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SUMÁRIO

MEMORIA DE AMATOAlfredo Rasteiro ...........................................................................................................................................................4

O ESPAÇO GEOGRÁFICO NAS CENTÚRIAS DE AMATOMaria Adelaide Neto Salvado .....................................................................................................................................11

ALGUMAS PLANTAS AROMÁTICAS USADAS EM AMATO LUSITANOA. M. Lopes Dias ......................................................................................................................................................... 20

A REALIDADE DA DOR NAS CURAS DE AMATO LUSITANOAntónio Lourenço Marques .........................................................................................................................................23

RABACINAS - UMA COMUNIDADE PERANTE A MORTEFrancisco Henriques, João Gouveia e João Caninas ................................................................................................28

A MORTE NO ALCAIDE - ATITUDES E RITUAISAlbano Mendes de Matos ...........................................................................................................................................33

POPULAÇAO DO CONCELHO DE IDANHA-A-NOVAAntónio Maria Romeiro Carvalho ................................................................................................................................39

MIGUEL TORGA “O ALMA GRANDE”António Morão .............................................................................................................................................................43

A MORTE E O AMORAntónio Branquinho Pequeno .....................................................................................................................................46

III JORNADAS - CONCLUSÕES ................................................................................................................................49

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A Medicina no Cruzamento dos Saberes

Um dos paradoxos mais incómodos do desenvolvimento actual dos conhecimentoscientíficos reside no divórcio, tantas vezes patente, entre a indispensável focagem dopormenor e o esbatimento negativo da visão do conjunto. A especialização é umacaracterística “estrutural” da ciência de hoje, mas de efeitos que podem ser redutoresse não for iluminada por uma outra perspectiva que englobe o todo.

O que se passa com a medicina actual, pode exemplificar esta realidade. Na históriada medicina, o século XX surge-nos marcado por uma dispersão cada vez maior doscampos de intervenção - a especialização e a sub-especialização - com o intuito de seelevar ao máximo grau de competência dos profissionais. Mas o isolamento dessesterrenos não é de todo possível.

Cada área comunga da totalidade do ser humano e reflecte as suas ligações aomeio. Só a correcta confluência interdisciplinar permite, de facto, resolver este “defeito”da especialização, que pode ser muito evidente ao nível de dois dos componentesfundamentais da formação médica: a obtenção dos conhecimentos e o assumir dasatitudes terapêuticas. Apenas um outro constituinte, a destreza, pode fugir a tal exigência.

Medicina na Beira Interior - da pré-história ao século XX procura reflectir e estimular,a partir de testemunhos desta região, o entendimento que enunciámos. Revelar asmanifestações humanas aqui verificadas, com laços à medicina e interesantes do pontode vista da história do saber, e observá-las dos mais diversos prismas de modo ausufruir a sua totalidade. Pretende-se um diálogo entre as disciplinas, com uma posturade humildade se assim quiserem entender, mais susceptível de mostrar pontos decruzamento, que engendrem uma concepção comum do saber do que a exibição altivade um qualquer sistema “intocável” de conhecimento. A história do saber é o maiseficaz “remédio para a especialização” na sábia opinião de Georges Gusdorf.

Este 5º número regista vários trabalhos apresentados durante as nossas III Jornadas,realizadas em Outubro de 1991, e que se subordinaram aos temas “Amato Lusitano: omédico e o humanista” e “O amor e a morte na Beira Interior”. Outras comunicaçõesdessas Jornadas aguardam publicação. Entretanto, encontramo-nos a dar realidadeàs IV Jornadas, a ter lugar nos dias 23, 24 e 25 de Outubro de 1992, e em que AmatoLusitano se mantém como figura tutelar e os outros temas da vida e da dor na BeiraInterior proporcionarão, certamente, nova oportunidade para prosseguir de formaprofíqua este caminho.

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MEMÓRIA DE AMATO

Por Alfredo Rasteiro

Importa manter viva a Memória de Amato (1511--1568), um Homem que buscou no exílio a Liberdade,que acatava as Leis e abominava os déspotas. Aausência de Liberdade na pátria amada obrigouAmato a recorrer à segurança precária do exílio, atornar-se Europeu e cidadão do Mundo, a viajar pormar e a deslocar-se em terra, mas nem provaçõesresultantes de incertezas quanto ao futuro nem osmuitos trabalhos quepassou, lhe abalaram aAlma. A tragédia que nestemês de Outubro de 1991destruiu uma vez maisRagusa/Dubrovnik ajudar--nos-á a compreenderrazões que terão levado oAutor das “Curas Ragu-sinas”, “Sexta Centúria deCuras Médicas”, concluídasem 1558 e publicadas em1559, a trocar a “Pérola doAdriático” pela Tessalónica,hoje Salónica. No exílio,com Diogo Pires (1517-1597), lembraram o sorrisolindo de Pyrmila, os pátrioslares, as cearas e as uvasmaduras, o brilho das folhasdas oliveiras. Reflectiramsobre a impossibilidade dedormirem o último sono nasterras onde nasceram. Em Antuérpia e em outroslocais, João Rodrigues divulgou o nome da sua terranatal e jamais a esqueceu, amalgamada no seunome, eternizada na obra científica de AmatoLusitano, João Rodrigues de Castelo Branco.

“He aprouada de todos asentençia de salustio emque encomëda aos homës que trabalham exçeder,e ter priminëcia sobre os outros animais que nãpassem a vida ensilençio cómo fazem os brutos quenão të mais cuidado que de comer, e de bebercõforme a esta sentença he ho comü...”. Era istoverdade em Garcia de Orta, foi por isto que JaimeCortesão afirmou que escrever História era praticar

um acto de consciência e é por tudo isto quecontinuamos a recordar Amato e uma razão maishaverá para recordar Amato em Outubro de 1991,se outras não houvera, num momento em que a suaRagusa e hoje destruída Dubrovnik continua aconcitar ódios que ao fim e ao resto até serão domesmo tipo daqueles que levaram Amato a trocarRagusa por Salónica, em 1559.

Em 1557 Amato trocaraPesaro por Ragusa. 0enorme entusiasmo pelavida e pelas coisas daMedicina que sempre oimpeliu em frente, reacende-ra-se de novo. No intróito àsCuras Ragusinas queconstituem as Sextas Cen-túrias de Curas Medicinais,onde figura o justamentecélebre diálogo - «Cura 100,Dos ferimentos na ca-beça...” - está patente agrande admiração que abelíssima cidade do Adriá-tico despertou no ilustreproscrito: - “A cidade deRagusa é pequena, masantiga, semelhante a Vene-za. Está situada junto ao marIlírico, entre elevaçõesrochosas, voltada a sul. Está

por isso exposta ao vento sul e os seus habitantesestão sujeitos a doenças graves no inverno. Osvinhos que produz são fortes mas pouco saudáveis,não produz trigo e tem pouca fruta, porque não temcampos. Tem um governo republicano em que aclasse política é constituída por grandes senhoresmuito ricos e sóbrios. Além desta aristocracia temuma classe popular formada por mercadores que sãopessoas muito civilizadas, com actividadescomerciais em muitas partes do mundo e dispondode grandes e magníficos navios. A restante populaçãoé dominada pela pobreza...”. Em Ragusa tinha Amatoexcelentes amigos, como João Gradi, Simão Benesi

JoãoRodriguesdivulgou

o nome dasua terra natal

e jamais aesqueceu,

amalgamadano seu nome,eternizada naobra científica

de AmatoLusitano,

JoãoRodrigues de

CasteloBranco.

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ou Pascal Cervini, sendo Gradi o proprietário denavios que procura Amato quando um seu marinheirofoi espancado na cabeça, ponto de partida para acélebre cura centésima da Sexta Centúria em quede forma magistralsão descritas asfracturas do crâ-neo, as fracturaspor contra-pan-cada, as fracturasà distância, opro longamentodas fracturas e asfracturas incom-pletas dos ossosdo crâneo. SimãoBenesci governavaa terra e ad-ministrava o di-reito.

Em Ragusa con-viveu com Amatoum outro ilustreexpatriado, DiogoPires (1517-1597),de Évora, seucompanheiro naSalamanca do rioTormes e nassaudades do paísde origem ondeseria doce viver emorrer, onde cres-cem searas ea m a d u r e c e muvas, onde asfolhas das oliveirasbrilham...

Amato emRagusa apenasterá permanecido por espaço de dois anos e para asua fuga apressada em direcção a Salónica terácontribuído a intolerância gerada pela publicação da“Apologia adversus Amatum Lusitanum”, 1558, deMattiolo, Pietro Andrea Mattioli, (1501-1577),incapacitado moral e psicologicamente para aceitaralgumas críticas justas com que Amato o haviadistinguido em 1553 “In Dioscorides Anazarbei demedica materia”.

A concluir a Sexta Centúria, em 1558, Amato saúdaos Ragusinos e ao chegar a Salónica novamente ossaúda e lhes roga que aguardem para breve o sétimotomo das Centúrias, composto por observaçõesclínicas registadas na mesma região e nas mesmascidades em que o divino Hipócrates exerceu a suaarte.

Em 1559 Amato poderá afirmar sob juramento que

nunca as suas frequentes deambulações por terra,nem por fim o próprio exílio Ile abalaram a alma.Quando Amato morreu de peste, quase sexagenário,em Salónica, no ano de 1568, a tratar pestíferos, o

seu amigo DiogoPires registouque se tratava deuma pessoamuito queridapara os grandesdeste mundo,mas igualmentepara os mais hu-mildes; Portugalfora o seu berçoe a terra daMacedónia osepulcro, bemlonge do solopátrio...

A intolerânciareligiosa que seterá manifestadoem Ragusa porvolta de 1558,muito diferentedaquela queestará por detrásdo revanchismoservo-croata quelevou à des-truição de Du-brovnik em 1991,seria bem maisbranda do queaquela que nopassado levou aabrir processosde Judaísmo portodo o Portugal e

à publicação de listagens de pretensos implicadosnas mortes de cristãos velhos, como uma que foidivulgada no tempo do Filipe IV (Arq. Nac., Inquisição,Cod. 1506, fol. 66 e seg.), estudada por J. Lúcio deAzevedo e onde se regista: “16. O físico AmatoLusitano, de Castel Branco, fugio para o grão Turco”.

Assim, num país oficialmente intolerante como oera o Portugal dos tribunais da Inquisição, dasmasmorras e dos processos do santo oficio, registe--se que o nome dessa instituição era mesmo esse,tribunal do santo oficio, oficio santo que não fariamal a ninguém, apenas privava pessoas de liberdadea que legitimamente tinham direito, organizavaprocessos para muitos, confiscava-lhes os bens,perseguia as suas famílias e quando mais nada haviaa retirar entregava-os ao poder judicial para que osjustiçasse. Assim, num país destes, que é o nosso,

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como será possível manter viva a memória de Amato,recuperar a sua imagem, estudar a sua obra,reivindicar como portuguesa a sua origem?

Provavelmente sempre em Portugal se mantiveramfamiliares e admiradores de Amato, que souberammanter viva a sua imagem e uma prova disso serãoa estátua e as iniciativas que em seu nome têm sidoorganizadas desde há muito na sua terra natal, emCastelo Branco.

Porém, Amato terá sido esquecido ou a suamemória foi deliberadamente apagada em algunssectores da sociedade portuguesa, até por razõesque inicialmente se prendem com controvérsiasrelativas à sangria, com Brissotistas e Averroístas,com seguidores de Vesálio, com admiradores deMatioli, com xenofobia, política, liberdade religiosa,etc...

É certo que Autores como D. Caietano de SantoAntónio, Boticário do Real Mosteiro de Santa Cruzde Coimbra, na “Pharmacopea Lusitana”, 1704, incluium “index dos autores que se allegam neste livro”com nomes como Amato Lusitano, Cristovão daCosta, Gracia de Horta, João Fragoso... mas já oCompêndio Histórico do Estado da Universidade deCoimbra, 1771, que faz largas referências aosgrandes nomes da medicina portuguesa, penso quenunca cita Amato Lusitano, embora o pudesse fazer,uma vez que se trata de um nome conhecido no meiouniversitário. Assim, os professores de Medicina JoãoPessoa da Fonseca, Manuel Dias Ortigão e AmaroRodrigues da Costa em 17 de Abril de 1736 citamAmato numa carta inserta na “Matéria MedicaPhysico-Histórico-Mechanica, Reyno Mineral. ParteI. A que se ajuntam, os principaes Remedios doprezente estado da Matéria Medica; como Sangria,Sanguessugas, Ventosas Sarjadas, Diureticos,Sudorificos, Ptyalismicos, Opiados, Quina Quina e,em especial, as minhas Agoas de Inglaterra. Comotambém Huma Dissertaçam Latina sobre ainoculaçam das Bexigas”, publicada em 1735, emLondres, por Jacob de Castro Sarmento, M. D..Nessa carta, página 12, os Doutores Fonseca,Ortigão e Rodrigues da Costa, escreveram: “Grandesforam as Obras e admiranda pratica de Zacuto, e asObservações de Amato...”.

Amaro Rodrigues da Costa, natural de Coimbra, éigualmente conductário com privilégios de professorda Universidade de Coimbra, desde 1727.

João Pessoa da Fonseca, natural de Coimbra, foranomeado Lente em 1706, tornando-se proprietáriode Cirurgia em 1717 e de Anatomia em 1726.

Manuel Dias Ortigão, natural de Gafete, éconductário com privilégios de Lente desde 1727.

Em 1772 já nenhum era professor da Universidade.Dir-se-á até que a carta era para ser publicada naInglaterra... Dir-se-á, ainda, que Amato, apesar deapoiar Brissot (1ª Centúria, Cura 52) e não apoiar

Dionísio (1ª Centúria, Cura 2), apesar das numerosasedições das suas obras, não seria muito conhecido,o que até será verdade a avaliar pelas parcimoniosasreferências que os livros de História da Medicina lhededicam. Na verdade, quem teria maior obrigaçãopara o recordar seriam aqueles que ele mais amou:os seus Amigos que como Diogo Pires o nãoesqueceram, os seus doentes, os seus alunos, osseus patrícios, aqueles que Amato celebra com osepónimos que junta ao seu nome.

E assim, pareceu-me útil uma viagem para trás notempo, na Historiografia médica portuguesa. Apenasiniciei viagem e o caminho continua aberto para quempretenda obter resposta a questões como: Quandoé que em Portugal se começou a falar de Amato? Oque diziam? Como o aceitam?

Em 1788 Manoel de Sá Mattos, Familiar do SantoOfficio, Cirurgião mor de Infantaria no SegundoRegimento da Guarnição da Cidade do Porto,partidista da Câmara e Saúde pública da mesmacidade, publicou uns “Elementos de HistoriaChirurgico-Anatómica em Geral ou CompendioHistórico. Critico e Chronologico sobre a Cirurgia eAnatomia que contem os seus princípios,incrementos, e ultimo estado assim em Portugal,como nas mais partes cultas do Mundo; com aespecificaçam de seus principaes Autores, suasobras vidas, mettodo, e inventos desde os primeirosséculos até o prezente. Obra dividida em tresdiscursos ofrecida ao Illustrissimo e ExcelentíssimoSenhor Duque de Alafoens”, obra esta que foraaprovada em 23 de Novembro de 1786 emCongregação da Faculdade de Medicina daUniversidade de Coimbra, estando presentes Fran-cisco Principal Castro Reformador Reitor, AntónioJoze Francisco de Aguiar, Manoel Antonio Sobral,Francisco Tavares, Caetano Joze Pinto de Almeidae Joaquim de Azevedo. A Obra foi impressa em 1788,no Porto, na oficina de António Alvares Ribeiro e éperfeitamente insuspeita: o Autor era cristão velhoporque de outra forma não seria partidista e foraaprovada pela entidade com atribuições de censor.A distinção entre cristãos velhos e cristãos novosterminara em 25 de Maio de 1773, os Jesuitas foramexpulsos em 1759, mas a inquisição e a censura sóforam extintas em 1821 para renascerem com outrasroupagens um século mais tarde. Com esteenquadramento, Sá Mattos é um autor perfeito. Aliás,demonstrando isenção e independência, como sedepreende das seguintes passagens do prefácio dasua obra: - página II - “O espírito de hipothese, e desystema; o de contradição e de amor proprio; ocredulismo. a fabula e o plagiarismo tem produzidono Orbe Literário a mais formidavel quantidade deLivros, que sempre admirarão os séculos futuros; edentre estes os que não são prejudiciais, pedem aomenos por superfluos, huma justa separação, para

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a qual são a Historia critica ministrar poder.”- Página IV - ataca um professor por ter adoptado

um livro que já estava fora de uso em Paris.- Página V - diz de um professor de Lisboa: “vemos

ainda alguns Discípulos e asseclas de Monravá,Cathedratico de Anatomia que foi em Lisboa, e humdos mais fanaticos, stoicos, e desarrazoadosEscriptores, que assazlamentará sempre a CirurgiaPortuguesa...” Sobre o nossoAmato Lusitano diz Sá Mattosa páginas 120 do seu livro: -«Amato nasceu em CastelloBranco, villa na Provincia deBeira, com o nome de JoãoRodrigues; tomou as letrasordinarias para Medicina nasUniversidades de Coimbra eSalamanca; aonde manifesta-dos os seus grandes talentos,logo foy conhecido em toda a Europa, por hum dosmais acreditados Medicos Chirurgicos do seu século;dizemos Chirurgico, porque elle com desabuso nãocommum, amando mais a razão do que ossupersticiosos costumes do seu tempo, hexercitouhuma e outra Medicina indiferentemente. O amor dafacultativa verdade o conduzio nas largas viagensque fez pela França, Hollanda, Italia & C. e o seugrande merecimento lhe grangeou huma Cadeirapublica na Universidade de Feirara; o Rey de Poloniaentão o convidava para seu Médico, com luzidoestipendio, quando por motivos, que não são donosso assumpto, se recolheo a Thessalonica, grandecidade na Turquia Europea, aonde morreo depoisde haver tomado o nome de Amato.”

- Página 121: “Este Sabio Medico, ainda quenasceo em hum paiz, aonde a observancia doChristianismo era exacta, padeceo crueis delírios deReligião, mas detestando nós a sua má Theologia,para fazermos justiça às suas obras, devemosconfessar que as suas Centurias Medicinais ocondecorão entre os judiciosos observadores daCirurgia; nellas se acha huma queda do utero curadacom ventosas applicadas no embigo, e hum pessariocoberto de certo emplastro adstringente; outraobservação de huma Ischuria curada pela extracçãode duas pedras, por meio de huma incisão feita aocanal da uretra; a de huma queixa d’olhos curadacom sedenho, e outras muitas em todos os generosd’enfermidades externas. Os principais symptomasdo gallico são tractados por este Portuguez com todaa erudição, ainda nos meninos e lactantes, que elledoutamente julgou poderem contagiar, e sercontagiados reciprocamente pelos bicos dos peitosde suas Amas na adhesão do acto de mamarem.Usou muito da operação de Empyema, e facilitou asua pratica todas as vezes que ouver extravasação

de materia no Peito; e da mesma sorte a do Trepanona cabeça em similhantes circunstancias, e aindamesmo sobre as sutturas e osso coronal sendonecessário, & c. Entre estas e outras doutrinas, assasdignas, se encontrarão algumas proposições ri-dículas, e proprias do seu Seculo, como v. g., affirmarque huma mulher podia conceber sómente por se

metter na agoa de hum banho,em que certo vadio haviaseminado antecipadamente&c. As obras de Amatocomeçaram a aparecer em1551.”

Poderá criticar-se aselecção dos exemplos decasos clínicos apontados,uma vez que em setecentoscasos muito haveria por ondeescolher e dir-se-á que aproposição tida por ridícula

não o é, ou pelo menos tem um significadoseguramente diferente daquela referência a Plínioque figura na Quarta Centuria, Cura 70: “É fama quena Lusitânia, à volta da cidade de Lisboa e do rioTejo, as éguas voltadas para o vento que sopra,concebiam um ser muito veloz...”. A referência citadapor Mattos daria para considerações perfeitamenteactuais em Medicina Legal, fecundação artificial eoutras.

Há porém outros pontos do trabalho de Sá Mattosque é necessário comentar: em primeiro lugar, entre1377 e 1537 a Universidade portuguesa estevelocalizada em Lisboa, pelo que Amato não poderiater tomado letras ordinarias para Medicina naUniversidade de Coimbra. Aliás, este ponto mereceainda mais algum comentário, uma vez que nãodispomos de dados absolutamente rigorosos sobrea saída de Amato para Antuérpia. Sabemos queAmato publicará em Antuérpia, onde esteve seis anos(Primeira Centúria, Cura terceira), o “IndexDioscorides”, datado de 1536, mas esta data nãosignifica exactamente que Amato se tenha expatriadoantes desse ano e para não ir mais longe cito comoexemplo deste tipo de procedimento a “MateriaMedica” de Jacob de Castro Sarmento, publicada em1735 em Londres com uma referência a Amatoconstante em uma carta datada de 17 de Abril de1736 assinada pelos Professores da Universidadede Coimbra Pessoa da Fonseca, Ortigão e Rodriguesda Costa. Penso que a partida de Amato paraAntuérpia tem que ver com a passagem por Lisboade armador Vicente Gil que partiu para a India em 10de Abril de 1532, em 13 de Março de 1536, em 25 deMarço de 1540, em 23 de Abril de 1542... E istoporque Amato refere na Primeira Centúria, Cura 90,que “quem primeiro trouxe para Portugal a Raiz daChina foi Vicente Gil (Vicentius Gilius a Tristanis),

Amato nasceu em CastelloBranco, villa na Provincia deBeira, com o nome de JoãoRodrigues; tomou as letrasordinarias para Medicina nasUniversidades de Coimbra eSalamanca; (...) logo foyconhecido em toda a Europa

Importamanter viva aMemória de

Amato (1511--1568), um

homem quebuscou no

exílio aLiberdade,

que acatavaas Leis e

abominava osdéspotas. Aausência deLiberdade napátria amada

obrigouAmato a

recorrer àsegurançaprecária do

exílio, atornar-se

Europeu ecidadão do

Mundo.

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grande explorador de regiões marítimas e mercadorassíduo da India”. Desta Raiz informa--nos Garcia de Orta no Colóquio 47 ter havido delaconhecimento em 1535, na época em que MartinsAfonso de Sousa tomava posse de Diu, cujo contractode cedência será assinado solenemente em 25 deOutubro de 1535. Nessa data Vicente Gil poderiaestar já a caminho, numa viagem que “demorava seteou oito meses” (Segunda Centúria, Cura 31) e nãopodemos esquecer que Amato refere ter utilizado aRaiz da China em Lisboa, e também em Antuérpia eem Ferrara, Veneza, Ancona eRoma (Segunda Centúria, Cura31). Refira-se ainda que Ruy Diazde Ysla, no livro que publicará emSevilha, fruto do trabalho no Hos-pital de Todos os Santos deLisboa e intitulado “Tractado cõtrael mal serpentino” cita “un paloque aora traem de Ia China porIa via de Portugal”, que poderá ounão ser o pau da China, com todoo peso de ter sido referido em livropublicado em 1539. Ora, nãosendo de admitir que Amatoalguma vez tenha voltado a Por-tugal, acredito que o “IndexDioscorides” até possa ter sidoescrito em Portugal e que tenhasido publicado em data posteriora 1536.

Conviria aqui fazer um outroesclarecimento, desta feita apropósito do epónimo Lusitano: -na Idade Média os Portuguesesconsideravam-se Hispanos ePortugalenses, como PedroJulião/ Pedro Hispano, o PapaPortuguês João XXI (1276-77),que em rigor talvez devesse serJoão XIX. Após o Discurso deGarcia de Meneses, Bispo deÉvora, ao Papa Sisto IV em 31de Agosto de 1481, começou autilizar-se o epónimo Lusitano,por exemplo Lúcio André de Resende Lusitano em1534 na “Oratio pro rostris” pronunciada no dia 1 deOutubro, em Lisboa, mas já assinará apenas LúcioAndré de Resende na “Oratio habita” que pronunciaem Julho de 1551, em Coimbra. Em 1552, naabertura solene das aulas na Universidadeportuguesa, em Coimbra, no dia 1 de Outubro, oorador Hilário Moreira intitular-se-á, modestamente,conimbricence. Entretanto, portugueses espalhadospor essa Europa fora, na esteira de Amato, infitular-se-ão Lusitanos...

Voltando aos Historiógrafos do final do século

dezoito que se ocuparam de Amato, merecemdestaque além de Manuel de Sá Matos, os doutoresCaetano Joze Pinto de Almeida (1783-1798) e JozéBento Lopes (falecido em 1800).

Pinto de Almeida, estudou em Montpellier e em1769 matriculava-se em Coimbra onde terminou ocurso médico em 1781, sendo nomeado professorde terapêutica cirúrgica em 1783 e promovido a lentede prima em 1795. Para uso dos seus alunos Pintode Almeida escreveu em 1790 um epítome de Históriada Medicina que constitui a primeira parte dos “Prima

cirurgiae therapeutices elementa”onde figura, na página 39, dedicadoa Amato, o capítulo XLII - “JoannesRodericus de Castello Branco,vulgo Amatus Lusitanus; primus fuit,qui obturatore, in erosi palatiforamen usus est”, o que está bemnuma historiografia geral daMedicina. Por exemplo, na obra dePierre Baron “L’ Art Dentaire aTravers Ia Peinture”, publicada em1986 em Paris, diz-se no fundo dapágina 69: “...en 1560, AmatusLusitanus (1511-1568) et en 1561Ambroise Paré utilisèrent desobturateurs (invention de Renner deNuremberg) pour boucher les com-munication buc-sinusales à Ia syphi-lis”...

Jozé Bento Lopes traduziu eacrescentou a Historia da Cirurgiade Pinto de Almeida num livro quetem por título “Primeiros elementosde Cirurgia Therapeutica”, impressono Porto em 1794, que nos oferecena página 88 : “XLII - JoaoRodrigues de Castello Branco,vulgarmente chamado AmatoLusitano, foi o primeiro, que seservio de hum obturador, parafechar o buraco do paladar, que deordinário resta depois da carie dosossos, que concorrem para a suaformação”. Em nota de rodapé,

Bento Lopes acrescenta: “João Rodrigues era natu-ral de Castello-Branco, e sendo formado em Sala-manca, praticou por alguns annos a Medicina, eCirrugia em o nosso Reino pelo meio do século XVI.O amor da sciencia, que professava o arrancou desua patria para ir viajar por varios paizes da Europa,aonde contrahio, e conservou amizade com todosos homens grandes, que naquelle tempo florescião.Em Ferrara obteve huma cadeira em que ensinoupor algum tempo a Medicina; porém o seu génioinconstante, ou algum outro motivo, que se ignora, ofez deixar esta cidade para passar a Ancona, e depois

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à Tessalónica, célebre Cidade da Turquia Europea,aonde deixou o seu proprio nome, para tomar o deAmato Lusitano, e morreu depois de alguns anos,tendo enchido toda a Europa do seu grande nome.Antes de passar ao Estado da Turquia, o Rei daPolonia, e a Republica de Ragusa, desejosos depossuir este grande homem, o convidarão para osseus Domínios, com grandes offertas, que forãodespresadas. Amato Lusitano, diz Portal, era humhomem instruido, engenhoso e grande observador:as suas obras devem ser conhecidas, e consultadas;e são mais filhas da observação, que do engenho.Compreendem estas 7 Centurias de Observações,entre as quais se encontrão muitas pertencentes àCirurgia, que elle nunca separou da Medicina. Na 14da Centuria 5 se encontra a descripção do Obturador,de que o nosso Auctor nos falla acima. Esteinstrumento era composto de huma lamina de ouro,que por meio de hurra hasteasinha se engastava emhuma esponja, a qual se adoptava ao buraco, aondese conservava por dilatação, que a humidade lhe faziaadquirir. Por este modo remediou o defeito dedeglutição, e pronuncia, que hum homem padecia,pela existencia de hum tal buraco”.

A descoberta do Obturador palatino que interessouPinto de Almeida e Bento Lopes será notada maistarde por J.O. Leibowitz e por L. Samoggia e paraela chamará a atenção J. Paiva Boléu no trabalho“Amatus Lusitanus I’inventeur de I’obturateur palatin”,apresentado ao XXI Congresso Internacional deHistória da Medicina realizado em 1968, em Siena.E haverá certamente aqui uma grande lição a tirar aqual é de ter sido chamada a atenção para umadescoberta de Amato em duas obras portuguesasque deveriam ter sido conhecidas porque foram livrosde texto na Universidade, o Livro de Caetano deAlmeida e o Livro deste mesmo Autor traduzido por

Bento Lopes e muito mais tarde o mesmo facto vir aser apresentado como novidade. A conclusão a tiraré só uma: “Cabe-nos formar, reformar in-cessantemente a memória não só da nação masainda da humanidade - essa humanidade que osdescobrimentos e a expansão ajudaram poderosa-mente a construir, mas em relação à qual tanto há afazer - sempre”, como nos ensina Vitorino deMagalhães Godinho em “Mito e Mercadoria, utopia eprática de navegar”, 1990.

Creio, com Jaime Cortesão, que escrever história

é praticar um actode consciência.Importa manterviva a memóriade Amato, umHomem que bus-cou no exílio aLiberdade, queacatava as Leis eabominava osdéspotas. A au-sência de Liber-dade na pátriaamada obrigou Amato a recorrer à segurançaprecária do exílio, as viagens por mar e deslocaçõesem terra, mas nem os trabalhos nem as provaçõesdo exílio lhe abalaram a alma.

Penso que será interessante investigarmos nonosso passado comum os momentos em que aMemória de Amato ilumina caminhos de futuro. Odia 17 de Abril de 1736, surge-me marcado pelapequenina referência na carta de João Pessoa daFonseca, Manoel Dias Ortigão e Amaro Rodriguesda Costa: “Grandes foram as obras, e admirandapratica de Zacuto, e as Observações de Amato,porem estes ham de ceder a Um.” ...e este Um., erao autor do livro que insere a referida carta, Jacob deCastro Sarmento, o livro a “Matéria Medica”“offerecido aos Professores de Medicina do Reyno,e Domínio de Portugal”, datado de Londres, 1735. Acarta regista 1736. Inexplicavelmente, ou talvez não,o Compendio Histórico do Estado da Universidadede Coimbra, 1771, aparentemente parece não citarAmato.

Os “Apontamentos para estabelecerse hum tribu-nal & colégio de Medicina” de Antonio Nunes RibeiroSanches (1699-1783), sugerem que pouca atençãoera dedicada a estes assuntos, por exemplo quandodeturpa o nome de Garcia de Orta: “Disgraçadamenteextinguiose nos Médicos Portuguezes aquelle intensoardor de servir a sua patria, e a humanidade;acabouse com Jeronimo de Orta no tempo del ReyDom João o terceyro, e tão torpemente que apenashe conhecida a sua obra em Portugal, se nãoestiverão traduzidos alguns pedaços dellas em Latimnas obras de Carlos Clusio”.

E Ribeiro Sanches sabia muito bem do que estavaa escrever. Ribeiro Sanches editara(?) em Paris, em1759, à custa de Pedro Gendron, o que pensou sera obra completa de Luis de Camoens, um poeta queresistiu à Inquisição, resistiu ao tempo, resistiu aoesquecimento e resistiu aos editores...

Quando o familiar do santo oficio Dr. Manoel de SáMattos escreveu a sua Biblioteca ElementarChirurgico-Anatómica, em 1788, a inquisição já derao que tinha a dar e havia a abertura de espíritoprovocada pela publicação do Compêndio Histórico

“Cabe-nosformar, re-

formarincessantementea memória não

só da naçãomas ainda dahumanidade -

- essahumanidade

que osdescobrimentos

e a expansãoajudaram

poderosamentea construir,

mas emrelação à qual

tanto há a fazer- sempre”

Penso que será interessanteinvestigarmos no nosso passadocomum os momentos em que aMemória de Amato iluminacaminhos de futuro

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de 1771. De Manuel Sá Mattos para o professor querecebeu o encargo de lhe rever a obra, aliás objectode sentido elogio na parte final desta quando referea Cirurgia contemporânea, há um salto qualitativo eé muito interessante notar-se a completaindependência do trabalho de Pinto de Almeida emrelação a Sá Mattos.

Com esta comunicação apenas procurei partir àdescoberta da Memória de Amato, no nosso passado

cultural. Será uma forma de evocar Amato, comoqualquer outra que pretenda manter esta Memóriaviva e exemplo. Tem plena justificação em CasteloBranco, a terra natal de Amato, a qual não teve nemterá jamais o privilégio de guardar os ossos desteseu ilustre filho. Tem justificação no mês e ano emque mais uma vez Ragusa foi destruida. Em 26 deOutubro de 1991, dia em que o povo Maubere seráuma vez mais esquecido.

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O ESPAÇO GEOGRÁFICO NAS CENTÚRIAS DE AMATO

Por Maria Adelaide Neto Salvado

É meu objectivo dar-vos conta da perspectiva doolhar duma geógrafa sobre as Centúrias de Amato .

Escritas num tempo em que a Geografia era comoque um caleidoscópiomágico do mundo, asCentúrias de AmatoLusitano espelham ine-vitavelmente reflexosdesse mundo alargado evário em rápida mutação.

Nortearam, por isso, aminha leitura linhas quevisavam encontrar res-posta a três questões:

1° - Qual o sentimentode Amato face a essemudado mundo, diversoem gente e em costumes,surgido dos descobri-mentos geográficos?

2° - Qual a receptivida-de e atitude de Amato emrelação às exóticasplantas medicinais e aosnovos métodos de curatrazidos das terras lon-gínquas dos confins daorbe?

3° - Que lugares, queambientes, que paisa-gens portuguesas, descreveu ou referenciou Amato?

Como sentiu Amato o espaço geográficoportuguês?

As exóticas plantas medicinais do novomundo descoberto...

Relativamente a esta questão, logo na Cura XC daprimeira Centúria surge a referência a uma plantatrazida da então misteriosa China.

Nessa cura, intitulada - “Da dor dos quadris e daRaiz dos Chinas” -, Amato relata o caso dum gregoque sofria de antiga dor nos quadris e para a qualnem as repetidas idas aos banhos de Pádua, nem ouso de remédios variados surtiram qualquer efeito.

Foi, no entanto, um decocto da raiz da China,aconselhada por Amato e tomado ao longo de 25dias, que libertou o grego dessa dor antiga. Nos

comentários a esta cura,esclarece Amato seresta raíz, embora to-talmente semelhante àraiz das canas euro-peias, proveniente daChina, terra donde háanos “começou a sertrazida para Portugalpelos nossos Lusitanosque fazem a navegaçãoda Índia, Reino dos Chi-nas e mais além”, acres-centando ter sido umexplorador das regiõesmarítimas e mercadorassíduo da India, GilVicente Tristão, quempela primeira vez aintroduziu em Portugal.

A descrição desta raíz,a indicação pormeno-rizada das suas virtudesterapêuticas e do seumodo de preparação, adieta alimentar que a suautilização exigia -

patenteiam, penso, a aceitação plena duma novamedicina trazida do misterioso Oriente.

Mas é na Cura XXXI da 2ª Centúria, intitulada - “Ométodo e verdadeira regra de propinar o decocto daRadix Sinarum na pessoa do Sumo Pontífice JúlioIII; ao meu ilustre e também Humaníssimo D. Vicentede Nobilius, justíssimo Governador de Ancona” - queesta evidência se torna mais forte e esclarecedora.

Enaltece Amato as virtudes desta raiz da China,afirmando ter-lhe sido concedida “por dom divino oprimado entre os que servem para conservar a saúdehumana”; descreve-a como sendo semelhante à raizdas canas comuns, referencia a cor rubra exterior eo seu tom “esbranquiçado por dentro e com certacor vermelha” e, curiosamente, tenta fornecer com

EnalteceAmato as

virtudes destaraiz da Chinaafirmando ter-

-lhe sidoconcedida“por dom

divinoo primado

entre os queservem paraconservara saúde

humana”;descreve-a

como sendosemelhante àraiz das canas

comuns

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precisão a localização geográfica dessa terra dosconfins da orbe onde, junto ao mar, crescia essegénero de canas cheio de virtude. Escreveu Amato:“A China ou Sinacomo dizem os Cos-mógrafos, é umaregião confinantecom a India Trans-gangética que ter-mina junto da Séri-ca. De facto, a ÍndiaTransgangética élimitada a oeste pelaoutra India e pelo rioGanges, a nortepela Scitia e pelaterra Sérica ou dassedas, a orientepelo país dos Chinse a sul pelo OceanoIndico”.

Porém, é no modo de preparação desta raiz e nascríticas que tece ao opúsculo escrito por AndréVessálio sobre as propriedades da Radix Sinarum,que a receptividade de Amato às novas medicinasvindas das terras descobertas, aliada à busca deinformações precisas sobre os seus métodos depreparação - que a abertura do seu espírito ànovidade desse novo mundo mais ressalta. EscreveuAmato: “anatómico Germânico abstanha-se do quecom razão se deve abster, pois que os chineses eaos Portugueses, que estão frequentemente comeles e trouxeram para a Europa o uso desta raiz sedeve perguntar o verdadeiro, genuino, e característicomodo de a preparar”. E numa outra passagem: “Nãose estrague, nem modifique esta verdadeira formade dar o decocto, visto ser o verdadeiro processousado pelos chineses”.

Mas não foi apenas a Radix Sinarum a nova plantamedicinal que Amato adoptou e cuja utilizaçãoexperimentou, aconselhou e difundiu pela Europa.No comentário da Cura LXXX da 2ª Centúria - “Deuma rapariga que morreu por causa de umadisenteria mal curada” - indica-se uma nova plantaproveniente da India e trazida pela primeira vez porum médico chamado Doutor Barbosa, que Amato dizser “dotado de grande experiência”. Tratava-se doentrecasco de uma árvore chamada gargapau pelosindianos e remédio eficaz na cura da desinteria.

Não apenas as medicinas orientais mereceram aAmato a atenção, o estudo e a experimentaçãocuidadosas, que lhe permitiram entrelaçar métodosde cura, e estabelecer analogias entre a floraportuguesa e essas exóticas plantas trazidas de alémmar.

Na Cura XCV da 2ª Centúria, - “Do cuidado a ha-ver no tratamento do Pano, ou tumor inguinal e o

que é o Pau-de-Guaiaco, que entre nós nasce como nome de buxo” - ao descrever a cura de Ludovicode Bolonha, comissário extra-urbano de Roma,afama Amato ter dado ao doente o decocto do buxodo nosso país preparado da mesma forma que oguaiaco, esclarecendo que: «O pau guáico trazidodas ilhas recentemente descobertas - as Antilhas - éo mesmo que os europeus chamam de buxo, comose torna evidente a quem o verificar».

No comentário da IV Cura da 3ª Centúria - “Dechagas contraídas pelo morbo-gálico e de sintomasoriginados por beber vinho tinto durante a aplicaçãodo unguento de azougue vivo” - as referências acercado pau guaiáco adquirem importância numaperspectiva geográfica. Reafirma Amato ser o paubuxo, abundante e de uso generalizado na Europa,exactamente igual ao pau guaiáco que “há anoscomeçou a ser importado do Perú e das ilhasrecentemente descobertas”. Ao estabelecer asdiferenças de propriedades entre as duas plantas (amoderação da temperatura do buxo europeurelativamente à maior espessura e maior temperaturado pau guaiáco, o que implicava a utilização de umou de outro consoante o tipo de doente e osresultados obtidos), escreveu Amato: “ Estas árvoresnão diferem entre si, senão por causa do terreno(solo) diverso”. É a antecipação daquele modo deolhar o mundo, de observar o mundo, de observaros elementos que existem num dado espaçogeográfico, buscando conexões e elos com outroselementos que com eles coexistem nesse mesmoespaço: perspectiva de olhar que, séculos mais tarde,

se chamou princípio da causalidade, princípio queAlexandre von Humboldt sistematicamente praticoue que contribuiu para tornar a Geografia, emprincípios do século XIX, numa ciência bem diversadas ciências fisicas e biológicas.

A variedadeextrema de

tantasplantasnunca

imaginadasconduzirá àfundação,

nessaEuropaabalada

pelanovidade,de muitos

JardinsBotânicos

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Curiosa é, sem dúvida, a posição de Amatorelativamente à identidade entre o pau guiaiaco doPerú e das Antilhas e o buxo europeu, expressa noscomentários à Cura LXXX da 6ª Centúria - “Devertigem, que os gregos chamam scótoma”.

Esclarece Amato ter fundamentado a sua opinião,relativamente à identidade das duas plantas, naopinião defendida pelos povos hispânicos. “E nósnestas Centúrias temos seguido tais pessoas”. Defacto, tanto na Cura XCV da 2ª Centúria, a que jáfizemos referência - “Do cuidado a haver notratamento do pano, ou tumor inguinal e o que é oPau de Guaiaco que entre nós nasce com o nomede Buxo”-, como nos comentários da IV Cura da 3ªCentúria, a posição de Amato é clara e explicitamentefavorável em relação à igual identidade das duasplantas. Todavia, no comentário da Cura LXXX da 6ªCentúria a sua opinião é mais reticente. “Mas sehouve erro, deve ser imputado, não a mim, mas aosautores hispânicos” - escreveu, acrescentando: “Comefeito, eu sei bem quanto difere o buxo europeu daárvore guaiaca, nas folhas e nos frutos, e no restante.Os hispânicos a quem expusémos a diferença entreuma e outra, respondem que nós declaramos averdade, mas no entanto não desistem da suaopinião, quando dizem que elas (árvores) diferemapenas na razão do solo e que pelo clima crescemmais alto que na Europa”.

Que circunstâncias teriam levado Amato a tecerestas considerações?

Explicar a diversidade entre as plantas peladesigual qualidade dos solos e dos climascorrespondia a uma atitude revolucionária no séc XVI.Teríamos de aguardar ainda a passagem de muitos

séculos para que o Evolucionismo nascesse...Seriam dúvidas alicerçadas em razões que

repudiavam a aceitação da igual identidade de duasplantas embora com aspectos diferentesprovenientes de pontos tão distantes do espaço

geográfico?Mas outra hipótese pode avançar-se: a crítica à

opinião de Amato dever-se a alguém comconhecimentos mais precisos de BotânicaSistemática. Na realidade, a abertura ao mundomostrou aos olhos da Europa a sua imensa eimpensada diversidade. A variedade extrema detantas plantas nunca imaginadas conduzirá àfundação, nessa Europa abalada pela novidade, demuitos Jardins Botânicos. Em Itália, onde Amato viveude 1541 a 1555, foram criados jardins em Pádua(1545), Pisa (1547); em França: Bolonha (1567) eMontepellier (1587). Juntamente com o interesse pelanovidade, a criação de Jardins Botânicos obedeciaa uma finalidade muito pragmática: o estudo e aobservação cuidada das propriedades dessas novasplantas com o objectivo de uma sua futura utilizaçãoterapêutica. Herdada da Antiguidade a fitoterapêuticaconheceu no séc. XVI um extraordinário impulso,tornando os médicos entusiastas botânicos. A prová--lo, o caso de André Cesalpino - médico, professorda Universidade de Piza e director do Jardim Botânicoaí criado. A ele se deve a descoberta do sexo nosorgãos das flores.

A obra de Dioscórides que desde o século 1 danossa Era tinha constituído o guia da Medicinafitoterapêutica, foi nesse século XVI largamenteanotada e comentada. Amato foi um dos seuscomentadores, e os pertinentes comentários e

Mas outroproduto

comercializadoproveniente

das IlhasAtlânticasmereceu

também aatenção deAmato; opastel ouerva dos

tintureiros

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anotações que fez a essa obra contribuiramlargamente para um melhor conhecimento dasvirtudes terapêuticas de algumas espécies nelareferidas. No entanto, esses comentários de Amatorevelaram também divergências em relação à opiniãoe aos comentários expressos pelo médico italianoPedro André Mattioli, considerado na época um doscomentadores mais sábios de Dioscórides. Os errosque Amato lhe apontou transformaram Mattioli numinimigo rancoroso e implacável de Amato. Teria sidoeste médico o autor das críticas a Amato que certaspassagens desta Cura deixam transparecer?

De salientar que, na realidade, o Buxo e o PauGuaiaco não pertencem nem à mesma Família nemà mesma Ordem. O Buxo é da família das Buxáceas,ordem Euforbiais; o Pau guaiaco da família dasZigofiláceas, ordem geraniais. No entanto, pertencemà mesma sub-classe a das Rosidal... Residirá nestapertença à mesma sub-classe, neste elo que as une,a justificação do facto constatado por Amato que emjeito justificativo da posição favorável à identidadedas duas plantas, apresentou deste modo: “Sejacomo fôr, nós fizémos a experiência de que ambasas árvores têm iguais capacidades energéticas” -dando por encerrado o assunto.

Na verdade, mais do que razões de sistematização,o que interessava, na perspectiva de um médico,eram indubitavelmente as capacidades curativas deuma planta.

Ainda um outro exemplo da receptividade de Amatoàs medicinas vindas de lugares distantes. Na Cura Lda 6ª Centúria -”De uma mulher que abortou notempo certo de gestação e do seu tratamento” - otratamento que prescreveu a uma mulher quesistematicamente abortava ao 3° mês de gestaçãorefere ter utilizado, com bons resultados, um bálsamotrazido da região do Peru. Descreve-opormenorizadamente para que o reconheçam e odistingam do bálsamo de Hiericonte ou de uma regiãode Mênfis: “óleo espesso, com uma côr um tantoenegrecida com certa vermelhidão”; “viscoso notacto”; e cheiro semelhante “ao do rosmaninholiquefeito misturado com almíscar”( ...) e de “saborpicante”, e termina aconselhando farmacêuticos eperfumistas ao uso deste bálsamo do Perú para asreceitas em que costumassem utilizar o de Hiericonteou o de Mênfis. Que melhor exemplo do que o destapassagem para ilustrar a abertura de Amato àsnovidades do novo Mundo descoberto? No entanto,numa passagem da Cura LXXXIII da 3ª Centúria -”Da febre maligna com sintomas”- a receptividade àinovação e à experimentação de novos métodos decura ressalta ainda mais acentuadamente. Trata estaCura de um estranho caso acontecido a uma jovemmulher de 26 anos que foi atacada por “febre contínuado género maligno”, depois do desaparecimentosúbito da menstruação quando, conta Amato, contra

vontade se propunha ir ao encontro do seu marido.Corria o ano de 1552, e a todos os indivíduosatacados de febre, nesse mesmo ano, apareceramà volta da garganta “chagas de feio aspecto”. A jovemnão escapou a esta regra... Descrevendo a evoluçãoda doença e as manifestações que sucessivamenteforam surgindo, escreveu Amato: “Atacavam estamulher tais sintomas que dizia em voz alta que lhetinham dado veneno a beber. Por isso logo a seguirdemos-lhe raspas de chifre do animal chamadounicorne em água acetosa, assim como pedra bézar,extraída da barriga de uma cabra da India, que ospríncipes indianos e todos os nossos portuguesestêm por melhor dos antídotos”.

O Europocentrismo de Amato...

Porém, apesar desta abertura de espirito àsnovidades desse novo mundo, perpassa noscomentários de Amato um marcadoeuropocentrismo. Na mesma Cura-XXXI da 2ªCentúria, Amato, bem ao gosto dum europeuocidental, não se escusa de enaltecer a velha Europa.

Ao dirigir-se a Vicente de Nobilis, governador deAncona e sobrinho materno do Papa Júlio II a quemesta cura é oferecida, afirma Amato que as novasdoenças que cada dia surgem “causadoras de váriosmales aos homens... “também por vontade de Deusse descobrem os remédios para as debelar “trazidosdos confins da orbe para a Europa, a rainha daspartes do mundo”.

Amato - as Leis de mercado e as rotascomerciais do mundo do seu tempo...

Considerações acerca das complexas leis demercado nessa Europa mercantil do século XVI, asimplicações do aumento da oferta no abaixamentodo preço dos produtos num mercado mais amplo eheterogéneo, não passaram desapercebidas a estemédico atento à realidade dum mundo em rápidamutação como era o do seu tempo. Passagens daCura XXXI da 2ª Centúria deixam perpassar estarealidade. Ao tentar explicar as razões da exíguaquantidade de raiz da China (apenas uma onça) paragrande quantidade de água (dosagem normalmenteutilizada pelos europeus na preparação do decocto),pensa Amato dever-se ela ao elevado preço que, aprincípio, a raiz atingia na Europa.

Este processo de preparação do qual resultava umdecocto extremamente diluído mereceu, segundoAmato, comentários mordazes a Jacob da Olanda,um português que, tendo vivido algum tempo na In-dia e na China, aprendeu a preparar o decocto àmaneira chinesa e indiana, isto é, utilizando nocozimento não uma, mas duas ou três onças da Raiz.E conclui Amato: «com a abundância e importação

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dela é fácil, poder acrescentar-se a quantidade, vistocomprar-se a preço mais baixo».

Apesar do baixo preço da raiz comercializada emPortugal, depois da abertura das rotas marítimas como Oriente, adverte Amato ser ela “sempre velha ecorrosiva e para as circunstâncias fraca e suave emvirtude de em parte ter perdido as suas forças”.Explica Amato as razões dessa perda de qualidades:“pela humidade do mar” na longa viagem por navios“através do mar durante 7 ou 8 meses seguidos,mesmo com ventos favoráveis”. Longa e morosa eraesta rota marítimadesde a longínquaChina até Portugal...

Um outro escla-recimento não seescusa Amato deprestar: de que a raizchegava a Itália, porterras da Turquia eem caravanas sepoder “comparar aosremédios únicos” porser “mais perfeitamuito pesada esucosa”. E neste es-clarecimento seevidencia em toda a plenitude da sua competitividadeas duas grandes rotas comerciais paralelas: aterrestre e a marítima, que no século XVI ligavam oOcidente e o Oriente, unindo pontos distantes doespaço geográfico, veiculando mercadorias, ideias,formas de pensar e de estar no mundo e na vida,permutando saberes, saberes que neste caso con-creto minimizassem uma das eternas inquietaçõesdo homem: a luta contra a doença e a Morte.

Noutros pontos e noutras Centúrias a atenção deAmato sobre as rotas de comercialização surge, deigual modo, de forma evidente. Na 3ª Centúria noscomentários à Cura XIII -” De alguns que vieram dePortugal a Roma e adoeceram” - Amato dá notíciada rota do açucar das Ilhas Atlânticas. Ao referir-se àIlha de S. Tomé e Príncipe, afirma ser ela “muitofrequentada pelos nossos portugueses, que delatrazem açucar para Portugal, donde depois e levadopara vários pontos do mundo”.

Mas outro produto comercializado proveniente dasIlhas Atlânticas mereceu também a atenção deAmato: o pastel ou erva dos tintureiros. Na Cura XVIIda 3ª Centúria - “De uma criança continuamente febrile caída depois em varíola” -,ao relatar a cura dummenino de 16 meses atacado de varíola, diz ser elefilho “daquele que levou das ilhas de Portugal para aInglaterra duas naus carregadas de isátis”.

A isátis, planta crucífera de grande utilização natinturaria da época, fez parte com o trigo, a vinha e acana do açucar do leque de plantas que os

portugueses utilizaram nas primeiras experiênciasagrícolas que se fizeram nas ilhas, com vista àexportação para os mercados do Mediterrâneo e doNorte da Europa. Depreende-se das palavras deAmato nesta Cura, que na época em que ele aescreveu o comércio da isátis deveria ser controladopor portugueses. Mas anos depois a comercializaçãodeste, como a de outros produtos agrícolas insularesescaparia das mãos dos portugueses. Maria OlímpiaGil, historiadora e especialista em economiaaçoreana dos séculos XVI e XVII, analisando o

movimento de entradae saída dos barcos doporto de Ponta Del-gada no períodobalizado entre 1620 a1669, concluiu que osingleses tinham “ocontrolo quase com-pleto” desse produto.E considera ser exem-plar aquilo a quechama “ciclo do pas-tel” para demonstrar adependência da pro-dução agrícola insulardos interesses das

regiões desenvolvidas do ocidente europeu paraonde era escoada.

Amato e a mais importante questãogeográfica do mundo do seu tempo: Onde?

Não só alusões a rotas comerciais perpassam nasCentúrias. Uma outra preocupação comum aoshomens do século XVI relativamente ao espaçogeográfico: a da localização precisa dos lugaresnesse mundo cada vez mais vasto e alargado, é nelastratada com a mesma evidência.

Quando, no comentário à Cura XVIII da 3ª Centúria,Amato adverte os médicos da Europa a não seguiremas indicações de Avicena no respeitante ao empregode lentilhas no tratamento da varíola e do sarampo,refere-se a Baçurá, local onde Avicena escreveu assuas obras. E, com precisão, diz localizar-se estacidade “entre Alepo, cidade célebre e a chamada ilhade Ormuz em que os nossos portugueses exercemfrequente comércio”. Curioso é o modo como Amatofaz esta localização geográfica. As referênciasespaciais em que assenta são duas cidades bemconhecidas dessa Europa mercantil do século XVI:Olepo, terminus da rota terrestre, através do deserto,que ligava o Golfo Pérsico ao Mediterrâneo; Ormuz,importante entreposto comercial do Golfo Pérsico queem 1554 mereceu a António Herédia a seguintedescrição: “( ...) é esta cidade huma das de maiortrato que há no mundo”, “à qual concorrem todo o

De evidenciarum outroaspecto

marcadamenterevelador da

atitude deAmato comohomem bem

mergulhado nasua época: o

enaltecimentodo valor daobservaçãodirecta e da

experiência a“madre detodas as

coisas” naexpressãode DuartePachecoPereira

Considerações acerca das complexas leisde mercado nessa Europa mercantil doséculo XVI, as implicações do aumento daoferta no abaixamento do preço dosprodutos num mercado mais amplo eheterogéneo não passaram desapercebidasa este médico atento à realidade dummundo em rápida mutação como era o doseu tempo

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género de mercadorias, mantimentos e fruitas”, (...)os desta terra “vivem em contínuo moto e mudançaporque tudo é embarcar e desembarcar”.

Amato e a descoberta dos novos mundos,novas gentes, novas estrelas...

Relativamente às gentes desse novo mundo deaspecto e costumes diversos e nunca imaginados,existe em Amato a preocupação de fisicamente asdescrever, de relevar as suas diferenças e deencontrar uma explicação cabal para o entendimentodas diferenças que as opunham às gentes do velhomundo.

Assim, nos comentários da Cura XXX da 2ªCentúria - “De uns negros debilitados de marasmo” -em que relata o caso dunsnegros que, tendo ido de Por-tugal para Ancona, foramquase todos atacados de“catarro e gravetosse”, dizAmato serem “os negros quehabitam na zona equinocial,de côr preta, com cabelostostados, crespos e enroladosà maneira de pimenta”.

Pertinente relevo dá Amatoà curta esperança de vidadestes povos. “Esta gente en-velhece com muita facilidadea ponto de raramente atingiros 60 anos de idade”, -escreveu. E avança umaexplicação: “A zona que ficasob a linha equinocial éexcessivamente quente,como que exposta durante todo o ano de ambos oslados à direcção vertical e a uma radiação perpen-dicular, carecendo quase de ângulo de reflexão”.Admirável esta passagem pelo que revela de umasábia relacionação entre a temperatura atmosféricae o ângulo de incidência da radiação solar. Desalientar, de igual modo, o gosto pela precisão e pelamedida revelador do espírito bem característico dumhomem do Renascimento.

Mais um outro aspecto nesta cura XXX. Amato dizserem estes negros, escravos “comprados adinheiro” em Portugal por cristãos novos que vierampara Itália “fugidos à Inquisição”. A esses cristãosnovos chama Amato “neófitos” servindo-se, diz, dotermo usado por S. Paulo para classificar os quecontra vontade deixaram o Judaísmo para abraçar afé de Cristo.

Na Cura XIII da 3ª Centúria, ao referir-se aospretos de S. Tomé e Príncipe, diz serem eles “sãos esaudáveis” porque na zona onde vivem não se notammudanças bruscas de tempo: “(...) reina entre eles

sempre uma calidez uniforme...”. Deste modoexprime Amato as elevadas temperaturas e as fra-cas amplitudes térmicas anuais características dasregiões de clima equatorial.

Descreve Amato os negros de S. Tomé comosendo: “secos, franzinos e como que torrados”;“fracos, timidos e efeminados” e acrescenta queraramente atingem os 60 anos de idade.

Mas não apenas as gentes africanas prenderam aatenção de Amato Lusitano. Ao tentar, na cura XXXIda 2ª Centúria estabelecer os limites da Chinasalienta ser esse “país dos Chins” limítrofe da Sítia,país cujos habitantes descreve como semelhantesaos germanos: “brancos, arruivados e de grandeestatura...”

Outros aspectos das Centúrias merecem, penso,ser indicados.

No comentário da CuraLXXX da 6ª Centúria-“De vortigem que osgregos chamam scóto-ma” - Amato revela-seum homem particular-mente atento às notíciasque do novo mundodescoberto cada diachegavam à Europa.Assim inicia os comen-tários a essa cura: “ Es-távamos nós a escreveristo quando apareceu oterceiro tomo das Nave-gações escrito na línguavernácula dos italianos,no qual, encontrámosmatéria digna de aten-

ção”. E relata a informação de uma nova doença atéentão desconhecida que atacou navegadoresfranceses na viagem para a Nova França ou Floridae que se teriam curado subitamente com o auxíliode uma árvore que Amato, ao comentar a notícia,diz suspeitar tratar-se do “pau guaiaco”.

De evidenciar um outro aspecto marcadamenterevelador da atitude de Amato como homem bemmergulhado na sua época: o enaltecimento do valorda observação directa e da experiência, a “madre detodas as coisas” na expressão de Duarte PachecoPereira. Na cura XXXI da 2ª Centúria, ao descreveros habitantes da Cítia, afirma Amato fundamentar--se na “opinião dos nossos portugueses,testemunhas oculares, a qual como se diz em Plauto,vale mais uma do que dez de ouvir dizer”. A mesmaideia surge reforçada nos comentários à Cura LXIVda 7ª Centúria - “De um dracúnculo, surgido na Perna,a que os Árabes chamam veia Medena”. Ao relatarurna estranha e perigosa doença existente no Egiptoe na India mas pouco conhecida no Ocidente, a tal

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ponto que se duvidava ser essa doença veia, ou nervoou lombriga, afirma Amato: “ Quanto a mim comotestemunha ocular mais de acreditar que muitascoisas ouvidas, atesto que tal doença se apresentacomo lombriga, esbranquiçada, fina...”.

A faceta da luta entre Antigos e Modernos, marcatão característica do Renascimento, perpassa deigual modo de forma marcada nas Centúrias. Umapassagem dos comentários da Cura XIII da 3ªCentúria é prova evidente deste aspecto.

Depois de uma longa exposição das ideias deHipócrates sobre a correspondência entre ostemperamentosdas pessoas ea natureza dossítios que ha-bitam, Amatorelata porme-norizadamentea divisão daTerra segundoos “sete cli-mas” à manei-ra grega, paraesclarecer nofim: “o que dis-sémos clara-mente sobre os sete climas gostaria que oentendesseis como dito a partir das teoriasestabelecidas pelos Antigos”. E acentua não tratar oseu “arrazoado” (esta é a palavra que emprega) dasoutras “cinco secções ou climas, há pouco criadaspelos neotéricos que se estendem da linha equinocialaté ao meio dia, onde, segundo sabemos de pessoasfidedignas, se encontrariam regiões bastantetemperadas e homens de longa vida”.

É a refutação, claramente expressa, das ideiasaristotélicas acerca da inabitabilidade da zona tórridae das regiões para sul do equador. Amato termina assuas considerações citando Ovídio e Vergílio acercada impossibilidade da vida nas regiões do Equadore nas de grande latitude, para concluir deste modo:“Contudo os nossos portugueses fazem o comérciona zona equatorial e vivem como os Lapões sob azona polar, para que concluamos ser falso o que foidito pelas ditas pessoas, aliás sabedoras”.

Amato e o Espaço vivido português...

Embora em pequeno número, as descrições e asreferências a terras e paisagens portuguesassurgem, no entanto, ricas em pormenoresinformativos e reveladores, alguns, de outrasdimensões da multifacetada personalidade de JoãoRodrigues de Castelo Branco.

Coimbra apenas mereceu a Amato a simplesclassificação de “cidade ilustre de Portugal”,

referência marginal, quando na Cura XXXIX da 2ªCentúria - “De uma rapariga que passou a varão” -Amato conta o insólito caso duma rapariga fidalgada freguesia de Esgueira, povoação situada a 9léguas de Coimbra, que chegada à puberdade teriamudado de sexo. “ Vestiu fato de homem, baptizou--se com o nome de Manoel, foi à India onde fezfortuna e se tornou famoso”- conta Amato. A CuraXIII da 3ª Centúria é, porém, aquela onde um maiornúmero de povoações e paisagens mereceram aAmato uma evocação detalhada. Lisboa, CasteloBranco e Guarda surgem nessa cura não apenas

(como aconte-ce com Coim-bra) marginal-mente referen-ciadas, masdescritas comum certo por-menor: ou asparticularida-des do seu cli-ma, ou as ca-rac ter ís t icasdas suas áreasenvolventes.

De todosestes lugares Lisboa mereceu a Amato uma maisdetalhada descrição. A sua situação na parte maisocidental da Hispânia, o largo estuário do Tejobanhando as suas praças (Tejo que Amato chama,à maneira clássica, de Mar Oceano), a sua áreaenvolvente de campos, jardins, vinhas e pomaresférteis e agradáveis, a moderação da temperaturasem oscilações bruscas, a ausência de neve e deventos frios e agrestes, a “suave brisa do mar que aenvolve propiciadora de tudo”, como a classificaAmato citando Homero e Hesíodo, constituempormenores que regista para justificar a salubridadedos ares de Lisboa, “a mais ilustre cidade da Hispâniaocidental” -, escreveu. No entanto,é na comparaçãoque, na mesma Cura, faz das condições climáticasentre Castelo Branco e a Guarda que ressaltamcertos aspectos de grande interesse numaperspectiva geográfica. Salienta Amato a amenidadedo clima de Castelo Branco. Adivinha-se uma pontade orgulho que traduz uma ligação afectiva profundapor Castelo Branco no modo como a esta localidadese refere chamando-lhe “minha amada pátria”; e notom com que salienta ter merecido esta terra uma“referência de Ptolomeu, o grande geógrafo daAntiguidade, reconhecido, nesse século XVI, amáxima autoridade da Geografia do mundo clássico.Talvez recordando a doçura dos outonos douradosde Castelo Branco, compara esta terra à Guarda detão baixas temperaturas sempre” tão fria - afirma -que até as pessoas o sentem no pino do verão”.

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Na explicação destas marcadas diferençasclimáticas entre as duas povoações ressalta umprofundo interesse dum ponto de vista geográfico.Acentua Amato a proximidade das duas localidadese a sua situação no mesmo “clima” - e a palavra climaé aqui empregue com o sentido que possuía naAntiguidade: o de um espaço de Terra compreendidoentre dois paralelos -, para, com propriedade ecerteza, concluir serem as diferenças sentidasconsequência da grande altitude da Guarda e da suaampla exposição aos ventos frios que sopram danevada serra da Estrela. Esta indicação dascaracterísticas topológicas dum sítio neste caso (al-titude e exposição aos ventos) como factorescondicionantes das particularidades do seu clima, querevelam uma importante agudeza de observação eum espírito reflexivo capaz do estabelecimento deconexões entre factos que transcendem o campo dasua especialidade.

A Santarém e Almeirim se alude na Cura LXX daIV Centúria - Nessa Cura, Amato tenta explicar comoé que um dado remédio bebido e quáseimediatamente logo expulso pode, mesmo assim,surtir o efeito desejado. Ao tentar dar resposta a estefacto, recorda uma situação por si vivida quando erajovem, “há mais de 20 anos e tal” - escreveu -, emSantarém no convento de S. Domingos do Alto. Todaa corte portuguesa se encontrava então emSantarém, conta Amato, pois nesse ano D. João IIIestava a residir em Almeirim em virtude do terramotoocorrido anos atrás na área de Lisboa. Mas éSantarém que Amato recorda e descreve maiselogiosamente. “Cidade portuguesa notável, capazde ser comparada com qualquer cidade opulenta”Na verdade Santarém era na época uma cidadeesplendorosa e Amato não escapa ao seu fascínio.Mas não apenas a cidade, mas também os férteiscampos “regados pelo aurífero Tejo”, mereceram àdistância de 20 anos, a recordação de Amato, quecita integralmente a passagem do livro VIII da HistóriaNatural de Plínio acerca da estranha particulariedadedos velozes cavalos da Lusitânia - a sua curta vida -que nasciam nos campos do Tejo, fruto dos amoresde éguas com Zéfiro ou Favónius, o vento do Oeste...Do impressionante número de citações dos clássicosgregos, latinos e muçulmanos, todas, com exclusãodesta, se relacionam com assuntos de Medicina.Porque teria Amato feito esta citação na íntegra?Como nota para relevar o reconhecimento daAntiguidade da beleza dos cavalos das lezírias doTejo da sua pátria distante? Ou, em espírito tãopositivo como o de Amato, a referência a este mitoda Lusitânea pré-romana, conservado através dasfontes literárias greco-latinas, e que se insere numateoria mitológica filosófica e científica sobre a geraçãoanimal e vegetal não traduzirá meditação de Amatosobre as origens da Vida?

Amato e o amor à Filosofia...

Um pormenor da Cura XCVIII da 7ª Centúria - “Deuma terçã que atacava a boca do estômago comabundante humor quase sempre mortal chamado porAvicena febre Sincopal Humorosa” penso merecerum certo realce pelo que traduz duma outra facetade Amato, o seu amor à Filosofia. Trata essa cura dadoença e morte do jovem de 27 anos chamado Ju-das Abarbanel. Diz Amato ser Judas neto “daqueleilustre Judas, ou Leão Hebreu filósofo platónico queescreveu - são palavras de Amato - os divinosDiálogos de Amor”. O jovem não resistiu à doença(“uma terçã epidémica”) e Amato lamentaduplamente a sua morte, pois este jovem estava naposse de um extenso livro de Filosofia cujo título eraDe Coeli Harmonia que Leão Hebreu tinha deixadoinédito. Amato confessa ter lido e folheado muitasvezes esse livro que classifica de “obra de muitadoutrina”, exposta à maneira escolástica na qual LeãoHebreu teria incluído “suficientemente quanto era devalor em Filosofia”. Era intenção de Amatojuntamente com o neto, “editá-lo em breve”. De CoeliHarmonia nunca chegou a imprimir-se e dele só restaa apreciação de Amato nesta Cura.

Nestas terceiras jornadas, dedicadas a Amato, aoAmor e à Morte, aqui na cidade de Castelo Branco,a que Amato chamou sua “amada pátria” é compalavras do grande médico retiradas da Cura XLIVda 3ª Centúria que vou terminar: “Somos mortais etornamo-nos semelhantes aos maiores filósofosquando nos dermos, entre nós, à observação espe-cial da morte e das suas causas, visto que o maisalto grau da sabedoria é a meditação sobre a morte.Discorrer sobre ela leva os homens a temer a Deuse lembra-lhes a benevolência para com os mortais”.

SalientaAmato a

amenidadedo clima de

CasteloBranco,

adivinha-seuma pontade orgulhoque traduz

uma ligaçãoafectiva

profundapor CasteloBranco no

modo comoa esta

localidadese refere

chamando--lhe “minha

amadapátria”

Notas...

1) Referência a André Vessálio, célebre anatomista.A ele se deve a publicação dum opúsculo sobre as

propriedades da Raiz da China intitulado De RadiceCynarum. Segundo Amato, André Vessálio não teriadescrito neste opúsculo a totalidade das propriedadesda Radix Sinarum.

2) Maria Olímpia da Rocha Gil, O Arquipélago dosAçores no século XVII, Castelo Branco, 1979, pp.320-321.

3) António Herédia, Documenta Indica, T. III, pp.103-4. Transcrito de Vitorino Magalhães Godinho, OsDescobrimentos e a Economia Mundial, vol. I, Lisboa,

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1971, p. 286.4) “É fama que na Lusitânia, à volta de Lisboa e do

rio Tejo, as éguas voltadas para o vento que sopra,concebiam um ser vivo (animal). Depoies dava-se oparto e nascia um ser muito veloz, a ponto de nãoexceder um triénio devida. Transcrição feita porAmato, de Plínio, livro 8° dc História Natural; Cap.XLII.

5) Teoria mítica da Grécia Arcaica, a crença de queo vento era um elemento fecundador das éguas, avese plantas, difundiu-se através dos tempos. Na Ilíadaos cavalos de Aquiles: Janto e Balio foramengendrados pela união entre a harpia Podarge e ovento Zéfiro. Aristóteles, na Hist. Amim. VI, 18, fazreferência não apenas à crença do papel fecundadordo vento sobre as éguas como dos efeitos da

sexualidade dos cavalos sobre os homens. SegundoAristóteles, uma substância chamada hippomânes,que se encontra na carne e nos orgãos genitais dospotros recém-nascidos, era um dos principaisingredientes usados pelas bruxas na confecção defiltros amorosos que enlouqueciam os homens,levando-os a unirem-se a mulheres velhas ou ajovens feias e repelentes.

6) Leão Hebreu, natural de Lisboa, filho doconselheiro de D. Afonso V, Isaac Abravanel, foimédico e sobretudo filósofo de nomeada.

Os Diálogos de Amor, publicados em Roma em1535, exerceram profunda influência nos poetas emísticos do século XVL De Coeli Harmonia nãochegou a imprimir-se e dele só resta a apreciaçãode Amato nesta Cura.

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ALGUMAS PLANTAS AROMÁTICAS USADAS POR AMATO LUSITANO

por A. M. Lopes Dias

A. A Botânica da Beira Meridional

Das Plantas Aromáticas e Terapêuticas maisempregues por Amato Lusitano, vamos citar algumas:

(1) Cebola Albarrã. Composta de diversosglucosidos formando um complexo denominadoCilareno. De nome latino [Urginea maritima (L.)Baker].

Aplicações das escamas médias do bolbo têmfortes propriedades diuréticas e tonicardíacas. O seuemprego é pouco acon-selhável pela toxidade queapresenta. O vinagre de cila também é apli-cado emfricções através de tinturas. Na agricultura usa-secomo raticida, sobretudoa var. purpurecens. Émediterrânica e dá-sebem na pátria de Amato.

(6) Coentro. (Corian-drum sativum L.) O óleoessencial é o linalol direitoou coriandrol. Usa-sepela sua acção esto-máquica. É muito usadocomo condimento. Apro-veitam-se as folhas quesão apanhadas em qual-quer altura e as semen-tes no fim do Verão.

(7) (10) (11) Almeirão(Cichorium intybus L.)Erva vivaz que contém osseguintes componentesactivos a cieorina, ainulina, açucares, saispotássicos, sódicos emagnesianos. As raízesservem de tónico, depu-rativas e como aperitivos; as folhas têm propriedadessemelhantes. Actualmente a chicória do café é usadana lotagem do café.

(7) (12) Parietária ( Parietária oficinalis L.) Aalfavaca de cobra é vivaz e a mais usada é a sub-

-espécie ramiflora (Moench.)Aschrs. As folhas revelam a presença de nitratos

alcalinos, nomeadamente de potássio e mucilagens.Tem propriedades diuréticas, naturalmente devidasaos seu conteúdo de nitratos alcalinos. As folhascolhem-se de Maio a Junho. Empregam-se frescasou secas.

(7) (10) (12) Violas. (Viola odorata L.) Erva vivazque contém a violina, ácido salicílico, alcabide. É em-pregado como peitoral, expectorante. A violina éabundante na raiz e nas sementes. Na Primaveracolhem-se as flores que podem servir para deleite edepois de secas podem servir para fins terapêuticos.

(8) Alcaçuz (Glycyrrhizaglabra L.) Leguminosa, ervavivaz que por vezes atingeum metro de altura. O rizomade alcaçuz (“raiz de alcaçuz”)possui muitos princípiosactivos, entre eles, o ácidoglicirrísico (5 a 7%), tanino,asparagina, açucares eamido. É usado como expec-torante e emoliente.

(8) Giesta (Cytisus scopar-ius L. Link) Esta leguminosa,forma um arbusto a giesteiradas vassouras. Tem alcabi-des sendo o principal aesparteina mas contémtambém a sarotamnina e agenistina. Tem uma flavina aesco parina e um glucosido(escopariosido). Nas floresexiste a resina e umaessência. Sob a forma de cháou de cozimentos usam as

flores como diuréticos e purgativos em medicinapopular.

A esparteína é usada na medicina comoestimulante do sistema nevoso central e periféricodepois do seu aproveitamento pela indústria químico--farmacêutica.

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(9) (12) (14) (16) (17) Rosas Rubras (Rosa gallicaL.) É uma rosácea sub-espontânea na Beira Meridio-nal. As pétalas possuem tanino, ácido gálhico,quercitina e um óleo essencial. A cor das pétalas édevida a um glucosido, a cianina. Emprega-se comoadstringente, agradável para gargarejes e loções eem farmácia emprega-se para fazer o mel rosado.Os botões florais são apanhados nos meses de Maioe Junho.

(10) (11) Ruibardo(Rheum plamatum L.)É uma poligonáceavivaz, pertence aogrupo químico dasoximetilantraquinonascomo nos aloés, comoa cáscara sagrada e osene muitas vezesempregues por AmatoLusitano. A plantacontém-os sob a forma de antraglucosidos ou noestado livre sendo o principal o ácido crisofanico eas emodinas.Usa-se como purgante moderado e hojeem dia em misturas de certos aperitivos, do tipovermute.

(12) (15) (20) Camomila (Matricaria chamomillaL.) Erva anual composta aromática, conhecida pelaMorgaça das boticas ou Matricária. Tem propriedadesanti-espasmódicas, tónico, estomacal e emenagogo;a sua efusão usa-se para conservar os cabelos loiros.

Tem princípios amargos, resina e taninos e um óleoessencial. As flores para serem usadas têm de serbem secas.

(12) Malva (Malva silvetrisL.) É uma erva anual bienalou vivaz que contémmucilagens e tanino. É umcalmante, peitoral e emo-liente. Serve para fazerinfusões.

(14) Murta (Myrtus com-munis L.) Arbusto oupequena árvore pertencen-do às mirtáceas (família).Tem uma essência nas

folhas que se extrai por destilação a vapor, solúvelno álcool, tem como principais componentes, odifeuteno e o mirtenol. As folhas têm uma essênciacom propriedades antissépticas notáveis. Usa-se,actualmente, em perfumaria.

(14) Esteva (Cistus ladaniferus L.) Pertencendo àfamília das cistáceas, como arbusto erecto, muito

viscoso, por vezes, até cerca de 2 metros de estatura.Entre nós é muitíssimo frequente nas nossascharnecas e pinhais em larguíssimos milhares dehectares.

A parte mais interessante, o lábdano, óleo resinacastanho-esverdeada, viscoso, encontra-se naspartes mais ricas da planta, as folhas e os ramossuperiores (3 a 6%). É extraído pela acção da água

em ebulição ou peloálcool.

É uma planta própriados terrenos pobres;dada a sua abundân-cia em pene-planície eentre nós, não carecede ser cultivada. Éexpontânea na maiorparte dos solos flo-restais da Beira Baixa,com excepção doscimos da Serra da

Estrela.Ámato Lusitano empregava o óleo como unguento.

(14) Erva-Moura (Solanum nigrum L.) Da famíliasolanáceas, a que pertence a batateira, esta é umaerva erecta, cujo fruto tem propriedades narcóticas,sedativas e emolientes. Das folhas fazem-seunguentos. São os materiais colhidos no Verão,folhas e bagos.

(15) Funcho (Foeniculum vulgare, Miller) É umaumbelífera como o coentro, a cicuta, o aipo, a salsae o anis e o endro a que João Rodrigues chamavaendrão e aromática vivaz, cujo constituinte principalo anetol essência de (2,5 a 5%) que contém mais de50%; este álcool é acompanhado por fenona a quese atribuem hoje as propriedades da droga além dediversos terpenos. A essência é obtida a fogo directoa partir das sementes ou porarrastamento a vapor. Éusado como tónico evermífuga. Actualmenteusa-se na preparação delicores. Os aquénios ficammaduros nos fins do Verão.

(15) Poejo (Menthapulegium L.) É da famíliadas labiadas a que perten-cem o alecrim, a alfazema,o rosmaninho, a salsa, ooregão, o tomilho e ahortelã-pimenta. Vivaz de quem se aproveitam assumidades floridas em Julho. É rica numa acetona,a pulegona que existe na proporção de 80% comuma presença de essência de (0,5 a 0,7). É tomado

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como tónico, disgestivo e emenagogo. Aparece nossítios húmidos. Utiliza-se actualmente, em cozinha,como condimento.

(15) Artemísia (Artemisia absinthium L.) ou Absintoé uma herbácea vivaz e como a camomila pertenceàs Compostas. É rica numa essência que possui atuiona e os seus esteres além de diversos terpenos.Também possuí um princípio amargo a absintina,resina e diversos ácidos orgânicos. Usa-se comovermífuga e no tratamento das anorexias. É umemenagogo perigoso. Hoje em dia é mais usado emlicoristica, mas como sabem o seu uso prolongadopode levar ao absintismo crónico devido àspropriedades epileptizantes da essência. É proibidoem certos países o seu uso, havendo dúvidas seoutras essências e o próprio álcool que sãoempregues no fabrico de certas fórmulas de licores,têm bastantes responsabilidades nos efeitos tóxicosdestas bebidas. Aproveitam-se nelas as sumidadesfloridas e as folhas que se cortam no Verão (após afloração) ou no Outono.

(15) Salsa (Petroselinum sativum Hoffm.) É umaerva bienal aromática, umbelífera, de folhas decontorno triangular, que é febrífuga nas febresintermitentes, em medicina popular. É muitoprocurada como planta condimentar e tempropriedades emenagogas que lhe empresta o apriol.

(NOTA: os números indicados antes das espécies,indicam curas na I Centúria de Curas Médicas, que podemservir de exemplos em Amato).

B. Os Trabalhos do Botânico e a Flora destaregião

Assim, esta ligeiríssima descrição da botânica deJoão Rodrigues de Castelo Branco não podeesconder um facto importantíssimo deste homem daRenascença: o seu conhecimento da flora daPenínsula Ibérica e também da Europa, mas,sobretudo, o conhecimento directo, profundo,daquela que era a sua pátria chica.

Muitos dos nossos solos mais modestos têmmilhares de hectares de estevas e giestas e, lado alado, o rosmaninho e o alecrim e a perfumadaalfazema assim como a menos odorosa cebolaalbarrã. Em lugares melhores estão largamentedissiminadas a viola branca e roxa tão diminutas etão belas.

São quase todas mediterrânicas embora algumasatlânticas. Das mais comummente aproveitadas pelo

nosso médico da Renascença, são as rosasvermelhas, espontâneas entre nós, que eramaproveitadas nos seus tratamentos. A sua farmáciaestava quase à porta de todos os doentes e não erapreciso ir ao centro urbano aviar a receita na maiorparte dos casos. Neste aspecto, durante séculos amodernidade não aproveitou a lição deste cientista.Temos de estudar muito as nossas plantasaromáticas e terapêuticas para as podermosaproveitar. Hoje estes estudos são mais fáceis como potencial actual e muita juventude universitária,enão só, já iniciaram especializações com oaprofundamento dos conhecimentos para aplicaçõesposteriores cada vez mais vastas. A lição deinteligência de Amato, príncipe da Renascença,cidadão do Mundo, que empregou comconhecimento de causa a botânica da (sua) regiãode Castelo Branco, serve de incentivo a muitos parao desenvolvimento do futuro.

Castelo Branco, Novembro 1990

Bibliografia...

Coutinho, A. X. Pereira (1939). Flora de Portugal.2ª Ed. Lisboa.

Galvão, J. Mira (1943). «Cultura da erva-doce».Comp. Prod. Agríc. n° 46

Perrot; E. (1934). Plantes Médicinales de France.Paris

_______(1947). La culture des Plantes Médicinales.Paris

Vasconcellos, J. de C. (1949). Botânica Agrícola.Lisboa

_______(1949) PlantasMedicinais e AromáticasD.G.S.A.

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A REALIDADE DA DOR NAS CURAS DE AMATO LUSITANO

Por António Lourenço Marques

Certamente que a dor é uma realidade tão velhacomo a idade da própria vida. Desde sempre, ohomem se viu confrontado,em alturas diversas da suaexistência, com estaexperiência desagradável,sinal avisador de falhabiológica, de doença, emuitas vezes premonitórioda própria morte.

A origem da medicina,uma actividade “vital” dahumanidade e portantomuito remota, confunde-secom os primeiros esboçosde atitudes expurgatóriascoincidentes com o alvorda consciência, e cuja fina-lidade era a erradicação dador e do sofrimento. Essaluta contra a dor tem, nãotemos dúvidas, a idade daprópria humanidade.

Mas foi, longamente, umcombate inglório. De talmodo que, só em temposmuito recentes, se operouo êxito consistente daspráticas terapêuticas, maisconcretamente, a partir dadescoberta da anestesiageral por Morton, há cento e quarenta e cinco anos.

Que trajecto verificamos até então?Aparentemente, foi um caminho cheio de inúmeras

vicissitudes e por vezes um engenho admirável. Êxito,se o houve, deveu-se em boa medida à confiança.Reportamo-nos à história da terapêutica no Ocidente.Os gestos curativos iniciaram-se sob a influência damagia e da superstição, sendo depois marcadospelas influentes religiões. Transformaram-se assimem práticas religiosas e sacerdotais, sempre longe

da racionalidade. Só bastante mais tarde seorientaram no sentido do empirismo e do naturalismo

(Hipócrates), enredando-sea seguir pelos terrenosfantásticos da alquimia e daastrologia.

Galeno sucedeu aHipócrates e correspondeua um desenvolvimento.Mas a Idade Média é umtempo muito longo, compráticas cristalizadas sobos efeitos de influênciascristãs e sarracenas. Àcuriosidade da utilizaçãodas novas drogas e méto-dos que se descobriam,sobrepunha-se um estérilinteresse pela exibição daargúcia mental, em re-flexões e explicações labi-rínticias que nos deixampasmados corno puderamvigorar, com tanta con-vicção, nos espíritos maisnotáveis.

Para alguns, esta “idademédia” da terapêutica ultra-passou o próprio Renasci-mento e só terminou verda-deiramente com a Revolu-

ção Francesa (1789) e com o desenvolvimentodecisivo de determinadas ciências afins - comLavoisier (1743-1794) que fixou os princípios daquímica, com Berzelius (1779-1848) que iniciou aquímica orgânica, com Linneo (1707-1778) que aoclassificar as plantas lançou os fundamentos daBotânica e com Brown-Sèquard (1817-1894) quecriou a doutrina das secreções internas. Foram estesos pilares seguros que permitiram a estruturapoderosa da terapêutica moderna.

A origem damedicina, uma

actividade“vital” da

humanidadee portanto

muito remota,confunde-se

com osprimeiros

esboços deatitudes

espurgatóriascoincidentes

com o alvor daconsciência, ecuja finalidade

era aerradicação da

dor e dosofrimento.

Essa luta contraa dor tem, nãotemos dúvidas,

a Idade daprópria

humanidade.

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A Dor na rota da HistóriaNeste percurso longo cujas caraterísticas

fundamentais delineámos, há conhecimentos que seforam formando e que perduraram. Nestaperspectiva, é possível encontrar na obra de AmatoLusitano(1) a revelação de saberes que não só foramverdade para a época, como pertencem a históriadas verdades de hoje.

As Sete Cen-túrias de CurasMédicas perfa-zem um sumptu-oso manancial deinformação sobreo estado da medi-cina de Quinhen-tos, marcada pe-la influência dosclássicos gregos,latinos e árabes,autoridades queeram reconhecidas pelos médicos mais notáveis.Amato Lusitano conhecia profundamente as obrasdos autores mais representativos, que cita emprofusão e tem perante eles uma postura deaceitação respeitosa. Mas a subserviência acriticaperante os dogmas tinha chegado ao fim dos seusdias. O verdadeiro homem da Renascença manifestauma atitude superior, procurando libertar-se das peiasdo obscurantismo e manifestando um interesse novopela realidade objectiva que passa a observar de umaforma directa e independente.

O resultado desta nova forma de posicionamentoperante a realidade tinha que dar os seus frutos. Nas

setecentas curasque constituem asSete Centúrias pu-blicadas, verifica-mos verdades queperduraram ou quepelo menos seencontram no ca-minho certo dosdesenvolvimentosposteriores. Cadaépoca tem as suasverdades e “a voca-ção autêntica dahistória das ciên-cias será reconsti-tuir tão fielmentequanto possível

génese real do saber”(2) . Para muitos historiadores,a história - ”consiste em pesquisar osantecedentes das teorias consideradas hoje comoverdadeiras, deixando de lado tudo o que pareceretrospectivamente sem futuro. Tal história é a história

da verdade. Ela mostra a humanidade pensante apassar de um estado de não verdade ou de verdademenor para um estado em que existe cada vez maisverdade”(3).

A dor é um sintoma quase quase indissociável doquadro da manifestação da grande maioria dasdoenças e na descrição dos casos clínicos. Amatoconfere-lhe já um lugar primordial e aborda-a de uma

forma que veio apersistir na investi-gação semiológicaconsagrada namedicina. Quandoo doente procura omédico, a maioriadas vezes fá-loporque a dor operturba. Em mui-tas das curas, ocaso descrito incluia anamnese deste

sintoma, bem caracterizado como um dadopluridimensional, isto é, como realidade que semanifesta localizada algures no corpo (topografia) eno tempo, com duração apropriada, determinadaintensidade também variável no tempo, e com umcarácter ou matiz subjectivo interpretável de acordocom descrição do doente, e que pode sugerir anatureza da própria doença.

As palavras com que o doente descreve a dor têmpara o médico relevante significado. E embora essadescrição., essa linguagem da dor, esteja dependentede factores estranhos ao próprio processo do loroso,como a personalidade de quem a descreve e oimpacto de elementos socioculturais, mesmo assimpode tipificar com muita aproximação o processo quea desencadeia. Esta particularidade, que se mantém,sobressai na clínica de Amato Lusitano.

Alguns exemplos:- “Roeduras” no estômago, num caso de

intoxicação por alcaparras (cura 3 da II Centúria);- “Dor surda em volta dos rins”, num doente atacado

de nefrite (c. 61 - II C.);- “Peso nas costas” numa mulher grávida (c. 59 - II

C.);- “Gravíssima dor de cabeça que abrangia a região

dos olhos, a ponto de gritar que tinha um punhalcravado na órbita e o outro lhe saltava fora” num casode agressão na cabeça por uma adaga (c. 7 - III C.);

- “Mordeduras no sítio do estômago” num doentealcoólico e que terá morrido de cirrose (“Como sesentia bem, voltou a beber copiosamente vinho maispuro. O figado abrasado perdeu o calor inato econsequentemente todo o corpo lhe inchou, vindo amorrer ao fim de seis meses) (c. 46 - III C.);

- “Pontadas na região superior das costas e umador penetrante e aguda” num caso de pleurite (c. 62

As SeteCentúrias de

CurasMédicasperfazem

umsumptuosomanancial

deinformação

sobre oestado da

medicina deQuinhentos,

marcadapela

influênciados

clássicosgregos,latinos eárabes,

autoridadesque eram

reconhecidaspelos

médicosmais

notáveis.

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- III C.);- “Dor extensiva e pulsante, na parte exterior do

peito” num outro caso de pleurite (c. 67 - III C.);- “Grande peso nos olhos e na cabeça e um ardor

enorme por dentro do corpo” num caso de febremaligna (c. 71 - III C.); - “Aperto no coração numcaso de febre pestilenta” (c. 78 - III C.);

- “Dores lancinantes, no baixo ventre” surgidasantes da primeira menstruação (c. 98 - III C.);

- “Dores penetrantes à volta do joelho” num casode agulha espetada no joelho (c. 58 - III C.);

- “Dor cruciante” num caso de grave pleurite (c. 82- VII C.); - “Dor veemente” da artrite (c. 45 - IV C.);

- “Dores do coração, angústias e apertos nocturnos”(c. 33 - VI C.);

- “Opressão angustiosa do coração” (c. 41 - V C.).Como vimos, Amato Lusitano na sua anamnese

da dor pesquisa muitas vezes as circunstâncias doaparecimento, processo que se desenvolveu namedicina moderna.

Na cura 9 da IV Centúria, a dor tem a seguintecaracterização: “O doente tinha na pálpebra esquerdauma pústula e neste sítio sentia uma dor grave eviolenta como se fosse apertado por um laço”.Também na cura I da VI Centúria, num doenteatacado de “herpes que dava aspecto feio desde ocimo do peito até à região testicular(...) o que eramais grave, intervaladamente arrastava consigo tãointensa dor lancinante que com dificuldade a podiacontrolar”. Temos assim uma perfeita caracterizaçãoque inclui a localização, a intensidade, a distribuiçãono tempo e a coloração subjectiva do doente.

A precisão destas características evoca

habitualmente o próprio diagnóstico. É a dor comosinal, cuja topografia permite descobrir o orgão queestá doente e, muitas vezes, a natureza da própriadoença(4).

Chegamos agora à actuação terapêutica na dor,

em Amato e não será exagero afirmarmos que emmuitas práticas configuram-se aspectos de grandemodernidade, particularmente quando o gestoterapêutico se dirigepara as causas des-te sintoma. Note-seque, por aquelaépoca, ainda persis-tiam generalizada-mente as ideias queultrapassaram aIdade Média, segun-do as quais “o triun-fo sobre o poderelementar da dorera sempre emconsequência deum fenómeno únicoe inverificável, dumpasse de magia,uma prestidigitaçãoou milagres da fé”(5). A fé, sim, transformava as coisasmais estranhas em apropriados objectos de cura,nessa terapêutica inverosímil de que ainda hoje háreminiscências nas mentalidades de algumaspessoas do nosso povo.

A actuação de Amato é notável em algumassituações, como no tratamento da cólica urinária querefere na cura 19 da IV Centúria: “Quando suprimidaa urina pela completa obstrução do cálculo, uma vezeste removido ou por cateter ou por sonda ou pelaelevação das pernas e feita uma sacudidela a urinaé libertada”. Amato percebe que o tratamento da dorpassa pela remoção do cálculo e para isso tem umaestratégia que não é muito diferente da que osurologistas de hoje seguem. Removem-se oscálculos - com sonda, por via endoscópica, epodemos mesmo imaginar as sacudidelas como queum antecedente da recente litotripsia por ondas dechoque extracorpóreas.

Não vamos desenvolver aqui a utilização da san-gria no tratamento de algumas dores, prática bemestabelecida na medicina traiçoeiramente sobre oaguilhão da própria dor!

Há em Amato Lusitano uma outra particularidadeno tratamento da dor que devemos referir, tambémpela sua modernidade. É um aspecto que seassemelha ao praticado nos nossos dias quando setratam doentes com dor crónica, ao utilizarmedicamentos progressivamente mais fortes deacordo com a intensidade da dor ou a rebeldia naactuação dos medicamentos mais fracos. Nestamesma cura 19, Amato refere-se aos casos deexcrescências carunculosas no colo da bexiga, quesão tratadas “com um sifão (tubo) introduzido nocanal urinário. A alguns destes doentes, diz,sobrevieram sintomas na altura do tratamento como

A dor é umsintoma quase

quaseindissociáveldo quadro damanifestação

da grandemaioria das

doenças e nadescrição doscasos clínicos.Amato confere--lhe já um lugar

primordial eaborda-a de

uma forma queveio a persistirna investigação

semiológicaconsagrada na

medicina.

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dor intensíssima...”. E vejamos a terapêutica: “Orase houver dor lava-se (humedece-se por meio dosifão) o meato urinário com leite, ou água rosáceamisturada de cânfora (que como sabemos tempropriedades anestésicas locais), ou com um decoctode semente de linho e de funcho. Se a dor for muitoaguda, de modo a que o doente a não possa suportar,então recorremos ao decocto de meimendro (já umaplanta solanácea) ou ao trocisto de cinoglossa (plantaboraginácea) ou a um ou dois grãos de ópiodissolvidos em água derosas”. Esta actuação cautelo-sa, ponderando a melhoreficácia com o tratamento demenores riscos, pertence àmelhor tradição do espírito damedicina.

AMATO, DOR, AMOR...

É de certo modo inesgotávela quantidade de conside-rações que a leitura das curaspode sugerir. E nesta realida-de da dor, esta viagem pelasCentúrias é fascinante. A dorimpera como queixa central,naturalmente, arrastandoperturbações de outra ordemcomo as respiratórias (dor depleurite), psíquicas (dor decoração), etc. Por vezes, acaracterização do mal estar,que não é propriamente dor física, usa a suaterminologia e é riquíssima a colheita de sinais esintomas que acompanham determinados estadosmórbidos. Neste aspecto, o médico prático de hojeoxalá suplantasse o nosso Ámato!

Nestas III Jornadas da Medicina na Beira Interior,em que também se fala no amor e na morte, se AmatoLusitano estivesse entre nós poderia brindar-nos combelas Comunicações que consistissem apenas naleitura de algumas das suas Curas. Por exemplo a13ª da IV Centúria, em que apresenta o tratamentoda doença de “uma viúva jovem, formosa e bemconstituída”, que “sentia um acabrunhamento portodo o corpo, com distensão das veias” que lhecausavam “peso ou opressão resultante daacumulação ou plenitude ad vasa”. A jovem andavaruborizada e para Amato era “uma vermelhidão nãoacostumada e em virtude dessa abundância desangue também se acumulava quantidade de sémengenital (como é costume suceder). Daqui resultavao aparecimento de pesadume por todo o corpo, fastio,suspiros, ansiedade, agitação e espreguiçamentos”.Bem, vamos abreviar, pois também nós participamos

no resumo empobrecedor das nossas históriasclínicas. O relato desta cura é extenso, e ainda temum comentário. Chegamos à terapêutica. A bela viúvanão se “safou” da sangria, mas Amato é sábio epretende o tratamento completo dos seus doentes.E diz-nos: “Mas como isto (a sangria) poucoajudasse, aconselhei-a a casar, pois lá diz Galenono Livro 6, De locis affectis cap. V, que Vénus ésaudável para tais viúvas”. Maravilhoso!

Regressámos a Amato atraídos por uma forçamuito viva e que se revigoraquando se entende a culturamédica arquitectada dentro dorigor dos conhecimentos, exigí-veis pelos próprios fundamen-tos provenientes das ciênciasexactas, mas elevada a umplano superior pelo seu destino.É ao homem, o ser maiscomplexo da “criação”, quandoa “desordem” se abate sobre oseu ser, tantas vezes sob apressão de influências externasprofundamente pertubadoras,que engendram complexidadesinauditas, que a medicina sedestina.

Os dois aspectos destacultura, que é por um ladopragmática, isto é, orientadapara anular o sofrimento doscorpos e dos espíritos, e poroutro lado partícipe de formainsubstituível na génese do

conhecimento pleno do homem, não têm sido sempreacarinhados com o mesmo vigor. Pensamos mesmoque hoje a vertente humanista do ensino e da práticamédicas está atingida de uma desvalorização que,embora usando as vestes da “perfeição”, não deixade ser desajustada. Citamos novamente GeorgeGusdorf(6), quando conta que aos decanos dasFaculdades de Medicina e Ciências de Paris, em1964, preocupados com o ensino da matemática“indispensável” no curso de medicina, os alunosinquiridos a propósito, responderam: “Talvez. Mastinham sim a certeza de que o conhecimento dohomem era seguramente primordial” e lamentavamque ele fosse tão mal tratado no plano dos estudos eos doutos responsáveis não manifestassem por issopelo menos alguma inquietação. Na verdade, ohomem “preso” à sua condição, talvez perturbemuitos “sábios”, assustados pelo polimorfismo dasreacções humanas, que podem ser imprevisíveis, écerto, mas que lhe pertencem e ao configurar a suarealidade dramática constituem também o maiselevado capital de riqueza.

Alguns actuam como se esses comportamentos e

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formas de reagir não fizessem parte integrante dosinteresses da actuação médica.

E as coisas agravam-se, em temposprofundamente marcados pela miragem acutilantedo tecnicismo e do cientismo, provocando reacçõesde “pureza” tão exarcebada, que levanta clamorescontra a “corrupção” por excrescências, porventurabanalidades e sempre coisas exteriores queprofanam um espaço sagrado e exclusivo.

Perante tal “violência” foi bom lembrarmos Amato,ler estas exemplares curas, descortinar-lhes a ciênciae perscrutar a sabedoria que permaneceesclarecedora e dentro das margens que definemos deveres inalteráveis dos médicos.

NOTAS

1 - Utilizámos a tradução das CurationumMedicinaflum Centuriae Septem (Sete Centúrias dasCuras Médicas) existentes. As três primeirasCentúrias foram traduzidas por José Lopes Dias eFirmino Crespo. A tradução das outras quatroCentúrias, devida apenas a este último autor,apareceu a público já depois da morte do ilustremédico sibicastrense. Existe actualmente uma ediçãoconjunta da Sete Centúrias de Curas Médicas, emquatro volumes, levada a cabo pela Faculdade deCiências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.Será desejável tanto uma nova edição critica assimcomo a tradução da restante obra de Amato. Paraquando ?!

2 - Gusdorf, George, Da História das Ciências àHistória do Pensamento, Lisboa, Pensamento, 1988,p. 339.

3 - Ibid.4 - Vejamos outras localizações:- “Dores intensas na região ilíaca por toda aquela

parte que costuma ser cingida por vestuário”, numamulher “atacada de corrimento” (c 16 - VI C.)

- “Dores e grande quentura sentida na boca doestômago”, num doente com vómito de sangue (c20 - VI C.);

- “Peso na cabeça”, num doente com morbo gálico(c 25 -VI C.);

- Variadíssimas referências a outros casos de dorde cabeça (c 4 - IC.; 4, 7, 63 III C.; c 99 - IV C.; c 7, 8,50, 68, 88 - VII C.);

- “Hemicrania” (c 36 - III C.);- “Dor de Barriga” (c 39 - IV C.);- “Dores nos intestinos” (c 28 - IV C.);- “Cólica intestinal” (e. 2, 5, 32, 33 - I C.; c.12, 30 -

III C.; c. 39, 45 - IV C.; e. 44 - V C.; c. 57 - VI C.; c 21,22, 93, 97 - Vil C.);

- “Dor de ouvidos” (c 92 - VII C.);- “Dor nos olhos” (c 49 - IV C.);- “Dor de garganta” (c 34 -111 C.);- “Dor de dentes” (c 91- IV C.; c 21 - V C.);- “Dor no tórax” (c 67 -IV C.);- “Dor nas costas, na direcção da espinha” (c 8 - III

C.);- “Dor na mama esquerda que corresponde até à

clavícula” (c 69 - III C.);- “Dor de mamas” (c 38 - VI C.);- “Dor dos seios” (c 19 - VII C.);- “Dor no coração” (c 62 - VI C.);- “Dor em volta do umbigo” (c 30 -111 C.);- “Dor nos rins” (c 87 - III C.);5- Fulop-Miller, René, O Triunfo sobre a dor, História

da Anestesia, Rio deJaneim José Olimpio Editora,1946.

6 - Ibid, id, p.9.

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RABACINAS - UMA COMUNIDADE PERANTE A MORTE

Por Francisco Henriques, Jorge Gouveia e João Caninas

1.“Rabacinas é uma pequena comunidade doconcelho de Proença-a-Nova, freguesia de Montesda Senhora.

Está implantada na vertente poente da serra dasTalhadas e, morfologicamente, o seu território é degrande irregularidade, com cotas que variam entreos 220 (ribeiro de Rabacinas) e os 471 metros (senadas Talhadas).

Era, e é uma comunidade com práticas agrícolasde subsistência, levadas a cabo em socalcos daserra-onde a água abunda-até ao Ribeiro.

Era uma comunidade pobre que obrigava aemigrações sazonais de mão-de-obra, para a ceifano Alentejo e para a colha da azeitona e outros

trabalhos agrícolas, na área deRodão Mais recentemente(década de 40/50 )surgiu umfluxo migratório para a área deLisboa.

Do ponto de vista demográ-fico, a evolução desde o iníciodo século tem sido a seguinte:

O número de habitantes foiobtido a partir do censo dos

respectivos anos. O número relativo a 1991 foi obtidopor telefonema para a Câmara Municipal de Proença--a-Nova, ainda que nos pareça diminuto pelo queconhecemos da aldeia.

Nunca existiu igreja na povoação.2. A quase totalidade do material que constitui este

trabalho, foi recolhida em 1986 e 1987.Pretendíamos, então,complementar (ainda que

num escrito independente) o trabalho “1819-1846óbitos da Freguesia de Vila Velha de Rodão”, com avertente etnográfica para a área vizinha. Acabámospor não o elaborar.

Para este trabalho houve uma releitura ereordenamento do material já recolhido e, depois decompleto, uma nova visita à comunidade visada paraconfirmação de todos os elementos e, porventura, oacrescento de outros novos. As fontes foram váriaspessoas, de ambos os sexos e quase todas com mais

de sete décadas de vida.O trabalho descritivo que agora nos propomos

apresentar, não é um contributo isolado, faz parte deum projecto mais vasto de inventariação dopatrimónio cultural deste e de outros concelhos, noAlto Tejo Português.

Desde 1988 que vêm sendo divulgados osprimeiros trabalhos temático (Contos Populares,1988; Medicina Popular, 1990; e Poesia Popular,1991) e outros se preparam como o Vocabulário eExpressões e a Gastronomia.

As primeiras contribuições já divulgadas nãoesgotam o tema, pelo menos assim o desejamos. Ocaso dos Contos Populares é um exemplo disso, comuma segunda contribuição já em preparação.

3. Como é uma primeira abordagem, não entramosem questões interpretativas.Isso exigia umconhecimento ainda mais profundo da comunidade.Não deixamos, no entanto, de tecer algunscomentários que nos parecem pertinentes. Assim:

- Salientamos o importante papel desempenhadopelo vizinho mais próximo.

- É curioso verificar, tal como já o unhamos feitopara a doença na Medicina Popular, também a morteé vivida socialmente; havendo uma nítida reacçãodo gripo para com o morto e família enlutada.

- O forte espírito de entreajuda da comunidade,verificável em toda a sua prática. Aliás, somosmesmo de opinião que esta comunidade conseguiuresistir ao tempo pelo elevado espírito de grupo quesoube conservar.

Para fechar esta nota introdutória acrescentamosque quase nada do que aqui e agora trazemos semantém.

Seguidamente, passamos a descrever asdiferentes “fases” da morte em Rabacinas.

O moribundo

Quando alguém estava moribundo chamava-se opadre para o confessar e administrar a extrema--unção.

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O morto

Quando uma pessoa morria, a primeira coisa quese fazia era chamar o vizinho “de mais perto da porta”e informá-lo da ocorrência. Este tinha a função decircular pelo povo avisando a comunidade da mortede um dos seus elementos e, simultáneamente, darconhecimento do evento ao padre da freguesia(Montes da Senhora).

PreparaçãoDepois de lavar e barbear (se era homem) o morto,

vestiam-lhe a roupa melhor que tinha, a qual estava,geralmente, bem guardada e preparada para aquelaocasião, mesmo que a morte chegasse de surpresa.Se a “roupa melhor” não existia, ou não estavadisponível, vestiam-lhe qualquer muda de roupadesde que estivesse limpa.

Ao vizinho mais próximo estava, geralmente,entregue a função de lavar e vestir o morto. Dizemos“geralmente” porque, algumas vezes, recorria-se aoserviço de uma mulher, que habitualmente tambémfazia este serviço. A barba era feita por um homem.Para os homens a mortalha era constituída por: umpar de sapatos ou botas; umas ceroulas e umascalças; uma camisa e um casaco; um lençol para ocobrir. Para as mulheres era constituída por: umcolete; um par de sapatos e meias; uma saia e umablusa; um casaco (nem sempre); um lençol para acobrir. A mortalha era preparada quando se estavadoente havendo, entretanto, pessoas que apreparavam com muitos anos de antecedência.

Na generalidade dos casos, as duas únicaspreocupações existentes com a mortalha eraseleccionar a melhor roupa e não incluir indumentáriade cor negra.

Depois de preparado, e durante o velório, o mortoestava na cama e só passava para o esquife nomomento de sair para o cemitério.Enquanto estava na cama eratotalmente coberto com um lençol,ou com uma colcha branca.

VelórioEm Rabacinas, quando morria

uma pessoa, os familiares do mortodessa casa não faziam comida.Esta era confeccionada pelosvizinhos que a levavam à casa dosfamiliares que residiam com omorto. A ementa era constituída por ovos fritos, sopasde ovo ou batatas com bacalhau. Estava estriramenteproibido, durante um dia, a ingestão de carne porquediziam que “quem dá carne para a terra, não devecomer carne”.

Em comunidades vizinhas (Bairrada), estaproibição alargava-se para três dias alegando-se que

seria comida a carne do morto. Devido à configuraçãoarquitectónica das casas (o quarto era do tamalhoda cama), as pessoas tinham que estar na sala ouna cozinha enquanto velavam o morto. Este, comojá dissemos, estava na cama, no quarto.

Cada pessoa que chegava ao velório traziaconsigo, na generalidade dos casos, uma manta parase deitar e/ou embrulhar e, algumas vezes, umaalmofada para se sentar ou mesmo deitar. Aspessoas presentes sentavam-se no chão encostadasà parede. Era frequente deixarem-se dormir. Não erararo, enquanto dormia, que algum dos participantesno velório deixasse escapar um peido, o que davaazo a uma risada geral.

Participava no velório um elemento de cada casa,geralmente era uma mulher. O homem, quandomuito, passava fugazmente pelo local, se era famil-iar chegado. Esta mantinha-se a velá-lo durante todaa noite indo, entretanto, conversando (de temáticadiversificada, nalgumas casas, noutras quase nãose falava)domvndo e rezando o terço pela alma domorto.

Era costume ter junto do morto uma taça com águabenta, que iam buscar à igreja. Assim, cada pessoaque chegava, depois de rezar um Padre Nossoaspergia o morto, com um ramo de oliveira, nacabeça, nos pés e na barriga. Outras, preferiam fazeruma cruz sobre ele. Cada indivíduo levava consigouma candeia de azeite que era dependurada nocompartimento do morto. Com frequência eranecessário colocar um fio, de um a outro lado doquarto, para dependurar todas as candeias. A casaacabava por ficar com um cheiro nauseabundoprovocado pelo fumo.

O esquife estava no lagar, ninguém o queria emcasa. E quando se começou a usar o caixãoaconteceu deitarem-no ribeiro abaixo.

Muitas vezes, devido à estrutura arquitectónica dascasas, nãoconseguiamlevar o esquifejunto do morto.Então, traziamo morto, desta-pado, em bra-ços, para forade casa, comum homem àfrente e outroatrás. No

momento da saída do morto, era distribuído pelosinocentes (crianças até sete anos) uma fatia de pão“seco”. Diziam que era a primeira oferenda pela almado morto. Não deixavam estar as crianças ao pé dosmortos. Deste modo, quando havia mortos em casa,as crianças íam para as casas de vizinhos ou defamiliares.

É curioso verificar, tal como já otinhamos feito para a doença naMedicina Popular, também a morte évivida socialmente; havendo uma nitidareacção do grupo para com o morto efamília enlutada

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EnterroEm Rabacinas não havia cemitério. Os mortos

tinham que ser transportados, em ombros, paraMontes da Senhora, que dista cerca de 5 quilómetrosde Rabacinas, por caminhos na altura poucopraticáveis. Neste percurso havia 5 “pousos”, emlocais pré-determinados (centro de Rabacinas, altoda Portela, cimo do Casteleiro, Alminhas do Chãode Galego e alto dos Montes da Senhora), ondedescansavam. Não havia reza em coro. O padre,residindo nos Montes da Senhora, não acompanhavaestes funerais, nem levavam qualquer cruz na cabeçado cortejo.

Nos enterros, há algumas décadas atrás, só oshomens acompanhavam os mortos no percursoreferido. Era obrigação de cada família enviar umelemento a acompanhar o morto. Se por qualquermotivo não o podiam fazer, pagavam uma jorna (valorde um dia de trabalho) ao vizinho mais perto da portapara representar a família. A família “mais chegada”(ascendente/descendente) não participava no fu-neral.

Era também hábito que, enquanto o enterropassasse em frente de uma casa, todos os seusocupantes sentados e mesmo doentes acamados,deviam colocar-se de pé. Diziam que «não era bom»ficar sentado ou deitado. Os homens, mesmo dentrode casa, deviam descobrir-se, ou seja, tirar o chapéu.E, se qualquer homem se cruzasse com oacompanhamento, na rua, devia postar-se de um ououtro lado da via, tirar o chapéu e mesmo rezar umpadre-nosso (nem sempre) como sinal de respeito.

Dissemos atrás que só os homens acompanhavamos mortos. Mas, nem todos os homens da aldeia.Esta estava dividida em duas partes (a de cima e ade baixo), sendo o fomo a linha divisória. Deste modo,quando morria um habitante da parte de cima, sóera acompanhado por homens da parte de cima. Seo elemento morto era da parte de baixo da povoação,só era acompanhado pelos homens da parte debaixo. Este sistema durou enquanto se usou esquife,desapareceu com a introdução do caixão.

Nos Montes da Senhora, depois do funeral feito, odinheiro recebido do acto de representar os vizinhosera gasto em vinho.

Assim, era natural que os homens regressassemsempre bêbedos. De regresso, como nem semprevinham juntos, ninguém queria trazer o esquife.

Pela morte de um anjo (crianças com menos desete anos) os homens não participavam no funeral.O “anjo” era acompanhado por outras crianças epelas raparigas solteiras da povoação, sendotransportado para o cemitério dentro de um tabuleiro.Sistema de quotização

O sistema de quotização que abaixo descrevemosfoi apenas introduzido com o aparecimento do caixão(há cerca de 40 anos) porque, ao contrário do esquife,

este exigia custos significativos (materiais e mão-de-obra). O caixão era feito pelos carpinteiros daaldeia. Assim, sempre que uma pessoa morria eracostume, nesta ‘’ comunidade, fazer-se umaquotização por todas as famílias para ajudar nasdespesas do enterro. 0 vizinho mais próximo era oresponsável pela colecta. Este sistema estendia-semesmo para além dos limites geográficos dapovoação. Assim, qualquer pessoa dali natural queresidisse em comunidades vizinhas continuava,geralmente, a págar a respectiva quotização e,simultaneamente, via-se abrangido pelo mesmosistema, em caso de morte no seu agregado famil-iar. Neste caso, o vizinho mais próximo da casa emque residira encarregava-se da colecta que faziachegar ao seu destinário.

É natural que o valor da quotização tenha variadomuito ao longo do tempo. Há cerca de 35 anos erade cerca 1$00 por pessoa. A contribuição era igualpara crianças (anjo) e adultos e não se tinha em contaa situação sócio-económica do contribuinte.

LutoO Luto é um conjunto de manifestações de pesar

que abrange a generalidade dos familiares maispróximos de um indivíduo que morreu, durante umdeterminado período de tempo. Depois de tentarmosdefinir o luto, pareceu-nos útil tomar idêntica atitudepara algumas expressões com ele directamenterelacionadas. Assim:

Andar de luto carregado: período do luto aindamuito próximo do acontecimento f inebre que lhe deuorigem. Nesta situação, a mulher veste sempre depreto e cobre a cabeça com lenço e xaile da mesmacor. O homem veste camisa preta, sob casaco e usachapéu. Só por um parente muito próximo se põeluto carregado.

Andar de luto ou andar de preto: diz-se de pessoaque está perante uma situação de luto por morte dequalquer familiar. Veste sempre de preto e pode ounão cobrir a cabeça com um lenço (preto). O homempode usar qualquer identificação.

Andar de roxo ou aliviar luto: fase de transição en-tre o luto e a gala. Nesta situação, a pessoa não podeutilizar indumentária de cores alegres.As cores maisusadas são o branco, o preto, o azul escuro e ocinzento.

Andar de gala: diz-se de pessoa que não está sobqualquer situação de luto.Pode vestir, por isso, todasas cores. Punha-se luto independentemente dosentimento que se sentia pelo morto. Aliás, o luto,em grande número de casos, pareceu-nos ser maispara consumo externo que interno. E como se poderáverificar atinge muito mais as mulheres que oshomens.

No quadro I expomos os tempos de luto minimos.Isso não impedia, entretanto, que fossem

Desde 1988que vêm

sendodivulgados os

primeirostrabalhostemáticos(Contos

Populares1988,

MedicinaPopular

1990 e PoesiaPopular 1991)

e outros sepreparamcomo o

Vocabulário eExpressões e

aGastronomia.

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ultrapassados ou ficassem aquém.Se ficavam aquém, imediatamente se levantava a

voz crítica da população. Se alguém casava antes

do tempo socialmente prescrito, ouviam-se deimediato os comentários: “nem sequer lhe guardavarespeito”ou”olha o respeito que lhe guardava”.

Aspectos gerais do lutoUmas das primeiras manifestações de pesar era o

encerramento das janelas da residência do morto.Acontecia de imediato, logoque a pessoa expirasse eabriam-nas um dia depois deser sepultado.

Se o morto era o pai, a mãeou qualquer filho com mais desete anos deixava de se limpara casa. A proibição apenasabrangia as grandes limpezas,tal como caiar, e não aspequenas limpezas.

Nas épocas festivas (Natal ePáscoa) não estavam indi-cadas reuniões de familiares,refeições melhoradas e doça-ria própria da ocasião. Parasuprir esta situação, vizinhos efamiliares davam à famíliaenlutada a doçaria (bolos) queesta não podia fazer. Estaproibição era variável conso-ante o grau de parentesco dofamiliar morto; para os paren-tes mais próximos duravacerca de um ou dois anos. Nocaso de luto pelo marido, aviúva, geralmente, nunca maisa fazia. Quem estava de lutonão devia ir para festas, bailes,etc. Em suma, não devia extro-verter os seus sentimentos dealegria.

Vestígios do lutona aparência física e na

indumentáriaNos homens: camisa preta,

casaco vestido, chapéu nacabeça e deixar de se barbear(atitude de um filho pela mortedo pai - procedimento nemsempre verificável). Lutocarregado; fita preta na gola docasaco; fita preta no braço docasaco; fita preta no chapéu,se era castanho.

Nas mulheres: todasvestidas de preto com xaile elenço pela cabeça. (lutocarregado); todas vestidas de

preto com o lenço pela cabeça; vestidas de preto,sem lenço e sem xaile; brincos das orelhas forradosde pano preto.

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HENRIQUES, Francisco e João Caninas, Maria dosAnjos Henriques e Maria do Céu Duarte, MedicinaPopular dos Cortilhões e dos Plingacheiros,Preservação 9-11, pp.35-85, Vila Velha de Rodão,1990.

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A MORTE NO ALCAIDE, UMA ALDEIA DA GARDUNHA-ATITUDES E RITUAIS

Por Albano Mendes de Matos

O tema da morte é um dos discursos maissignificativos que o homem pode produzir. Osaspectos visíveis da morte exteriorizam-se porcerimoniais públicos, vividos colectiva mente, empráticas e rituais fúnebres, sociais e religiosos,fundamen-tados em atitudes e mentalidades.

Embora com disfarces e tabus, há actualmentevárias abordagens sobre a morte, sejam literárias,cientificas, religiosas, profanas ou mesmo de sensocomum, que orientam o homem para as suasrealidades efémeras, fazendo-o tomar consciênciado seu ser.

Mercê de uma pesquisa empírica efectuada naaldeia do Alcaide, na serra da Gardunha, verificámosa existência de atitudes diferentes perante a morte,consoante os grupos etários. Os mais velhos têmum comportamento mais próximo da morte, não pelaidade, mas pelas atitudes, percepcionando-a comoum facto próximo do quotidiano familiar, desejandoterminar em casa, mediante uma boa morte, semsofrimento, o que corresponde à morte domesticada,na acepção de Philipe Ariès (1988:20).

Os mais novos têm outra atitude, quer perante afamiliaridade com a morte, que pretendem ignorar,quer nos rituais de margem, como o luto, que tentamabreviar.

O alcaidense tradicional deseja acabar os últimosmomentos em sua casa, entre os seus vivos e osseus mortos.

Uma mulher viúva, encontrando-se em Lisboa esentindo aproximar-se a morte, pediu para atransportarem para a sua casa, no Alcaide, paramorrer na sua terra, com uma boa morte.

Já deitada na cama, em sua casa, exclamou:- Agora, já posso morrer!- pedindo um padre, para

a confessar e dar-lhe a comunhão.No dia seguinte, morreu em paz, serena, dei:;arrdo

de respirar lentamente.Segundo o conceito local, esta foi uma boa morte,

ou seja, uma morte não violenta, no lar, próximo dosfamiliares, natural, sem sofrimento, na graça deDeus.

O que preocupava esta mulher alcaidense eramorrer fora da sua aldeia, entendida, assim, comouma má morte, porque a sua alma podia nãoencontrar o caminho dos seus familiares econterrâneos e perder-se.

Robert Fulton (1977:278) refere que a maioria daspessoas, que sabem que estão a morrer, dizempreferir morrer em suas casas, rodeadas pela família.Para aquela mulher, era um perigo morrer fora dacomunidade de origem. Ela encontrava-se numaatitude foral de angústia, como situação-limite desalvação. No imaginário tradicional, a sua almapoderia não seguir o caminho normal dosantepassados e transviar-se.

O homem rural tradicional, vivendo num mundo deprivações, acredita numa vida extra-terrena de bem-estar, ou de sofrimento por expiação dos pecados,num sentimento de religiosidade que o envolve desdea nascença.

Segundo o pensamento escatológico da IgrejaCatólica, a alma pode alcançar, segundo ocomportamento de cada indivíduo, três esferas: duaseternas, o Céu, onde entra em felicidade, pelasalvação, ou o Inferno, onde a alma, morta para afelicidade, pelo pecado, vive no fogo da maldiçãoeterna, em todo o tempo; a terceira, o Purgatório,uma invenção do Concílio de Trento (Vovelle,1974:126), onde as almas, que nele entram, passamalgum tempo de expiação dos pecados, entrechamas purificatórias, para subirem ao Céu.

Representações iconográficas, que traduzem asimbologia dos destinos da alma, segundo a visãocristã, foram constantes até aos princípios desteséculo, e estão presentes na Bandeira das Almas,que acompanha os enterros no Alcaide. De um lado,as almas, em imagens humanas nuas, como no In-ferno de Dante, sofrem o fogo purificador, em esgaresde angústia: do outro, as almas serenas, sorridentes,gozam as delícias do Paraíso.

O quotidiano da comunidade alcaidense fornece,ainda hoje, apesar da progressiva desftualização,formas tradicionais de práticas e de atitudes perante

O homemrural

tradicional,vivendo num

mundo deprivações,

acreditanuma vida

extra-terrenade bem-

catar, ou desofrimento

por expiaçãodos peados,

numsentimento

derefigiosidade

que oenvolvedesde a

nascença.

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a morte. Num tempo em que a oralidade da literaturatradicional se perde para as novas gerações, muitosalcaidenses continuam a recitar as composiçõesaprendidas com os avós, numa enculturação deexpressiva religiosidade popular, mesmo em face dasmodernas vivências e da mudança cultural queenvolve a aldeia.

Nas seguintes composições, que os mais velhosainda rezam, manifesta-se o desejo de sair destemundo por uma morte sem atribulações, por umaboa morte.

Diz a quadra:

Sete tochas tem a casa,Sete achas estão a arder,Sete anjos me acompanhemE mais a quem morrer!

Refere a sextilha:

Nesta cama me deitei,Para dormir e descansar;Se a morte vier,Ela me deixe falar,Para o meu corpo confessar,E a minha alma salvar!

A quadra e a sextilha são recitadas junto da cama,antes de deitar. São composições da poesia religiosatradicional que têm a finalidade de exconjurar a morte,ou o rito verbal da expulsão, porque a morte podesurgir em qualquer momento.

A forma anafórica da quadra, em que o númerosete, o número simbólico da criação e da perfeição,é repetido, toma aspectos encantatórios para afastara morte, mas, se ela surgir, que venha na graça deDeus, para uma subida ao Céu, simbolizado pelosanjos.

A segunda composição, sem o simbolismo daprimeira, expressa dois pedidos: um, a passagemde uma noite descansada, o outro, uma boa morte,se o falecimento acontecer. Expressa, ainda, o receiode uma morte sem confissão, sem o perdão dospecados, necessária para a salvação da alma.

É evidente o dualismo entre a substância-corpo,que intervém na prática individual e social, enquantoindivíduo ou pessoa, e a alma, substância incorpórea,que é necessário salvar, perante o juízo final da vida,após a separação do corpo, na consumação damorte.

A morte violenta, por acidente, ou inesperada, porqualquer outro motivo, é muito temida na aldeia e amais sentida pela comunidade, sendo conotada coma má morte.

A má morte também se verifica quando ummoribundo está em agonia dolorosa, gemendo egritando (urrando, dizem alguns), como castigo pelas

maldades que fez e pelos pecados que cometeu,sendo uma forma terrena de os expiar, segundo avisão do mundo e a crença nos meios ruraistradicionais.

No caso de morte violenta, em tempos passados,era costume erguer uma cruz no lugar da morte, paraque a alma do morto, especialmente se o falecimentofosse provocado por homicídio, não ficasse errante,penada, a perturbar o homicida ou a família deste,desviando-se do caminho normal, após a separaçãodo corpo.

Existe, à entrada do Alcaide, pelo lado do Nascente,uma cruz, que assinala a morte violenta de umalcaidense, ocorrida no século passado. Até meadosdeste século, familiares do falecido iam mantendo acruz, que era de madeira. Com o desaparecimentodos familiares, perdida a identidade do morto a quea cruz se refere, o que normalmente acontece comos trinetos, a cruz deixou de designar o indivíduo epassou a representar a totalidade dos alcaidensesfalecidos. Na década de cinquenta, a cruz de madeiraapodrecida foi substituída por uma cruz de granito,material eterno, e passou a designar-se por Cruz dasAlmas, o que originou mais um topónimo: O Lugarou Sítio da Cruz das Almas.

A memória de um indivíduo, materializada na cruz,foi transformada, com o decorrer do tempo, em localde culto dos mortos, assinalado pela mesma cruz.Muitos alcaidenses, sempre os mais velhos eespecialmente as mulheres, benzem-se, soletramuma reza, ou dizem uma simples jaculatória, aopassarem por estacruz. Manifestaçãogestual, a benção, emanifestação oral, areza, ambas se in-cluem nos ritos deproteção contra a mámorte, que a cruzindica, ao mesmotempo que são mani-festações do culto dosmortos .

Podemos afirmarque houve uma apro-priação social de umfacto individual, com ainclusão da cruz noslugares sagrados daaldeia.

Para além da práticaquotidiana aldeã, há oslugares sagrados, que se relacionam com o outromundo, o mundo dos antepassados, semprelembrados e venerados pelos familiares e pelacomunidade em geral. Há dois mundos que secompletam, no universo da aldeia: o mundo social

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dos vivos e o mundo espiritual dos mortos. Este últimorelaciona-se com os espaços sagrados, como foireferido, e nele permanece a memória dos falecidos.A deposição do corpo de um morto, rito de separaçãoda terra e de integração no outro mundo, é feita naterra sagrada do cemitério. A relação com os mortosé uma relação sacralizada, quer através de rezas ede orações individuais, quer por práticas ouencomendações colectivas da religiosidade popular,ou por actos e exéquias da liturgia oficial.

O mundo dos mortos é sagrado. Na terra docemitério, são colocados os finados e nela fica aúltima memória física de um familiar ou de umconterrâneo. Até ao terceiro quartel do séculopassado, ainda eram feitos alguns enterramentos noAdro da Igreja, que também é terra sagrada. Algumaslápides, com inscrições mortuárias, lembram o facto.

Em 1988, para alargamento da rua, foi sacrificadauma faixa de terra, aolongo do Adro. O factoprovocou conflitos entrealcaidences, pois, al-guns consideraram serprofanação de um lugarsagrado. As terrasforam retiradas, segun-do testemunhas, aindacom vestígios humanos,e colocadas num cami-nho. Algumas pessoastinham relutância empassar nesse caminho,pois iriam pisar terra sa-grada, que envolvera antepassados e deles eramemória.

Durante a pneumónica, doença que vitimou muitaspessoas em 1918, alguns alcaidenses foraminumados no Adro da Capela de Santo António, porfalta de lugares no cemitério de São Francisco, poiso cemitério novo fora construído em 1929.Encontra-se no Adro de Santo António, uma amoreirada qual os alcaidenses

não colhem frutos, por se encontrar em terra sa-grada, que foi sepultura de antepassados.

O Viático e a Extrema-Unção, ministrados aosenfermos em perigo de vida, rito liminar de grandereligiosidade e tristeza, indiciando que uma alma vaiabandonar a comunidade, deixou de ter a solenidadevisível de outros tempos, com o toque plangente dossinos, em badaladas graves, compassadas, fortes eprolongadas, e a procissão em que se incorporavamespontaneamente muitas pessoas, com as portas dacasa do enfermo abertas ao povo, porque a morte éuma perda não só para a família, mas também paraa sociedade. O quarto do moribundo era um lugarpúblico, como refere Ariès (1988:24).

Dizem os Estatutos da Irmandade do Santíssimo

A morteviolenta,

poracidente,

ouinesperada,

porqualquer

outromotivo,é muito

temida naaldeia e a

maissentida

pelacomunidade,

sendoconotadacom a má

morte

Sacramento, do Alcaide, que engloba a Irmandadedas Almas, aprovados pelo Juiz da Comarca doFundão, em 1817:

«Havendo de ir o Viático a algum enfermo, e feitopelo Sacristão o Sinal com os Sinos, acudirãoimediatamente todos os Irmãons q’estiverem na terra,estando tudo disposto sahirá a procissão pelaseguinte ordem. Adiante irá o andador com aCampainha; logo o Thesoureiro co a Cruz, entre doiscereais, ou Lanternas, que serão levadas por doisMordomos; depois seguir-se-há a Corporação daIrmandade com suas Vestes e Tochas da Irmandade,e no fim de cada uma das alas da Irmandade, irá dolado esquerdo o Procurador com huma toalha, e aCaldeirinha de agoa benta, e do direito o Secretárioq’levará o Troneto. As varas do Pálio, e as lanternasas levarão aqueles irmãons, que forem eleitos cadamez e se algum dos Irmãons, aquele que pertencer

levar alguma insíg-nia não compare-cer, será multadoem 100 réis; e oJuiz chamará humque faça as suasvezes; e os Ir-mãons, que estive-rem na terra, e nãoc o m p a r e c e r e mserão multados em50 réis, e o Juizgovernará com asua Vara esta etodas as procissões

em que sahir a Irmandade».Este rito de levar o Senhor aos enfermos, rito

preliminar activo, tido na classificação de Van Gennep(1978:31-32) como rito de purificação, que coloca omoribundo num estado de pureza, perdeu, nasúltimas décadas, o cerimonial e a solenidadepreconizados pelos referidos Estatutos, elaboradosquase há dois séculos, que ainda regem asactividades da Irmandade.

Outro aspecto dos ritos funerários que mudou naaldeia, foi o lugar do velório do corpo dos falecidos.Desde 1977, com a resistência de algumas famílias,que querem os seus mortos em casa, segundo anorma tradicional, os velórios, como período demargem (Van Gennep, 1978:128), nos ritosfunerários, passaram a realizar-se na capela de SãoSebastião. Como diz Philipe Ariès (1988:153), a mortee os ritos funerários estão a deixar de serdomesticados.

Com a mudança do local de vela dos defuntos,diminuiu a intensidade do pranto ou choro dosparentes, porque, com o morto em casa, o velórioprocessava-se no ambiente familiar e era maissentido. Na capela, se um familiar começa o pranto

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tradicional é advertido, por vezes, de que já não seusa.

O choro ou o pranto efectuado por mulherescontratadas para o efeito, as carpideiras ouchoradeiras, terminou no primeiro quartel desteséculo, continuando a ser feito pelos familiares dofinado. Este acto expressivo de dor, choro,lamentação ou pranto, é comum a vários povos, eficou registado na literatura tradicional, como noseguinte apontamento recolhido no Alcaide, que, emtom jocoso, refere a memória das carpideiras deoutras épocas.

Morreu o homem de uma mulher muito amiga dedançar. Com o marido morto, no velório, a mulhercontratou uma carpideira para fazer o choro,prometendo-lhe um saco de pão (centeio em grão).Enquanto esta ficou a carpir, junto do morto, a viúvafoi para uma dança.

Lamentava, em pranto, a choradeira:

A chorar penas,Ai, eu! Ai, eu!Por um homemQue não é meu.

Prometeu-meum saco de pãoNão sei se mo dá,Se dará ou não

Cantava a viúva, na dança, aos pinotes:

Há-de ser cheio,Bem recalcadoE ainda no cimoMais um punhado!

Um dos momentos altos do pranto, momento cru-cial para a família em dor, é a saída do morto de suacasa. É uma partida final dramática, correspondendoa um rito de separação, segundo Van Gennep(1978:138), em que os doridos soltam os últimoslamentos, com o falecido à vista do lar que o perdeu.Com o velório na capela de São Sebastião, o rito deseparação do lar perdeu a sua força, porque o caixãocom o defunto sai de casa discretamente.

Nos anos sesssenta, foi adquirida, pela Liga dosAmigos do Alcaide, uma carreta para transporte docaixão, nos enterros. Poucas vezes serviu, porquefugia do tradicionalismo, com os homens, familiaresou amigos, revezando-se a pegar no caixão, e, ainda,porque a carreta era própria para o transporte decoisas, não de pessoas, pois, como refere RobertHertz (1970:1), o corpo de um defunto não é ocadáver de qualquer animal, exige respeito e impõedeveres familiares e sociais.

Se há uma preocupação com o corpo dos falecidos,

que exige cuidados especiais de toilleie, para que separeça o menos possível com um cadáver, maior éa preocupação com o destino da alma, no espaçode tempo entre a morte e o enterro, facto que estáem contradição com a norma da Igreja Católica, quediz ser a alma libertada do corpo, logo após a morte,e submetida do juízo final da vida, sendo-lheimediatamente decretado o destino, consoante asobras praticadas na terra.

Apesar desta evidência do destino da alma,segundo a Igreja Católica, em que a alma, ao separar-se do corpo, entra no Céu, no Purgatório ou no In-ferno, mantêm-se, no Alcaide, os ritos deencaminhamento da alma, durante

o enterro, mesmo que inconscientemente, para quea alma não se afaste do corpo, na viagem para ocemitério, ficando penada ou errante ou vá perturbarpessoas, especialmente os enfermos, ao longo docaminho. São ritos ancestrais que se entrecruzamcom a prática religiosa oficial. O enterro pára nasproximidades de cinco encruzilhadas de ruas ecaminhos, desde a Igreja ao cemitério, onde sãorezados ofícios de encomendação, para que a almanão se desvie pelos caminhos transversais,perdendo-se.

À passagem do enterro, todas as portas que dãopara a rua devem ser fechadas, para que a alma dodefunto não entre e se perca, ou vá atormentar algumdoente e lhe induza uma morte próxima. Estes ritosou crenças perdem-se na tradição dos tempos, mastêm passado de geração em geração.

Nos últimos anos, com o transporte do féretro, emalguns enterros, em viatura funerária, os rituaisdeixaram de ser seguidos, não parando oacompanhamento nas encruzilhadas, nem o rapazda campainha o anunciou, tocando-a de três em trêspassos, segundo a tradição.

Alguns ritos e atitudes perante a morte estão emmudança ou a desaparecer. Ritos que, como refereJonh Riley (1975:281), sancionam a separação dapessoa morta dos que continuam a viver e facilitama transição da alma ao reino do outro mundo, comincorporação à sua nova existência.

O luto é um estado de margem para ossobreviventes, no qual, segundo Van Gennep(1978:127), se entra por ritos de separação, como ovelório, o pranto final, não cortar a barba, a mudançade vestuário, etc. Durante o luto, os vivos e o seumorto constituem uma sociedade especial, situadaentre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, daqual os vivos saem mais ou menos rapidamente,conforme o grau de parentesco com o finado (VanGennep, 1978:127). O luto pára a vida social normalpara todos os que por ele são atingidos, que nãopodem tomar parte em festas, ouvir música, dançar,preparar alimentos festivos, entre outras proibições.Sai-se do luto, por ritos de suspensão das proibições,

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em que são visíveis as mudanças de vestuário e docomportamento social, considerados ritos dereintegração social.

Actualmente, estes ritos de luto estão em francoabrandamento, especialmente nas gerações maisjovens, mercê de mudança de mentalidades e deruptura com a tradição, com tendência para odesaparecimento, em alguns aspectos, comdesritualização das manifestações visíveis da morte,ou invisibilidade social da morte, escondendo-a, comorefere Philipe Ariès (1988:57).

O cemitério funciona como uma segunda aldeia, aaldeia dos mortos, onde se destacam a estratificaçãosocial e o poder económico das famílias, que semanifestam nas campas de terra, nas sepulturas demármore e nos jazigos, reproduzindo a aldeia socialdos vivos. Este facto da desigualdade no local deenterramento, fenómeno de todos os tempos, estápatente na Igreja Matriz, no respectivo Adro e nacapela de São Fran-cisco, onde foram e-fectuados enterra-mentos ao longo dosséculos. Na memóriadas pedras tumula-res, apenas estãoalguns priores ealguns ricos em tú-mulos próximos dosaltares, numa locali-zação ad sanctus,privilegiada, ou noAdro, junto à porta la-teral, com as inscrições já gastas pela passagem daspessoas. Até finais do século passado, existiu acrença de que quanto mais próximo os mortosestivessem dos altares, mais fácil seria a salvaçãodas suas almas e mais longe estavam dasarremetidas do demónio. O local da inumação dosmortos respeitava a hierarquização social dos vivos.

Depois dos anos setenta, os cemitérios alcaidensesforam objecto de uma revolução material. À medidadas campas térreas sucedeu uma aldeia de mármore,evidenciando uma mudança económica e social.Preferimos a expressão campa térrea a campa rasa,porque, em nosso entender, não há campas rasas,nos locais de enterramento dos povos queconhecemos. Há sempre, no mínimo, um montículode terra ou umas pedras erguidas a marcar assepulturas, como rito final de separação do mortocom o mundo dos vivos.

A sepultura comum, individualizada pelossucessivos nomes dos inumados, ou apenas por umnúmero, sucedeu a sepultura familiar, por comprade um rectângulo de terreno com dois metros decomprimento por sessenta e cinco centímetros delargura, como prolongamento do lar familiar, como

que numa simbiose entre o mundo dos vivos e omundo dos antepassados. Os mortos passaram aevidenciar a prosperidade dos familiares vivos, comas últimas moradas construídas de mármore, ummaterial nobre, por vezes, com sinais de ostentação.

O medo e o respeito pela morte estão subjacentesem algumas superstições dos alcaidenses, porqueela pode chegar em qualquer momento, como diz aquadra tradicional:

O mundo é uma vinha,Cada cepa é um cristão;Vem a morte, faz vindima,Não procura por geração.

Se um cão uiva, sem motivo conhecido, é sinal demorte. Se um galo canta, de dia, fora dos momentoshabituais, se um certo tipo de borboleta aparece, denoite, em casa, ou se um defunto fica com os olhos

abertos, são sinais demorte próxima. Estassuperstições, entreoutras, fazem parte doimaginário tradicionalalcaidense. Procuran-do uma tentativa deexplicação destes fac-tos, nas gentes locais,a resposta foi sistema-ticamente a mesma:Que vêm da tradiçãodos avós, porque as-sim era a sua crença.

Como cada geração só regista uma parte dastradições das gerações anteriores, muitas tradiçõesvão desaparecendo, consoante as atitudes e asmentalidades das novas populações, sempre emmudança.

Já neste século, se deu uma transformação nomodo material de alumiar nos velórios, à cabeceirados defuntos. Primeiro, com candeeiros de azeite,de um ou mais bicos (os candeeiros dos mortos),que quase todos os ricos possuíam e emprestavampara a generalidade dos velórios; depois, as velasde cera; actualmente, as lâmpadas eléctricas dasAgências Funerárias, sofisticadamente piscandoimitações de velas.

Mantém-se a caldeirinha da água benta, aos pésdo finado, para que, cada pessoa que chegueproceda à aspersão do cadáver, com o hissope, que,nas últimas décadas, substituiu o ramo de oliveira.

Os factos referidos constituem um conjunto depráticas, ritos e crenças, que reflectem algunsaspectos do imaginário cultural da comunidadealcaidense, comum a muitas outras aldeias do País.

Todas as culturas conhecidas tentam dar respostasaos problemas equacionados sobre a morte, porque,

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tantas vezes tabu, ela está rodeada decomportamentos institucionalizados ou informais, quecorrespondem ao último rito de passagem do homemno mundo dos vivos (Riley, 1975:275), no caminhoda Eternidade.

Bibliografia

Ariès, Philipe. 1988 História da Morte no Ocidente,Editora Teorema, Lisboa.

Fulton, Robert. 1977 «Muerte», EnciclopediaInternacional de Ias Ciencias Sociales, Editora AguilarMadrid.

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POPULAÇÃO DO CONCELHO DE IDANHA-A-NOVA (1860-1910)- PRIMEIRA ABORDAGEM

Por António Maria Romeiro Carvalho

1. FontesA legislação saída da República, logo em 1910,

obrigava os párocos a entregar todos os Livros deRegistos de Baptizados, Casamentos e Óbitos nosregistos civis da área. Face a esta situação os bisposordenaram aos párocos uma rápida cópia-resumodos mesmos livros. São os Livros de Extractos deRegisto de Baptismos, Casamentos e óbitos, a nossaprincipal fonte histórica utilizada. Existem, e foramconsultados, os de Idanha-a-Nova, Ladoeiro,Proença-a-Velha, Rosmaninhal, Salvaterra doExtremo (com Monfortinho), São Miguel de Acha,Segura e Ze-breira (comToulões).

Este tipo defontes permiteuma rápida con-sulta e um tra-balho quantitati-vo à escala doConcelho, doDistrito e mes-mo nacional.Porém, estesLivros não sãotão completosna informaçãoconcedida como os Livros de Registo. A par destalimitação, há um cuidado a ter: devido ao apressadoda cópia-resumo, o historiador deve ter em atençãoos erros derivados da pressa e, igualmente, os errosderivados do trabalho duro e repetitivo, que é a funçãode copiar.

Algumas paróquias não têm os Livros completos eoutras, simplesmente, não os têm. Os anos de 1910e 1911 têm muitas omissões, ou estão totalmenteomitidos. Foi uma época conturbada; um período deanti-clericalismo mais visível. Mas tudo estánormalizado logo em 1919. Como refere contente opároco do Ladoeiro, neste ano, legalizaram-se os doisúltimos casamentos civis que havia na freguesia.(1)

2. Dados semi-tratadosO que hoje apresentamos é o primeiro passo de

um trabalho mais longo e profíquo. Pouco mais éque a apresentação de dados demográficos doConcelho de Idanha-a-Nova, no período 1860-1910.O que se deseja é fazer um estudo comparativo en-tre estes dados e os de nível nacional e europeu.

2.1. Taxa de NatalidadeA taxa de natalidade é, conforme o quadro 1

apresenta, elevada: ronda, ou ultrapassa mesmo,os 40/1000 (2). Em1910 (Quadro I), éde 38, contra os33,5 da médianacional. Uma taxaque se afirma, naprimeira década doséculo XX, como aquinta da Europa, aseguir à Rússia(45,8), Hungria,Espanha e Grécia.

Para períodosanteriores-1855-ataxa concelhia,>=40, é a segunda

da Europa, logo abaixo dos sempre maiores valoresda Rússia-48.

2.2. Taxa de MortalidadeIgualmente elevada se apresenta a taxa de

mortalidade. Ronda os 20, nos anos de 1878 e 1910,apresenta os valores médios nos anos de 1885 e1900, subindo aos elevados valores de 37/39 nosanos de 1864 e 1890.

Comparativamente à Europa da primeira décadado nosso século, a média portuguesa é menor e estase situa no quinto lugar, logo atrás da Rússia (29,5),Hungria, Espanha e Itália.

Para períodos anteriores - 1885 - não possuímos

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mais que a taxa da Rússia, 40.(2) Enfim, pelo menospara a primeira década do século XX, às maiorestaxas de natalidade correspondem, grosso modo, asmaiores taxas de mortalidade.

2.3. Taxa de NupcialidadeA taxa de nupcialidade varia entre os 15 e os 21.

Não possuímos dados que permitam comparações.Apenas nos parece muito menos variável que astaxas de natalidade e de mortalidade.

3. Análise Qualitativa3.1. Nupcialidade3.1.1. Mês do casamentoOs casamentos são um acto social e acontecem

depois das colheitas. Num concelho de predomínioagrícola, cereais e gado em binómio, é depois dasceifas, debulha e divisão do pão por todos os braçosintervenientes que a maioria dos casais se

compromete aos olhos de Deus e da aldeia. São poisos meses de Agosto, Setembro e Outubro os de maisbodas: quase 50% até 1885, mais de metade apósesta data. No quinquénio 1905-1909, atingem 64° %os casamentos realizados nestes três meses. Deentre eles é o mês de Setembro o de maiorpercentagem e, depois de 1885, ultrapassa semprea soma dos outros dois, Agosto e Outubro. Setembroé o mês de São Miguel, o mês das rendas, o mês daarrumação anual das contas.(Quadro II) Outro factoa registar é o de o mês de Outubro, a partir de 1880--1884, ultrapassar o de Agosto. Maior ruralização?

É milenar este acto de ligar o casamento à boda,ao convívio/ aprovação do colectivo; ligar a fertilidadehumana à fertilidade da terra-mãe demonstrada namesa farta da boda. Este facto social total (religião,economia, ritual, banquete), que é sagrado, continuacom o Cristianismo/Catolicismo, que dele seapropriou, isto é, cristianizou. Não admira, assim, queas proibições da Igreja (tridentina) sejam aceites e,desta forma, contribuam igualmente para o calendáriodos casamentos: não casar no Advento, que é aépoca pré-natalícia do Deus; não casar naQuaresma, que é a época de total abstinência. E éna Quaresma (Fevereiro/Março) e na época dasceifas (Junho/Julho) quando menos casamentos severificam: de 3 a 4,5%.

Porquê esta abstinência seguida tão de perto?Determinação eclesiástica? Não. A época do rebentardo trigo é de tal forma perigosa, temerosa, que nadade alegre ou barulhento pode acontecer. Deste actode nascer depende a sobrevivência da aldeia.

3.1.2. Dia do casamentoO dia escolhido para o casamento é igualmente

submetido à peneira da cultura. Os dias preferidossão os de 4ª e 5ª feira, seguidos de 2ª e sábado.Terça e sexta feiras são dias muito raramenteutilizados. (Quadro III). A partir de 1885, todos os diasda semana perdem um pouco para o sábado. Quarta--feira é o dia que mais perde: 6,5%.

Os dias de Terça e de Sexta feira só possuem 1%das preferências (21 e 14, respectivamente), no to-tal dos 50 anos. Mesmo que não seja erro do padrecopista, erro perfeitamente natural, o número éabsolutamente insignificante. São “dias de bruxas”,dias aziagos. Sexta-feira, com apenas 14casamentos em 50 anos, é significativo. É o dia damorte de Cristo, melhor, o dia em que, pelo seumilenar significado de tristeza, colocaram a morte deCristo, do Deus que vai morrer para que haja vida,qual grão que vai morrer para que a nova planta brote.Sexta-feira, como a Quaresma, são tempo de luto,da noite, do negro, que é a noite do sepulcro, como éa cor que rodeia a semente enterrada.

Porquê a transferência para sábado a partir de1885? Uma evolução sócio-económica-mental nosentido de colocar a festa no terminal da semana,

dando-se maior importância ao descanso e aodomingo? Talvez!

3.1.3. Idade do casamentoNão há dados em quantidade suficiente para fazer

uma generalização ao Concelho. Só no Ladoeiro eSão Miguel de Acha existem dados. Deste modo, aúnica afirmação possível, considerando o período1860-1921, é a de que a idade mais frequente é a de25 anos para o homem e 22 para a mulher. Para

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além desta, uma sugestão. A partir de 1890, aspercentagens das idades mais altas (27-32 para oshomens e 25-30 para as mulheres) descemclaramente, quase para metade. Uma diminuição daidade de casamento que tem a ver, tal como aalteração do dia para sábado, com a industrialização?Com a emigração?

3.2: NatalidadeO nascimento é um acto de vida ou de morte, seja

para a criança ou para a mãe. Os expostos são embom número no Concelho, a acreditar na fonteoficial.(3) O quinquénio 1860-1864 apresenta 15% deexpostos sobre os nascimentos. A partir de 1900, atendência é para terminarem os expostos. Aliás, eaproveitando o melhor e o mais completo exemploque possuímos, o de Salvaterra do Extremo, para odecénio 1880-1889, igualam-se expostos e filhosilegítimos. Na década seguinte, a percentagem sobreos nascimentos é de 0,2% e 1%, para na primeiradécada do século XX terminarem praticamente osexpostos e se manter a percentagem de filhosilegítimos.(4) Em 20/30 anos, uma mudança no modocolectivo de encarar a criança?

3.3. MortalidadeA mortalidade é elevada, como já foi referido.

Observando o quadro das idades em que a mortechega, a mortalidade infantil fornece o maiorcontingente para esse número: quase metade dos

óbitos acontece em crianças dos 0 aos 2 anos deidade; (Quadro IV) de 41% no decénio 1860-1869 a51% no primeiro do século XX.

Os meses de maior frequência são os de Agosto,Setembro e Novembro, com 10% e Outubro, com12% dos óbitos. Os meses com menos óbitos, 6%,são os de Fevereiro, Abril e Maio. Que factoresintervêm nesta escolha da Parca? A dureza do climae dos trabalhos; o desenvolvi-mento de doenças adquiridasdurante o Verão e sua águas;isto é, o Verão mata a posteriori(Quadro V).

Para os mais velhos, é aaplicação do princípio cons-truído na mais perfeita e bela li-gação homem-natureza: nasceré sair, morrer é o regresso aoventre da grande deusa-mãe--terra; é cair no tempo da quedada folha.

As doenças contraídas sãomuitas, raros ou inexistentes osremédios e os médicos, poucosos cuidados de higiene e vulgara promiscuidade. Numa situa-ção destas, toda a doença podevirar morte, como mortal ou brutal é o tratamentoaplicado. É o caso dos carbúnculos. Ampolas criadaspelas picadas das moscas dos animais eramqueimadas na forja do ferreiro, qual marcação degado. A portugueja (urticária) era tratada vestindo adoente com roupa suja de homem. Para a sarna po-dia-se untar o corpo do doente com petróleo.Tratamento brutal, mas igualmente interessante doponto de vista simbólico, é o dado à criança atacadade sarampo: embrulhavam-na num cobertorvermelho durante 5/6 dias; era um cobertor de betão,picava horrivelmente. Era para o sarampo sair maisdepressa. O mau nascido, cancro, comia rodelas detoucinho ou pó de sapo: pegava-se no sapo vivo,cozia-se numa panela de barro ao lume; o que restavada cozedura moía-se e colocava-se esse pó em cimado nascido. Os cobrões, que apareciam no corpodos homens e mulheres porque havia passado umacobra por cima da roupa quando se encontrava aenxugar, eram tratados com óleo de trigo apertado aquente sobre a bigorna do ferreiro. Mas as maioresdoenças eram as sezões ou maleitas, Para quebrarestas febres de quente e de frio, bebia-se chá feito apartir da flor silvestre fel da terra. Vindas no final doVerão, matavam de fio a pavio, principalmentecrianças. Quando demorava a mortandade, logo seouvia dizer que “este ano ainda não veio a varredorade anjinhos”.

A parca alimentação nada ajuda no combate àsdoenças: pão e azeitonas e um naco de toucinho;

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uma alimentação de base vegetariana.O Verão é fatal para as crianças que bebem água

dos regatos, comem fruta ainda verde, suportam osagrores do clima com as mães e bebem o “leiteenvenenado” por esforços brutais e continuados. Atéos costumes ajudam: enfaixa-se a criança em baietaslogo após o nascimento e durante três meses,apertando-o para que a cabeça não pese para a afrente fique marreca; é preciso que o bébé fiquerijinho.

Outro fenómeno diz respeito à mortalidade pós 60anos: as mulheres duram mais que os homens. Aidade anciã é um domínio feminino. Explicação paraeste facto não encontramos. A mulher casa mais novae, viúva, raro se recasa. Passada a perigosa épocada fertilidade, a mulher, com menos trabalhos e commenos vícios que o homem, tem mais hipóteses deuma longa velhice?

Conclusão

Concelho de Idanha-a-Nova (1860-1910):revolução demográfica em ambiente rural

O Concelho de Idanha-a-Nova, considerado noperíodo de 1860-1910 apresenta característicastípicas da demografia do Antigo Regime; contudooutras apresenta já dentro do novo regimedemográfico. A data charneira parece ser 1885.

São características do regime demográficotradicional as elevadas taxas de natalidade e demortalidade. Enquanto a primeira se situa pelos 40,a segunda meta-se nos 30. Valores que, no inicio doséculo XX, são demasiado elevados em relação aospaíses mais desenvolvidos da Europa. Enquanto quea Inglaterra, França ou Alemanha tiveram a granderevolução demográfica nos finais do séculos XVIII einícios do XIX, Portugal irá bem dentro do século XXpara que o moderno regime demográfico se imponha;isto é, as taxas de natalidade e de mortalidadebaixarem para os 20 e 10, respectivamente.

Característico é também a elevada mortalidadeinfantil, que aqui ronda os 50%.

A partir do quinquénio 1885-1889, algo parecemudar. Para além das taxas de natalidade e demortalidade baixarem, ainda que pouco decididas, aalteração clara de casamento para o sábado e adiminuição da idade do casamento parecem indicarnovos rumos na demografia. Contudo, os inícios doséculo XX são caracterizados por um reforço daruralidade, falhada que foi a políticadesenvolvimentista/industrial da segunda metade doséculo XIX. As condições de vida quotidianacontinuam iguais às de sempre neste Concelho ru-ral e interior. A mortalidade infantil, teimosamente amanter-se superior a 50%, prova-o.

Fontes

Livros de Extractos de Registos de Baptismo,Casamentos e óbitos da Paróquia de 1860-1911,Idanha-a-Nova, Ladoeiro, Proença-a-Velha,Rosmaninhal, Salvaterra a do extremo, São Miguelde Acha, Segura e Zebreira.

Livro de Expostos do Concelho de Idanha-a Nova,1856-1869, 1888-1918.

Bibliografia

CIPOLLA,Carlo M., História Económica daPopulação Mundial, Rio de janeiro, Zahar Editores,1977, pp.143.

LEBRUN,François, A Vida Conjugal no Antigo Re-gime, Lisboa, Edições Rolim, 1983,pp. 168.

NAZARETH, J. Manuel e SOUSA, Fernando, “ ADemografia Portuguesa em Finais do Antigo Re-gime”, Cadernos da Revista de História Económicae Social, n°4, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, pp.123.

NAZARETH, J, Manuel, O Envelhecimento daPopulação Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença,1979, pp 239.

Notas

1-Livro de lnformações e Notas sobre a Freguesiado Ladoeiro, 1917 - 1944,11. 2A.

2-Para estes dados europeus, def. Cario M. Cipolla,História Económica da População Mundial, p. 82.

3 -Livros de Expostos do Concelho de Idanha-a-Nova, 1856-1869 e 1888-1918. Dados quantitativosrecolhidos pelas alunas Carta Justo e Liliana Folgado.

4 - Parece haver tendência para a fixação numamulher, que é casada e jornaleira: de 1870 a 1879(19 anos), há 14 filhos ilegítimos em Salvaterra; 5são da mesma mulher (A C.) e 2 de uma outra (I. R).

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MIGUEL TORGA - “O ALMA GRANDE”

Por António Morão

Sempre que releio o conto de Miguel Torga “O AlmaGrande”, se me levantam perguntas e dúvidas quehoje vou expor, mesmo que não encontrenecessariamente as respostas. Lembrem essaestranha e temível figura do “Alma Grande” que, emperdida aldeia de Trás-os-Montes, terra de judeus,na hora derradeira com a tenaz dassuas mãos e o peso do seu joelhopassava guia aos moribundos, nodizer de Torga.

Nunca me conformei com oterrível relato de Torga e confronteia figura do abafador e o seu trágicopapel naquela parcela perdida deIsrael, com o espírito e a letra daTora. Miguel Torga acentua bemque, por detrás da sagrada cartilhaensinada pelo Padre João, está,plantado em sangue, o Pentateuco.

Aqui começam as dúvidasquanto ao bem fundado costumede abafar os moribundos eapressar-lhes a morte. Estranhaantecipação - da prática modernada eutanásia, para não dizer, senão fora horrorosa e cruel ironiadepois de Auchwitz, profético avisoquanto aos processos da morte, “amestra que havia de chegar daAlemanha”, no dizer de Paul Celan!

Se sentimento há em que a Bíbliaé mestra insubstituível e eterna é orespeito da vida.

Foi neste povo que nasceu oquinto mandamento: “Não matarás”. Por isso mecusta aceitar que o abafador, a ter existido este cargonas perdidas e isoladas comunidades judaicas,dispersas nas povoações cristãs, tenha começadopor ser um instrumento de morte ou, na melhor dashipóteses, mesmo de libertação do sofrimento de umirmão que lutava nas vascas da agonia.

Preconceito Cristão?

Daqui a minha suposição de que fosse umpreconceito dos cristãos velhos que não

compreendiam que os membros da ocultacomunidade judaica que aceitava o predomínioexterno das práticas cultuais cristãs, recusasse nahora derradeira o padre que deles cuidara e queviesse um outro membro da comunidade judaicaassisti-lo na hora final e ser testemunha do último

suspiro. Nada mais fácil para umcatólico pensar o pior e dasuspeita passar à calúnia e aocomeço do terrível preconceito eao infamante epíteto: o abafador.

Estranhamente os cristãos têmmemória curta. Nos primórdios doCristianismo, os ritos da nova féque se espalhava rapidamentepelo Império romano não eramentendidos, até porque havia daparte dos cristãos a práticacorrente do sigilo e da iniciaçãodesses mesmos ritos, o queoriginou os mais estranhosboatos. A comunhão do corpo edo sangue de Cristo tornava-senos ouvidos dos romanos e deoutros habitantes do Império umaprática de canibalismo. Há emPompeia um curioso grafito: umhomem crucificado com cabeçade burro e a inscrição: F. adora oseu deus.

Neste ponto, os cristãos nãoinovam. Até esquecem as suasorigens; de perseguidos volvem--se em perseguidores e o ciclo da

violência persiste em todas as formas dediscriminação.

O abafador é, para mim, um perverso exemplo dediscriminação arrogante e desdenhosa. Explica-sea sua existência, talvez, pela prática do sigilo e pelascaracterísticas especiais de vida das pequenascomunidades judaicas que mantinham umcripto-judaismo, cada vez mais afastado da práticatradicional e da fiel reprodução dos ritos religiosos,sem possibilidade de existência à luz do dia e sujeitoa todas as malformações e deformações que a vidaisolada necessariamente tende a provocar.

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Adulteração do Rito Sagrado?

A ser verdade que o trágico conto de Miguel Torgase baseie em factos reais, não posso deixar depensar que estamos perante uma adulteração terrívelde um acto mais consentâneocom a lei de Moisés e com oprofundo e admirável pen-samento religioso do judaísmo.Não devemos esquecer que aBíblia e, mais especialmente oPentateuco, o livro fundamental,era leitura obrigatória nassinagogas. Ao judeu crenteimpunha-lhe a Lei a recitaçãodiária da fórmula tradicional dafé, “SCHAMMAI, ISRAEL”,proibia-lhe os crimes de sangue,abolira os sacrificios humanos,principalmente de crianças,hábito comum e frequente emtodas as culturas do MédioOriente e de que o exemplo maisconhecido é o episódio, malcompreendido, do sacrificio deIsaac, que Abraão conduz aomonte Mória para ali o imolar porexigência de Javé.

Mas Deus Javé suspende ogolpe executor do rito sangrento.Abraão regressa à sua tenda denómada. Nunca mais entre oshebreus se repetirá essesacrificio.

Então como é possível quenas pequenas comunidadesjudaicas se tenha introduzido afigura do abafador?

Adianto duas hipóteses ou,melhor, simples tentativas deexplicação que podem não ser,obviamente, verdadeiras.

Mas antes de prosseguir,chamo a atenção para o factode que só, em Portugal e nascomunidades submersas nomar cristão, aparece tãoestranho comportamento ligadoà morte. Penso que nascomunidades que conseguiramsobreviver e tiveram uma regu-lar prática das exigênciascultuais, como a reuniãosabática, o festejo das grandesdatas judaicas, nunca seapontou tal costume, que não deixa de ser, à primeiravista, bárbaro. Hoje talvez com o aparecimento de

opiniões que defendem o apressar do fim da vidaquando as doenças são terrivelmente dolorosas eincuráveis, alguns se lembrem de dizer que nisto osjudeus foram já precursores...

Vamos, portanto, apontar as duas explicações paraa função do abafador. A primeiranasce, julgo eu, de uma corrupçãode um rito da morte que devia terexistido nas comunidades dosjudeus fiéis. Nos ritos fundamen-tais das culturas e religiões, existeuma certa semelhança que é frutode uma lei de universalidade e desimultaneidade. Chamo a atençãopara o comportamento sacramen-tal dos cristãos que nem sempreforam tão criativos como, porvezes, se diz ou se quer fazer crer.Unções, ritos como o baptismo eo crisma encontram-se com outrosnomes em quase todas asculturas, são os conhecidos ritosde iniciação. Só que os cristãos,para empregar uma expressãoque não é muito do meu agrado,mas que aqui uso para me tornarmais compreendido, deram a voltaao texto e ligaram toda a teologiados sacramentos (palavra sin-tomática que significa sinal) àpessoa e obra de Jesus Cristo.

Não me alongo neste pontoporque está fora dos desígnios demomento e é utilizado, aquiapenas como referência.

Não podemos esquecer que, noprimeiro livro da Bíblia, oPentateuco, o fundamental da Leijudaica, a criação do homem estáligada a dois aspectos bemterrestres e extremamente con-cretos: o barro que Javé utilizoupara moldar o ser humano, Adão(mais um parêntese para esclare-cer que esta palavra não é o nomedo primeiro homem, mas o próprioconceito de homem) e o sopro dasua boca que animou o barroamassado.

A vida, em quase toda aextensão da Bíblia e enquanto nãofoi influenciada pela filosofia grega,identificava-se com o ar. Ainda hojequando falamos do último suspiroque é afinal o derradeiro sopro e

não o ai martirizado de quem sofre, estamos a repetira velhíssima expressão da narração javística da

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Bíblia Hebraica.Ora era lógico que nas comunidades hebraicas da

Península houvesse um rito final que recolhesse oúltimo sopro como sinal de que a vida do que partia,continuava a animar a comunidade com a qual tinhapartilhado o destino.

Para o cristão há um rito de morte, a última unção.O cristão é também herdeiro do Antigo Testamento ecom os judeus partilha as grandes exigências éticase religiosas. O abafador ligar-se-ia a um rito de morte.Talvez na origem estivesse um gesto, símbolo darecolha do último sopro de vida. Esse homemrepresentaria na comunidade hebraica o cuidado queela tinha com o seu membro moribundo de quemrecolhia as últimas forças e as transmitia por fécomum aos que lhe seguiam.

Aconteceu que com as perseguições, a conversãoforçada ao Cristianismo, o isolamento das famíliasjudaicas que começaram a viver misturadas namassa cristã, sem sinagogas onde se ouviram, atéentão, os grandes feitos de Deus Javé com o seuPovo, a impossibilidade de celebrar as grandes festasjudaicas, principalmente a Páscoa que nos seuscompanheiros forçados, os cristãos velhos, tinhaoutro significado, os gestos ligados à vida e à mortedesvaneceram-se e aconteceu algo de terrível. Ogesto fraterno de recolher o último sopro de vidatornar-se-ia assim num acto de apressar a morte doirmão que lutava na hora da agonia.

Estamos em frente da corrupção de um rito sacralque tomou outros rumos e se prestou, por outro lado,às difamações que os cristãos nunca pouparam aosjudeus, seus vizinhos, a quem tantas vezesmassacraram em momentos de fanatismo e que seprolongam no anti-semitismo a que este conto deTorga infelizmente não escapa.

O Complexo de Massadá ou o Gesto deResistência

No entanto, há outra abordagem deste gesto ecomportamento nas comunidades judaicas daDiáspora. O antecipar da morte pode querer significara resistência à conversão forçada. Os cristãos novoseram obrigados à prática exterior cristã: baptizavam-se, frequentavam o culto dominical, recebiam acomunhão, casavam-se em igrejas, eram obrigadosa pagar a côngrua. Mas havia um ponto em que nãocediam nem fraquejavam na última hora. o pároconão teria oportunidade de. aparecer nessa horadecisiva e o judeu crente escapava finalmente a essapresença que se lhe tinha, tantas vezes, tornadoodiosa. O abafador tinha o papel trágico de repetir,no isolamento de aldeias perdidas em Trás-os--Montes e Beiras, o gesto derradeiro dos defensores

de Massadá.Seja-me permitido lembrar essa saga sangrenta

da guerra romano-judaica dos anos setenta,começada com o Imperador Vespasiano eprosseguida por Tito. Após a conquista de Jerusalém,a destruição do Templo e da cidade, o desterro detoda a população da Judeia, a escravização dossobreviventes e a sua dispersão pelo império, oderradeiro grupo de combatentes acolheu-se nomonte de Massadá, sobranceiro ao Mar Morto, ondeHerodes construíra um palácio e erguera umapoderosa fortaleza. Ali, durante meses, resistiram aoassédio e aos assaltos das legiões romanas. Por fim,esgotados, os defensores fizeram um terrível pacto:matarem-se uns aos outros e suicidar-se o último.No assalto final, os romanos encontraram oscombatentes mortos, excepto duas ou três mulheres,gravemente feridas que contaram o que tinhaacontecido. Antes mortos que feridos.

Não estará na origem do abafador esse complexode Massadá? Aqui fica a interrogação. Talvez assimse compreenda a grandeza trágica que Miguel Torga,com sobriedade e vigor, descreve nessa luta entre oabafador e o doente que resiste à terrível pressão damão que tenta debalde estrangulá-lo.

Seja-me permitida uma observação: este conto deMiguel Torga pode tornar-se mais um argumento queempreste armas ao já, por demais vasto, arsenal doanti-semitismo.

Razão para se utilizar com cautela nas aulas dePortuguês.

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A MORTE E O AMOR

Por António Branquinho Pequeno

Procurarei situar aqui, muito rapidamente e “ à vold’ oi-seau” alguns dos parâmetros da antiquíssimaaliança entre `Eros” e “Thanatos”, entre o Amor e aMorte, que possam “Eros” de certo modo, como telade fundo destas Jornadas da Beira Interior em tornodeste mesmo tema ecomeçaria por dizerque, justamente, oorgasmo é bom, tam-bém, porque morrelogo, não dura muito,caso contrário seriainsuportável.

Essa antiquíssimaaliança entre o amor ea morte, como acimadizia, é nomeadamen-te mediatizada atravésdos alimentos, do pra-zer da mesa, da incor-poração gastronómi-ca. A mesa, territórioprivilegiado, sagradomesmo, funciona aícomo um espaçocatalizador que inclui apóstuma presença dosmortos, tal como ofaziam há mais de5000 anos a. C. osantigos habitantes daMesopotimia, à beirado Tigre e do Eufrates.

Neste registo se inscreve a refeição funerária, aindahoje praticada nas regiões agrárias do interior, poisque nas cidades a morte está altamentemedicalizada, é cada vez menos morte, menos fa-miliar, mais anónima e gerida por agentes não menosanónimos.

A refeição funerária permite, ao nível do simbólico,essa extrema aproximação entre o falecido e seusfamiliares e amigos através da comida. Depois doenterro, familiares e amigos mais chegados abancamà mesa, a refeição funerária equivalendo àincorporação amorosa do desaparecido.Ressalvadas as enormes diferenças culturais, o que

resta da refeição funerária dos nossos diasequivaleria à refeição antropofágica das práticas doendo-canibalismo ameríndio, tal como ele é aindapraticado pelos índios Guayaki do Paraguai, pelosúltimos sobreviventes desta etnia da floresta.

É sobretudo a partir doséculo XVI que a mortepassa a possuir cargaseróticas, o que tanto aarte como a literaturatão bem ilustram. Quese pense nas torturasque atléticos algozesinfligem a S. Bartolomeuou nas representaçõesda união mística deSanta Teresa com Deusou nas figuras eróticasdo Cristo, tais as deRosso. Em “A morte e ajovem” (1517) do Kunst-museum de Basileia, amorte acaricia sexual-mente a sua vítima, dir--se-ia mesmo que aquia morte rapta e viola adonzela. Particularmen-te erótica também é arepresentação de “0Cavaleiro, a Mulher e aMorte” (séc. XVI) deHans Baldung Grien.

Por vezes estas alianças da morte e da sexualidadetomam formas obscenas.

Enfim, talvez nunca a morte tenha estado tão íntimae tragicamente associada ao amor e à sexualidadecomo nos nossos dias, com a ameaça do SIDA(sindroma imuno-deficitário adquirido), porquantosabemos que um dos modos privilegiados datransmissão do vírus se estabelece através do coitoe das práticas sexuais.

Também no passado, e pelo menos até à segundaguerra mundial, a morte romântica esteve não menosintimamente ligada ao flagelo da tuberculose, a pestebranca da antiguidade. Isto antes da descoberta daestreptomicina em 1944 por Waskman e do

Ilustraçãosobre apraga

sifilítica.Duas

mulheresmarcadas

comvestígios da

doênça,suplicam de

joelhos ofim doflagelo.

Em primeiroplano jazum corpomarcado

pela sífilis

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isolamento doutros bactericidas e bacteriostáticos.A sífilis, um mal velho como o mundo, sempre

esteve também ne confluência da morte e do amor,embora noutro registo clínico. Ela foi um outro flagelohistórico, que oprogresso damedicina bacte-riológica acaboupor curtocircui-tar. Para voltar àtuberculose efan tasmát icaque lhe esteveassociada, quese recorde Cho-pin, que se re-leiam as ad-miráveis pági-nas de ThomasMann na “Mon-tanha Mágica”ou entre nós,que se releiaAntónio Nobre,com seu “Só”, olivro mais tristeque há em Por-tugal, como foipelo autor clas-sificado, o mes-mo António No-bre que, após oseu regresso aParis, acabarápor morrer tu-berculoso em1900. Que serecorde sobre-tudo Soares dosPassos, bemantes de Antó-nio Nobre, comseu célebre po-ema “O noivadodo sepulcro”, onde se descreve o noivado de doisdefuntos, apaixonados de outrora.

O teatro barroco instala os seus apaixonados nostúmulos, o que a tragédia de Romeu e Julieta põebem em evidência junto ao túmulo dos Capuletos.

A presença do amor e dos amantes nos cemitérios,que é um fenómeno ainda de actualidade, (ocemitério parisiense do “Père Lachaise`é local deeleição para encontros amorosos homo eheterosexuais), a escolha pelos amantes desteterritório, junto aos túmulos, não é anódina nemgratuita: esta prática traduz, por um lado, umamaneira de conferir uma carga genésica aos mortos,

de os fazer reviver, renascer para a vida, sobretudoque sabemos que morreremos um dia também.Como se o orgasmo dos vivos fosse a seiva telúricaque os fizesse ressuscitar. Por outro lado, os vivos

percebem maisou menos clara-mente que osmortos, sob a ter-ra, são os paren-tes das semen-tes, seus “espíri-tos” dão assimmaior força aoamor dos vivos eà sua mortalida-de.

O amor juntoaos túmulos tra-duziria assim atentativa de imor-talizar, de eterni-zar, de fazerfrutificar atravésda morte, a rela-ção amorosa dosvivos.

Enfim, a cargaerótica da morteacabará por, noséc XIX, perderum pouco do seuimpacto, em pro-veito duma belamorte, da belezana morte, tal co-mo nos é revela-da por Lamartineem França ou porMark Twain nosUSA.

O Amor e a Morte nas Jornadas de Medicina daBeira Interior

As III Jornadas de Estudo”Medicina na Beira Inte-rior - da pré-história ao séc. XX” a ter lugar na EscolaSuperior de Educação de Castelo Branco, nospróximos dias 25, 26 e 27 deste mês, constituirãouma excelente oportunidade para aclarar o estudode algumas realidades culturais do homem da BeiraInterior, que têm expressão nos horizontes damedicina. Dois temas vão ser as grandesreferências:a obra do médico e humanista AmatoLusitano, que continua a proporcionar material valioso

Fac-simile deuma página do

Jornal doFundão

de 25/10/91.As III Jornadasde Medicina naBeira Interior,da Pré-história

ao Séc. XX,foram tema dedestaque na

Imprensa

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de investigação e o amor e a morte na Beira Interior.Sobre Amato irão ser apresentadas várias

comunicações e podemos já anunciar as seguintes:“A CULTURA ANATÓMICA DE AMATUS, pelo pro-fessor J. Caria Mendes;”O SEGREDO NA IATRO--ÉTICA-EVOLUÇÃO E CONCEITOS REVENDO OJURAMENTO DE AMATO”, pelo dr. RomeroBandeira Gandra;”AMATO NA HISTORIOGRAFIAMÉDICA DO SÉC. XVIII”, pelo professor AlfredoRasteiro e “ATRAVÉS DA DOR, NAS CENTÚRIASMÉDICAS”,pelo dr. António Lourenço Marques.

Várias comunicações estão previstas para osegundo tema que será ainda ilustrado pela Orquestatípica albicastrence, que durante o jantar do dia 26

executará um reportório musical subordinado aoamor e à morte no Cancioneiro regional da Beira In-terior. Uma exposição bibliográfica sobre JoãoRodrigues de Castelo Branco estará também patentena Biblioteca Municipal da cidade e uma outraexposição de fotografia do jornalista Camilo dosSantos sobre os caminhos do homem, iniciativa do“Jornal do Fundão”, estará patente no átrio daquelaEscola Superior.

In Jornal do Fundão - 11-X-9125, 26 e 27 de Outubro

O amor e a morte nasJornadas de Medicina da Beira Interior

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Page 50: SUMÁRIO - historiadamedicina.ubi.pt · António, Boticário do Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, na “Pharmacopea Lusitana”, 1704, inclui um “index dos autores que se

1- Os trabalhos tornaram maisevidente o interesse que há entrenós pela interdis-ciplinaridade jáque os dois temas em debate -“Amato Lusitano: o médico e ohumanista” e “O amor e a morte naBeira Interior”- atrairam a atençãode especialistas de diferentes áreasdo saber, nomeadamente médicos,antropólogos, arqueólogos, etnólo-gos e de outras formações supe-riores que deixaram mais claro,com as suas intervenções, oconhecimento de muitos aspectosque marcaram o perfil do homemdesta região, no decurso dos tem-pos.

2 - O estudo da flora da nossaregião referida nas Centúrias deAmato Lusitano demonstrou a suagrande riqueza e variedade, e quehoje terá ainda um interesse maisacentuadamente ramificado, emespecial numa perspectiva eco-lógico-patrimonial e turística.

Verifica-se, no entanto,infelizmente, que algumas espécies se encontramem extinção. Os participantes consideraram que éurgente tomar medidas que promovam a suarecuperação e protecção.

3 - Em consequência do teor da conclusão ante-rior, acharam por bem propor à Câmara Municipalde Castelo Branco a criação de um Horto que deveráincluir a flora da nossa região referida e utilizadapor Amato, e que não deixará de constituir umimportante local de estudo e de lazer.

4 - Considerou-se com interesse a elaboração deuma edição crítica das Sete Centúrias de CurasMédicas de Amato Lusitano, e reafirmou-se anecessidade da tradução das outras obras deAmato, bem como de outros autores da Beira Inte-rior que escreveram em Latim, nomeadamente deFilipe Montalto, devendo pedir-se a colaboração dasUniversidades para tal efeito.

5 - A comissão executiva irá diligenciar no sentidoda elaboração de um índice Bibliográfico actualizadosobre Amato Lusitano.

6 - Os comunicantes e participantes avivaramalguns aspectos da biografia de Amato Lusitano,nomeadamente as passagens referentes à suaestadia em Ragusa, actual Dubrovnik, naJugoslávia, que nos oferecem uma lição bem ac-tual de tolerância e convivência.

7 - Mais uma vez ficou bemsublinhada a importância dainvestigação relativa a uma vastadocumentação regional visandoum conhecimento mais profundoda cultura portuguesa.

8 - Achou-se ainda por bemlembrar à Câmara Municipal deCastelo Branco a sua propostatornada pública aquando das IIJornadas, em 1990, no que dizrespeito à “atribuição do nome doDr. José Lopes Dias a uma artériada cidade de Castelo Branco,considerando o labor intelectualdeste historiador médico,nomeadamente como estudiosoda obra de Amato Lusitano.

9 - Para finalizar, foramescolhidos os temas para as IVJornadas a realizar em Outubro de1992. Ficou decidido que a figurae a obra de Amato Lusitanocontinuarão a ser um dos temaspermanentes das futurasJornadas, sendo o outro tema do

próximo ano ‘A vida e a dor na Beira Interior”.

Carta do prof. Alfredo Rasteiro ao Presidente doConselho Científico da Faculdade de Medicina de

Coimbra.(28 de Outubro de 1991)

Na qualidade de encarregado de regência de História daMedicina participei mais uma vez nas Jornadas de CasteloBranco, com apresentação de uma comunicação sobreAmato Lusitano.

Entre as actividades próprias das Jornadas destaco aExposição Bibliográfica no Liceu Nuno Álvares, herdeiro daBiblioteca do Colégio Jesuíta de S. Fiel, onde Egas Monizfoi Aluno e a Homenagem à sua Memória de que junto duasfotocópias de Documentos que estiveram na exposição.

Destaco destas Jornadas uma conclusão em que seprotestou pelo facto de nas Sínteses da Cultura Portuguesada Iniciativa do Comissariado para a Europália 91, ImprensaNacional - Casa da Moeda, actualmente em distribuição, ovolume dedicado à CIÊNCIA EM PORTUGAL conter umaintrodução histórica menos correcta, com imprecisõesgraves relativas nomeadamente a Garcia de Orta e aomissão indesculpável de não citar AMATO LUSITANO, oportuguês que no campo científico terá tido maior projecçãona Europa dos séculos dezasseis e dezassete.

Com os melhores cumprimentos.O encarregado da regência de História da Medicina

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