Sulparati - Em Julho 2009

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Tão cedo passa tudo quanto passa! Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco! Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada. Ricardo Reis , Odes Camille Claudel eli Julho 2009

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Recolha - com infidelidade-fiel / com fidelidade infiel - do que foi uma primeiríssima experiência-aventura-descoberta da blogolândia.

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Tão cedo passa tudo quanto passa!

Morre tão jovem ante os deuses quanto

Morre! Tudo é tão pouco!

Nada se sabe, tudo se imagina.

Circunda-te de rosas, ama, bebe

E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, Odes

Camille

Claudel

eli – Julho 2009

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SONETO DE MAL-AMAR

Invento-te recordo-te distorço

a tua imagem mal e bem amada

sou apenas a forja em que me forço

a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada

lambendo a trave mestra do teu corpo

a palavra ciúme atormentada

a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:

Meu terraço de ausência meu castigo

meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo

chão das palavras mágoa joio e trigo

apenas por ternura levedadas.

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética

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LEMBRA-TE

Lembra-te

que todos os momentos

que nos coroaram

todas as estradas

radiosas que abrimos

irão achando sem fim

seu ansioso lugar

seu botão de florir

o horizonte

e que dessa procura

extenuante e precisa

não teremos sinal

senão o de saber

que irá por onde fomos

um para o outro

vividos

Mário Cesariny, Pena Capital

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PROCURO-TE

Procuro a ternura súbita,

os olhos ou o sol por nascer

do tamanho do mundo,

o sangue que nenhuma espada viu,

o ar onde a respiração é doce,

um pássaro no bosque

com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,

a juventude suspensa,

a fugidia voz da água entre o azul

do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.

Chamo por ti, e o teu nome ilumina

as coisas mais simples:

o pão e a água,

a cama e a mesa,

os pequenos e dóceis animais,

onde também quero que chegue

o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa

quando te procuro de rosto cravado na luz.

Eu sei que há diferenças,

mas não quando se ama,

não quando apertamos contra o peito

uma flor ávida de orvalho.

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Ter só dedos e dentes é muito triste:

dedos para amortalhar crianças,

dentes para roer a solidão,

enquanto o verão pinta de azul o céu

e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.

Antes que a morte se aproxime, procuro-te.

Nas ruas, nos barcos, na cama,

com amor, com ódio, ao sol, à chuva,

de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas

Kandinsky, Lyrical

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LISBOA

Lisboa tem um vestido azul feito de mar e guerra.

E cheira a laranjas maduras.

Quando as gaivotas trazem no bico

os primeiros pedaços de sol para

acender o dia, Lisboa deixa correr

os cabelos pelo Tejo e o Povo pelas ruas.

À mesma hora, a coragem agita no

sangue duas grandes asas inquietas.

Por todas as janelas destruídas, já

o mar entrou, derrubando acácias

cantando hinos de espuma.

E porque toda a coragem é necessária,

toda a esperança é legítima.

Joaquim Pessoa, Amor Combate

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HOJE É O TEMPO

Este é o tempo do insólito, do vigário, do capricho,

da mentira, da falsificação, do cheque sem

cobertura, da banha-de-cobra. Não temos um estalão

para nada, a própria Terra não garante a estabilidade

do metro, o sistema de pesos e medidas é duvidoso

que funcione, tudo existe em função de si e não de

qualquer outra coisa que lhe confira validade. Hoje

tudo é possível porque nada é possível. Hoje a

verdade não se demora até ser mentira mas uma e

outra se convertem mutuamente e são ambas válidas

na sua mútua referência, sendo a mentira verdade e

ao contrário. Hoje é o tempo dos aventureiros, do

medíocre sagaz, da esperteza, que é a inteligência da

astúcia. Hoje é o tempo do curandeiro, do endireita,

do bruxo, do vidente, do profeta, do prestidigitador.

Hoje é o tempo de ser estúpido porque o inteligente

não há razão para não ser mais estúpido do que ele.

Hoje é o tempo de todos os caminhos estarem

desimpedidos porque não é possível um sistema

alfandegário. Hoje é o tempo de todos os

contrabandos porque não há razão para um sistema

fiscal. Hoje é o tempo da noite para todos os gatos

terem a mesma identidade. Hoje é o tempo de tudo

ser tempo de. Hoje é o tempo de tudo, portanto de

nada. Hoje é o tempo de se não ser. Levanta em ti, se

puderes, o que te resta de homem, para seres alguma

coisa.

Vergílio Ferreira, Pensar

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UMA MULHER QUASE NOVA…

Uma mulher quase nova

com um vestido quase

branco

numa tarde quase clara

com os olhos quase secos

vem e quase estende os dedos

ao sonho quase possível

quase fresca se liberta

do desespero quase morto

quase harmónica corrida

enche o espaço quase alegre

de cabelos quase soltos

transparente quase solta

o riso quase bastante

quase músculo florido

deste instante quase novo

quase vivo quase agora

Mário Dionísio, O Riso Dissonante

Edward Hopper, Summertime

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POEMA SOBRE A RECUSA

como é possível perder-te

sem nunca te ter achado

nem na polpa dos meus

dedos

se ter formado o afago

sem termos sido a cidade

nem termos rasgado pedras

sem descobrirmos a cor

nem o interior da erva

como é possível perder-te

sem nunca te ter achado

minha raiva de

ternura

meu ódio de conhecer-te

minha alegria profunda

Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim

Picasso,

Le repos (Marie-Thérèse

Walter)

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6 DE AGOSTO DE 1945

Caldelas, 7 de Agosto - A primeira bomba atómica.

Que maravilhoso bicho, o homem! Teimou, teimou,

e descobriu a pedra filosofal!

Caldelas, 8 de Agosto - Em Hiroxima, onde a bomba

atómica foi lançada, tudo quanto era vida morreu.

Por causa do fumo e da poeira que se levantaram, o

mundo esteve de respiração suspensa durante vinte e

quatro horas, sem saber o que tinha acontecido. Mas

hoje, de manhã, os jornais, diligentes, já estavam

senhores da verdade inteira. Não tinham morrido

vinte, trinta ou quarenta mil pessoas, como era de

temer. Para matar a ridicularia de quarenta mil

pessoas não era necessário tanto sonho. Não,

felizmente, não se tratava de um desapontamento.

Nem quarenta, nem sessenta, nem setenta mil

mortos. Isto é: todos os seres vivos liquidados!

E a humanidade dobrou o jornal aliviada.

Miguel Torga, Diário

Antonio Saura, Crucifixion

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PRAIA DO ENCONTRO

Esta imaginação de sal e duna,

inquieta e movediça como a areia,

ergue, isolada, a praia, mais a espuma

que sereia nenhuma

saboreia…

Quisesses tomar tu este veleiro,

que em secreto estaleiro construí,

sem velas, sem cordame, sem

madeira,

- mas branco!, e todo inteiro

para ti…

Brilha uma luz de morte sobre o porto

saído mesmo agora da memória…

Ali estarei, à tua espera, morto,

ou vivo em minha morte

transitória…

Combinado. Que eu juro não faltar!

Contrário de Tristão, renascerei,

se pressentir, aérea, sobre o mar,

a sombra singular

do barco que te dei.

David Mourão-Ferreira

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UM AMOR

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,

puxaste-me para os teus olhos

transparentes como o fundo do mar para os

afogados. Depois, na rua,

ainda apanhámos o crepúsculo.

As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar

diferente inundava a cidade. Sentei-me

nos degraus do cais, em silêncio.

Lembro-me do som dos teus passos,

uma respiração apressada, ou um princípio de

lágrimas,

e a tua figura luminosa atravessando a praça

até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto

é,

o tempo suficiente para me aperceber de que, sem

estares ali,

continuavas ao meu lado. E ainda hoje me

acompanha

essa doente sensação que

me deixaste como amada

recordação.

Nuno Júdice

Eric Vignaud, CrépusculeTraz

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TRAZ OUTRO AMIGO TAMBÉM

Amigo

Maior que o pensamento

Por essa estrada amigo vem

Não percas tempo que o vento

É meu amigo também

Em terras

Em todas as fronteiras

Seja bem vindo quem vier por bem

Se alguém houver que não queira

Trá-lo contigo também

Aqueles

Aqueles que ficaram

(Em toda a parte todo o mundo tem)

Em sonhos me visitaram

Traz outro amigo também

José Afonso

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O ESPÍRITO

Nada a fazer, amor, eu sou do bando

Impermanente das aves friorentas;

E nos galhos dos anos desbotando

Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?

À vida breve não perguntes: cruentas

Rugas me humilham. Não mais em estilo brando

Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera

Quem na amada o conjura. Além, mais alto,

Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao

sobressalto

Do tempo, núncia de perene

primavera.

Confia. Eu sou romântica. Não

falto.

Natália Correia, Sonetos Românticos

foto: eli

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Como se de repente ao coração do Sol

as raízes da luz alguém as arrancasse...

Como se de repente as hélices do vento

arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto...

Como se de repente o Mundo entontecesse...

Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:

escuridão, rumor, frescura, movimento.

Mas de entre as espirais confusas quem sabia

se era de novo amor, se era só melodia?

David Mourão-Ferreira

Giacomo Balla

, Ragazza che

corre al balcone

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SÁBADOS

Morte procriadora de bens que são ser e nada ter

Olhos de seda e aço penetrando a fronteira

Guerreiro sem espada cansado das pedras que lhe

arremetem

E a terra lavrada com flores de pêssego e bandeiras

de milho

Misturando orvalho chuva água da mina ao leite

branco e doce

E nos baldios cabras buscando secos arbustos sem

amoras

E sem amores

Aos sábados visito-te de longe monto num cavalo

verde

E fico à porta atrás das grades

Não me perguntas se durmo se estou acordada nada

nunca em vida

me perguntaste

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Na coragem do pacto da solidão

E eu passo no cavalo verde cavalo limpo de sela

Mas pelas grades não passam nossas lágrimas

brancas

E eu passo ao sábado todos os sábados e fico atrás

das grades

São tardes calmas em que os homens velhos de

pijamas às riscas

Dependuram as mãos nos parapeitos das janelas e

olham para fora

E as mulheres velhas encostam os peitos derrotados

à tristeza dos

próprios braços

E olham também

Matilde Rosa Araújo

Colóquio Letras, nº 73, Maio de 1983

Franz Marc, Die kleinen gelben Pferde

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AS PALAVRAS

Há palavras que são sombras de árvores

ou um bálsamo da terra,

um pressentimento de espuma,

um incêndio do tacto,

uma reverência ao desconhecido.

Amo as palavras que são às vezes sonâmbulos

cavalos,

satélites de granito,

raparigas cegas no fundo das casas,

veias de uma estrela submarina.

Como não amá-las pela brisa

se são pétalas de um clamor silencioso

ou anjos sossegados dormindo sobre a terra

ou lúcidas e ébrias, majestosas e puras,

magníficas como um dorso recamado de estrelas,

intacta revelação de invioladas luas?

Desconfio das palavras, mas às vezes são leves,

musicais

aves que planam sobre uma cidade branca,

ilhas mágicas, selados vasos, cordeiros recém-

nascidos,

caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,

amoroso tremor da matéria terrestre.

Como um boi nocturno das águas eu procuro

essas guitarras plantadas nas plantas

que através de eclipses e da distância

erguem uma árvore de música ou uma pirâmide

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ou as lianas vivas que me defendem dos abismos.

Como estátuas de ar as palavras levantam-se

na harmonia delirante do nómada do deserto.

Quer sejam suspiros entre os arbustos ou

sonâmbulas melodias

estão sempre à altura dos seus próprios desejos.

Quer o cérebro sangre ou a terra estremeça

o seu cerimonial é inesgotável, as suas relíquias

vivas.

São abelhas ou astros que buscam alimento

nos ninhos de amêndoas ou nos espelhos da lua?

Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,

nos seus cavalos subterrâneos, nos seus densos

diamantes.

Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e

sombras,

sei que são anjos de argila, antiquíssmos arqueiros

que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas.

António Ramos Rosa, O Não e o Sim

fractal: mur du son

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No amor também as palavras

são necessárias. Os gestos talvez não bastem.

Nem a chuva lá fora enquanto o amor se inflama.

Nem o sussurro nas árvores quando os corpos

serenam.

Nem a melopeia das águas quando as bocas se

esmagam.

Nem o fulgor dos olhos quando a paixão se

impacienta.

Penso no amor e logo invento palavras

e logo as palavras se põem ébrias.

Penso no amor e logo as palavras

se soltam como fogosas aves

a que não pergunto o rumo.

Penso no amor e logo preciso

que as palavras digam

que amor é este em que penso e em que grito.

Fernando Namora

Colóquio letras, nº 73, Maio de 1983

Magritte, Procura do Absoluto

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Quem sou eu, a que está nesta varanda,

em frente deste mar, sob as estrelas,

vendo vultos andarem?

Sabem, acaso, os vultos quem vão sendo?

Sentem o céu, as águas, quando passam?

Ou não vêem, ou não lembram?

Quando alguém deste mundo para a lua

dirige os olhos, meditando coisas

e assim no vago mira,

para este mundo vão meus pensamentos,

tão estrangeiros, tão desapegados,

como se esta varanda fosse a lua.

Cecília Meireles

Carlo Carrà,

Mulher à

Janela

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A perfeição das coisas

O vento - finalmente no fogo do dia - o vento do

mundo

neste lugar aberto

escreve a inclinação dos jovens álamos na última

colina

contra o céu para sempre novo e antigo.

As mãos do vento escrevem em verso ramos e

folhas, pontos e traços,

a sombra da luz; encurvam para a esquerda e em

cima

as hastes longas e breves: as vogais aéreas

da paisagem terrestre que teríamos esquecido.

É subitamente que o vês claramente visto

repetindo a imagem do tempo:

é uma caligrafia de acaso.

Mas é uma caligrafia minuciosa nítida;

inquieta e exacta;

ofuscante como a incriada perfeição das coisas.

Numa outra folha ou margem ou luz ou lugar do

mundo

és tu agora. Levantas o vestido leve; os teus dedos

enrodilham-no, subindo-o numa onda irrepetível e

contudo, repetidas vezes sem conta.

As tuas mãos enquanto quase quase danças - embora

apenas andes sobre o imortal chão da casa. -

sobem o pano

de algodão, apanham a bainha, colhem asas do

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escasso mar

que te cobria e

levam-nas até à linha irrevogável das ancas

como se fossem prender o vestido à levíssima

ondulação

do mundo andante.

É como se uma onda no corpo abrisse lenta e

fulminante

a incalculável praia ao esplendor em que cada coisa

se diz

como se cantasse o nome do sem nome.

A curvatura daquelas hastes e a onda vertical que o

teu gesto inventa

escrevem então a infindável passagem entre os

separados mundos

e a isso só podemos chamar alegria.

Manuel Gusmão, Teatros do Tempo

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Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.

Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;

E o sonho do que se poderia ver se a janela se

abrisse,

Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

Foto: eli

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Esperança

Esperança:

isto de sonhar bom para diante

eu fi-lo perfeitamente.

Para diante de tudo foi bom

bom de verdade

bem feito de sonho

podia segui-lo como realidade

Esperança:

isto de sonhar bom para diante

eu sei-o de cor.

Até reparo que tenho só esperança

nada mais do que esperança

pura esperança

esperança verdadeira

que engana

e promete

e só promete.

Esperança:

pobre mãe louca

que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança

único que eu tenho

não me deixes sem nada

promete

engana engano que seja

não me deixes sozinho

esperança.

Almada Negreiros, Obras

Completas

Desenho de Almada Negreiros

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Mar, Mar e Mar

Tu perguntas, e eu não sei,

eu também não sei o que é o mar.

É talvez a lágrima caída dos meus olhos

ao reler uma carta quando é de noite.

Os teus doentes, talvez os teus dentes,

miúdos, brancos, agudos, sejam o mar,

um mar pequeno e frágil,

afável, diáfano,

no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama

quando uma onda e outra onda e outra

desfaz o seu corpo contra o meu corpo.

Então o mar é carícia,

luz molhada onde desperta

meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca

cintilando entre os rochedos.

Não sei se fita a água

ou se procura

um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.

É um adolescente morto

de lábios abertos aos lábios da espuma.

É sangue,

sangue onde a luz se esconde

para amar outra luz sobre as areias.

Page 27: Sulparati - Em Julho 2009

Um pedaço de lua insiste,

insiste e sobre lento arrastando a noite.

Os cabelos de minha mãe desprendem-se,

espalham-se na água,

alisados por uma brisa

que nasce exactamente no meu coração.

O mar volta a ser pequeno e meu,

anémona perfeita abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.

Aguardo a madrugada, impaciente,

os pés descalços na areia.

Eugénio de Andrade, As palavras Interditas

Foto: eli

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Prenda de anos

Abriu as mãos, desconchando-as, e delas tombou a

pedrinha. Os olhos da menina seguiram a queda, até

se fecharem como se se protegesse do adivinhado

ruído.

- Isso que trouxe para mim? O pai acenou. Que sim,

trouxera da viagem para o aniversário da mais nova.

Uma anónima pedra, sem tamanho nem cor

especiais. Ser pedra era o único valor daquela pedra.

A menina já conhecia as ofertas que lhe cabiam:

pena de corvo, casca de arbusto, fragmento de chão.

Tudo fragrância do natural, nada comparado nem

comparável. Esses sendo seus mimos desde que

nascera, consumando o pensar paterno – o que se dá,

quando se ama, não se compra. A moça levou a

prenda e colocou-a sobre a mesa do seu quarto.

Sentou-se, sem gesto nem ruído. Assim calada,

esperava que a pedra saísse do silêncio.

- Nenhuma coisa é um qualquer nada.

Assim aprendera a inventar nome para os muitos

anónimos objectos. Ela vestia esses pequenos

desvalores com histórias que retirava da sua fantasia.

Nesse criar ela mesmo se iluminava. A restante

família se opunha a este fazer de conta. Para os

outros aquilo era um desgaste de tempo,

desconversação. As amigas da moça, por igual, lhe

desvalorizavam as dádivas. E exibiam seus

pertences, cheios de preços. E tanto o faziam que, às

vezes, a menina era roída por súbitas invejas. Como

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aquela que agora despontava em sua alma. Porque

ela, sentada na penumbra do quarto, não lograva

inventar nenhuma fantasia para a prenda de anos,

algo que convertesse a pedra em coisa única.

Então, o pai entrou no aposento e igualmente se

sentou. Não se imagina o que sentado se alcança

fazer. O Homem se constituiu graças à marcha. Mas

foi o sentar que forjou a maior fatia da nossa

humanidade.

- Lhe explico a palavra, filha. Paisagem vem de pai.

A filha riu, enquanto ele lhe contava como

descobrira aquela pedra, tão aquela e nenhuma

demais. Começava, então, a prenda não de

aniversário mas de eternidade. Conforme catava

magia com suas palavras o pai era todo dela,

entregue inteiro e aparecido, como se ela fosse

sempre o único motivo dela. Seu pai lhe dava um

outro pai, roubando-a dessa orfandade original que

nos ataca nas fraquezas.

A voz do pai dissolvia o tempo como açúcar se

extinguindo no chão. Na ensombração do quarto, o

mundo sumia enquanto uma pedra entrava em

ovulação.

Mia Couto, in ―Pública‖ ( Público, 18-6-2000)

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Dos Sonetos a Orfeu

Um deus pode. Mas como erguer do sol,

na estreita lira, o canto de uma vida?

Sentir é dois; no beco sem saída

dos corações não há templos de Apolo.

Como ensinas, cantar não é a vaidade

de ir ao fim da meta cobiçada.

Cantar é ser. Aos deuses, quase nada.

Mas nós, quando é que somos? em que idade

nos devolvem a terra e as estrelas?

Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam

as palavras nos lábios, ao dizê-las,

esquece os teus cantares. Já não soam.

Cantar é mais. Cantar é um outro alento.

Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.

Rainer Maria Rilke

- trad. de Augusto de Campos

Antonio Canova, Orpheus

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Hora grave

Quem chora agora em algum lugar do mundo,

sem razão chora no mundo,

chora por mim.

Quem ri agora em algum lugar da noite,

sem razão se ri na noite,

ri-se de mim.

Quem anda agora em algum lugar do mundo,

sem razão anda no mundo,

vem para mim.

Quem morre agora em algum lugar do mundo,

sem razão morre no mundo,

olha para mim.

Rainer Maria Rilke

- trad. de José Paulo Paes

Alexandre Seon,

Lamento de Orfeu

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Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou:

Canto como um possesso

Que na casca do tempo, a canivete,

Gravasse a fúria de cada momento;

Canto, a ver se o meu canto compromete

A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam os rouxinóis...

Eu ergo a voz assim, num desafio:

Que o céu e a terra, pedras conjugadas

Do moinho cruel que me tritura,

Saibam que há gritos como há nortadas,

Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte

No corpo dum poeta que a recusa,

Canto como quem usa

Os versos em legítima defesa.

Canto, sem perguntar à Musa

Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga

Rodin, Orphée

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Canto de Orfeu

Pendurou no salgueiro a cítara

caminhou diante dos seus passos

sendo depois punido pelos Anjos.

Caminhou sempre para o futuro

mesmo olhando para trás na memória

e por esse futuro foi punido

pois levaria consigo a imagem viva.

Não era Eurídice aquela que o seguia

mas a sua face figurada

pelos olhos de Orfeu ainda capazes

de criar o modelo e a imagem.

Depois da morte ela ainda vivia

pronta para o prender em espelhos dúplices

e ele que amava nela o corpo, a alma,

o suor, o aroma, a linha dos dedos,

levou-a para sempre escendida

ao Tempo do Espaço depois do futuro.

Foi punido por Anjos ciosos

da sua ciência da Origem,

enquanto outros Anjos doces coroavam

aquele Filho que também levara

na memória dos olhos a figura

da Mãe, que todos os filhos levam em si.

Um terrível canto de lamento humano

Depois soou: "Che farò senza Uridice?",

com o som das vogais mais dolorosas.

Mas o sábio Orfeu deixou a lira

somente ser tocada pelo vento

quando o canto perseguia a imagem.

Fiama Hasse Pais

Brandão, Cantos do Canto

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Orfeu da Conceição

Monólogo de Orfeu

Mulher mais adorada!

Agora que não estás, deixa que rompa

O meu peito em soluços! Tu enrutiste

Em minha vida; e cada hora que passa

É mais por que te amar, a hora derrama

O seu óleo de amor, em mim, amada...

E sabes de uma coisa? Cada vez

Que o sofrimento vem, essa saudade

De estar perto se longe, ou estar mais perto

Se perto - que é que eu sei! Essa agonia

De viver fraco, o peito extravasado

O mel correndo; essa incapacidade

De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso

De um homem - nada disso tem importância

Quando tu chegas com essa charla antiga

Esse contentamento, essa harmonia

Esse corpo! E me dizes essas coisas

Que me dão essa força, essa coragem

Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice,

Meu verso, meu silêncio, minha música!

Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada

Sou coisa sem razão, jogada, sou

Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...

Coisa incompreensível! A existência

Sem ti é como olhar para um relógio

Só com o ponteiro dos minutos. Tu

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És a hora, és o que dá sentido

E direcção ao tempo, minha amiga

Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!

A beleza da vida és tu, amada!

Milhões amada! Ah! criatura! Quem

Poderia pensar que Orfeu: Orfeu

Cujo violão é a vida da cidade

E cuja fala, como o vento à flor

Despetala as mulheres - que ele, Orfeu

Ficasse assim rendido aos teus encantos!

Mulata, pele-escura, dentebranco

Vai teu caminho que eu vou te seguindo

No pensamento e aqui me deixo rente

Quando voltares, pela lua cheia

Para os braços sem fim do teu amigo!

Vai tua vida, pássaro contente

Vai tua vida que eu estarei contigo!

Vinícius de Moraes, O Operário em Construção

Ouvindo:

Orfeu da

Conceição

Long Play 10", Odeon

MODB 3056

Lançado em 1956Música:

António Carlos Jobim

Letra: Vinícius de Moraes

Arranjos e regência: António

Carlos Jobim

Violão: Luiz Bonfá

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Orfeu

Deixem-me a pedra fresca à face quente,

Condão da noite, íntegra em seu corpúsculo,

E lá deite a cabeça de repente

Como a bolha do Sol cai no crepúsculo.

Asa de ave sem canto é aquele ramúsculo

Que me caiu na testa. - E tanta gente

Vê nossa alma coroada! Oh! triste músculo

O coração do poeta que o não sente!

Um cansaço de morte gela o ousado

Domador de palavras como feras.

Orfeu sem Orco, ínvio ladrão de lume,

Quando, afinal, doméstico e roubado

Foi ele na paz da pedra, - e a outras quimeras

Sua coroa de rosas se resume.

Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte

Tiziano Vecellio, Orfeu e

Eurídice

Page 37: Sulparati - Em Julho 2009

Toda a noite acompanhei a tua viagem, Orfeu,

de fogo em fogo,

de melodia em melodia,

até o centro da Construção das Trevas.

Ah! E com que volúpia te vi de novo estrangular

a tua Eurídice

calada para sempre,

morta para sempre

- melodia

que só oculta no silêncio

atravessa as pedras...

E agora, Orfeu,

raiz do avesso,

vejo-te regressar lentamente à superfície da Terra,

com as mãos desfeitas em flor de orvalho

no fogo consumido.

Amanhece.

O planeta é de vidro.

José Gomes Ferreira, Encruzilhadas

Jules-Elie Delaunay.

Foyer de l'Opéra de

Paris

Page 38: Sulparati - Em Julho 2009

Soneto de Eurydice

Eurydice perdida que no cheiro

E nas vozes do mar procura Orpheu

Ausência que povoa terra e céu

E cobre de silêncio o mundo inteiro

Assim bebi manhãs de nevoeiro

E deixei de estar viva e de ser eu

Em procura de um rosto que era meu

O meu rosto secreto e verdadeiro

Porém nem nas marés nem na miragem

Eu te encontrei. Erguia-se somente

O rosto liso e puro da paisagem

E devagar tornei-me transparente

Como morta nascida à tua imagem

E no mundo perdida esterilmente.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo

Dividido

Rodin, Orpheus and Euridyce

Page 39: Sulparati - Em Julho 2009

Summertime

Olho a sua boca. Tanto

que vem o punhal da luz

levar-me os olhos.

O carvão, a cinza dos

meus olhos. Os seus.

A sua boca, o sulco

onde me pergunta e eu

respondo. A morrer,

a olhar anavalhado

o seu brilho bravio.

Sons de sirenes, uivos,

estrondos, desabamentos,

ravinas donde rompe

o amor. A sua boca.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição

Man Ray, Lips

Page 40: Sulparati - Em Julho 2009

As Mães

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão

morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz

em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá

encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres

envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra

lhes tivesse morrido e para todo o sempre se

quedassem órfãs. Não as veremos apenas em

Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em

toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia,

em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats

ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar

esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal

podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a

minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo

para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento.

Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o

que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem

imortais. Se o não forem, são pelo menos

incorruptíveis como se participassem da natureza do

fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos

sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela

obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se

à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma

côdea ou fazendo uns carapins para o último dos

netos, as entranhas abertas nas palavras que vão

trocando entre si; outras vezes caminham por

quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um

postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal,

agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao

calor animal da casa, aquecem

um migalho de café, regam as

sardinheiras, depois de

varrerem o terreiro. Elas são as

Mães, essas mulheres que

Goethe pensa estarem fora do

tempo e do espaço, anteriores

ao Céu e ao Inferno, assim

velhas, assim terrosas, os olhos

perdidos e vazios, ou vivos

como brasas assopradas.

Solitárias ou inumeráveis, aí as

tens na tua frente, graves,

caladas, quase solenes na sua

imobilidade, esquecidas de que

foram o primeiro orvalho do

homem, a primeira luz. Mas

também as podes ver seguindo

por lentas veredas de sombra,

as pernas pouco ajudando a

vontade, atrás de uma ou duas

cabras, com restos de garbo na

cabeça levantada, apesar das

tetas mirradas. Como

encontrarão descanso nos

caminhos do mundo? Não há

ninguém que as não tenha visto

com umas contas nas mãos

engelhadas rezando pelos seus

defuntos, rogando pragas a

Page 41: Sulparati - Em Julho 2009

uma vizinha que plantou à roda do curral mais três

pés de couve do que ela, regressando da fonte

amaldiçoando os anos que já não podem com o

cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando

alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de

alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos

colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S.

João. E aos domingos lavam a cara e mudam de

roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta,

que também põem nos enterros. E vede como, ao

abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda

cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou

vendem pelas termas, juntamente com um punhado

de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E

conheço uma que passa as horas vigiando as

traquinices de um garoto que tem na testa uma

estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela

vê.

Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da

sua ressurreição.

Eugénio de Andrade, Vertentes do olhar

Page 42: Sulparati - Em Julho 2009

Luís de Camões

Tinha uma flauta.

Não tinha mais nada mas tinha uma flauta

tinha um órgão no sangue uma fonte de música

tinha uma flauta.

Os outros armavam-se mas ele não:

tinha uma flauta.

Os outros jogavam perdiam ganhavam

tinham Madrid e tinham Lisboa

tinham escravos na Índia mas ele não:

tinha uma flauta.

Tinham navios tinham soldados

tinham palácios e tinham forcas

tinham igrejas e tribunais

mas ele não:

tinha uma flauta.

Só ele Príncipe.

Dormiam rainhas na cama do rei

princesas esperavam no belvedere

Ele tinha uma escrava que morreu no mar.

Morreram escravas as rainhas

morreram escravas as princesas

nenhuma teve o seu rei

para nenhuma chegou o Príncipe.

Por issoo a única rainha

foi aquela escrava que morreu no mar:

Page 43: Sulparati - Em Julho 2009

só ela teve

o que tinha uma flauta.

Morreram os reis que tinham impérios

morreram os príncipes que tinham castelos

mas ele não:

tinha uma flauta.

De fora vieram reis

vieram armas de fora

os príncipes entregaram armas

ficou sem armas o povo.

As armas de fora venceram

todas as armas de dentro.

Só não venceram o que não tinha armas:

tinha uma flauta.

E as vozes de fora mandaram

calar as vozes de dentro.

Só não puderam calar aquela flauta.

Vieram juízes e cadeias.

Mas a flauta cantava.

Passaram por todas as fronteiras.

Só não puderam passar

pela fronteira

daquela flauta.

E quando tudo se perdeu

ficou a arma do que não tinha armas:

tinha uma flauta.

Ficou uma flauta que cantava.

E era uma Pátria.

Manuel Alegre, O Canto e as

Armas

Manet, O Flautista

Page 44: Sulparati - Em Julho 2009

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

Page 45: Sulparati - Em Julho 2009

Um nome

Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,

pela luz

onde me deito,

di-lo-ei pelo ódio, pelo amor

com que toquei as pedras nuas,

por uns passos verdes de ternura,

pelas adelfas,

quando as adelfas nestas ruas

podem saber a morte,

pelo mar

azul,

azul-cantábrico, azul-bilbau,

quando amanhece,

di-lo-ei pelo sangue

violado

e limpo e inocente,

por uma árvore,

uma só árvore, di-lo-ei:

Guernica!

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro

Picasso,

Guernica

Page 46: Sulparati - Em Julho 2009

Charneca em flor

Enche o meu peito, num encanto mago,

O frémito das coisas dolorosas...

Sob as urzes queimadas nascem rosas...

Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago

Em mim? Eu oiço bocas silenciosas

Murmurar-me as palavras misteriosas

Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,

Dispo a minha mortalha, o meu burel,

E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:

Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca, Charneca em Flor

Georges Braque, "l'oiseau dans le

feuillage"

Page 47: Sulparati - Em Julho 2009

Eros e Psique

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante que viria

De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe, o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa, Poesias

Éros et Psyché, musée

archéologique d'Ephèse

Page 48: Sulparati - Em Julho 2009

Olhar o rio que é de tempo e água

E recordar que o tempo é outro rio,

Saber que nos perdemos como o rio

E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono

Que sonha não sonhar e que a morte

Que teme a nossa carne é essa morte

De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo

Quer dos dias do homem quer dos anos,

Converter a perseguição dos anos

Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver na morte o sono, no ocaso

Um triste ouro, assim é a poesia

Que é imortal e pobre. A poesia

Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara

Olha-nos do mais fundo dum espelho;

A arte deve ser como esse espelho

Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios

Chorou de amor ao divisar a Ítaca

Verde e humilde. A arte é essa Ítaca

De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável

Que passa e fica e é cristal dum mesmo

Heraclito inconstante, que é o

mesmo

E é outro, como o rio

interminável.

Jorge Luis Borges, in Poemas

Escolhidos, Trad. Ruy Belo

Foto: eli

Page 49: Sulparati - Em Julho 2009

Ressurgiremos

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos

E em Delphos centro do mundo

Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras

São o nome das coisas

E onde são claros e vivos os contornos

Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo

São o reino do homem

Ressurgiremos para olhar para a terra de frente

Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exactidão da cruz

Na luz branca de Creta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto

n memoriam

Arpad Szenes

Page 50: Sulparati - Em Julho 2009

"Transforma-se o amador na coisa amada"

«Transforma-se o amador na coisa amada», com seu

feroz sorriso, os dentes,

as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído

e silêncio. Traz o barulho das ondas frias

e das ardentes pedras que tem dentro de si.

E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado

silêncio da sua última vida.

O amador transforma-se de instante para instante,

e sente-se o espírito imortal do amor

criando a carne em extremas atmosferas, acima

de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.

E a coisa amada é uma baía estanque.

É o espaço de um castiçal,

a coluna vertebral e o espírito

das mulheres sentadas.

Transforma-se em noite extintora.

Porque o amador é tudo, e a coisa amada

é uma cortina

onde o vento do amador bate no alto da janela

aberta. O amador entra

por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.

O amador é um martelo que esmaga.

Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher

que escuta

Page 51: Sulparati - Em Julho 2009

fica com aquele grito para sempre na cabeça

a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve

e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele

grito

do amador.

Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,

dá-lhe o grito dele.

E o amador e a coisa amada são um único grito

anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito

de amador. E ela é batida, e bate-lhe

com o seu espírito de amada.

Então o mundo transforma-se neste ruído áspero

do amor. Enquanto em cima

o silêncio do amador e da amada alimentam

o imprevisto silêncio do mundo e do amor.

Herberto Helder

Page 52: Sulparati - Em Julho 2009

"Transforma-se o amador na coisa amada"

Transforma-se o amador na coisa amada

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho, logo, mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito

Assim como a alma minha se conforma

Está no pensamento como ideia;

O vivo e puro amor de que sou feito

Como a matéria simples busca a forma.

Luís de Camões

Page 53: Sulparati - Em Julho 2009

Epístola para Dédalo

Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera

se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?

Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:

todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.

Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue

dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

Fiama Hasse Pais Brandão,

Epístolas e Memorandos

Dédalo e Ícaro

Page 54: Sulparati - Em Julho 2009

MERIDIONAL

CABELOS

Ó vagas de cabelo esparsas longamente,

Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,

E tendes o cristal dum lago refulgente

E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que me enleva,

Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus

No báratro febril da vossa grande treva,

Que tem cintilações e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,

Quando ele estiver brando e livre de tufões,

E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos

E enchamos de harmonia as amplas solidões.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos

Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom

Como um licor renano a fermentar nos copos,

Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,

Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,

E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,

Entre o rumor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspire esse perfume raro,

Que exalas da cabeça erguida com fulgor,

Page 55: Sulparati - Em Julho 2009

Perfume que estonteia um milionário avaro

E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,

E vais na direção constante do querer,

Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,

Que fazem mansamente amar e elanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,

Suponho que te serve, em noites de verão,

De flácido espaldar aonde te recostas

Se sentes o abandono e a morna prostração.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões

insanos

Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor

Que antigamente deu, nos circos dos Romanos,

Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.

.................................................................

.................................................................

Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,

Na vossa vastidão posso talvez morrer!

Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio

E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde

Page 56: Sulparati - Em Julho 2009

La Chevelure

O toison, moutonnant jusque sur l'encolure!

O boucles! O parfum chargé de nonchaloir!

Extase! Pour peupler ce soir l'alcôve obscure

Des souvenirs dormant dans cette chevelure,

Je la veux agiter dans l'air comme un mouchoir!

La langoureuse Asie et la brûlante Afrique,

Tout un monde lointain, absent, presque défunt,

Vit dans tes profondeurs, forêt aromatique!

Comme d'autres esprits voguent sur la musique,

Le mien, ô mon amour! nage sur ton parfum.

J'irai là-bas où l'arbre et l'homme, pleins de sève,

Se pâment longuement sous l'ardeur des climats;

Fortes tresses, soyez la houle qui m'enlève!

Tu contiens, mer d'ébène, un éblouissant rêve

De voiles, de rameurs, de flammes et de mâts:

Un port retentissant où mon âme peut boire

A grands flots le parfum, le son et la couleur

Où les vaisseaux, glissant dans l'or et dans la moire

Ouvrent leurs vastes bras pour embrasser la gloire

D'un ciel pur où frémit l'éternelle chaleur.

Je plongerai ma tête amoureuse d'ivresse

Dans ce noir océan où l'autre est enfermé;

Et mon esprit subtil que le roulis caresse

Saura vous retrouver, ô féconde paresse,

Infinis bercements du loisir embaumé!

Page 57: Sulparati - Em Julho 2009

Cheveux bleus, pavillon de ténèbres tendues

Vous me rendez l'azur du ciel immense et rond;

Sur les bords duvetés de vos mèches tordues

Je m'enivre ardemment des senteurs confondues

De l'huile de coco, du musc et du goudron.

Longtemps! toujours! ma main dans ta crinière

lourde

Sèmera le rubis, la perle et le saphir,

Afin qu'à mon désir tu ne sois jamais sourde!

N'es-tu pas l'oasis où je rêve, et la gourde

Où je hume à longs traits le vin du souvenir?

Charles Baudelaire, Les Fleurs du mal

Page 58: Sulparati - Em Julho 2009

Estrela da Tarde

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me

acontecia

Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu

entardecia

Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo,

mordia

Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa

tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a

boca pedia

E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria

Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol

amanhecia

Era tarde de mais para haver outra noite, para haver

outro dia

Meu amor, meu amor

Minha estrela da tarde

Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde

Meu amor, meu amor

Eu não tenho a certeza

Se tu és a alegria ou se és a tristeza

Meu amor, meu amor

Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me

adormeceram

Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e

Page 59: Sulparati - Em Julho 2009

beijos se encheram

Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados

não adormeceram

E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo

fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos

aconteceram

Era o dia da noite de todas as noites que nos

precederam

Era a noite mais clara daqueles que à noite amando

se deram E entre os braços da noite de tanto se

amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é

riso, se é pranto

É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo

no canto

Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e

profundo recanto

Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e

de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se

quer tanto!

José Carlos Ary dos Santos

Page 60: Sulparati - Em Julho 2009

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.

Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra

fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o

silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total

abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma

oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da

presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança

impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Page 61: Sulparati - Em Julho 2009

Abismos

Entre estes meus amigos através

de cujos corações arde o horizonte e a ponte

da qual o seu sorriso era um dos arcos

abriram-se os abismos.

Luís Miguel Nava, Rebentação

Page 62: Sulparati - Em Julho 2009

Soneto menor à chegada do verão

Eis como o vento

chega de súbito,

com seus potros fulvos,

seus dentes miúdos,

seus múltiplos, longos

corredores de cal,

as paredes nuas,

a luz de metal,

seu dardo mais puro

cravado na terra,

cobras que despertam

no silêncio duro...

Eis como o verão

entra no poema.

Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore

Page 63: Sulparati - Em Julho 2009

Nesta última tarde em que (te) respiro

Nesta última tarde em que respiro

A justa luz que nasce das palavras

E no largo horizonte se dissipa

Quantos segredos únicos, precisos,

E que altiva promessa fica ardendo

Na ausência interminável do teu rosto.

Pois não posso dizer sequer que te amei nunca

Senão em cada gesto e pensamento

E dentro destes vagos vãos poemas;

E já todos me ensinam em linguagem simples

Que somos mera fábula, obscuramente

Inventada na rima de um qualquer

Cantor sem voz batendo no teclado;

Desta falta de tempo, sorte, e jeito,

Se faz noutro futuro o nosso encontro

António Franco Alexandre

Page 64: Sulparati - Em Julho 2009

Não sei, Luís, o que está a acontecer com a máquina

do mundo. A tua, etérea, elemental, fabricada que

foi do saber alto e profundo e que é sem princípio e

meta limitada, era cercada por Deus. A nossa, a dos

meus dias, ganhou buracos negros, e Deus poderá

entrar em geração espontânea.

Mas a máquina que neste momento mais me

preocupa não é a do mundo. É a minha. Passo o

tempo no ar. Ando de Metro Voador dentro dos

meus sonhos [...]. E tudo sobre o céu de Lisboa, à

distância do vento e dos pedintes, da porcaria dos

cães e do ar cabisbaixo e triste dos transeuntes

terrenos. E eu, que nunca tive o menor senso de

equilíbrio e jamais entendi o que fossem relações de

massa, olho para o céu e nele vejo crescer, como

cogumelos fantásticos, pilares de alabastro ou de

cristal à prova de cataclismos. E discuto com o

Velho a engenharia das pontes pênseis, sustidas no

ar como por milagre. O Velho entusiasma-se e deixa

o Metro Voador a percorrer os seus antigos mapas:

- Uma obra magnífica, digna dum povo que regressa

à terra, desiste do Adamastor e das Tormentas e sabe

levedar em cimento, ferro e outras matérias, o sonho

dos seus sonhos. Um país finalmente alevantado,

orgulho em trânsito na fronte da Europa.

Armando Silva Carvalho, Em Nome da Mãe

Page 65: Sulparati - Em Julho 2009

Postscriptum

... apercebo o lume dum coração antigo e simples

atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter...

... aqui deixo o espólio daquele cuja vida

é cintilação de lugares nítidos...

(um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro)

... tenho a certeza de que se virasse o corpo do

avesso

ficaria tudo por recomeçar...

... mas se aqui voltares

talvez encontres estes papéis escritos

no recanto mais esquecido da noite... talvez

descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou...

... vou destruir todas as imagens onde me reconheço

e passar o resto da vida assobiando ao medo...

Al Berto, O Medo

karskaya

Page 66: Sulparati - Em Julho 2009

SONETO DO CATIVO

Se é sem dúvida Amor esta explosão

de tantas sensações contraditórias;

a sórdida mistura das memórias,

tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão

de frases insensatas, incensórias;

a cúmplice partilha nas histórias

do que outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia

de buscar nos lençois a mais sombria

razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo

e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,

tenho vivido eternamente preso!

David Mourão Ferreira

Page 67: Sulparati - Em Julho 2009

AUSÊNCIA

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua

ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não

magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,

por isso, de deixar alguns sinais - um peso

nos olhos, no lugar da tua imagem, e

um vazio nas mãos. Como se as tuas mãos lhes

tivessem roubado o tacto. São estas as formas

do amor, podia dizer-te; e acrescentar que

as coisas simples também podem ser

complicadas, quando nos damos conta da

diferença entre o sonho e a realidade. Porém,

é o sonho que me traz a tua memória; e a

realidade aproxima-me de ti, agora que

os dias correm mais depressa, e as palavras

ficam pressas numa refracção de instantes,

quando a tua voz me chama de dentro de

mim - e me faz responder-te uma coisa simples,

como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

Page 68: Sulparati - Em Julho 2009

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta,

tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas

de mármore, quanto mais a corações de cera! São as

feições como as vidas, que não há mais certo sinal

de haverem de durar pouco, que terem durado muito.

São como as linhas, que partem do centro para a

circunferência, que quanto mais continuadas, tanto

menos unidas. Por isso os antigos sabiamente

pintaram o amor menino; porque não há amor tão

robusto que chegue a ser velho. De todos os

instrumentos com que o armou a natureza o desarma

o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira;

embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os

olhos com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as

asas, com que voa e foge. A razão natural de toda

esta diferença é porque o tempo tira novidade às

coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto,

e bastam que sejam usadas para não serem as

mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o

amor?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter

amado muito, de amar menos.

António Vieira, Sermão do Mandato

William Bouguereau,

Jeune fille se defendant

contre l'amour

Page 69: Sulparati - Em Julho 2009

So, we’ll go no more a roving

I

So, we’ll go no more a roving

So late into the night,

Though the heart be still as loving,

And the moon be still as bright.

II

For the sword outwears its sheath,

And the soul wears out the breast,

And the heart must pause to breathe,

And love itself have rest.

III

Though the night was made for loving,

And the day returns too soon,

Yet we’ll go no more a roving

By the light of the moon.

Byron

Page 70: Sulparati - Em Julho 2009

Glosa de “so we’ll go no more a roving” de Byron

Não irei mais meu erro errando errante

Pela noite fora

Embora a lua brilhe tanto como outrora

Não cesse do amor a voz uivante

Que me devora

Pois o coração gasta o peito

E a espada gasta a bainha

O tempo rói o coração desfeito

E a alma é sozinha

Embora a noite sempre peça amor

E o dia volte demasiado cedo

E o luar corte como espada nua

Não irei mais em pânico e segredo

Sob a luz da lua

Sophia de Mello Breyner Andresen, Ilhas

Glosa de “So, we’ll go no more a roving”

Não mais prazer nos daremos

até a noite acabar,

se bem que inda nos amemos

e como antes brilhe o luar.

A espada à bainha gasta,

as almas cansam o seio.

Coração que não se afasta

pode até ficar em meio.

Para o amor a noite é feita

e depressa chega o dia.

Mas o prazer nos enjeita

à luz da lua sombria.

Jorge de Sena , in Poesia de

26 séculos

Page 71: Sulparati - Em Julho 2009

Um pouco de certo modo por toda a parte

há homens desmaiados ou simplesmente mortos

O AMOR REDIME O MUNDO diziam eles

mas onde está o mundo senão aqui?

Mário Cesariny, Pena Capital

Page 72: Sulparati - Em Julho 2009

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Dhüa austera, apagada e vil tristeza.

Lusíadas, X,145

Page 73: Sulparati - Em Julho 2009

Poema Mestiço

escrevo mediterrâneo

na serena voz do índico

sangro norte

em coração do sul

na praia do oriente

sou areia náufraga

de nenhum mundo

hei-de

começar mais tarde

por ora

sou a pegada

do passo por acontecer

Mia Couto

Page 74: Sulparati - Em Julho 2009

O meu mundo tem estado à tua espera; mas

não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,

nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei

que um poema se escreveria entre nós dois; mas

não comprei o vinho, não mudei os lençóis,

não perfumei o decote do vestido.

Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome

(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);

se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira –

estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro

com a violência de um incêndio; mas parto

antes de saber como seria. Não me perguntes

porque se mata o sol na lâmina dos dias

e o meu mundo continua à tua espera:

houve sempre coisas de esguelha nas paisagens

e amores imperfeitos – Deus tem as mãos grandes

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos

Ciprestes

Page 75: Sulparati - Em Julho 2009

A que vens, solidão, com teu relógio

de ponteiros de visgo, de bater de feltro?

Ombro nenhum ao meu ombro encostado,

a que vens, ó camarada solidão?

Companheira, amiga, até amante,

até ausente, ó solidão, te amei,

como se ama o frio até o frio dar

a chama que tu dás, ó solidão!

A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,

que se digo o meu sim ou o meu não

é só para que os outros me julguem mais um outro,

é só para que um morto não tire o sono aos outros?

A que vens, solidão? Vai antes possuir

os que amam sem esperança e sem saber esperam,

dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro

o teu ombro nenhum, ó solidão!

Alexandre O'Neill, Poemas com endereço

Page 76: Sulparati - Em Julho 2009

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas.

linda vista para o mar,

Minho verde, Algarve de cal,

jerico rapando o espinhaço da terra,

surdo e miudinho,

moinho a braços com um vento

testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,

se fosses só o sal, o sol, o sul,

o ladino pardal,

o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,

a desancada varina,

o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,

a muda queixa amendoada

duns olhos pestanítidos,

se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,

o ferrugento cão asmático das praias,

o grilo engaiolado, a grila no lábio,

o calendário na parede, o emblema na lapela,

Ó Portugal, se fosses só três sílabas

de plástico, que era mais barato!

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,

rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,

não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,

galo que cante a cores na minha prateleira,

alvura arrendada para meu devaneio,

bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Page 77: Sulparati - Em Julho 2009

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Page 78: Sulparati - Em Julho 2009

Eu sei, não te conheço, mas existes ...

Eu sei, não te conheço mas existes.

Por isso os deuses não existem,

a solidão não existe

e apenas me dói a tua ausência

como uma fogueira

ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro

quando no outono cresceram no teu peito

duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas

mãos

e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.

Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos

sobre a tua nudez

como uma sombra no deserto.

É apenas este rio que me percorre há muito e

desagua em ti,

porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.

É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira

de habitares

em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.

tenho feito amor de muitas maneiras,

docemente,

Page 79: Sulparati - Em Julho 2009

lentamente

desesperadamente

à tua procura, sempre à tua procura

até me dar conta que estás em mim,

que em mim devo procurar-te,

e tu apenas existes porque eu existo

e eu não estou só contigo

mas é contigo que eu quero ficar só

porque é a ti,

a ti que eu amo.

Joaquim Pessoa, Os Olhos de Isa

Page 80: Sulparati - Em Julho 2009

Madrigal

Toda a manhã

fui a flor

impaciente

por abrir.

Toda a manhã

fui ardor

do sol

no teu telhado.

Toda a manhã

fui ave

inquieta

no teu jardim.

Toda a manhã

fui ave ou sol ou flor

secretamente

ao pé de ti.

Eugénio de Andrade

Page 81: Sulparati - Em Julho 2009

Que instância determina ser ou não ser razão

se é uma ficção o espírito? Nada tem a marca do

eterno

e no entanto Gioconda sorri

os girassóis de Van Gogh germinam com uma

violência solar

Astreia é ainda a pureza de um rosto entre duas

sombras

E Orfeu toca a sua lira na ausência de Eurídice

perdida

Nada é eterno mas o efémero pode ser o instante

glorioso

a salvação da invenção porque tudo é invenção

contra o jugo do destino. Assim a obra nasce

para consagrar o que ainda está inacabado

mas que vai além da sombra espessa

que há na matéria do claro dia

António Ramos Rosa, Deambulações Oblíquas

Page 82: Sulparati - Em Julho 2009

Reconhecimento à Loucura

Já alguém sentiu a loucura

vestir de repente o nosso corpo?

Já.

E tomar a forma dos objectos?

Sim.

E acender relâmpagos no pensamento?

Também.

E às vezes parecer ser o fim?

Exactamente.

Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?

Tal e qual.

E depois mostrar-nos o que há-de vir

muito melhor do que está?

E dar-nos a cheirar uma cor

que nos faz seguir viagem

sem paragem

nem resignação?

E sentirmo-nos empurrados pelos rins

na aula de descer abismos

e fazer dos abismos descidas de recreio

e covas de encher novidade?

E de uns fazer gigantes

e de outros alienados?

E fazer frente ao impossível

atrevidamente

e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe

Page 83: Sulparati - Em Julho 2009

a ponto do impossível ficar possível?

E quando tudo parece perfeito

poder-se ir ainda mais além?

E isto de desencantar vidas

aos que julgam que a vida é só uma?

E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra

tudo?

Tu só, loucura, és capaz de transformar

o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias

para olhos individuais

Só tu és capaz de fazer que tenham razão

tantas razões que hão-de viver juntas.

Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.

Só tu tens asas para dar

a quem tas vier buscar.

José de Almada Negreiros, Obras Completas

Page 84: Sulparati - Em Julho 2009

Há palavras como mulheres nuas violentamente

sumptuosas

Escrevê-las ou lê-las é como tocar os flancos de uma

indolente lua

Às vezes têm um rosto de águia e de andorinha

e redondos seios de melodiosa sereia

Como eu amo o seu corpo as suas maravilhosas

minúcias

e a sua larga ondulação unânime!

As palavras e o corpo não se separam como a luz da

luz não se distingue

e se chamo ao púbis de uma mulher uma crespa

concha de cabelos

é a palavra mesma que brilha e coincidindo apaga e

revela a própria coisa

Por isso já não sei se estou a falar de uma palavra ou

de uma mulher

ou se não estou a esculpir uma flexível estátua

de longas pernas robustas mas voluptuosamente

delicadas

Esta clara oscilação é o movimento mesmo da

matéria inaugural

da palavra que cria a transparência e amanhece na

noite

com frágeis ou duros diademas das suas sílabas

solares

António Ramos Rosa, Primeira Vez

Page 85: Sulparati - Em Julho 2009

M.

Todos os dias as suas águas pequenas afloram os

meus olhos. E eles, que morriam de inanidade,

ganham então súbitos brilhos, abrindo respiradouros

para a vida. A pureza, quando não é um olhar

infantil, é uma aprendizagem entre venenos subtis.

Raramente se alcança, e quando isso acontece já os

nossos olhos estão secos - como poderá tão

melindrosa flor abrir no deserto? Por isso estas

águas, por mais exíguas, me são tão preciosas.

Eugénio de Andrade, Vertentes do Olhar

Page 86: Sulparati - Em Julho 2009

VERSOS QUASE TRISTES

Trago no sangue o mistério

daquele resto de estrada

que não andei...

E era talvez ali

que eu ia ser feliz:

ali

que viriam as Fadas pra contar-me

os contos lindos das Princesas

e de Palácios

e de Florestas

que ficaram por contar;

ali que havia de abrir-se

o tal jardim

com flores que nunca morrem

ou, se morrem, há-de ser

na pujança da frescura

por medo de envelhecer...

Mas não passei além da curva...

O meu alento

já dobrou o joelho desistiu.

E eu sei tão bem que há Glória que me chama

e que tudo que digo aqui, ou faço,

é só arremedar, adivinhar,

o que, pra lá da curva que não passo,

havia de fazer ou de dizer!

E eu sei tão bem

que sem tomar nas mãos a

Glória apetecida

me não contento!...

- Por que é que tu és só

pressentimento,

minha vida?

Sebastião da Gama,

Serra-Mãe

Page 87: Sulparati - Em Julho 2009

Se uma pausa não é fim

e silêncio não é ausência,

se um ramo partido não mata uma árvore,

um amor que é perdido, será acabado?

um ouvido que escuta

uma alma que espera...

-uma onda desfeita

É ou já não era?

Nuvem solitária,

silenciosa e breve,

nuvem transparente,

desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,

esquecida em céu de esperança,

forma irreal de sonho interrompido..

nuvem,

luz e sombra,

forma e movimento,

fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste

e já não és:

desejo formulado e incompreendido.

Ana Hatherly

Page 88: Sulparati - Em Julho 2009

DISCURSO AO PRÍNCIPE DE

EPAMINONDAS, MANCEBO DE GRANDE

FUTURO

Despe-te de verdades

das grandes primeiro que das pequenas

das tuas antes que de quaisquer outras

abre uma cova e enterra-as

a teu lado

primeiro as que te impuseram eras ainda imbele

e não possuías mácula senão a de um nome estranho

depois as que crescendo penosamente vestiste

a verdade do pão a verdade das lágrimas

pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela

depois as que ganhaste com o teu sémen

onde a manhã ergue um espelho vazio

e uma criança chora entre nuvens e abismos

depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato

quando lhes forneceres a grande recordação

que todos esperam tanto porque a esperam de ti

Nada depois, só tu e o teu silêncio

e veias de coral rasgando-nos os pulsos

Então, meu senhor, poderemos passar

pela planície nua

o teu corpo com nuvens pelos ombros

as minhas mãos cheias de barbas brancas

Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada

mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças

e uma estrada de pedra até ao fim das luzes

e um silêncio de morte à nossa passagem.

Mário Cesariny, Manual de

Prestidigitação

Page 89: Sulparati - Em Julho 2009

Oh! como se me alonga, de ano em ano,

a peregrinação cansada minha!

Como se encurta, e como ao fim caminha

este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;

perde-se-me um remédio, que inda tinha;

se por experiência se adivinha,

qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;

no meio do caminho me falece,

mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,

se os olhos ergo a ver se inda parece,

da vista se me perde e da esperança.

Luís de Camões, Lírica Completa II

Page 90: Sulparati - Em Julho 2009

Fuga

Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos.

Num desprezo de mim, fiz-me poeta,

traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis

de traços sem sentido e talvez falsos.

Fui poeta como alguns se suicidam,

como outros partem sem destino certo.

Sonhei-me longe de tudo o que possuo

- longe de mim, longe de quem?-

afastado, sem contas a prestar...

Foi longo o meu engano. Agora vejo

que nunca de mim eu me afastei...

Adolfo Casais Monteiro, Confusão

Page 91: Sulparati - Em Julho 2009

SEGREDO DE TI

Tenho segredo de

ti

meu amor de meu invento

convento onde te

fecho

com o meu corpo lá dentro

Tenho segredo de

ti

onde me prendo e me deito

e onde te roubo

as mãos

para as pôr sobre o meu peito

Maria Teresa Horta, Minha senhora de mim

Page 92: Sulparati - Em Julho 2009

S.O.S.

O mundo

inteiro está

sozinho.

Cada pessoa

vive isolada

no meio das

multidões. As

multidões são

formadas por

indivíduos, por numerosíssimos indivíduos

separados uns dos outros.

As palavras caem perdidas no chão.

Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade

inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus

indivíduos.

O mundo inteiro está dividido em tantos

mundozinhos individuais, pequeníssimos

microscópicos, quantos são os seus habitantes.

Mas aquele mundo da colaboração de todos, o único

real afinal de contas, esse já não existe. Veio cada

qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito

em migalhas, reduzido a grãos de areia, pó, nada!

Vós, indivíduos das cidades, e dos campos, vós

indivíduos de todas as partes e que fazeis parte de

todas as multidões, respondei todos um por um:

Com quem comunicas tu?

Não te perguntamos com quem tratas todos os dias,

nem com quem falas, nem com quem vives, nem

com quem dormes. Perguntamos-te unicamente:

Page 93: Sulparati - Em Julho 2009

com quem te entendes?

Com ninguém!

Estás tão sozinho no meio de toda a gente ou ainda

mais do que se não houvesse no mundo mais

ninguém do que tu. [...]

S.O.S. perdidos, desencontrados, sozinhos! S.O.S.

estamos todos desencontrados, estamos todos

sozinhos, perdidos todos! S.O.S. sozinhos! S.O.S.

desencontrados! S.O.S. perdidos! S.O.S.! sós! S.O.S.

S.O.S é o sinal internacional de telegrafia a pedir

socorro.

Está formado pelas três letras iniciais da frase

inglesa: «Save Our Souls», que quer dizer em

português: «Salvai Nossas Almas».

Estas três letras S.O.S. são as mesmas com que se

escreve em português o plural do indivíduo isolado:

Sós.

Almada Negreiros,, Obras Completas

Page 94: Sulparati - Em Julho 2009

esta esquisita prova me tentou

de tecer um rumor em muros de água

ossos de terra calcinada

o jugo

culpado me castigo com engenho

e da voz desenhada o artifício

restos de pele antiga

no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro

no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda

dos cinco ou mais sentidos

vou ser livre na terra desnudada

vou dizer o que sei como quem mente.

António Franco Alexandre, A Pequena Face

Page 95: Sulparati - Em Julho 2009

Olho os livros - e de súbito os livros multiplicam-se

desde o chão até ao tecto. Paredes imensas,

corredores infindáveis compactos de livros, e as

caves, e as escadarias interiores, depósitos de in-

fólios no sótão, a cerimónia findou, estou eu só na

Biblioteca Geral. Fecharam os portões, ninguém,

todo o grande edifício deserto. Passo pelos longos

corredores, de cima a baixo os livros nos seus

túmulos. São milénios de balbúrdia, tagarelice

infindável, [...] interminável algazarra através das

eras - estão imóveis nos seus túmulos irrisórios.

Passo ao longo dos corredores, ecoam pelo tecto os

meus passos claros no mosaico - silêncio. É a hora

grave do fim [...]

Vergílio Ferreira, Para Sempre

Arcimboldo

Page 96: Sulparati - Em Julho 2009

Meditação

Tudo imaterial na praia rasa

Cheia de sol, ao fim da tarde,

Proa ao vento quebrada

A vaga entre rochedos, se ilumina.

É tudo imaterial, tudo neblina

Ténue que aos poucos arde,

Ao fim da tarde se desfaz, flutua,

E voo de ave deslisa

Ao longe linha pura.

Tudo imaterial na praia rasa.

Aqui ninguém me vê: amo a ternura.

Ruy Cinatti, O Livro do Nómada Meu Amigo

Page 97: Sulparati - Em Julho 2009

Mas que sei eu das folhas no outono

ao vento vorazmente arremessadas

quando eu passo pelas madrugadas

tal qual passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono

e acabam coisas mal principiadas

no ínvio precipício das geadas

que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta

a dor de assim passar que me atormenta

e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?

As coisas vêm vão e são tão vãs

como este olhar que ignoro que me olha.

Ruy Belo, Todos os poemas

Page 98: Sulparati - Em Julho 2009

APONTAMENTOS ÍNTIMOS

Não sei quem sou, que alma tenho.

Quando falo com sinceridade não sei com que

sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu

que não sei se existe (se é esses outros).

Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que

repudio. A minha perpétua atenção sobre mim

perpetuamente me aponta traições de alma a um

carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que

eu tenho.

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com

inúmeros espelhos fantásticos que torcem para

reflexões falsas uma única anterior realidade que não

está em nenhuma e está em todas.

Como o panteísta se sente árvore e até flor, eu sinto-

me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em

mim, incompletamente, como se o meu ser

participasse de todos os homens, incompletamente

de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num

eu postiço.

*

Sendo nós portugueses, convém saber o que é que

somos.

a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e

portanto a diversificação do indivíduo dentro de si

mesmo. O bom português é várias pessoas.

b) a predominância da emoção sobre a paixão.

Somos ternos e pouco intensos, ao contrário dos

Page 99: Sulparati - Em Julho 2009

espanhóis – nossos absolutos contrários –, que são

apaixonados e frios.

Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando

me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo

Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quanto

mais haja havidos ou por haver.

Fernando Pessoa

Page 100: Sulparati - Em Julho 2009

Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como casas saqueadas

Como são como sítios fora dos mapas

Como pedras fora do chão

Como crianças órfãs

Homens sem fuso horário

Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas

Que são como caminhos barricados

Homens que querem passar pelos atalhos sufocados

Homens sulfatados por todos os destinos

Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias

Que são como os esconderijos dos contrabandistas

Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis

Homens que são sobreviventes vivos

Homens que são como sítios desviados

Do lugar

Homens que são como projectos de casas

Em suas varandas inclinadas para o mundo

Homens nas varandas voltados para a velhice

Muito danificados pelas intempéries

Page 101: Sulparati - Em Julho 2009

Homens cheios de vasilhas esperando a chuva

Parados à espera

De um companheiro possível para o diálogo interior

Homens muito voltados para um modo de ver

Um olhar fixo como quem vem caminhando ao

encontro

De si mesmo

Homens tão impreparados tão desprevenidos

Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos

Imaginando relâmpagos

Homens abrindo lume

Para enxaguar o rosto para fechar os olhos

Tão impreparados tão desprevenidos

Tão confusos à espera de um sistema solar

Onde seja possível uma sombra maior

Daniel Faria, Homens que são como Lugares Mal

Situados

Page 102: Sulparati - Em Julho 2009

Imobilizar as coisas, as pessoas, os momentos,

arrancar-lhes um a um todos os véus, depois olhá-los

bem, longamente, saciar-se deles até os olhos

ficarem doridos e as pálpebras descerem de

cansadas. Olhá-los assim para ter coragem. Observar

com atenção tudo aquilo que deixa, tudo, bem de

frente, por uma vez, sem receio, e verificar que não

tem pena de se ir embora. Não fugir, não se escapar

pelas ruas transversais, não se esconder na primeira

porta aberta. Não sonhar. Sobretudo não sonhar.

[...] de súbito, não sabe porquê, os sonhos tornam-se

insuficientes. Agora há sempre uma larga margem

de angústia branca, que se lhe enrola ao peito como

uma serpente, que o aperta, que lhe corta a

respiração e que faz doer. E já não só peito, é todo

ele que é apertado, comprimido, por múltiplos,

invisíveis anéis.

Maria Judite de Carvalho, Paisagem sem Barcos

Page 103: Sulparati - Em Julho 2009

Recusa

Não terás para me

dar

quotidiano contigo

abrigo

corpo despido

Nem terás para me

dar

a segurança do perigo

mais do que o gesto

ocupado

o afago

o desmentido

Não terás para me

dar

o espanto de estar contigo.

Maria Teresa Horta

Page 104: Sulparati - Em Julho 2009

Creio

Creio nos anjos que andam pelo mundo,

Creio na Deusa com olhos de diamante,

Creio em amores lunares com piano ao fundo,

Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo

De harmonizar as partes dissonantes,

Creio que tudo é eterno num segundo,

Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,

Na flor humilde que se encosta ao muro,

Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

Na ocupação do mundo pelas rosas,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia, Sonetos Românticos

Page 105: Sulparati - Em Julho 2009

No sonho não há asperezas, nem contrariedades – o

sonho é como um rio imenso que corre e transborda.

Não se lhe opõem diques: não há força que lhe

resista. A realidade é cheia de intransigências

mesquinhas, de ásperos ângulos, de mínimos e

resistentes pormenores.

[…]

Cada ser tem a sua atmosfera própria, cada criatura

vive rodeada duma auréola de sonho. Todas as almas

segregam sonho, como todas as flores exalam

perfume. É uma irradiação.

[…]

Morre um sonho – outro nasce. Para o construir

basta um simples nada – mas sem essa atmosfera é

que ninguém pode viver. É muitas vezes feita de

penas, de gritos – mas tão indispensável como o pão

de cada dia. Há homens que arrastam mantos

impalpáveis, esplêndidos – noutros o sonho reduz-

se, apaga-se, mas existe sempre, até nas almas

rudimentares. Constitui, apesar de não entrarmos

com ele em linha de conta, quase toda a nossa vida.

Há atmosferas dessas que se ligam – nasce a

simpatia; outras que se repelem – vem o ódio. A

verdadeira existência, a que mais nos custa a deixar,

é essa que nos parece quimérica. É até, se me não

engano, a única que existe. Às vezes morre, dilui-se:

a alma já não exala sonho e o corpo continua a viver

– mas em verdade vos digo que o homem a quem

isto suceda não passa dum cadáver.

[…]

Além disso, o ser que se

habitua a sonhar, precisa

constantemente de sonho: é

como uma fornalha acesa: não

há carvão que lhe chegue: a

mina, ao fim de tempo, passa

inteira pelo metro quadrado

duma fornalha…

Raul Brandão, A Farsa

Page 106: Sulparati - Em Julho 2009

Através da cela ouve tropel de cavalos e alarido de

muito povo, a entrecortar um sussurro distante,

confuso, de música e tiros e vozes... É a Feira.

Gineto anima-se, crente de que os companheiros

virão buscá-lo neste dia de festa, trazendo Rosete

com eles. Encosta a face às grades, espera o regresso

à vida livre.

Uma voz canta, mesmo por baixo da janela, uma

canção que ele ouviu, certa tarde, no alto do mirante.

E então grita:

- Gaitinhas! Tou aqui, Gaitinhas!

Mas a voz afasta-se. Gaitinhas-cantor vai com o

Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do

pai. E quando o encontrar, virá então dar liberdade

ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos

telhais - moços que parecem homens e nunca foram

meninos.

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros

Page 107: Sulparati - Em Julho 2009

Cantiga

Entre tamanhas mudanças,

Que coisa terei segura?

Duvidosas esperanças

Tão certa desaventura.

Venham estes desenganos

Do meu longo engano, e vão,

Que já o tempo e os anos

Outros cuidam que me dão.

Já não sou para mudanças,

Mais quero uma dor segura.

Vá crê-las, vãs esperanças,

Quem não sabe o qu'aventura.

Bernardim Ribeiro

Page 108: Sulparati - Em Julho 2009

ALEXANDRÍNICOS DILEMAS

E fico neste estado catatónico,

telegráfico, estúpido, lacónico,

quando te vejo ou ouço a tua voz.

Bem queria que passasse este registo,

que, se é para ser isto sem ter isto,

melhor que te tomar é tomar pós

de frutos, contra enjoos, suculentos,

bons para a pele, na alma como unguentos

ou band-aids em chuva autocolante.

Mas em qualquer dos casos, o que resta

é: não te veja, ou veja (em curta festa):

a saudade: submersa e naufragante.

Não te posso ouvir mais, digo três vezes,

e com muito fervor e muitas preces,

como se esconjurasse Satanás.

Depois, uma palavra, um leve traço,

um minúsculo gesto abrindo o espaço

e, mesmo que não estejas, aqui estás.

E sentas-te a meu lado na cadeira.

Ninguém te vê: só eu. A curva inteira

do pescoço, dos ombros, ou da mão.

Toco-te levemente e o vizinho

na mesa ao lado, espreita-me, de mansinho,

pensando que perdi toda a razão.

E devo ter perdido, se o real

me parece uma coisa desigual,

Page 109: Sulparati - Em Julho 2009

um band-aid barato, a descolar.

E a única coisa mais parecida

com o ser realmente é uma vida

que não posso, nem devo, acarinhar.

E até essa palavra lembra ti,

e a fractura começa por aí,

numa sintaxe que não sei rimar:

Não te posso ver mais. Não, não e não!

(E sai-me o verso assim, como vulcão

limitado a explodir dentro do mar).

E agora, o quê? Pergunto-me, interrogo-me,

faço das linhas coração. E chovo-me:

miríade em band-aids, tão veloz:

é que fico na mesma catatónica,

telegráfica, estúpida, lacónica,

se torno em verso, e minha, a tua voz.

Ana Luísa Amaral

Page 110: Sulparati - Em Julho 2009

Mãe!

Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a

estátua que tem em cima o

verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão

contente! eu ia a pensar em ti e

no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já

estava a imaginar a tua alegria

quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o

verbo ganhar, um em cada

mão!

Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela

minha cabeça!

Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro

Page 111: Sulparati - Em Julho 2009

O Imperador baixou mais a voz:

- As coisas são como são, Lúcio Quíncio. Suporta-as

e abstém-te da indignação. Não se pode impor a

cada cidadão um filósofo a seguir-lhe os passos. E,

sendo, pelo que sei, um jovem promissor da tua

cidade, nunca demonstres, por actos ou omissões,

que estás longe do sentir do povo. Poderias romper

um equilíbrio fixado na ordem natural das coisas, em

que as tuas convicções interviriam como mero

capricho pessoal, alheio e perturbador.

Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela

Brisa da Tarde

Page 112: Sulparati - Em Julho 2009

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras

e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!

E eu acreditava!

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

no tempo em que o teu corpo era um aquário,

no tempo em que os teus olhos

eram peixes verdes.

Hoje são apenas os teus olhos.

É pouco, mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

Page 113: Sulparati - Em Julho 2009

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor...

já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro

Page 114: Sulparati - Em Julho 2009

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos a morte violar-nos tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palavras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo

Page 115: Sulparati - Em Julho 2009

do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny, Pena Capital

Page 116: Sulparati - Em Julho 2009

ACONTECEU-ME

Eu vinha de comprar fósforos

e uns olhos de mulher feita

olhos de menos idade que a sua

não deixavam acender-me o cigarro.

Eu era eureka para aqueles olhos.

Entre mim e ela passava gente como se não passasse

e ela não podia ficar parada

nem eu vê-la sumir-se.

Retive a sua silhueta

para não perder-me daqueles olhos que me levavam

espetado.

E eu tenho visto olhos!

Mas nenhuns que me vissem

nenhuns para quem eu fosse um achado existir

para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia

olhos como agulhas de despertar

como íman de atrair-me vivo

olhos para mim!

Quanto havia mais luz

a luz tornava-me quase real o seu corpo

e apagavam-se-me os seus olhos

o mistério suspenso por um cabelo

pelo hábito deste real injusto

tinha de pôr mais distância entre ela e mim

para acender outra vez aqueles olhos

que talvez não fossem como eu os vi

Page 117: Sulparati - Em Julho 2009

e ainda que não fossem, que importa?

Vi o mistério!

Obrigado a ti mulher que não conheço.

Almada Negreiros

Page 118: Sulparati - Em Julho 2009

Estamos agora em paz

sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento

lá de fora atirado para antes

de nós as mãos caídas

nos joelhos mas nada suplicantes

só esvaídas

conformados

com não nos conformarmos

resignados

a esperando não esperarmos

como se tudo fosse um imenso tanto faz

Mário Dionísio, Terceira Idade

Page 119: Sulparati - Em Julho 2009

Então eu mais-vi: toalha de gente sobre altar-mor

face a sacrário: Carmo, o com e sem ruínas,

bebedoiro e muralhas linhas de céu que nem talha

onde apontarem baterias-velas pretas enristadas. As

árvores: cheias de corpos com cabeças tão viventes

lamparinas: o cabelo de minha mulher também

arborescia: tanta sarça ardendo nessa espera então

tudo. […] Se isto esturra vai ser uma contusão dos

fiéis que nem maremoto do Cisma. […] Ah, Maria

S., ali no Largo que hoje me parece mais estreito

como se olhos me fossem nele ameninados das Zeiss

e loucas moções, estava orando a gente um poder-

em-Ser. […] Tal como em Missa havia um não saber

de ires e vires e flexões e genuflexões, braços ao alto

do puto tropa em Kyries de eu a ver: a cara aflita a

dizer ao oficiante longe a eucaristia bronca: sangue e

esquírolas pelo templo ao léu, holocausto campal se

desse para o torto. Oficiante de dentro, GNR sacrista

de emperrado sacrário, fazia que vinha e que não

vinha. Cara via-se bem borrada de nec plus ultra. Eu

lia na boca do salgueiro, Maia que esse depois foi: a

porra, pá. E na cara dele à escuta os berros do bispo

recém que o havia de estar a atazanar da cripta

daquela Roma: […]«Afinfa-lhes, pá, ou pensas que é

só o Carmo que está em jogo. Vai». E ele foi […]

Ah, grande celebrante que lá havia de estar tão

oculto em câmara escura quanto estes que custavam

a ir ao Brasil de torna-viagem, sem terem feito

violência nenhumíssima ou terror, excepto o que

mandavam ter. O esquecido

que vai em nós todos da

evitada transmutação do

Carmo em missa roxa.

Maria Velho da Costa, Missa

in Albis

Page 120: Sulparati - Em Julho 2009

A minha solidão

A minha solidão

não é uma invenção

para enfeitar noites estreladas…

… Mas este querer arrancar a própria sombra do

chão

e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

… Mas este sufocar entre coisas mortas

e pedras de frio

onde nem sequer há portas

para o Calafrio.

… Mas este rir-me de repente

no poço das noites amarelas…

- única chama consciente

com boca nas estrelas.

… Mas este eterno Só-Um

(mesmo quando me queima a pele o teu suor)

- sem carne em comum

com o mundo em redor.

… Mas este haver entre mim e a vida

sempre uma sombra que me impede

de gozar na boca ressequida

o sabor da própria sede.

Page 121: Sulparati - Em Julho 2009

… Mas este sonho indeciso

de querer salvar o mundo

- e descobrir afinal que não piso

o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

… Mas este saber que tudo me repele

no vento vestido de areia…

e até, quando a toco, a própria pele

me parece alheia…

Não. A minha solidão

Não é uma invenção

Para enfeitar o céu estrelado…

… mas este deitar-me de súbito a chorar no chão

e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu

lado.

José Gomes Ferreira, Poesia III

Page 122: Sulparati - Em Julho 2009

Ainda é grande o silêncio

que temos dentro. Levamos

a sua lenta abóbada de tempo

cumprindo as estações e a rotação dos anos.

Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo

a uma astral experiência. Vamos

adquirindo essa tez translúcida dos velhos

que sabe à estrutura dos planaltos.

E, um dia, iluminados, entraremos

pelo portão sagrado,

como quem deu por si em pensamento,

com todo o seu silêncio iluminando.

Fernando Echevarría, Figuras

Page 123: Sulparati - Em Julho 2009

"flor do frangipani"

Tudo sempre se passou aqui, nesta varanda, por

baixo desta árvore, a árvore do frangipani.

Minha vida se embebeu do perfume de suas flores

brancas, de coração amarelo. Agora não cheira a

nada, agora não é tempo das flores. O senhor é

negro, inspector. Não pode entender como

sempre amei essas árvores. É que aqui, na vossa

terra, não há outras árvores que fiquem sem

folhas. Só esta fica despida, faz conta está para

chegar um Inverno. Quando vim para África,

deixei de sentir o Outono. Era como se o tempo

não andasse, como se fosse sempre a mesma

estação. Só o frangipani me devolvia esse

sentimento do passar do tempo. Não que eu hoje

precise de sentir nenhuma passagem dos dias.

Mas o perfume desta varanda me cura nostalgias

dos tempos que vivi em Moçambique. E que

tempos foram esses!

Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de

maneira inversa: enchendo-nos de alma.

Mia Couto, A Varanda do Frangipani

Page 124: Sulparati - Em Julho 2009

E o espaço fica - ah fica - e ninguém ousa

mais que espreitar a medo para dentro dele

pelas grades de um verso em que palpita a vida,

tão pura e tão ausente como quando um dia

primeiro ela vibrou num cheiro de maresia,

ascendendo das águas, luminosa,

num corpo ainda escamoso cuja pele

seria este sabor de espaço e de ternura

em solidão perfeita descobrindo o amor.

Jorge de Sena, Conheço o sal

Page 125: Sulparati - Em Julho 2009

Cais

Nunca parti deste cais

e tenho o mundo na mão!

Para mim nunca é demais

responder sim

cinquenta vezes a cada não.

Por cada barco que me negou

cinquenta partem por mim

e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!

Mundo pequeno para quem ficou...

Manuel Lopes

Page 126: Sulparati - Em Julho 2009

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não...

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjectividade

objectiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...

Esta espécie de alma...

Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia

seguinte...

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço

planos...

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o

mundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de

dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não

digo.

Só depois de amanhã...

Quando era criança o circo de domingo divertia-me

toda a semana.

Page 127: Sulparati - Em Julho 2009

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a

semana da minha infância...

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido

e prático

Serão convocadas por um edital...

Mas por um edital de amanhã...

Hoje quero dormir, redigirei amanhã...

Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a

infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o

espectáculo...

Antes, não...

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã

estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não

posso nunca ser.

Só depois de amanhã...

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...

Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...

Sim, o porvir...

Fernando Pessoa

Page 128: Sulparati - Em Julho 2009

O ESTATUÁRIO

Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas,

tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou

o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e

começa a formar um homem, - primeiro, membro a

membro, e depois feição por feição, até à mais

miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-

lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca,

avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-

lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os

dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali

arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e

talvez um santo que se pode pôr no altar.

Padre António Vieira, Sermão do Espírito Santo

Page 129: Sulparati - Em Julho 2009

Saberás que não te amo e que te amo

pois que de dois modos é a vida,

a palavra é uma asa do silêncio,

o fogo tem sua metade de frio.

Eu amo-te para começar a amar-te,

para recomeçar o infinito

e não deixar de amar-te nunca:

por isso é que ainda te não amo.

Amo-te e não amo como se tivesse

nas minhas mãos as chaves da fortuna

e um incerto destino infortunado.

Este amor tem duas vidas para amar-te.

Por isso amo-te quando não te amo

e por isso amo-te quando te amo.

Pablo Neruda, Antologia Breve

Page 130: Sulparati - Em Julho 2009

L'Angélus de Millet

Recolhidos

os camponeses de Millet olham a terra,

quando o céu, às Trindades, os convoca.

Forquilha, cesto, carro,

homem, mulher

- já tão longe na história!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Jean François Millet

Page 131: Sulparati - Em Julho 2009

OS ÚLTIMOS MORTOS DA PIDE

Ainda é grande o silêncio

que temos dentro. Levamos

a sua lenta abóbada de tempo

cumprindo as estações e a rotação dos anos.

Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo

a uma astral experiência. Vamos

adquirindo essa tez translúcida dos velhos

que sabe à estrutura dos planaltos.

E, um dia, iluminados, entraremos

pelo portão sagrado,

como quem deu por si em pensamento,

com todo o seu silêncio iluminando.

Fernando Echevarría, Figuras

Page 132: Sulparati - Em Julho 2009

Do meio dos telhados donde gatinhava

o regime que fora de salões e enxovias

bolçava contra a rebentação da cidade

a pedrada de tiros do rancor acossado.

A biltre obediência das inquirições,

das negaças, dos traços toldados,

dos pátios chulos onde grimpavam torturas

como hera de sangue pelas mãos caladas,

ia ainda metralhar à queima-roupa.

Sobre ti, sobre o outro além, sobre a alegria de

todos.

A sanha era qualquer um: matavam

esses últimos sinais do que tínhamos sido

Saíam em braços anónimos do erro nocturno

para a claridade que ninguém ainda conhecia.

Joaquim Manuel Magalhães

Page 133: Sulparati - Em Julho 2009

Como açucena, abre-se o teu rosto

por sobre a doce, tímida paisagem

Daniel Filipe

Page 134: Sulparati - Em Julho 2009

O GRITO: VARIAÇÕES

O caderno onde escrevo trouxe-mo a minha filha

de viagem. Tem «O Grito» de Munch sobre o corpo.

Sinuoso e disforme, auto-retrato raso, a boca em

verde, as mãos acompanhando a curva da cabeça,

e o resto em disjunção — como esse céu. As cores

serão de pouco mais de século, foram nórdicos

dedos

a compô-las. Mas há nessas figuras ao fundo de

uma

estrada, de uma ponte (divisão de harmonia e des-

conforto, de um azul escuro a encostar-se ao negro),

uma implosão comum. É uma ponte, tem que ser

uma ponte o que se vê, e o caos que se desenha

nesse rosto não deve estar atrás, mas no que está à

frente, no caminho. Qualquer futuro, invisível daqui.

E há os pequenos barcos, perigosamente em centro

indefinível. Redemoinho? Sol? Seja o que for,

reflecte,

parcialmente, um amarelo quente, ameaça de um

astro

que se põe. Ou de um meio-dia atravessado a ventos

ondulantes. Podia-se (inviamente) inverter o

caderno,

ver em diagonal. Mas seria uma imagem semelhante

à do caderno inteiro. Mesmo que do avesso, havia

de

Page 135: Sulparati - Em Julho 2009

falar a mesma dor. Curvo e sinusoidal, o mesmo

espaço.

Só a cerca castanha, precipitada no abismo verde,

é breve protecção.

Ela, e a mão que, de viagem, me trouxe este

caderno.

Um pouco ainda, também, as suas folhas, que, por

enquanto (e quase todas), brancas, lhe são um forro

quase mudo. Quase —

Ana Luísa Amaral

Page 136: Sulparati - Em Julho 2009

Tarde de mais

Quando chegaste enfim, para te ver

Abriu-se a noite em mágico luar;

E p’ra o som de teus passos conhecer

Pôs-se o silêncio, em volta, a escapar...

Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!

Viu-se nessa hora o que não pode ser:

Em plena noite, a noite iluminar

E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia d’oiro dos desertos

Procura-te em vão! Braços abertos,

Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu era nova e linda!...

E a minha boca morta grita ainda:

Por que chegaste tarde, ó meu amor?!...

Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade

Page 137: Sulparati - Em Julho 2009

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos vazios,

nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

a minha face?

Cecília Meireles, Poesia

Picasso

Page 138: Sulparati - Em Julho 2009

Azagaia, Árvore, Sombra

Há objectos que perseguem a nossa infância,

depois, vida fora, esquecem-se os seus mágicos

nomes,

a sonhada utilidade que os anima.

Poderíamos pressenti-los dentro de nós,

e isso sucede, por instantes, quando o fundo que os

obscurece

se ilumina de repente

e os distinguimos a contra-luz.

Silhuetas animam-se na memória. Uma breve,

quase acessória, viagem no tempo começa.

Em África, na casa onde nasci, e depois de casa em

casa

- eram frequentes as mudanças –

o meu pai pendurava uma azagaia na parede.

Sempre a mesma azagaia. Era um objecto nobre.

marcava um hábito guerreiro: imaginar que a

sustinha sobre a cabeça,

que a arremessava longe, trespassando a sombra

da árvore que se erguia no quintal.

trespassava a sombra e não a árvore, repare-se.

E então a sombra, sob o sortilégio do imaginado

arremesso,

Page 139: Sulparati - Em Julho 2009

começava a retrair-se e a afilar-se. Desaparecia.

Com o desaparecimento da sombra

ficava apenas a árvore e a longa azagaia presa ao

solo.

A sombra de uma árvore visita-me agora.

Vem nos meus sonhos recentes dizer-me que há um

livro

nos sonhos, e que esse livro se escreve

com a linguagem crepuscular da memória.

Sei que se trata de uma sombra órfã.

Que se soltou das contingências de lugar e luz

para viajar no eterno. Sei agora que a substância da

árvore

se aliou à substância da azagaia. Que ambas

vibraram,

continuam a vibrar, juntas.

Luís Quintais, A Imprecisa Melancolia, Teorema,

1995.

Page 140: Sulparati - Em Julho 2009

"PROFISSÃO: POETA"

Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessário

um passaporte. Pediram a minha profissão. Fiquei

atrapalhado! Pensei um pouco para responder

verdade e disse a verdade: Poeta!

Não aceitaram.

Também pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado.

Pensei um pouco para responder verdade e disse a

verdade: Menino!

Também não aceitaram.

E para ter passaporte tive de dizer o que era

necessário para ter o passaporte, isto é – uma

profissão que houvesse e um estado que houvesse!

Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro

Page 141: Sulparati - Em Julho 2009

Sísifo

Recomeça...

Se puderes,

Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro,

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,

Vai colhendo

Ilusões sucessivas no pomar

E vendo

Acordado,

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Diário XIII

Baixo-relevo em pedra

Page 142: Sulparati - Em Julho 2009

Ítaca

Quando partires de regresso a Ítaca

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseídon em fúria – nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes

ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

Page 143: Sulparati - Em Julho 2009

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas

(versão de Jorge de Sena)

Page 144: Sulparati - Em Julho 2009

exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia

é preciso dizer azul em vez de dizer pantera

é preciso dizer febre em vez de dizer inocência

é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano

é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora

é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano

é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Mário Cesariny de Vasconcelos,

manual de prestidigitação

Page 145: Sulparati - Em Julho 2009

Meu aceso lume

Colheste as flores

da tua chama

apagaste devagar

os teus sentidos

sossegaste o corpo

em sua cama

desguarneceste em mim

os teus motivos

Que a vela acesa corte a madrugada

e lhe desdiga a calma e a palavra

Colheste devagar o meu queixume:

Ó meu amor!

Ó meu aceso lume!

Maria Teresa Horta

Page 146: Sulparati - Em Julho 2009

SONETO DA FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Que vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei-de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes

Chagall

Page 147: Sulparati - Em Julho 2009

"Fala, Yaka!"

A estátua yaka olhava para ele, muda. Os olhos

transparentes fitavam o velho e ele sentiu a falta de

ar que o acompanhava há tempos.

- Fala, Yaka – disse com muita dificuldade.

O segundo obus cortou o céu límpido e parecia mais

próximo do sapalalo. O pó amarelo saiu em maior

quantidade das paredes de cima. Um pouco dele veio

docemente pousar sobre o quintal. A explosão

também pareceu mais perto. Eles avançavam,

pensou o velho, e a estátua não fala.

É o fim, pensou ele, já sem forças para o dizer em

voz alta. Devo fazer o balanço da minha vida. Faz-se

sempre um balanço no fim, não é? Não falo, mas sei

que me estás a perceber, Yaka. No fim dum ano,

dum amor, dum negócio, duma guerra: a

contabilidade dos ganhos e perdas. Só tenho que

fazer a das perdas. Uma família a que dei origem,

hoje espalhada pelo mundo. Só Joel e Chico

sobraram. E Joel talvez agora já esteja morto, sem

sepultura. É importante estar sem sepultura?

Gostaria de levar a enterrar esse menino que

descobri no fim da vida. E fui egoísta, e ia dizer-lho,

quando me alegrei que fosse lutar. Ia fazer o que

nunca fui capaz de fazer, ele ia redimir-me. É

sempre assim, descobre-se demasiado tarde. Não

deixará traço no mundo. Nem o sapalalo. Não foi ele

que o construiu, mas deixei-o apodrecer, já sai pó

por todos os lados, basta uma

explosão aqui perto para ele

desabar. Nada, não deixa nada

atrás dele. A sociedade será

outra nesta terra, nem vestígios

registará na História. A

História guarda os feitos de

heróis, na medida que

interessam às forças vitoriosas

da época. Não são os seus

vestígios que a nova sociedade

vai querer na História. Um

colono a mais. Para esquecer.

A culpa foi minha? Tinha sido

apenas o mexilhão da estória,

uma bimba que se afogou

porque duas vagas chocaram

exactamente sobre ela.

Olhou para a estátua yaka, sem

falar, enquanto a cidade

estremecia sob as explosões

sucessivas que a abalavam. O

ar lhe faltava e deixou-se

deslizar para o chão. Encostou

a face na terra húmida e

contemplou a estátua de lado, a

boca aberta para sorver o ar

que já mal conseguia entrar

nela.

Pepetela, Yaka

Page 148: Sulparati - Em Julho 2009

"cansaço"

O que há em mim é sobretudo cansaço

Não d'isto ou daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

cansaço assim mesmo, ele mesmo,

cansaço

Álvaro de Campos

Page 149: Sulparati - Em Julho 2009

Tarde

A tarde trabalhava

sem rumor

no âmbito feliz das suas nuvens,

conjugava

cintilações e frémitos,

rimava

as ténues vibrações

do mundo,

quando vi

o poema organizado nas alturas

reflectir-se aqui,

em ritmos, desenhos, estruturas

duma sintaxe que produz

coisas aéreas como o vento e a luz.

Carlos de Oliveira

Page 150: Sulparati - Em Julho 2009

O menino que escrevia versos

De que vale ter voz

se só quando não falo é que me entendem?

De que vale acordar

se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(Versos do menino que fazia versos)

Mia Couto, O fio das Missangas, (contos)

Page 151: Sulparati - Em Julho 2009

Ai que sábados mais profundos!

É curioso este planeta

com tanta gente em movimento:

ondas de pernas nos hotéis,

urgentes motociclistas,

carris que vão prá beira-mar

e quantas raparigas imóveis

raptadas pelas rodas rápidas.

Todas as semanas terminam

em homens, mulheres e areia,

e temos de correr, não perder nada,

vencer colinas tão inúteis,

mastigar música insolúvel,

voltar cansados ao cimento.

Eu bebo por todos os sábados

sem me esquecer do prisioneiro

atrás das paredes cruéis:

os dias dele não têm nome

e este rumor que passa e corre

vai-o cercando como o oceano

sem descobrir qual é a onda,

a onda do húmido sábado.

Ai que sábados irritantes

armados de bocas e pernas,

desenfreadas, sempre a correr,

bebendo mais do que é a conta:

não protestemos contra o bulício

que não quer andar connosco.

Pablo Neruda, Antologia

Breve

Page 152: Sulparati - Em Julho 2009

“duas pessoas”

-Sabem quantas pessoas tem havido desde o

princípio do mundo até hoje?

- Duas. Desde o princípio do mundo até hoje, não

houve mais do que duas pessoas: uma chama-se a

humanidade e a outra o indivíduo. Uma é toda a

gente e a outra uma pessoa só.

Um dia perguntaram a Demócrito como tinha

chegado a saber tantas coisas.

Respondeu: Perguntei tudo a toda a gente.

Bastantes séculos mais tarde, Goethe confessou por

sua própria boca que «se lhe tirassem tudo quanto

pertencia aos outros, ficava com muito pouco ou

nada».

Por aqui se vê que cada um é o resultado de toda a

gente; o que de maneira nenhuma quererá dizer que

seja o bastante ter cada qual conhecido toda a gente

para que resulte imediatamente um Demócrito ou

um Goethe! Precisamente o difícil não é chegar aos

Grandes, mas a si próprio!... Ser o próprio é uma

arte onde existe toda a gente e em que raros

assinaram a obra-prima.

O que está fora de dúvida é que cada um deve ser

como toda a gente, mas de maneira que a

humanidade tenha efectivamente um belo

representante em cada um de Nós.

Almada Negreiros, Obras Completas

Page 153: Sulparati - Em Julho 2009

Mentira

A Mentira é a recriação de uma Verdade. O

mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre

estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as

fronteiras entre as palavras são todas ténues e

delicadas.

Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O

que não quer dizer que o jogo resulte sempre.

Resulte seja o que for ou do que for.

A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que

está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza.

Mas tudo é instável ou está suspenso.

Pelo menos ainda.

Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da

noção de tempo ou duração ou extensão. A

aceleração do tempo pode traduzir-se pela

imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se

por um máximo de aceleração ou um mínimo de

extensão: aceleração tão grande que já não se veja o

movimento ou o espaço ou a duração.

Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa.

Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou

qualquer coisa. Ou alguém.

Ana Hatherly

Page 154: Sulparati - Em Julho 2009

A GÉNESE DO AMOR

Talvez um intervalo cósmico

a povoar, sem querer, a vida:

talvez quasar que a inundou de luz,

retransformou em matéria tão densa

que a cindiu,

a reteve, suspensa,

pelo espaço —

Eram formas cadentes

como estas:

Imagens como abóbadas de céu,

de espanto igual ao espanto em que nasceram

as primeiras perguntas sobre os deuses,

o zero, o universo,

a solidez da terra, redonda e luminosa,

esperando Adamastores que a domestiquem,

ou fogos-fátuos incendiando olhares,

ou marinheiros cegos, ávidos de luz,

da linha que, em compasso,

divide céu e

mar

Quasar é pouco, porque a palavra rasa

o que a pele descobriu. E a pele

também não chega:

pequeno meteoro em implosão

Page 155: Sulparati - Em Julho 2009

Estátua em lume, talvez,

à espera, a paz (ainda que haja ausente

crença ou fé), e, profano, o desenho

desses estranhos bichos,

semi-monges, malditos,

deslumbrados,

e uma visão, talvez,

na penumbra serena de algum

claustro

Talvez assim tivesse algum

sentido

a génese do amor

Ana Luísa Amaral

Page 156: Sulparati - Em Julho 2009

Poeta o que é?

Poeta o que é?

Um homem que leva

o facho da treva

no fundo da mina

- mas apenas vê

o que não ilumina.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante

Chagall, the poet with the birds

Page 157: Sulparati - Em Julho 2009

"senhor doutor..."

eu somos tristes. Não me engano, digo bem.

Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não

sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam

minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas

parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando

conto a minha história me misturo, mulato não das

raças, mas de existências.

A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei

uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe

quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar.

Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo do

corpo?

O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a

minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia.

Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal

para me defender. Enquanto nem me conhece. O

meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não me

importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar,

isto-isto, mas já não quero nada, não quero sair nem

ficar. Seis anos que estou aqui preso chegaram para

desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só

ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é

pouco. Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir

de mim?

Explico: os moribundos tudo são permitidos.

Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles

antecipam, pré-falecidos. O

moribundo insulta-nos?

Perdoamos, com certeza. […]

Arranja lá uma maneira,

senhor doutor. Desarasca lá

uma maneira de eu ficar

moribundo, submorto.

Afinal, estou aqui na prisão

porque me destinei prisioneiro.

Nada, não foi ninguém que

queixou. Farto de mim, me

denunciei. Entreguei-me eu

mesmo. Devido, talvez, o

cansaço do tempo que não

vinha. Posso esperar, nunca

consigo nada. O futuro quando

chega não me encontra. Onde

estou, afinal eu?

Mia Couto, Vozes anoitecidas

Page 158: Sulparati - Em Julho 2009

A pequena angústia

Mais perto de mim são as estrelas

neste jardim,

do que os homens sentados a meu lado.

As estrelas brilham.

Os homens falam

lá entre eles.

Não escutam o silêncio

os homens que falam

neste jardim.

As estrelas falam

perto de mim.

Ruy Cinatti.

Page 159: Sulparati - Em Julho 2009

Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei-de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negro astral silêncio surdo

E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negror sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo –

Ah, nada é isto, nada é assim!)

Fernando Pessoa

Page 160: Sulparati - Em Julho 2009

Terra

Nha Chica, conte-me

aquela história

de meus irmãos

hoje perdidos

no mundo grande…

Nha Chica, eu sei:

anos de seca,

gentes morrendo,

casa sem telhas,

de porta em porta

olhos crescendo

barriga inchando,

um dia tombam

de olhos vidrados

por qualquer canto…

Lisboa, América,

Dacar ou Rio:

- dentro de nós

surge esta ideia

partir!, partir!

Resignados,

os que ficaram

ficam esperando

que as nuvens toldem

que a chuva caia

que o chão fecunde

cobrindo os montes

cobrindo as várzeas…

Ah! Anos fartos!

Milho, feijão,

pilão cochindo,

fumo no ar,

riso nos lábios,

grog, cigarros,

batuques, bailes

e casamentos…

Olho estes campos,

olho estes mares,

e sinto a vida

prendida à terra,

feita de sonhos

que um dia esvaem-se

- mas surgem sempre…

António Nunes

Page 161: Sulparati - Em Julho 2009

Belerofonte

Quem disse alguma vez que há deuses lá nos céus?

Não há, não há, não há. Não deixem que ninguém,

mesmo crente sincero nessas velhas fábulas,

com eles vos engane e vos iluda ainda,

Olhai o que acontece, e dai a quanto digo

a fé que isto merece: eu afirmo que os reis

matam, roubam, saqueiam à traição cidades

e, assim fazendo, vivem muito mais felizes

que quantos dia a dia pios são e justos.

Quantas nações pequenas, bem fiéis aos deuses,

sujeitas são dos ímpios com poder e força,

vencidas por exércitos que as escravizam.

E vós, se em vez de trabalhar rezais aos deuses,

e deixais de lutar para ganhar a vida,

aprendereis que os deuses não existem. Que

todas as divindades significam só

a sorte, boa ou má, que temos neste mundo.

Eurípedes

(trad. de Jorge de Sena, in Poesia de 26 Séculos)

Page 162: Sulparati - Em Julho 2009

SEXTA-FEIRA

Tranquila Sexta-feira

abandonada Sexta-feira

Sexta-feira cada vez mais triste como ruelas antigas

Sexta-feira de indolentes pensamentos indispostos

Sexta-feira de sinuosos e nefastos espreguiçamentos

Sexta-feira de nenhuma expectativa

Sexta-feira de rendição.

Casa vazia

casa solitária

casa trancada contra a investida da juventude

casa da escuridão e ânsias de sol

casa de solidão, augúrio e indecisão

casa de cortinas, livros, guarda-louça, fotografias.

Ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena

como uma corrente profunda

através do coração dessas silenciosas, abandonadas

Sextas-feiras

através do coração dessas tristes casas vazias

ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena.

Forough Farrokhzad, Versão de Vasco Gato

Page 163: Sulparati - Em Julho 2009

poema de combate

indecente rimar, uma criança

a esbugalhar os olhos de pavor.

uma cidade a arder. a governança

do mundo a esquivar-se: a sua dança

rima obscenamente com timor.

indecente rimar. lua assassina.

uma rajada e outra. um estertor.

um uivo, um corpo, um morto em cada esquina.

honra do mundo que se contamina

no arame farpado de timor.

indecente rimar sândalo e vândalo.

sacode a noite apenas o tambor

das sombras acossadas. tens o escândalo

que te invadiu a alma, mas comanda-lo?

onde te leva o grito por timor?

indecente rimar pois também rimam

temor, tremor, terror e invasor

por mais hipocrisias que se exprimam

enquanto de hora a hora se dizimam

os restos do que resta de timor.

indecente rimar: mas nas florestas

nunca rimaram tanta raiva e dor

a às vezes são precisas rimas destas,

bumerangue de sangue com arestas

da própria carne viva de timor.

Vasco Graça Moura

Page 164: Sulparati - Em Julho 2009

Estou com um dos homens que eu amo. Hoje, o mais

próximo, e que escreve; que eu amo através do

coração da inteligência; sua companhia preciosa não

deseja envolver-me senão muito docemente, com o

seu ouvido; ouvido de que eu receio a sombra, o

discernimento, como se não crêsse ainda na

persistência da minha duração. Virá o dia em que

sem esse mais, sem esse menos, o nosso

conhecimento será rasante. Por agora, é ainda uma

banda em declive.

Maria Gabriela Llansol, Causa Amante

Page 165: Sulparati - Em Julho 2009

O MAR AMADO

O que nele se move

é exactamente

o que amo

ou o que chamo

porque onda chamo

ao movimento

Cresce na tão igual

água

amado

por mim exactamente

amado

como se em vez de mar

fosse algo

mais

do que água

ou maior.

Fiama Hasse Pais Brandão

Page 166: Sulparati - Em Julho 2009

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,

os olhos ou o sol por nascer

do tamanho do mundo,

o sangue que nenhuma espada viu,

o ar onde a respiração é doce,

um pássaro no bosque

com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,

a juventude suspensa,

a fugidia voz da água entre o azul

do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.

Chamo por ti, e o teu nome ilumina

as coisas mais simples:

o pão e a água,

a cama e a mesa,

os pequenos e dóceis animais,

onde também quero que chegue

o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa

quando te procuro de rosto cravado na luz.

Eu sei que há diferenças

mas não quando se ama,

não quando apertamos contra o peito

uma flor ávida de orvalho.

Page 167: Sulparati - Em Julho 2009

Ter só dedos e dentes é muito triste:

dedos para amortalhar crianças,

dentes para roer a solidão,

enquanto o verão pinta de azul o céu

e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.

antes que a morte se aproxime, procuro-te.

Nas ruas, nos barcos, na cama,

com amor, com ódio, ao sol, à chuva,

de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te.

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas

Page 168: Sulparati - Em Julho 2009

Creio, creio hoje firmemente, que os seres humanos

não foram destinados a verdadeiramente comunicar.

É-nos dado um nome e uma identidade própria

quando nascemos. Somos indivíduos e indivíduos

permanecemos. Somos únicos e únicos queremos

ser. Natural é que paguemos o preço.

[…]

Nenhum de nós disposto a abrir ao outro muito mais

do que a sua face mundana. Cada um, como tantas

vezes sucede, a ouvir o outro mais por cortesia do

que por interesse verdadeiro. No fundo, interessados

sobretudo em encontrar uma caixa de ressonância

perante a qual pudéssemos desenrolar o tema

preferido: falar de si mesmo.

Paulo Castilho, Fora de Horas

Page 169: Sulparati - Em Julho 2009

Criação Sonhada

Tanto

tempo a pensar

divino esforço

que adormecendo

deus sonhou consigo:

Sonhou braços e pernas

e cabeças,

sonhou paisagens

de mental pudor

conversas calmas

com o quase feito

E esforçado ficou

e exausto se quedou

ao ver-se assim traído

pela obra criada

Só em sonho

Ana Luísa Amaral

Page 170: Sulparati - Em Julho 2009

BARBARA

Rappelle-toi Barbara

Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là

Et tu marchais souriante

Épanouie ravie ruisselante

Sous la pluie

Rappelle-toi Barbara

Il pleuvait sans cesse sur Brest

Et je t'ai croisée rue de Siam

Tu souriais

Et moi je souriais de même

Rappelle-toi Barbara

Toi que je ne connaissais pas

Toi qui ne me connaissais pas

Rappelle-toi

Rappelle-toi quand même ce jour-là

N'oublie pas

Un homme sous un porche s'abritait

Et il a crié ton nom

Barbara

Et tu as couru vers lui sous la pluie

Ruisselante ravie épanouie

Et tu t'es jetée dans ses bras

Rappelle-toi cela Barbara

Et ne m'en veux pas si je te tutoie

Je dis tu a tous ceux que j'aime

Même si je ne les ai vus qu'une seule fois

Je dis tu a tous ceux qui s'aiment

Même si je ne les connais pas

Rappelle-toi Barbara

N'oublie pas

Cette pluie sage et heureuse

Sur ton visage heureux

Sur cette ville heureuse

Cette pluie sur la mer

Sur l'arsenal

Sur le bateau d'Ouessant

Oh Barbara

Quelle connerie la guerre

Qu'es-tu devenue maintenant

Sous cette pluie de fer

De feu d'acier de sang

Et celui qui te serrait dans ses

bras

Amoureusement

Est-il mort disparu ou bien

encore vivant

Oh Barbara

Il pleut sans cesse sur Brest

Comme il pleuvait avant

Mais ce n'est plus pareil et tout

est abîmé

C'est une pluie de deuil terrible

et désolée

Page 171: Sulparati - Em Julho 2009

Ce n'est même plus l'orage

De fer d'acier de sang

Tout simplement des nuages

Qui crèvent comme des chiens

Des chiens qui disparaissent

Au fil de l'eau sur Brest

Et vont pourrir au loin

Au loin très loin de Brest

Dont il ne reste rien.

Jacques Prévert

Page 172: Sulparati - Em Julho 2009

É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode

acontecer da maneira mais simples:

umas gotas de chuva no cabelo.

Aproximas a mão, os dedos

desatam a arder inesperadamente,

recuas de medo. Aqueles cabelos,

as suas gotas de água são o começo,

apenas o começo. Antes do fim terás de pegar no

fogo

e fazeres do inverno

a mais ardente das estações.

Eugénio de Andrade, Sulcos da Sede

Page 173: Sulparati - Em Julho 2009

«Sabes, tenho estado a pensar numa coisa estranha:

quando nos apaixonamos por alguém, esse

apaixonarmo-nos diz concretamente respeito a

quem? Não é à pessoa propriamente dita, não pode

ser, porque ao princípio não a conhecemos: só

vemos nela o que projectamos: uma estátua grega,

um verso de Camões, as Glosas do Caballero de

Cabezón...

[...]

não me parece que a palavra "sentimento» seja

susceptível de integrar uma expressão pleonástica.

Pleonasmo implica redundância, não é? Acho que no

amor nunca há o perigo de redundância; ou melhor:

pode-se ser redundante à vontade no sentido em que

chover no molhado é já de si uma componente

própria do estado de estarmos apaixonados; é

monocórdico amar-se alguém, deliciosamente

monocórdico... tomáramos que a pessoa amada fosse

duas vezes ela própria!»

Frederico Lourenço, pode um desejo imenso

Page 174: Sulparati - Em Julho 2009

Eu não procuro nada em ti,

nem a mim próprio, é algo em ti

que procura algo em ti

no labirinto dos meus pensamentos.

Eu estou entre ti e ti,

a minha vida, os meus sentidos

(principalmente os meus sentidos)

toldam de sombras o teu rosto.

O meu rosto não reflecte a tua imagem,

o meu silêncio não te deixa falar,

o meu corpo não deixa que se juntem

as partes dispersas de ti em mim.

Eu sou talvez

aquele que procuras,

e as minhas dúvidas a tua voz

chamando do fundo do meu coração.

Manuel António Pina

Page 175: Sulparati - Em Julho 2009

Enigma

Os que a ouvem quando a chuva

bate nos vidros – a chuva mais fria,

a de dezembro, ou a que desce

das montanhas, durante a noite – não

sabem por quem ela chama. nos seus lábios

de musgo, os nomes confundem-se num

gemido antigo; e os que encostam o ouvido

aos vidros, interrogando o outro lado

da janela, nem assim distinguem

um pouco mais do que é lícito saber,

ao homem, do que se passa na terra.

Nuno Júdice

Page 176: Sulparati - Em Julho 2009

Era mi dolor tan alto,

que la puerta de la casa

de donde salí llorando

me llegaba a la cintura.

¡Qué pequeños resultaban

los hombres que iban conmigo!

Crecí como una alta llama

de tela blanca y cabellos.

Si derribaran mi frente

los toros bravos saldrían,

luto en desorden, dementes,

contra los cuerpos humanos.

Era mi dolor tan alto,

que miraba al otro mundo

por encima del ocaso.

Manuel Altolaguirre

Page 177: Sulparati - Em Julho 2009

"O nascido depois"

Eu confesso: eu

não tenho esperança.

Os cegos falam de uma saída. Eu vejo.

Após os erros terem sido usados

como última companhia, à nossa frente

senta-se o Nada.

Bertolt Brecht

Page 178: Sulparati - Em Julho 2009

Imprevisto corrigido

Se minto? Quantas vezes!

Mas em palavras. Não

Nos meus olhos castanhos,

Nestas linhas atávicas da mão…

Se minto?... Minto, pois!

Mas nas orais palavras que vos digo,

Não nas que estão a sós comigo,

E em que enfim deixo de ser dois.

Não nas que entrego a músicas, miragens,

Alegorias, fábulas, mentiras,

Cadências, símbolos, imagens,

Ecos da minha e mil milhões de liras.

Se minto?... Minto! É regra de viver.

Mas não quando, poeta, me desnudo,

E a mim me visto de inocência e a tudo.

Venha quem saiba ver!

Venha quem saiba ler!

José Régio, As Encruzilhadas de Deus,

Page 179: Sulparati - Em Julho 2009

«Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos

ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à

infância das aves. De facto envelhecem quando a

tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos

surgem tão carregadas de tempo.»

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Sá da Costa

Page 180: Sulparati - Em Julho 2009

"Eco"

«Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!

Talvez que fosse à caça: quer fazer surpresas com

alguma corça branca lá da floresta.

Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por

tantas demoras. Foi chamar ao cimo dos rochedos, e

uma voz de mulher também, também chamou Adão.

Teve medo. Mas julgando fantasia chamou de novo:

Adão? E uma voz de mulher também, também

chamou Adão.

Foi-se triste para a tenda.

Adão já tinha vindo e trouxera as setas todas, e a

caça era nenhuma! E ele a saudá-la ameaçou-lhe um

beijo e ela fugiu-lhe.

- Outra que não Ela chamara também por Ele.»

Almada Negreiros, Orpheu I

Page 181: Sulparati - Em Julho 2009

"O silêncio"

«O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas,

emoldurava os volumes, recortava as linhas,

aprofundava os espaços. Tudo era plástico e

vibrante, denso da própria realidade. O silêncio

como um estremecer profundo percorria a casa.

[…]

O silêncio era agora maior. Era como uma flor que

tivesse desabrochado inteiramente e alimentasse

todas as suas pétalas»

Sophia de Mello Breyner Andresen, ―O

silêncio‖ in Histórias da Terra e do Mar

Page 182: Sulparati - Em Julho 2009

UM DIA

O Excesso Mais Perfeito

Queria um poema de respiração tensa

e sem pudor.

Com a elegância redonda das mulheres barrocas

e o avesso todo do arbusto esguio.

Um poema que Rubens invejasse, ao ver,

lá do fundo de três séculos,

o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,

e reclinados os braços nus,

só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,

e um anjinho de cima,

no seu pequeno nicho feito nuvem,

a resguardá-lo, doce.

Um tal poema queria.

Muito mais tudo que as gregas dignidades

de equilíbrio.

Um poema feito de excessos e dourados,

e todavia muito belo na sua pujança obscura

e mística.

Ah, como eu queria um poema diferente

da pureza do granito, e da pureza do branco,

e da transparência das coisas transparentes.

Um poema exultando na angústia,

um largo rododendro cor de sangue.

Uma alameda inteira de rododendros por onde o

vento,

Page 183: Sulparati - Em Julho 2009

ao passar, parasse deslumbrado

e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico

das suas pulseiras tão (mas tão)

preciosas.

Nu, de redondas formas, um tal poema queria.

Uma contra-reforma do silêncio.

Música, música, música a preencher-lhe o corpo

e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,

e uma fonte de espanto polifónico

a escorrer-lhe dos dedos.

Reclinado em divã forrado de veludo,

a sua nudez redonda e plena

faria grifos e sereias empalidecer.

E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão

puras,

tremer de medo só da fulguração

do seu olhar. Dourado.

Música, música, música e a explosão da cor.

Espreitando lá do fundo de três séculos,

um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus

anjos

junto dos anjos nus deste poema,

cantando em conjunção com outros

astros louros

salmodias de amor e de perfeito excesso.

Gôngora empalidece, como os grifos,

agora que o contempla.

Esta contra-reforma do

silêncio.

A sua mão erguida rumo ao

céu, carregada

de nada.

Ana Luísa Amaral

Page 184: Sulparati - Em Julho 2009

"figura que me é querida"

«_____________ o homem só vulto esteve aqui

hoje, com sua imagem infeliz. […] passeia

incansavelmente nestes pinhais e, à noite, pára onde

uma vela brilha. Pára raramente, pois o seu vulto

fatiga-se quando espera, e as portas são pedras

opacas que defendem as casas disseminadas por

entre as árvores e os jardins.

Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu

lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às

costas um saco onde vai deitando todos os restos de

misericórdia que há por aqui, incluindo a

misericórdia por nós que brota de uma fonte algures,

ignore onde.

Refiro-me a ele, refiro-me à sombra, refiro-me à

precisão geométrica de um vulto. A este dia de sol

sobrepôs-se um dia de paz e nevoeiro por onde ele

caminha sem o podermos chamar de nenhum sítio.

Com precisão, não sei onde ele está, quem é, e o que

está para ser. Mas sei que ele é alguém destituído do

peso da sua forma, […]. Continuo a vê-lo,

homogéneo no seu movimento cinzento delimitado;

de mim para ele estabelece-se uma ponta de

nostalgia através da qual lhe entrego a parte maior

da minha tristeza; vejo-o parar com nitidez, abrir as

costas e o saco, e aprofundar o meu peso em si. Já

leva outros pesos que ele trata como pesos ligeiros,

ou pequenas medidas estuantes de vida. É, entre

outras coisas, o passageiro de

misericórdia do pinhal, figura

que me é querida e que nunca

deixa de invadir-me.»

Maria Gabriela Llansol, um

beijo dado mais tarde, pp. 97-

98, edições rolim

Page 185: Sulparati - Em Julho 2009

MAIS TARDE

A minha morte chegará um dia

Um dia na primavera, luminoso e gracioso

Um dia de inverno, poeirento, distante

Um dia vazio de outono, desprovido de alegria.

A minha morte chegará um dia

Um dia doceamargo, como todos os meus dias

Um dia oco como o que passou

Sombra de hoje ou de amanhã.

Os meus olhos adaptam-se à penumbra dos pátios

As minhas faces parecem frio, pálido mármore

Subitamente o sono arrasta-se sobre mim

Livro-me de todos os gritos dolorosos.

Lentamente minhas mãos deslizam sobre anotações

Que chegaram até mim debaixo do feitiço da poesia,

Relembro que outrora em minhas mãos

Retive o sangue flamejante da poesia.

A terra convida-me para os seus braços,

As gentes reúnem-se para me sepultar aqui

Talvez à meia-noite os meus amantes

Coloquem sobre mim coroas de muitas rosas.

Forough Farrokhzad, versão de Vasco Gato

Page 186: Sulparati - Em Julho 2009

“De olhar por esta janela”

«De olhar por esta janela este céu de cidade…

De cidade, digo eu… Este céu, sem traço de vida,

sem cor, sem uma silhueta de terra nem de árvores,

extraordinariamente esbranquiçado… De o olhar só,

me vem uma grande opressão! Sinto-me perdida

num infinito apagado, e incapaz de toda a fixação.

Como somos difíceis de conquistar! Julgamo-nos às

vezes a pisar terra firme, a conhecer os lugares e as

pessoas, e basta uma impressão destas, um nada,

para nos abater. Não é saudade que sinto, é

desapego, é falta de segurança.»

Irene Lisboa, Solidão, Presença

Page 187: Sulparati - Em Julho 2009

Somos como as folhas das árvores...

Quais folhas criadas pela estação florida da

primavera,

quando de súbito crescem sob os raios do sol,

assim somos nós: por um tempo de nada, nos deleita

a flor da juventude, sem conhecermos o mal ou o

bem que vêm

dos deuses. Ao lado estão as Keres tenebrosas,

uma detentora da velhice medonha,

a outra, da morte. Pouco dura o fruto da juventude

- o tempo de o sol derramar a sua luz sobre a terra.

E depois, logo que chega o fim da estação.

melhor é morrer logo do que viver,

pois são muitos os males que surgem no nosso

coração: ora é a casa

que cai em ruína, ora os efeitos dolorosos da

pobreza;

outro não tem filhos, e, sentindo a sua falta.

desce ao Hades, debaixo da terra;

outro tem doença que lhe destrói a vida. Não há

homem

a quem Zeus não dê muitos infortúnios.

Mimnermo (Séc.VII a.C.) Trad. Maria Helena da

Rocha Pereira, in Hélade

Page 188: Sulparati - Em Julho 2009

Retrato em Movimento

Era uma vez um pintor que tinha um

aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado.

Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua

cor encarnada, quando a certa altura começou a

tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era

um nó negro por detrás da cor vermelha e que,

insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e

tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário,

o pintor assistia surpreendido à chegada do novo

peixe.

O problema do artista era este: obrigado a

interromper o quadro que pintava e onde estava a

aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia o que

fazer agora da cor preta que o peixe lhe ensinava.

Assim, os elementos do problema constituíam-se na

própria observação dos factos e punham-se por uma

ordem, a saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em

que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o

peixe e o quadro, através do pintor; - 2º - peixe, cor

preta, pintor em que a cor preta formava a insídia do

real e abria um abismo na primitiva fidelidade do

pintor.

Ao meditar acerca das razões por que o

peixe mudara de cor precisamente na hora em que o

pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá

de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu

número de prestidigitação, pretendia fazer notar que

existia apenas uma lei que

abrange tanto o mundo das

coisas como o da imaginação.

Essa lei seria a metamorfose.

Compreendida a nova espécie

de fidelidade, o artista pintou

na sua tela um peixe amarelo.

Herberto

Helder, Retrato em

Movimento

Page 189: Sulparati - Em Julho 2009

"Mas com zurrapa, não..."

«Rasgar um véu e espreitar. A importância do véu

reside exactamente no facto de ser preciso rasgá-lo

para ver melhor. Como as aparências. Passar ao lado

de lá é dalgum modo transgredir fazer de contas que

não existe um risco de giz, um limite a deter-nos.

Compete à alma jogar, mais uma vez, o seu jogo.

Mas com zurrapa, não, zurrapa quer dizer batota, e

grosseira.»

Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses, pág. 182,

Page 190: Sulparati - Em Julho 2009

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei

os olhos,

E o meu destino apareceu-me na alma como um

precipício.

A minha vida passada misturou-se-me com a futura,

E houve no meio um ruído do salão de fumo,

Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de

xadrez.

Ah, balouçado

Na sensação das ondas,

Ah, embalado

Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser

amanhã,

De pelo menos neste momento não ter

responsabilidades nenhumas,

De não ter personalidade propriamente, mas sentir-

me ali,

Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali

deixasse.

Ah, afundado

Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco

sono,

Irrequieto tão sossegadamente,

Tão análogo de repente à criança que fui outrora

Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,

Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.

Page 191: Sulparati - Em Julho 2009

Ah, todo eu anseio

Por esse momento sem importância nenhuma

Na minha vida,

Ah, todo eu anseio por esse momento, como por

outros análogos

Aqueles momentos em que não tive importância

nenhuma,

Aqueles em que compreendi todo o vácuo da

existência sem

inteligência para o compreender

E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos

Page 192: Sulparati - Em Julho 2009

"quer lá saber"

«É jogador até ao fundo da alma, e com a alma não

brinca ele. Senta-se, mergulha na tensão do jogo,

como se mergulhasse no mistério da missa, e tenta

compreendê-lo. Aceita a divindade, quer dizer, o

acaso, mas não deixa por isso de o interrogar ou

corrigir, quando pode, e em geral sai-se bastante

bem. Os outros pesam pouco, pesam apenas na

medida em que hesitam, erram ou acertam,

influenciando o jogo, influência aliás diminuta

porque é fácil prever-lhes os erros, os acertos, as

hesitações. Se descobre qualquer aldrabice, o que

raramente acontece, deixa andar. O acaso, o

essencial, também se faz desses acidentes. Uma vez

que dê por eles, que não passe por parvo diante de si

mesmo, quer lá saber.»

Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses

Page 193: Sulparati - Em Julho 2009

«A vida era um labirinto de escuridão, sem alvores

de madrugada que lhe orientassem a cegueira.

Habitava um vazio sem rostos, onde mesmo o seu já

não tinha significado. […] O seu destino de mulher

era um destino de silêncio e de ausência. Ah! Poder

voltar atrás àquele tempo em que vivera descuidada

e feliz, como se estivesse à espera de outros ainda

mais felizes.»

[…]

"Canta-se o que se perde", estava escrito no poema

que relia. Mas não cantava. Limitava-se a escrever,

como as avós tinham bordado, para encher as horas

dos dias, se propor uma tarefa, uma finalidade que

lhe apagasse a frustração e o vazio. Uma escrita,

contida, do e no silêncio.»

Luísa Dacosta, O planeta desconhecido e romance

da que fui antes de mim,

Page 194: Sulparati - Em Julho 2009

"apenas silêncio"

« e o silêncio cresce e é fundo e é total, de tal modo

que poucos notam que é apenas silêncio, porque há

sempre ruídos sobrepostos, preenchendo-o, música

de fundo, speakers, relatos, informações,

publicidade, avisos, profusões de linguagens

balbuciadas, com uma extensão talvez máxima, mas

com uma comunicação sempre mínima, as pessoas

circulam, eficientes, em circuitos cada vez mais

fechados, interiorizaram a tal ponto o universo de

não-palavras que as circunda que acabaram por

emudecer por completo,»

[…]

«[…] mas a literatura também se converteu em

silêncio, tornou-se apenas imanente, as palavras

ficam cercadas, bloqueadas, e encontra-se sempre

um meio de demonstrar às pessoas que elas

significam tudo, e que, portanto, não significam

nada, a palavra escrita é uma palavra morta e por

isso eu quero a palavra dita, rente ao corpo,

inseparada do corpo, língua, boca, braço, mão, gesto,

movimento do eu e do outro, do eu para os outros e

de novo destes para mim, a palavra que está no

princípio do eu e do mundo e da vida e que é talvez,

talvez, o amor, […]»

Teolinda Gersão, O Silêncio,

Page 195: Sulparati - Em Julho 2009

«uma pequena orelha verde»

«É um mundo que começou a enlouquecer, disse de

repente, sem preparação. Um mundo eficiente, de

silêncio total, em que ninguém mais fala com

ninguém. As pessoas estão sentadas, ombro contra

ombro, à espera, mas o objectivo da espera é sempre

falso, o autocarro, o comboio, o avião, porque todos

os lugares são iguais e nada é diferente em parte

alguma. E enquanto se espera o silêncio cresce, vai

ficando sempre mais denso e mais pesado, e algumas

pessoas começam a ficar inquietas, porque de

repente percebem que estão bloqueadas, dentro de

caixas de vidro, o universo é um conjunto gigantesco

de sucessivas caixas de vidro, e elas apenas

transitam, ou são transportadas, de umas para as

outras, casas, escritórios, autocarros, hospitais,

aeroportos, aviões, transatlânticos, é inútil percorrer

milhões de quilómetros porque o mundo fica sempre

cada vez mais longe, é como se flutuassem,

imponderáveis, num espaço vazio, os seus pés não

assentam mais sobre a terra, correm seis dias sobre

escadas rolantes e tapetes rolantes e no sétimo dia

ficam parados sobre uma alcatifa, e o mundo que

não tocam mais vem até elas apenas em imagens,

dentro da televisão-caixa-de-vidro. Então algumas

pessoas são tomadas de pânico e começam a falar,

porque acham necessário modificar este estado de

coisas, mas descobrem que não é possível falar

porque as pessoas do lado as olham com estranheza,

a tal ponto se habituaram a

viver dentro de caixas bem

isoladas que qualquer som

espontâneo as incomoda,

transportam em volta da

cabeça uma caixa de vidro

mental que se fecha por si

mesma à menor suspeita de

desordem, e então alguém

propõe que quem estiver

disposto a escutar os outros

ponha na lapela uma pequena

orelha verde.»

Teolinda Gersão, O Silêncio,

Page 196: Sulparati - Em Julho 2009

«talvez nunca»

«A tensão entre ambos, desde o início. Porque eles

eram dois mundos sem pontos de contacto. A

consciência disso, desde o primeiro instante. As

tardes em que ela vagueava ao longo do rio, solta,

dispersa, confundida com as coisas, as árvores, o rio,

os barcos, os movimentos da água, o ondular do

vento, uma figura indefinida caminhando através da

luz baça. E do outro lado da ponte a janela

iluminada, a pequena casa para onde ele se mudara,

dissera-lhe, e esperava por ela, detrás das janelas

altas. Entrar na casa e tomar a forma da casa, reunir

na bruma os pedaços do seu corpo e ser breve e

mortal entre dois braços, partir correndo, subir até ao

último andar, abrir a porta e entrar de repente em sua

vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a

água, a bruma, o obscuro milagre que no universo

dele não existia - mas Afonso não punha nunca o seu

próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu

encontro. Ele não aceitava risco algum. Porquê então

o absurdo impulso de atravessar a ponte quando não

haveria talvez nunca uma ponte possível,»

Teolinda Gersão, O Silêncio

Page 197: Sulparati - Em Julho 2009

Um dia, gastos, voltaremos

A viver livres como os animais

E mesmo tão cansados floriremos

Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços

Dos gestos agitados irreais

E há-de voltar aos nossos membros lassos

A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar

Através do mistério que se embala

No verde dos pinhais na voz do mar

E em nós germinará a sua fala.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 198: Sulparati - Em Julho 2009

Tão cedo passa tudo quanto passa!

Morre tão jovem ante os deuses quanto

Morre! Tudo é tão pouco!

Nada se sabe, tudo se imagina.

Circunda-te de rosas, ama, bebe

E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, Odes

Camille

Claudel

eli – Julho 2009