão sobre política é, segundo
5 “Ce qui nous fait débattre, c’est la façon dont nous sommes disposés à prendre en compte les dissidences, sur
le plan de l’identité humaine mais aussi concernant le cosmos dans lequel les hommes vivent.” (LATOUR,
2007, p. 2)
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
6
ele, operar a partir de um construtivismo que não se limita à cultura, mas que se estende aos
mundos, desviando de uma noção unificada da natureza como referência para todos os
litígios.
Em seus estudos sobre a ciência, Latour (1997, 2000) desestabiliza a noção unificada
de natureza – o mononaturalismo possibilitado por uma confiança absoluta nas capacidades
da razão científica que determinaria o único cosmos existente – através da investigação dos
procedimentos sempre experimentais, induzidos, arbitrários e especulativos nos laboratórios.
Assim como ele, a filósofa da ciência Isabelle Stengers, ao invés de conceber a existência de
uma só ontologia (o mundo objetivo, dado) e várias epistemologias (modos de conhecer),
entende que “ontologias e mundos também são feitos, e a ciência assumiria, assim, seu
caráter experimental e especulativo, o que não significa abrir mão de sua objetividade, mas
sim de afirmar que esta é também um fato político, um ato de articulação” (STENGERS e
LATOUR apud SZTUTMAN, 2013, p. 7).
Nesse sentido, para Stengers e Latour a crítica da política deve seguir a crítica da
ciência, de modo a desestabilizar as razões legitimadas em torno do “político” através da
entrada do cosmos, constituído por múltiplos mundos divergentes e as suas possíveis
articulações, em oposição à tentação de paz destinada a ser a última e ecumênica. A proposta
cosmopolítica se constitui, para esses autores, no problema do que viria a ser esse “mundo
comum” de onde se constituem relações e decisões, compreendendo a importância de se
alargar a democracia para dela participarem mundos outros, agentes não humanos,
racionalidades diferentes. Stengers sublinha a ideia de que não são “cidadãos nus” que
participam de uma cena política, mas que a cena é sempre projetada, desenhada, “é uma
questão de distribuição de papéis, de artisticamente tomar parte na encenação da questão”6
(STENGERS, 2005, p. 13, tradução livre). Para ela, o desenho de uma cena política na
perspectiva cosmopolítica pressupõe: 1) uma crítica à ficção de que “humanos de boa
vontade vão tomar decisões em nome do interesse geral”; 2) que assuntos como os rios e os
animais possam se tornar uma causa para se pensar, criando pautas não humanas e 3) que o
pensamento coletivo possa proceder na presença daqueles que seriam desqualificados como
idioticamente não tendo nada a propor, agentes que dificultariam as decisões. (2005, p. 13).
6 ”It is a matter of roles distribution, of artfully taking a part in the staging of the issue” (STENGERS, 2005, p.
13).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
7
Acontecimentos contemporâneos, como o aquecimento global e as ações de grupos
fundamentalistas, sinalizam para uma crise profunda na constituição forçada de um mundo
comum unificado, desvelando a percepção de que “não estamos mais sozinhos no mundo”, de
que “temos agora de reconhecer os “seres da natureza” como agentes, e temos também de
prestar atenção aos outros povos que, “evocando seus deuses, recusam jogar a mesma partida,
recusam cumprir as mesmas regras” (SZTUTMAN, 2013, p. 8). Ou seja, modos de vida que
não deixam enclausurar pelas dobras capitalísticas majoritárias (GUATTTARI e ROLNIK,
1986). Quando há um mundo único, existem somente operações de polícia, a percepção de
que estamos diante de pessoas irracionais que devem ser corrigidas, e assim o ocidente
moderno reprime o resto do planeta: “todos nós vivemos segundo as mesmas leis biológicas e
psíquicas (...). Isso vocês não compreenderam porque vocês são prisioneiros de seus
paradigmas culturais que nós ultrapassamos graças à ciência”7 (LATOUR, 2007, p. 70,
tradução livre).
Por isso, Latour considera o conceito de globalização problemático, afirmando que
“estamos hoje em uma situação de guerra de mundos com relação à composição, aos seres do
mundo, às cosmologias. Fala-se sempre em globalização. (...) O que existe é uma guerra de
mundos.” (LATOUR, 2014, p. 507-508 – em entrevista concedida). O processo de
globalização não seria assim “global”, não diz de um “Globo metafísico” no qual cada povo
pode encontrar seu lugar e sua função, onde homens de boa vontade se despiriam de seus
deuses (as suas inclinações secretas). Na prática, a política agencia “homens incuráveis
penetrados de intenções supra e sub-humanas”8 (LATOUR, 2007, p. 65, tradução livre). Não
são os homens que entram em guerra, mas os seus deuses, os seus mundos.
Não só os ataques terroristas de grande reverberação midiática internacional dizem, na
contemporaneidade, de vorazes lutas cosmológicas que atravessam os séculos e se atualizam
em diferentes circunstâncias. Também se difundem em solo brasileiro casos de agressão com
motivações religiosas, dentre os quais se destaca a violência contra as religiões de matriz
africana, aos seus terreiros e praticantes, em continuação direta com processos históricos de
marginalização dos modos de vida, dos saberes e dos deuses afro-brasileiros. Em termos
7 “L’occident moderne admoneste le reste du monde: nous tous vivons selon les mêmes lois biologiques et
physiques et avons la même constitution biologique, sociale et psychologique. Cela vous ne l’avez pas compris
parce que vous êtes prisonniers de vos paradigmes culturels que nous avons dépassés grâce à la science.”
(LATOUR, 2007, p. 7)
8 “(...) des hommes incurables pénétrés d’intentions supra et sub-humaines” (LATOUR, 2007, p. 5).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
8
cosmopolíticos, os coletivos de umbanda e candomblé – em todas as suas variações em
diferentes vertentes e nações – resistem historicamente às mais perversas práticas de
etnocídio9 institucionalizadas e cotidianas através da sua força e vitalidade ritual, que instaura
regimes corporais propiciadores da presença de divindades e agentes espirituais vinculados a
outros mundos. Observaremos, nos casos a seguir, como essa abertura ontológica permite a
criação, no espaço das praças, de um território próprio de existência que mobiliza corpos
intempestivos, toques e cantos, gestos rituais que, por sua vez, elaboram narrativas
multidimensionais, reorganizando o sensível do espaço público e redefinindo as próprias
coordenadas de enunciação desses coletivos.
4. Compondo territórios existenciais afro-brasileiros: as praças em transe
Em diferentes instâncias de interação social, midiatizadas ou em co-presença, mobiliza-
se atualmente uma franca investida de condenação pública, desqualificação e ataque frontal
de cunho simbólico e físico às religiosidades afro-brasileiras. Crescem os ataques forjados em
larga medida por estratégias evangélicas proselitistas, cuja produção de discursos sobre
outrem corresponde a processos maniqueístas de demonização (ALMEIDA, 2009;
MARIANO, 2003; ORO, 2007). Diante das agressões cada vez mais incisivas, comunidades
de umbanda e candomblé saem às ruas, num gesto político de resistência às forças de
segregação, aniquilamento e invisibilidade contra os seus modos de vida. Veremos a seguir,
em dois breves relatos, como esses coletivos tem se apropriado do espaço público de Belo
Horizonte, quais são as suas táticas de subjetivação política que engendram, de uma só vez,
dobras constituidoras de corpos, mundos e novas coordenadas de enunciação que escapam às
lógicas costumeiras de viver e habitar a cidade.
4.1 . “Tarde de Liberdade”
9 “Nos termos de Pierre Clastres, guerra pedagógica poderia ser o outro nome do etnocídio: imposição de um
cosmos unificado a uma multiplicidade. Imposição de uma lógica de Estado por meio da escola, do direito e da
religião.” (CLASTRES apud SZTUMAN, 2013, p. 10).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
9
Fiquei10 sabendo da organização de um evento de matriz africana na Praça da Liberdade
através das redes sociais, logo após a emergência e circulação na internet de um vídeo da
Igreja Universal dos “Gladiadores do Altar”11, no qual jovens fiéis da IURD marcham
fardados até o altar de um tempo iurdiano, aos modos de um Exército, e gritam palavras de
ordem, se dizendo prontos para a batalha contra o mal. A articulação das comunidades de
religiões afro-brasileiras em resposta ao vídeo partiu da iniciativa da Casa de Oxumarê de
Salvador – BA, cujo Babalorixá12 Pecê redigiu a "Carta Aberta às Autoridades Brasileiras
Contra os Gladiadores do Altar", que foi entregue a vários Ministérios Públicos nas capitais
brasileiras, solicitando a investigação do grupo paramilitar da Igreja Universal como medida
de prevenção à intolerância religiosa, visto o histórico de violências perpetradas pelos fiéis e
sacerdotes dessa igreja contra as devoções de matriz africana no Brasil.
Participei das reuniões de organização da ação em Belo Horizonte, que congregaram
lideranças de diferentes nações do candomblé e da umbanda, além de militantes de
movimentos sociais. Nas palavras de Makota Célia Gonçalves Souza, coordenadora nacional
do Cenarab (Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira) que esteve à
frente da organização do evento, “contra a feiura da intolerância, vamos mostrar o quanto
nossa religião é linda, exuberante, amorosa. Temos que contrapor o ódio com a beleza.”
Makota Celinha, como é chamada pelos mais próximos, ressaltou nas reuniões que “ou
reagimos, ou seremos mortos”, lembrando casos de agressão e mesmo assassinatos de
conhecidos da comunidade de Santo.
No dia do evento, acompanhei a audiência de entrega da Carta ao Ministério Público
Federal, que fica próximo à Praça da Liberdade, momento que reuniu várias lideranças de
religiões de matriz africana. Após a audiência, a praça foi ritualmente ocupada com
elementos e símbolos vinculados às divindades dos cultos afro-brasileiros de origem ketu,
10 Como escolha textual, reservo o uso da primeira pessoa do singular aos relatos das experiências de campo,
com o intuito de demarcar a minha posição relacional nos rituais, nas entrevistas e demais interlocuções com os
nativos. Quanto às reflexões teóricas, optei pelo uso da primeira pessoa do plural, na medida em que tais
elucubrações se constituíram de forma partilhada com os autores de referência, com os professores e colegas,
bem como no momento da apreciação do texto, em conjunto com os leitores deste trabalho.
11 O vídeo pode ser visto em <https://www.youtube.com/watch?v=6MvADsjEnO4>. Último acesso em 22 de
junho de 2015.
12 Pai-de-santo, sacerdote de candomblé.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
10
jeje, angola e umbanda13. O coreto da Praça da Liberdade foi adornado com flores brancas,
amarelas e vermelhas, com folhas e vasos de porcelana, laços e faixas. No seu centro, os
ogãs14 tocavam os atabaques entoando os cânticos para as diferentes divindades e agentes
espirituais, revezando entre os pontos para os orixás (tradição ketu), os nkises (tradição
angola) e as entidades de umbanda, formando uma dinâmica compósita e improvisada de
saudação às forças sustentadoras das comunidades de Santo. Os participantes portavam as
suas vestes religiosas, na maioria brancas, seus turbantes e fios de conta coloridos.
Uma grande roda se formou no centro da praça, onde todos os participantes dançavam,
fazendo o círculo girar. Em destaque, filhos e filhas de santo se vestiram de orixás, atuando
como “manequins vivos”15 que circulavam pela praça. Como foi dito nas reuniões que
anteciparam a ação, a roda funciona como uma espécie de adaptação ritual em um duplo
sentido: adaptação ao espaço público, apropriação sagrada de um espaço tipicamente profano,
e adaptação entre os diferentes tipos de candomblé e umbanda presentes, cada qual com suas
próprias divindades e procedimentos rituais, que se esforçaram por compartilhar em um
mesmo momento as suas várias prerrogativas religiosas, gerando conexões criativas e
solidariedades momentâneas a partir de suas cosmologias e mundos existenciais.
No centro da roda, assim que os atabaques começaram a soar, foram colocados uma
quartinha16 de barro com água, um alguidar17 com farofa e uma vela branca, formando o
padê18 ofertado a Exu, orixá que permite a comunicação entre o Ayê (mundo material) e o
Orun (mundo espiritual). Uma vez que a roda girou para Exu, com os seus toques e cânticos
específicos para a divindade, três mães-de-santo entraram no centro do círculo e carregaram o
13 Tradições religiosas afro-brasileiras, classificadas de acordo com sua vinculação com diferentes regiões etno-
linguísticas da África.
14 Posto na hierarquia religiosa em casas de umbanda e candomblé referente ao manejo ritual com os atabaques,
a responsabilidade pelo seu toque, feitura e cuidados.
15 O termo “manequim vivo” foi utilizado várias vezes por Makota Celinha e outros participantes da
organização, apontando que as pessoas vestidas não estavam, como nos terreiros, “viradas no orixá”,
experiência de possessão que demanda uma série de cuidados e preparações rituais de cunho secreto e restrito
aos iniciados. A proposta dos “manequins”, disse Makota, é a de afirmar que “os nossos orixás não são o capeta
que o povo está falando! Eles se vestem lindamente!”.
17 Espécie de prato feito de barro, utilizado nas oferendas para orixás e entidades espirituais.
18 Recipiente que aloja variados elementos rituais das religiões afro-brasileiras, podendo ser feito de vários
materiais e utilizados de diferentes modos, de acordo com os preceitos seguidos.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
11
padê para fora da roda, arriando-o19 em uma esquina próxima. Na perspectiva das religiões
de matriz africana, o padê consiste em uma cerimônia na qual se oferece a Exu, antes do
início das cerimônias públicas ou privadas, alimentos e bebidas votivas, na intenção de pedir
permissão e proteção para a realização de trabalhos, assim como espera-se que Exu,
mensageiro por excelência, agencie a boa vontade dos orixás que serão invocados no culto.
No caso da roda citada, agradar a Exu tem um significado ainda mais importante e
necessário, na medida em que é ele que, nas cosmologias afro-brasileiras, cuida das ruas,
praças e demais espaços de circulação, sendo a encruzilhada um dos seus principais
domínios. A Praça da Liberdade, me explicou um dos participantes, é uma grande
encruzilhada, lugar onde se cruzam múltiplas e diferentes forças, sendo necessário sempre
saudar Exu no caso de rituais serem ali desenvolvidos. Fica claro que esses procedimentos
rituais visam garantir, no espaço da praça, a instauração de uma relação com outro mundo, o
qual, somente através da mediação de Exu, pode ser acessado.
Outro momento importante, após o padê, foi a distribuição dos acassás de leite para
todos os presentes, bolinhos de milho branco envolvidos na folha de bananeira. O acassá é
comida vinculada à Oxalá que pode ser ofertada a todos os outros orixás. Makota Celinha
explicou que a sua distriuição na praça diz da fartura nas religiões afro, a centralidade do
comer junto, que cria laços e permite a convivência pacífica com as diferenças, característica
de Oxalá, o orixá que criou o universo e simboliza a paz e a purificação. A proposta de
congregar os presentes em um momento de beleza em resposta à violência, assim, passa
incontornavelmente pela partilha do alimento, como também veremos no outro caso – e não a
sua comercialização.
Contudo, vários foram os empecilhos colocados pela Prefeitura de Belo Horizonte para
que o evento pudesse acontecer na praça. No primeiro momento em que as comunidades
solicitaram o uso da praça para o evento, a resposta foi negativa. A prefeitura afirmou que, no
mesmo dia, o Exército estaria no local. Uma resposta bastante irônica, ao ver de Makota
Celinha, levando em conta a solicitação de investigação dos“Gladiadores do Altar”, a ser
protocolada na entrega da Carta ao Ministério Público. Após algumas negociações, a praça
foi liberada, mas o ponto de energia elétrica, que permite o som mecânico, foi interdidado
sob o argumento de que, caso houvesse carro de som, o evento configuraria em um protesto,
19 “Arriar” uma oferenda é prática ritual em que se colocam os elementos ofertados no chão, os entregando aos
agentes espirituais destinados.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
12
o que não era permitido. Por fim, depois de todos os acordos, documentos e demais
procedimentos burocráticos, quando as comunidades já estavam certas de que poderiam
ocupar a Praça da Liberdade da sua forma, mesmo sem o uso da energia elétrica, um fiscal da
prefeitura interrompeu os momentos iniciais do evento, exigindo um alvará que permisse o
toque dos atabaques na praça. Surpreendidos pela intromissão, que aconteceu no momento
quando as lideranças estavam em plena audiência com o Ministério Público, um dos
sacerdotes de candomblés presentes, advogado, destinou-se a conversar com o fiscal para
resolver o mal entendido, argumentando que diferentes grupos tocam os seus intrumentos no
local sem ter de apresentar qualquer documento. Por fim, os atabaques puderam soar, apesar
dos insistentes entraves forjados pelo poder público. De fato, casos de racismo institucional
são recorrentes ao longo da história, principalmente contra manifestações de origem afro,
como comentou um dos participantes do evento. “É claro, tocar tambores no coração da alta
cultura de Belo Horizonte incomoda mesmo!” O posicionamento da ação na Praça da
Liberdade, centro simbólico do poder político e econômico da cidade, também nesse sentido,
foi estratégico.
4.2 . “2ª Noite de Libertação”
No evento que ocorreu na Praça da Liberdade, fui convidada, assim como todos os
presentes, para participar de uma festa que ocorreria um mês depois, na Praça Treze de Maio,
para celebrar o aniversário da abolição da escravatura do Brasil e homenagear as entidades de
umbanda conhecidas como pretos velhos, almas de antigos escravos que descem nos terreiros
e incorporam nos médiuns para fazer benzeções, dar conselhos, receitar banhos e
procedimentos de cura com elementos da natureza.
Seguindo a orientação política do evento anterior, a “2ª Noite de Libertação”, como foi
chamada a festa, assumiu a importância de fazer visível e pulsante no espaço público as
práticas rituais que ocorrem nos terreiros, também de forma adaptada ao ambiente da praça e
em diálogo com o poder público, que cedeu o local, banheiros químicos e a presença da
Polícia Militar. Pai Ricardo de Moura, sacerdote umbandista organizador do evento e chefe
da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, foi o meu principal interlocutor nesta festa, como
foi Makota Celinha no caso da “Tarde de Liberdade”. Para ele, a festa na praça Treze de
Maio se tornou um compromisso ao mesmo tempo político e espiritual de honrar a memória
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
13
dos ancestrais que sofreram com a escravidão e que hoje se fazem presentes através dos
corpos dos médiuns.
Para isso, ambas as instâncias materiais, o corpo e a praça, devem ser cuidadosamente
preparados para a chegada dos pretos velhos, através de variados processos rituais que visam
a sua limpeza, e, como disse Pai Ricardo, a energização propícia à presença das nobres
entidades ancestrais. “É preciso muito cuidado. Tomar os banhos, acender as velas, fazer as
orações. Somente com disciplina podemos receber, no meio de uma praça, os nossos pais e
mães velhos”. Sendo assim, além da preparação individual dos médiuns que participariam da
festa, um grupo de umbandistas e capoeiristas foi à praça no dia anterior ao evento e fez um
ossé no espaço, cerimônia comum em casas de matriz afro-brasileira que consiste na
purificação material e espiritual do espaço sagrado, bem como dos candomblecistas e
umbandistas. Juntamente com a “faxina” na praça, que recolheu todos os entulhos do
ambiente, Pai Ricardo fez questão de formar uma roda de capoeira e tocar pontos20 de
umbanda. “Vamos tocar pra Exu, para os pretos velhos, só uns 40 pontos”, ele me disse ao
telefone, brincando.
No dia do ossé, toda uma restauração material também foi realizada na estátua do preto
velho que fica na praça. O cachimbo, que estava quebrado, foi trocado por um novo, assim
como uma grande pixação com a palavra “Jesus” foi removida e outras marcas de ataque à
estátua foram atenuadas. Lócus de tensão com grupos evangélicos, a praça vem sendo
constantemente depredada por fiéis cristãos fundamentalistas e a festa dos pretos velhos
hostilizada no espaço público e nas páginas da internet. Dias antes do evento, um vídeo foi
postado no YouTube em que um pastor evangélico, dentro de um templo na cidade de
Governador Valadares, se posiciona abertamente contrário à festa dos pretos velhos. “Outro
dia me falaram em Belo Horizonte que vai ter a festa do preto velho. Eu falei: ‘ninguém me
pediu!’ Eu não aceito. Não vai ter festa nem de preto velho, nem de preto roxo, nem de preto
branco. Eu falei que não vai ter.”21 Destarte, ameaças de intolerância rondaram a festa e
preocuparam a organização, mobilizando uma série de ações voltadas para a segurança dos
participantes e alimentando, em contrapartida, a vontade e o empenho na realização do
20 Cânticos e toques que convocam e homenageam as entidades espirituais.
21 O vídeo, retirado do YouTube e denunciado ao Ministério Público Federal, pode ser visto em <
https://www.facebook.com/aspucbrasil/videos/1643186795910642/?pnref=story>. Último acesso em 23 de
junho de 2015.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
14
evento como resposta política potente ao crescente discurso de ódio às religião afro-
brasileiras.
Na noite da festa, a estátua foi adornada com flores, velas e oferendas aos pretos
velhos. A praça se encheu de gente, de aromas, de sons, de fumaça e, o mais fundamental, de
espíritos. As pessoas presentes, reunidas no centro do espaço, entoaram o Hino da Umbanda,
para abrir as atividades rituais. Em seguida, foi realizada a defumação22 - para afastar as
energias negativas23 e abrir caminho para as bençãos - em toda a praça e em cada
participante, ao som dos atabaques e dos pontos. “Estou louvando/Estou incensando/A casa
dos meus orixás/ Para o mal sair/E a felicidade entrar”. À defumação seguiu-se a consagração
das pembas24 e o sopro coletivo do pó de Oxalá25, que se associa à defumação no intuito de
limpar o ambiente e atrair a proteção de entidades benfazejas. Os sacerdotes e sacerdotizas de
várias casas de umbanda e candomblé foram chamados para realizar os procedimentos rituais,
que se desenvolveram ao redor da estátua do preto velho, eixo que orientou todas as ações
coletivas. Uma oração aos pretos velhos foi proferida por todos os presentes, que repetiam as
frases pronunciadas pelo mestre de cerimônias.
Em seguida, as comunidades de umbanda presentes se distribuíram pelas ruas ao redor
da praça, formando as suas próprias giras26 de atendimento. Cada terreiro presente reuniu os
seus médiuns em círculos - vestidos com roupas brancas, turbantes e guias de contas - ao lado
de altares. Eles incorporaram os guias27 homenageados, pretos e pretas velhas, para
aconselhar e benzer os presentes, manipulando ervas, velas e e baforando a fumaça dos
cachimbos, elementos rituais característicos das práticas de cura nas giras de umbanda. Ao
mesmo tempo, comidas e bebidas típicas da linha das almas28 eram servidas. Arroz e feijão
22 Prática ritual recorrente na abertura de cerimônias afro-brasileiras, na qual diferentes ervas são queimadas e a
fumaça produzida é colocada em contato com o ambiente e com os corpos das pessoas presentes.
23 Interferências espirituais malévolas que podem gerar desconforto, doenças, discórdia e atrapalhar o
desenvolvimento dos rituais.
24 Giz de argila em forma esférica, usado ritualisticamente em cultos afro-brasileiros, para desenhar os pontos
riscados (sinais mágicos) dos guias/entidades no chão ou em objetos sagrados.
25 O pó de pemba branca.
26 A gira é uma espécie de reunião, agrupamento de vários espíritos de uma determinada categoria, que se
manifestam através da incorporação nos médiuns. Ela pode ser festiva, de trabalho/atendimento ou de
treinamento mediúnico.
27 Espíritos benfazejos.
28Na umbanda, os guias espirituais se organizam em linhas de trabalho, agrupamento de entidades que
caracteriza as suas principais tarefas, rituais e a ligação com os orixás. A linha das almas reúne os pretos e pretas
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
15
tropeiro, bolo de fubá e café consagrados pelos pretos velhos foram compartilhados em
abundância, como nas festas que ocorrem nos terreiros. Como Pai Ricardo frisou, nada ali foi
comercializado, seguindo o aquele chama de “premissa da humildade, caridade e
acolhimento” característica da religião de umbanda.
5. Outras vidas, outros seres, outras histórias: algumas reflexões analíticas
Notamos, nos breves relatos dos dois eventos, uma série de ações rituais que apontam
para a efetividade cosmopolítica dos gestos de resistência construídos pelas comunidades.
Percebemos, apesar de algumas diferenças entre os dois momentos, um conjunto de
confluências: os procedimentos cuidadosos de preparação do ambiente das praças e dos
corpos participantes, as oferendas aos seres espirituais, os toques e cantos, a distribuição de
comidas e a tensão com outros grupos e mundos. Observamos também como, para os nossos
interlocutores que organizaram os eventos – Makota Celinha e Pai Ricardo – as ações rituais
são profundamente espirituais e políticas, dimensões inseparáveis das atividades realizadas.
Nesta senda, caminhamos para algumas reflexões em torno dos casos relatados, através de
três eixos analíticos permitidos pela abertura ontológica, ou melhor, três planos de potência,
articulados entre si, dos gestos políticos perscrutados: os corpos intempestivos e a
biopotência, a presença de agente não humanos, a instauração de uma temporalidade mítica e
a produção de novas coordenadas de enunciação. A seguir, enredaremos algumas noções
teóricas aos casos, de modo a levantar rapidamente aspectos alinhados aos três eixos que
possam ser elucidadores do tipo de resistência que queremos salientar.
5.1. Os corpos intempestivos e a biopotência: a dobra material
Entendemos os dois eventos das comunidades religiosas afro-brasileiras nos termos
do que Agambem chama de gesto, isso é, da política tomada enquanto esfera dos puros
meios, inscrita na “absoluta e integral gestualidade dos homens” (AGAMBEM, 2008, p. 14).
O político não é tomado como forma ou conteúdo, mas enquanto um gesto no nível da
velhas, que trabalham sob a irradiação do orixá Obaluaê, ancião ligado ao mundo dos mortos, com grande poder
curativo.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
16
própria comunicabilidade, capaz de colocar em questão os modos pelos quais uma
experiência pode ser comunicada, agenciando sujeitos e materializando um meio sem fim
(AGAMBEM, 2015). Os corpos dos sujeitos presentes nos dois eventos, nesse sentido,
operaram justamente no limiar entre o vivido e o performado, entre a experiência e a sua
comunicabilidade. Fora e em resposta a um regime de docilização dos corpos negros que
atuou e atua historicamente desde os ditames da escravidão (o biopoder, na perspectiva
foucaultiana), o que podemos entrever nos toques, cantos e no transe que constituíram
ritualmente os eventos, foi o dinamismo de uma força-invenção ligada diretamente a um
modo de vida: biopotência (PELBART, 2003).
Operador da vida ordinária e, ao mesmo tempo, lócus de emergência do sagrado, o
corpo nas cosmologias afro-brasileiras deve ser construído cuidadosamente a partir de
práticas rituais, que administram as venturas e perigos do contato entre mundos. A instância
corporal pode ser lida, assim, como a primeira dimensão da subjetivação política que as
comunidades de terreiro dobram, flexionam, criando uma relação singular consigo e com o
mundo. Não mais privatizado, o corpo é construído no fluxo dos pontos de vista, dos espíritos
ancestrais que percorrem de forma nômade os rituais. Como vimos nos eventos, toda uma
forma de se vestir, tocar, cantar e comer constituem os momentos de encontro com as
divindades. A premissa do cuidado com o corpo é contígua à relação com os espaços físicos
em que ocorrem as cerimônias, locais que devem ser sempre purificados – antes e após os
rituais – e energizados através de procedimentos específicos. Através dessas práticas de si,
cuidados com o corpo e com o espaço ritual, percebemos a composição de agenciamentos
coletivos que engendram subjetividades políticas de resistência.
Além disso, quando corpos fortemente invisibilizados, estigmatizados e historicamente
açoitados se fazem presentes no espaço público com as suas próprias gestualidades,
instaurando territórios próprios de existência, podemos entrever um tipo de resistência que
surge com a força daquelas vidas. A vida, ela mesma, se torna vetor de autovalorização dos
coletivos afro-religiosos (PELBART, 2003). Com seus poderes de afetar e serem afetados, os
corpo presentes nas praças produziram uma “revitalização” - no sentido mais forte da
palavra, diferente do sentido perverso de gentrificação - daqueles espaços: a sua apropriação
por modos de vida que redimensionam as sensibilidades das formas típicas de habitar a
cidade. Ao fazer isso, acionam outro aspecto político no que diz respeito às experiências
coletivas nas ruas, associado à importância da ocupação ativa do espaço urbano por múltiplas
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
17
subjetividades que, levando em consideração a proposta cosmopolítica, podem ser humanas e
não humanas.
5.2. Agentes não humanos e tempo mítico insurgente: a dobra da força
Seja no padê ofertado a Exu ou nas comidas colocadas aos pés da estátua do preto
velho, sejam nos cânticos para os orixás entoados na Praça da Liberdade ou nos pontos
umbandistas saudando a defumação na noite de festa, o que está em jogo são procedimentos
que sustentam a relação humana com seres que não fazem parte do mesmo mundo material
onde vicejam as práticas e experiências cotidianas concernentes à cidade. As praças, nos
eventos mencionados, passam a ser povoadas por uma multiplicidade de seres, trazendo à
tona o universo das divindades da umbanda e do candomblé, o que reconfigura tanto a
espacialidade quanto a temporalidade em questão.
Mais denso, polifônico e multidimensional, o espaço se tranforma em território de
existência daqueles modos de vida, engendrando relações cosmopolíticas, em boa parte
tensas, com outros mundos: com o mundo da Prefeitura de BH e com mundo dos
evangélicos, por exemplo. A temporalidade se produz não só na duração da experiência dos
sujeitos e corpos presentes, como também coloca em ação inventiva um “tempo mítico
insurgente” (OLIVEIRA, 2014), da ordem anterior à separação entre humanos e não
humanos, antes mesmo dos flagelos da escravidão. A relação entre esses dois tempos, o da
experiência e o mítico, proporciona a possibilidade dos sujeitos se “reconectarem com seus
mundos presentes e ancestrais, com os antepassados, com os encantados, com os deste e com
os de outros mundos” (ibidem, p. 91). O nível da do próprio poder é dobrado, na medida em
que diferentes fontes de força são colocadas em contato, desafiando a hierarquia
antropocêntrica e humanista do capitalismo e das ciências.
Enquanto gesto de (re)conexão com mundos outros, os dois eventos sondados dizem
ainda de uma potência dissidente própria ao ritual no/contra o mundo ocidental supostamente
desencantado. Stengers (2005), abordando a sua proposta cosmopolítica, quando fala da
erradicação e desqualificação da bruxaria no Ocidente pelo triunfo da ideia de uma
racionalidade pública, de um Homem idealmente dono de suas razões, aponta para o contra-
poder da magia e do ritual. O atos mágicos “criam uma experiência inquietante para todos
aqueles que vivem em um mundo no qual a página [da magia] teria sido definitivamente
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
18
virada”29 (STENGERS, 2005, p. 12, tradução livre). A magia e o ritual configuram, para ela,
o domínio político de uma arte experimental cuja pedra-de-toque é uma emergência, através
da convocação, da apelação a uma presença. A sua eficácia consiste em catalisar um regime
de pensamento e sensibilidade que se transforma em uma causa a ser levada em conta. Isso
torna o ritual, na contemporaneidade, uma ação eminentemente de resistência: “A realização
do ritual pode ser chamada ‘empoderamento’, a produção de ‘partes’ que não estão
submetidas ao todo, mas que devem a sua participação o poder de pensar e agir e resistir”30.
(ibidem, p. 13, tradução nossa).
Os casos mencionados remodelam o espaço e o tempo onde as relações políticas
acontecem, quando convocam, na praça para lutar contra a intolerância, as divindades
africanas com poderes de mover os ventos, os mares, as cachoeiras, as matas e as outras
forças vivas da natureza; quando chamam à presença os ancestrais negros que foram
escravizados no Brasil colonial e hoje retornam, pelos corpos dos médiuns, para benzer e
curar os seus descendentes. Outras narrativas podem ser geradas nesse regime temporal e
espacial próprio, marcado por um “desejo de relação” que visa recontar, reescrever e refazer
a história (OLIVEIRA, 2014).
5.3. Novas coordenadas de enunciação: a dobra do saber
Vimos como a biopotência e a presença de seres não humanos animam a dimensão
cosmopolítica de resistência dos dois eventos; como corpos, mundos, tempos e espaços
diferentes entram em relação no momento dos rituais nas praças. O movimento ocasionado
por essas relações pode produzir outros referenciais de enunciação, dobrando os esquemas de
estratificação do saber. É o caso das narrativas sobre a escravidão, escritas não só pela fala
oficial das lideranças religiosas, mas também pelos toques, danças, cantos e orações.
Na festa dos pretos velhos, variados elementos se articularam para escrever uma
história perspectivada pelos antigos escravos que, segundo a liturgia umbandista, hoje
29 “(...) acts that create an unsettling experience for all those who live in a world in which the page is supposed
to have been definitively turned.” (STENGERS, 2005, p. 12)
30 “The ritual’s achievement may be called “empowerment”, the production of “parts” that are not submitted to
the whole but owe to their participation a power to think and act and resist (...)” ((STENGERS, 2005, p. 13)
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
19
habitam em Aruanda31 e descem nos terreiros, onde contam causos da época da escravidão,
abordando nos relatos as suas táticas históricas de resistência muitas vezes amparadas nos
rituais de devoção e magia. Como conta o ponto, “Chora meu cativeiro, meu cativero, meu
cativerá/ Quando batia seis horas preta velha batia tambor/ Ela ia para a sua urucaia32
saravar33 pai Oxóssi e saravar pai Xangô”, e outro que diz “Vó Cambinda vem de longe/ De
tão longe, mas até que aqui chegou/ O seu corpo está marcado, coitadinha/ Do chicote do
sinhô”. Como nos diz Deleuze, é principalmente nos excluídos sociais que se constituem os
focos de subjetivação, os devires minoritários, como no caso do “escravo libertado que se
queixa de ter perdido todo o estatuto social da ordem estabelecida” (DELEUZE, XXXX, p.
189). A importância poética da queixa, como essa de Vó Cambinda, é de ordem poética,
histórica e social, exprimindo um momento de subjetivação, uma “subjetividade elegíaca”
(ibidem).
Estamos certamente lidando com outro regime de verdade, que articula novas
coordenadas de enunciação no espaço das praças. A presença enunciativa das comunidades
de terreiros na cidade provoca deslocamentos nos lugares legítimos de se expressar, ser
visível e falar sobre si e sobre os “seus”. Neste sentido, notamos a força do enunciado
político que consiste a parresía foucaultinana, o “falar de si” em público imbuído pela
coragem de se autoposicionar mesmo diante do risco da violência (LAZZARATO, XXXX).
A enunciação parresiática implica que os sujeitos políticos se constituam como sujeitos
éticos, capazes de lançar desafios, governar a si mesmos e aos outros dentro de situações de
conflito. As ameaças dos grupos cristãos fundamentalistas, os impeditivos da Prefeitura e
toda uma série de constrangimentos históricos pelos quais passam as religiosidades afro-
brasileiras compõe, assim, um campo arriscado que não impede, contudo, a expressão
singular dos rituais que descrevemos. Tal gesto confronta diretamente o duplo estigma de
teor racista imputado às religiões afro-brasileiras - como “macumba”, pelos grupos
fundamentalistas, e como “superstição” (no sentido de mentira, primitivismo), pela visada
racionalista. O efeito demonizador/deslegitimador destas sobrecodificações é, antes de tudo,
uma “aversão à relação”, oposto ao “desejo de relação” (OLIVEIRA, 2014) que
31 Aruanda, segundo a cosmologia umbandista, é o nome dado a um lugar específico no plano espiritual,
reservado aos espíritos benevolentes que trabalham como intermediários entre o plano físico e espiritual,
prestando auxílios aos mais necessitados.
32 Casa de reza, local sagrado.
33 Saudar, cumprimentar com respeito e cordialidade.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
20
vislumbramos na proposta cosmopolítica. Nesse sentido, as comunidades de Santo nos dois
eventos produzem suas próprias auto-definições, profundamente relacionais, se descolando
das noções pejorativas às quais são historicamente atreladas. Entendemos que esse gesto pode
resistir a uma partilha do sensível que estabelece uma ordem hierárquica, uma
relação desigual entre os modos do fazer, os modos do ser e os do dizer; entre a
distribuição dos corpos de acordo com suas atribuições e finalidades e a circulação
do sentido; entre a ordem do visível e a do dizível” (RANCIÉRE apud MARQUES,
2011, p. 47)
Observamos ainda, como reescrita insurgente, o uso das expressões “Liberdade” e
“Libertação” que compõem os nomes dos eventos. A “Tarde de Liberdade”, ao se localizar
na praça homônima vinculada às elites políticas, econômicas e culturais da cidade, subverte
ao seu favor a ideia de liberdade, para alarga-la àqueles que historicamente não “couberam”
dentro deste direito, colocando, nas entrelinhas, as perguntas: “liberdade para fazer o quê?” e
“liberdade para quem?” As respostas impeditivas da Prefeitura dizem, inclusive, dos
constrangimentos cerceadores da liberdade de outros mundos existirem e se fazerem
presentes nos espaços nodais de poder da topografia hierárquica urbana.
Já a “2ª Noite de Libertação” estabelece uma interessante intertextualidade para com os
rituais neopentecostais também chamados de “libertação”, sessões de descarrego e exorcismo
que visam expulsar e aniquilar os demônios de origem afro-brasileira34. Se nos cultos
neopentecostais “de libertação” o panteão da umbanda e dos candomblés é demonizado, o
sentido dado ao termo na festa dos pretos velhos consiste numa inversão da relação de
exorcismo: aqui, os espíritos não são hostilizados e “queimados”, mas convocados para
festejar, trazidos pelo corpo dos médiuns para serem presentados e homenageados. Essa
inversão passa pela retomada histórica da noção de “libertação” a partir da experiência da
abolição, o que também se opõe à estratégia de alguns grupos evangélicos que apagam,
sistematicamente, a dimensão de ancestralidade que constitui as tradicionais “linhagens de
fé” da população brasileira (PIERUCCI, 2006), como no caso das ameaças do pastor que
disse não aceitar “festa do capeta” no espaço público.
34 Já analisamos as sessões de descarrego em outro momento. Ver: ALTIVO, B. R. “Poder em performance
ritual: o combate às religiões afro-brasileiras na Sessão do Descarrego da Igreja Universal do Reino de Deus”.
In: V Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste, Fortaleza – CE,
2013, v. 1. p. 1-20.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
21
6. Apontamentos finais (ou a quarta dobra em movimento)
Observamos como os dois eventos rituais realizados por comunidades de Santo em
praças de Belo Horizonte, dentro de uma proposta cosmopolítica de resistência, produzem
dobras de subjetivação nas dimensões 1) do corpo intempestivo em transe e nos cuidados
rituais de si e da relação com os mundos, 2) das agências humanas e não humanas e da
instauração de uma temporalidade mítica, mobilizando uma curvatura no campo das forças
atuantes na vida e 3) de uma recomposição dos enunciados sobre si, sobre a história da
experiência da escravidão, que desafia as estratificações de saber sobre o tema.
Notamos, destarte, que tal estratégia de luta política através de agenciamentos
coletivos via rituais afro-brasileiros coloca também em movimento a quarta e última dobra
mencionada por Deleuze, referente às expectativas e problematizações da relação consigo e
com o mundo, o contato do interior com as forças do Fora. Afinal,
Se é preciso chegar a essa derradeira dobra é porque ela nos fornece a razão das
demais: pois resistir e problematizar, mal ou bem, todos nós fazemos nos impasses
cotidianos, mas perseverar em uma ruptura implica ir além do presente
estabelecido, mantendo com o futuro uma relação durável que pressupõe uma
memória de longa duração. (MACIEL JR., 2014, p. 7).
Como verdadeiras máquinas de mundos (BARBOSA NETO, 2012) e de narrativas
míticas em transformação, os rituais reativam o passado (corporificado na ancestralidade) e
permitem a sua reescrita, gerando potentes projeções para o futuro, produzindo memória e
resistindo aos estereótipos, aos processos históricos de segregação, aos discursos de ódio.
Tais processos de singularização subvertem também os mecanismos de captura da vida, de
“vampirização” da existência pelas forças do capital, que continuamente “produz novas
formas de exploração e de exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova
angústia - a do desligamento” (PELBART, 2003, p. 35). Resistência a um modo de viver que
se quer único e desencantado, que por definição quer subjugar e, por vezes, eliminar os ditos
não humanos e os seus mundos. Nos deparamos, assim, com uma forma de resistir que
escapa às categorias reflexivas desenvolvidas nos gabinetes acadêmicos, e que nos convoca a
outros modos de fazer pesquisa. Para estudar essas resistências, talvez seja preciso um
exercício de deslocamento para fora do gabinete e das teorias prévias, uma abertura do
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
22
pesquisador à possibilidade de ser tocado afetiva e intelectualmente pelos próprios gestos
analisados.
Referências bibliográficas
AGAMBEM, G. Meios sem fim: notas sobre a biopolítica. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2015
_____. Notas sobre o Gesto. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. In: Artefilosofia, n. 4, jan. 2008. Ouro Preto:
Tessitura, 2008.
ALMEIDA, R. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro
Nome/FAPESP, 2009.
ANJOS, J. C. G. dos. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora
da UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.
BARBOSA NETO, E. R. A máquina do mundo: variações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros.
Tese (Doutorado em Antropologia Social)– Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2012.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1995.
_____. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.
DIAS, Jamille Pinheiro; SZTUTMAN, Renato; MARRAS, Stelio. Múltiplos e animados modos de existência:
entrevista com Bruno Latour. Revista de Antropologia, v. 57, n. 1, p. 499-519, 2014.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 3; o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
_____. Microfísica do Poder. 3aed, Rio de Janeiro, Graal, 1982. Vigiar e punir. Petrópolis. Vozes, 1987.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
LATOUR, B. Ciência em ação. São Paulo, Unesp, 2000.
_____. Quel cosmos? Quelles cosmopolitiques? In: LOLIVE, J.; SOUBEYRAN, O. L’emergence des
cosmopolitiques. Paris: La Découverte. 2007.
LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1997. 310 p.
MACIEL JR, A. Resistência e prática de si em Foucault. Trivium-Estudos Interdisciplinares, v. 6, n. 1, p. 01-
08, 2014.
MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Loyola, 2003.
MARQUES, A. C S. Comunicação, estética e política: a partilha do sensível promovida pelo dissenso, pela
resistência e pela comunidade. In: Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, 2011, p. 25-39.
OLIVEIRA, L. Sobre Che Cherera de Paulo Nazareth: uma conversa no tempo mítico insurgente. In: Revista
Lindonéia, n. 3, dez 2014. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da UFMG, 2014, p. 90-98
ORO, A. P. Intolerância Religiosa Iurdiana e Reações Afro no Rio Grande do Sul. In: SILVA, V. G. da (org.).
Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Ed.
USP, 2007.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
23
PELBART, P. P. O teatro da loucura. Poliética. Revista de Ética e Filosofia Política. ISSN 2318-3160, v. 1, n.
1, p. 119-129, 2013.
_____. Poder sobre a vida, potências da vida. In: PELBART, P. P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São
Paulo: Iluminuras, 2003. p.19-27.
PIERUCCI, A. F.. Religião como solvente: uma aula. Novos Estudos – CEBRAP, 75, p.111- 127, 2006.
RAGO, M. A aventura de contar-se - feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2013.
SILVA, R. N. A Dobra Deleuziana: Políticas de Subjetivação. Revista do Departamento de Psicologia, Niterói,
v. 16, p. 55-75, 2004.
STENGERS, I. The cosmopolitical proposal. In: LATOUR, B.; WEIBEL, P. (Org.). Making things public:
atmospheres of democracy. Cambridge: MIT Press, 2005. p. 994-1003.
STUZMAN, R. “Cosmopolíticas transversais: a proposta de Stengers e o mundo ameríndio”. Palestra
proferida em aula no Museu Nacional/UFRJ, 29.11.2013.