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Superior Tribunal de Justiça RECURSO ESPECIAL 1.385.916 - PR (2011/0080217-0) RELATORA : MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA R.P/ACÓRDÃ O : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ RECORRIDO : ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTO ADVOGADO : MARCELO KINTZEL GRACIANO E OUTRO(S) EMENTA RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA (CP, ART. 327, § 2º). ENTIDADES PARAESTATAIS (CP, ART. 327, § 1º). AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA (LEIS 6.799/1980 E 9.983/2000). OCUPANTES DE CARGO EM COMISSÃO E ASSESSORAMENTO EM AUTARQUIAS. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA. PENA PROPORCIONAL. DESFALQUE EM FUNDO DE PREVIDÊNCIA. ATENDIMENTO À VONTADE DA NORMA. (PRECEDENTES DO STF). 1. No Direito Penal prevaleceu, por meio de uma interpretação integradora, um conceito de funcionário público mais abrangente do que aquele definido pelo Direito Administrativo, que, a par do que dizia o caput do artigo 327 do CP, tanto englobou o rol reproduzido no § deste dispositivo, como os próprios entes autárquicos. 2. A própria causa de aumento de pena (CP, art. 327, § 2º) reforçou o entendimento daqueles que compreendiam as entidades paraestatais de maneira mais ampla, o que, por via de consequência, elasteceu o conceito de funcionário público disposto no § 1º do art. 327 do Código Penal. 3. A interpretação construída pela doutrina e jurisprudência, necessária que foi para a conformação do aludido conceito no âmbito penal, não pode ser agora olvidada mediante a literalidade estanque da majorante, para afastar o devido alcance do § 2º do art. 327 do CP a todos que a norma quis abarcar como funcionário público, sob pena de negar-se o claro objetivo do conjunto normativo. Vale dizer, por força da compreensão erigida, à imagem e semelhança da equiparação ao conceito de funcionário público, tal qual os moldes do Documento: 1275071 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 04/09/2014 Página 1 de 27

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.385.916 - PR (2011/0080217-0)

RELATORA : MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURAR.P/ACÓRDÃO

: MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ

RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ RECORRIDO : ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTO ADVOGADO : MARCELO KINTZEL GRACIANO E OUTRO(S)

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA (CP, ART. 327, § 2º). ENTIDADES PARAESTATAIS (CP, ART. 327, § 1º). AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA (LEIS 6.799/1980 E 9.983/2000). OCUPANTES DE CARGO EM COMISSÃO E ASSESSORAMENTO EM AUTARQUIAS. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA. PENA PROPORCIONAL. DESFALQUE EM FUNDO DE PREVIDÊNCIA. ATENDIMENTO À VONTADE DA NORMA. (PRECEDENTES DO STF). 1. No Direito Penal prevaleceu, por meio de uma interpretação integradora, um conceito de funcionário público mais abrangente do que aquele definido pelo Direito Administrativo, que, a par do que já dizia o caput do artigo 327 do CP, tanto englobou o rol reproduzido no § 2º deste dispositivo, como os próprios entes autárquicos. 2. A própria causa de aumento de pena (CP, art. 327, § 2º) reforçou o entendimento daqueles que compreendiam as entidades paraestatais de maneira mais ampla, o que, por via de consequência, elasteceu o conceito de funcionário público disposto no § 1º do art. 327 do Código Penal.3. A interpretação construída pela doutrina e jurisprudência, necessária que foi para a conformação do aludido conceito no âmbito penal, não pode ser agora olvidada mediante a literalidade estanque da majorante, para afastar o devido alcance do § 2º do art. 327 do CP a todos que a norma quis abarcar como funcionário público, sob pena de negar-se o claro objetivo do conjunto normativo. Vale dizer, por força da compreensão erigida, à imagem e semelhança da equiparação ao conceito de funcionário público, tal qual os moldes do

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disposto ao art. 327 do CP – com contribuição, repisa-se, do próprio § 2º –, admite-se, em matéria penal, em casos estritamente necessários, uma interpretação que corresponda ao espírito da norma. 4. Releva-se notar que não resvala em analogia in malam partem o recrudescimento da pena àqueles que desempenham seu ofício nos entes autárquicos, que, em razão do posto de alta responsabilidade, locupletaram-se às custas da Administração, porquanto ocupantes de cargo em comissão ou de chefia ou assessoramento, quando a eles – e sobretudo a eles – cabiam zelar pela coisa pública. E isso constata-se não só a partir da evolução legislativa adrede trazida, mas também pelos inúmeros instrumentos normativos de combate à corrupção de que o Estado lança à mão, ano após ano, e cuja busca permanente na defesa do erário, bem como no proporcional apenamento desses agentes que mancham a carreira pública, devem ser levados em consideração pelo magistrado na interpretação da norma penal, quando da apuração dessas condutas que, infelizmente, ainda grassam em nosso país.5. O abandono à interpretação literal – e em tudo isolada – da norma penal guarda sua necessidade para hipótese como a dos autos, em que a ora recorrida, quando ocupava cargo de chefia e de direção, em concurso com outras três pessoas, durante 12 anos, desviou, por 78 vezes, a vultosa quantia de R$ 1.649.143,05, do fundo do Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE, numerário que se torna mais significativo quando se constata o rombo de fundo previdenciário, cujo desfalque tem reflexos diretos na aposentadoria e na saúde de seus beneficiários. 6. Recurso especial provido, para restabelecer a pena cominada em 1º grau, com a causa de aumento do § 2º do art. 327 do Código Penal.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima

indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de

Justiça, retificando decisão proferida em Sessão do dia 17.12.2013,

prosseguindo no julgamento após o voto-vista antecipado do Sr. Ministro

Rogerio Schietti Cruz, dando provimento ao recurso especial, o voto do Sr.

Ministro Sebastião Reis Júnior acompanhando o voto da Sra. Ministra

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Relatora, e os votos das Sras. Ministras Assusete Magalhães e Marilza

Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE) acompanhando a

divergência, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do

voto do Sr. Ministro Rogerio Schietti, que lavrará o acórdão, vencidos a Sra.

Ministra Relatora e o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior, que negavam

provimento ao recurso. Votaram com o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz as

Sras. Ministras Assusete Magalhães e Marilza Maynard (Desembargadora

Convocada do TJ/SE).

Brasília, 20 de fevereiro de 2014(data do julgamento).

MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ Relator

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.385.916 - PR (2011/0080217-0)RELATORA : MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURARECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ RECORRIDO : ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTO ADVOGADO : MARCELO KINTZEL GRACIANO E OUTRO(S)

RELATÓRIO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):

Trata-se de recurso especial, interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO

ESTADO DO PARANÁ, com fundamento na alínea "a" do inciso III do artigo 105 da

Constituição Federal, em face de acórdão do Tribunal de Justiça daquele Estado.

Consta dos autos que a ora recorrida - advogada, chefe de gabinete e

posteriormente diretora no Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE, foi condenada

em primeira instância como incursa nos artigos 312, caput , e 327, §§ 1° e 2°, do Código

Penal, por duzentos e quarenta e oito vezes, c/c artigo 71 do mesmo diploma, à pena de 5

anos, 6 meses e 20 dias de reclusão, em regime semiaberto, além de 66 dias-multa, tendo

ainda sido determinada a perda da função pública.

Diante desse desate, a defesa interpôs recurso de apelação, ao qual a Corte

local deu parcial provimento para, no que toca à recorrente, reduzir a pena-base estabelecida

na origem e afastar a causa especial de aumento de pena prevista no § 2º do art. 327 do

Código Penal, de modo a fixar a pena definitiva em 3 anos, 7 meses e 10 dias de reclusão, a

ser cumprida em regime aberto, substituída por duas penas restritivas de direito. A ementa do

aresto foi redigida nos seguintes termos:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE PECULATO (Código Penal ART. 312 E 327 §§ 1o E 2o). IMPLANTAÇÃO DE PENSÃO PELO INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA DO ESTADO - IPE. FALECIDO QUE NUNCA FOI FUNCIONÁRIO PÚBLICO. PENSÃO OBTIDA DE MANEIRA FRAUDULENTA. CONJUNTO PROBATÓRIO CONVINCENTE. RESPONSABILIDADE PENAL DAS RÉS COMPROVADA. CRIMES DE PECULATO EM CONTINUIDADE DELITIVA CONFIGURADOS. DOSIMETRIA DA PENA. CAUSA DE AUMENTO DO § 2o DO ART. 327 DO CÓDIGO PENAL. EXCLUSÃO. AUTARQUIA NÃO INCLUÍDA NA RELAÇÃO DO DISPOSITIVO. ANALOGIA IN MALAM PARTEM . INADMISSIBILIDADE NECESSIDADE DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA PENA BASE. CIRCUNSTÂNCIAS NORMAIS OU INERENTES AO TIPO. REDUÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE DO ART. 65, I DO CÓDIGO PENAL RÉ COM MAIS DE SETENTA ANOS RECONHECIMENTO. REDUÇÃO DAS PENAS E MODIFICAÇÃO DO REGIME (MAIS BRANDO) EM RELAÇÃO A UMA DAS RÉS. EFEITO DA CONDENAÇÃO APLICADO NA SENTENÇA PERDA DO CARGO PÚBLICO. FUNCIONÁRIA APOSENTADA ANTES DA SENTENÇA. IRRELEVÂNCIA.

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APOSENTADORIA QUE SE RELACIONA COM CARGO QUE LHE DEU ORIGEM. CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA. ADMISSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Muito embora a autarquia pudesse e devesse figurar entre os entes públicos relacionados no § 2o do art 327 do Código Penal, para efeito de aumento de pena não foi expressamente prevista, de modo que a maiorante não pode ser aplicada a funcionário de autarquia sob pena de ferir o princípio que veda a aplicação de analogia em desfavor do réu.

2. "Legítima é a cassação de aposentadoria de servidor, decorrente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória pela prática de crime cometido na atividade, que lhe impôs expressamente, como efeito extrapenal especifico da condenação, a perda do cargo publico." (STJ - RMS 13924-SP, 5ª Turma, Rel. Min Felix Fischer, DJ 12.08.2003, p. 245).

A título de ilustração, confira-se trecho da fundamentação do aresto, no ponto

em que deu provimento ao apelo da recorrida para rever a dosimetria da pena fixada pela

sentença:

A pena base foi fixada em dois anos e seis meses, justificando-se o distanciamento do mínimo nas circunstâncias consideradas desfavoráveis: culpabilidade, motivos e consequências.

Ocorre que a culpabilidade e os motivos, na forma que constou da fundamentação não podem servir para elevar a pena base. O que se disse a respeito da culpabilidade não aponta para uma maior censurabilidade da conduta, apenas se faz referência, de forma genérica, à presença dos elementos formadores da culpabilidade. Já o motivo, consistente em avidez por lucro fácil e indevido, é inerente ao tipo. Em qualquer crime de peculato esta motivação genérica estará presente e, evidentemente, não justifica a fixação da pena base acima do mínimo.

Resta, portanto, como negativa, apenas as consequências do crime. E aqui, a despeito das ponderações da defesa, de que os valores foram pagos mensalmente, sem grande influência no orçamento do Estado, não se pode deixar de considerar que o valor total desviado, mais de um milhão e seiscentos mil reais, é substancial e representa uma grave lesão aos cofres públicos, ainda que os desvios tenham ocorrido ao longo de vários anos. As consequências são, de fato, desfavoráveis.

Desta forma, se as três circunstâncias judiciais consideradas negativas resultaram em uma pena base seis meses acima do mínimo, excluídas duas delas deste rol, a pena base deve ficar em dois anos e dois meses de reclusão.

A seguir a apelante reclama da aplicação da causa especial de aumento de pena prevista no § 2º do art. 327 do Código Penal, uma vez que o IPE, que inicialmente tinha a natureza de autarquia e depois passou a serviço social autônomo, assim, pessoa jurídica de direito privado, de sorte que não se enquadra no referido dispositivo.

(...)A questão que se coloca é saber se o funcionário de autarquia, como é

o caso da apelante Rosângela, está sujeito à aludida causa de aumento.E aqui, não obstante as fundamentadas ponderações expedindas pelo

Ministério Público de primeiro grau em suas contra-razões, não há como se

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admitir, para efeitos penais, a identidade entre os conceitos de autarquia e fundação pública. Até mesmo no texto transcrito pelo apelado, de autoria da administrativista Maria Sylvia Zanella di Pietro, pode-se verificar que a questão não é pacífica.

(...)Como se vê, a equiparação entre autarquia e fundação instituída pelo

poder público não é pacífica, de sorte que somente mediante uma interpretação analógica seria possível entre os entes enumerados no § 2º do art. 327. Ocorre que em matéria de direito penal é absolutamente vedada a analogia in malam partem .

Houve, na verdade, um cochilo do legislador ao não incluir os funcionários de autarquias na causa de aumento em questão. A correção da falha, contudo, não é permitida ao Poder Judiciário, pois representaria, sem dúvida alguma, o emprego de analogia em prejuízo do réu.

Somente mediante alteração legislativa a falha pode ser corrigida. E a empreitada já está em andamento do Congresso Nacional.

Com efeito, o Projeto de Lei nº 6.386/2005, apensado ao PL 6.422/2005 busca corrigir a falha legislativa que deixou de fora da causa de aumento os funcionários das autarquias.

(...)Impõe-se, pois, afastar da pena aplicada a fração correspondente à

majorante do § 2º do art. 327 do Código Penal. Deste modo, sobre a pena base, já alterada, de dois anos e dois meses,

há que se aplicar tão somente o aumento decorrente da continuidade delitiva no parâmetro adotado na sentença, de dois terços, tendo em vista a quantidade de crimes.

Resta, pois, a pena definitiva da apelante Rosângela do Rocio Smaniotto fixada em 3 (três) anos, 7 (sete) meses e 10 (dez) dias de reclusão (dois anos e dois meses, mais dois terços). (fls. 134/137)

Opostos embargos declaratórios pela defesa e pelo Ministério Público, foram

ambos rejeitados.

Nas razões do recurso especial, alega o Parquet violação do artigo 327, § 2º,

do Código Penal, ao argumento de que deve incidir a causa de aumento de pena prevista

naquele dispositivo para ocupantes de cargos em comissão, ainda que não integrem uma das

entidades expressamente elencadas em sua parte final (que, no caso, é uma autarquia -

Instituto de Previdência do Estado do Paraná).

Aduz, a esse respeito, que o referido dispositivo legal estabelece duas

situações distintas que ensejam a aplicação da aludida causa de aumento de pena: quando o

autor for simplesmente ocupante de cargo em comissão ou, por outro lado, quando for

ocupante de função de direção ou assessoramento em atividade vinculada aos entes por ele

elencados (órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou

fundação instituída pelo poder público). No ponto, argumenta que a distinção referida residiria

na importância do cargo em comissão, que mereceria repreensão mais severa da lei penal.

Às fls. 1140/1147 opina o Ministério Público Federal pelo provimento do

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recurso especial, em parecer assim sintetizado:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. PECULATO. FUNCIONÁRIA PÚBLICO DE AUTARQUIA, DETENTORA DE CARGOS EM COMISSÃO À ÉPOCA DOS DELITOS. APLICAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA NO ART. 327 §2° DO CP. CABIMENTO.

A causa de aumento de pena, prevista no artigo 327, §2° do Código Penal, não deve ser afastada quando o autor do crime é ocupante de cargo em comissão, independentemente de integrar, ou não, uma das entidades elencadas na parte final do mesmo dispositivo legal.

PARECER PELO PROVIMENTO DO RECURSO.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.385.916 - PR (2011/0080217-0)

VOTO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):

ge-se a controvérsia à possibilidade de aplicação da causa de aumento de pena

prevista no artigo 327, § 2º, do Código Penal, na hipótese de crime praticado por funcionário

público ocupante de cargo em comissão ou de função de direção ou assessoramento em

autarquia.

É sabido que a Administração Pública, em seu sentido subjetivo, divide-se em

Administração Direta, composta pelos órgãos que integram a União, os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios, e pela Administração Indireta, formada por pessoas jurídicas que

compreendem as autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações

públicas.

Nesse sentido, o Decreto-Lei nº 200/67, ao tratar da Administração Federal,

estabelece que:

Art. 4°. A Administração Federal compreende:I - A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na

estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios.II - A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias

de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria:a) Autarquias;b) Empresas Públicas;c) Sociedades de Economia Mista.d) fundações públicas. (Incluído pela Lei nº 7.596, de 1987)

As entidades da Administração Indireta são dotadas de características próprias

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que as diferenciam entre si e, no que toca às fundações, a doutrina administrativista

majoritária as distingue em públicas e privadas, sendo as primeiras consideradas uma espécie

de autarquia.

Sobre o tema, segue o escólio de José dos Santos Carvalho Filho, ao tratar da

natureza jurídica das fundações:

Há duas correntes sobre a matéria.A primeira, hoje dominante, defende a existência de dois tipos de

fundações públicas: as fundações de direito público e as de direito privado, aquelas ostentando personalidade jurídica de direito público e estas sendo dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Por esse entendimento, as fundações de direito público são caracterizadas como verdadeiras autarquias, razão por que são denominadas, algumas vezes, de fundações autárquicas ou autarquias fundacionais. Seriam elas uma espécie do gênero autarquia.

O STF optou por esse entendimento, quando deixou assentado que "nem toda fundação instituída pelo Poder Público é fundação de direito privado. As fundações, instituídas pelo Poder Público, que assumem a gestão de serviço estatal e se submetem a regime administrativo previsto, nos Estados-membros, por leis estaduais, são fundações de direito público, e, portanto, pessoas jurídicas de direito público. Tais fundações são espécie do gênero autarquia, aplicando-se a elas a vedação a que alude o § 2º do art. 99 da Constituição Federal."

A segunda corrente advoga a tese de que, mesmo instituídas pelo Poder Público, as fundações públicas têm sempre personalidade jurídica de direito privado, inerente a esse tipo de pessoas jurídicas. O fato de ser o Estado o instituidor não desmente a caracterização dessas entidades, até porque é o Estado quem dá criação a sociedades de economia mista e a empresas públicas, e essas entidades, como já visto, têm personalidade jurídica de direito privado. (Manual de Direito Administrativo , 20ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris , 2008, pp. 486/487)

Conquanto as fundações de direito público sejam espécie do gênero autarquia,

nem todas as entidades autárquicas são fundações, como é o caso do Instituto de Previdência

do Estado do Paraná - IPE, entidade na qual a recorrida exerceu cargo em comissão e,

posteriormente, função de direção ou assessoramento.

Ocorre, porém, que o § 2º do artigo 327 do Código Penal prevê a incidência de

causa especial de aumento de pena apenas nas hipóteses em que os autores forem ocupantes

de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da

Administração Direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída

pelo poder público, não tendo feito o legislador qualquer menção às autarquias. Confira-se, por

oportuno, a redação do referido dispositivo:

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo,

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emprego ou função pública.Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo,

emprego ou função em entidade paraestatal. § 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego

ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores

dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em

comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da

administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública

ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº 6.799, de 1980)

Desse modo, apenas mediante o emprego da analogia poder-se-ia aplicar, em

casos como o presente, a referida causa de aumento de pena, não tendo a lei feito uma

distinção entre os ocupantes de cargos em comissão, para os quais sempre incidiria o aumento

independentemente do órgão ou pessoa jurídica aos quais vinculados, e os de função de

direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista,

empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.

Na lição de Luiz Regis Prado, "em geral, por analogia, costuma-se fazer

referência a um raciocínio que permite transferir a solução prevista para determinado caso a

outro não regulado expressamente pelo ordenamento jurídico, mas que comparte com o

primeiro certos caracteres essenciais ou a mesma ou suficiente razão, isto é, vinculam-se por

uma matéria relevante simili ou a pari" (Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume I. 5ª

ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 194/195).

Embora se reconheça a possibilidade de sua utilização em favor do réu (in

bonam partem ) na seara criminal, em respeito ao princípio da legalidade não se admite o

emprego da analogia em prejuízo do réu (in malam partem ) tanto no que se refere às normas

penais incriminadoras, para ampliar a disposição penal, como tampouco para agravar a pena.

A esse respeito, oportuno trazer à baila os ensinamentos de Rogério Greco:

As condutas que o legislador deseja proibir ou impor, sob a ameaça de sanção, devem vir descritas de forma clara e precisa, de modo que o agente as conheça e as entenda sem maiores dificuldades. O campo de abrangência do Direito Penal, dado o seu caráter fragmentário, é muito limitado. Se não há previsão expressa da conduta que se quer atribuir ao agente, é sinal de que esta não merecer a atenção do legislador, muito embora seja parecida com outra já prevista pela legislação penal. Quando se inicia o estudo da analogia em Direito Penal, devemos partir da seguinte

premissa: é terminantemente proibido, em virtude do princípio da

legalidade, o recurso à analogia quando esta for utilizada de modo a

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prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstâncias

agravantes, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais

incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas

expressamente pelo legislador, etc. (grifo não original - Curso de Direito Penal - Parte geral . 5ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 46).

Na mesma linha de raciocínio, confira-se:

A lei penal delimita uma conduta lesiva ou idônea a pôr em perigo um bem jurídico relevante e prescreve uma consequência punitiva para quem realiza. Ao fazê-lo, circunscreve a ilicitude penal ao comportamento descrito e não permite que o tratamento punitivo cominado possa ser estendido a uma conduta que se mostra aproximada ou assemelhada. Cada figura típica constituiu, em verdade, uma ilha no mar geral do ilícito e todo o sistema punitivo se traduz num arquipélago de ilicitudes. Daí a impossibilidade do Direito Penal atingir a ilicitude na sua totalidade e de preencher, através do processo integrativo da analogia, eventuais lacunas. Definir, nessa ótica, quer dizer, explicitar, com marcos precisos, uma conduta criminosa que não pode servir de parâmetro para situações fáticas avizinhadas.

(...)O princípio da legalidade, além de interferir sobre as fontes e a

interpretação da lei penal (a reserva absoluta de lei, a proibição da analogia in malam partem , a proibição da retroatividade da lei penal incriminadora) e sobre a definição adequada do tipo (técnica legislativa de formulação típica), dá ainda fundamento a quatro garantias do cidadão: garantia criminal, garantia penal, garantia processual e garantia de execução penal. (FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação . 8ª. ed. Coord. Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: 2007, p. 38/39)

Na espécie dos autos, portanto, eventual aplicação da causa de aumento em

tela a ocupante de cargo em comissão ou função de direção ou assessoramento em autarquia

teria como fundamento a aplicação da analogia, recurso integrativo que, conforme ressaltado,

não se admite na esfera penal em prejuízo do réu.

Embora a questão não tenha sido enfrentada por vários doutrinadores em

Direito Penal, Cezar Roberto Bitencourt tratou do tema nos seus comentários ao § 2º do artigo

327 do Código Penal, tendo esposado o entendimento ora acolhido:

A causa de aumento incluída pela Lei n. 6.799/80 no art. 327, que define funcionário público para efeitos penais, tem endereço certo: destina-se a funcionários públicos - próprios ou impróprios - que exerçam cargos em comissão ou função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo Poder Público.

Constata-se, de plano, que o texto legal ao discriminar os entes públicos em que o exercício das funções que detalha devem ter a sanção

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penal majorada omitiu, intencionalmente ou não, a inclusão de autarquia, que tem natureza jurídica própria e regida por regime jurídico igualmente específico. Consequentemente, a majorante constante do dispositivo em exame não pode ser aplicada àqueles que exerçam cargos em comissão, direção ou assessoramento nas referidas autarquias, ante a vedação do uso de analogia in malam partem . Ao tratar da equiparação a funcionário público, o legislador utilizou a locução "entidade paraestatal", em seu § 1º, que, por certo, abrange também as autarquias; contudo, no parágrafo seguinte, mais específico, discriminou em quais dessas entidades o exercício do cargo em comissão ou função de direção ou assessoramento deve ser punido mais severamente. Logo, impossível ao intérprete dar-lhe extensão maior que aquela que o legislador concebeu. (Código Penal Comentado . 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1226/1227).

Cumpre ainda consignar que este colegiado da Sexta Turma já tratou do tema

ora em análise por ocasião do julgamento do Recurso Especial 940.861/SP, da relatoria do

Ministro Hamilton Carvalhido (DJe 10/03/2008), em que se concluiu que a disposição do

parágrafo 2º do artigo 327 do Código Penal compreende implicitamente as autarquias.

Melhor apreciando a questão, contudo, com base nos fundamentos acima

esposados creio ser de rigor a manutenção do acórdão recorrido, que afastou a causa de

aumento de pena prevista no artigo 327, § 2º, do Código Penal na hipótese de crime praticado

por funcionário público ocupante de cargo em comissão ou de função de direção ou

assessoramento em autarquia, sob pena de aplicação da analogia in malam partem .

Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.

É como voto.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTOSEXTA TURMA

Número Registro: 2011/0080217-0 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.385.916 / PR

MATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 4838395 483839505

PAUTA: 17/10/2013 JULGADO: 17/10/2013

Relatora

Exma. Sra. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA

Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. JOÃO FRANCISCO SOBRINHO

SecretárioBel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁRECORRIDO : ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTOADVOGADO : MARCELO KINTZEL GRACIANO E OUTRO(S)CORRÉU : VALDEMIRO MACHADOCORRÉU : NANCY ANUNCIATTA SMANIOTTOCORRÉU : LUCY MARIA SMANIOTTO

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes Praticados por Funcionários Públicos Contra a Administração em Geral - Peculato

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Após o voto da Sra. Ministra Relatora negando provimento ao recurso especial, pediu vista antecipada o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz. Aguardam os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior, Assusete Magalhães e Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE).

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.385.916 - PR (2011/0080217-0)

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ:

Este recurso especial, interposto pelo Ministério Público do Estado do Paraná, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, suscita contrariedade ao art. 327, § 2º, do Código Penal, em face de acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça local, que deu parcial provimento à apelação de ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTO, para diminuir a pena cominada, pela prática do crime de peculato (CP, art. 312, caput ), fixar o regime aberto e substituir a reprimenda corporal por restritivas de direito, nos termos da ementa abaixo transcrita:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE PECULATO (CP ART. 312 E 327 §§ 1o E 2o). IMPLANTAÇÃO DE PENSÃO PELO INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA DO ESTADO - IPE. FALECIDO QUE NUNCA FOI FUNCIONÁRIO PUBLICO. PENSÃO OBTIDA DE MANEIRA FRAUDULENTA.CONJUNTO PROBATÓRIO CONVINCENTE. RESPONSABILIDADE PENAL DAS RÉS COMPROVADA. CRIMES DE PECULATO EM CONTINUIDADE DELITIVA CONFIGURADOS. DOSIMETRIA DA PENA. CAUSA DE AUMENTO DO § 2° DO ART. 327 DO CÓDIGO PENAL. EXCLUSÃO. AUTARQUIA NÃO INCLUÍDA NA RELAÇÃO DO DISPOSITIVO. ANALOGIA IN MALAM PARTEM. INADMISSIBILIDADE NECESSIDADE DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA PENA BASE. CIRCUNSTÂNCIAS NORMAIS OU INERENTES AO TIPO. REDUÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE DO ART. 65, I DO CÓDIGO PENAL RÉ COM MAIS DE SETENTA ANOS RECONHECIMENTO. REDUÇÃO DAS PENAS E MODIFICAÇÃO DO REGIME (MAIS BRANDO) EM RELAÇÃO A UMA DAS RÉS. EFEITO DA CONDENAÇÃO APLICADO NA SENTENÇA. PERDA DO CARGO PÚBLICO. FUNCIONÁRIA APOSENTADA ANTES DA SENTENÇA. IRRELEVÂNCIA. ANTES DA SENTENÇA. IRRELEVÂNCIA APOSENTADORIA QUE SE RELACIONA COM O CARGO QUE LHE DEU ORIGEM. CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA. ADMISSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Muito embora a autarquia pudesse e devesse figurar entre os entes públicos relacionados no § 2o do art 327 do Código Penal,

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para efeito de aumento de pena não foi expressamente prevista, de modo que a majorante nao pode ser aplicada a funcionário de autarquia sob pena de ferir o princípio que veda a aplicação de analogia em desfavor do réu.2. "Legítima é a cassação de aposentadoria de servidor decorrente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória pela prática de crime cometido na atividade, que lhe impôs expressamente, como efeito extrapenal específico da condenação, a perda do cargo público." (STJ - RMS 13924-SP, Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 12.08.2003, p. 245).

Os embargos de declaração opostos pela defesa restaram rejeitados consoante estampa o resumo de fl. 165.

Novo recurso integrativo foi interposto, agora pelo Ministério Público, que também findou rejeitado pelo Colegiado estadual (fls. 231/237).

O recurso especial sustenta, de início, preenchidos os pressupostos recursais objetivos e subjetivos, além do prequestionamento da matéria recorrida, cuja análise, segundo pondera, não implica o reexame do conjunto probatório.

Nas razões do pedido de reforma, alega o parquet estadual que, ao perpetrar os crimes de peculato, a recorrida ocupava os cargos comissionados de chefe de gabinete e de diretora de departamento do Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE, e que, por tal razão, desde o oferecimento da denúncia, pugnou pela aplicação da causa de aumento do art. 327, § 2º, do Código Penal.

Nesse sentido, pondera o órgão ministerial que o aludido dispositivo tem incidência em duas situações distintas: i) "quando o autor do delito for simplesmente ocupante de cargo em comissão "; e ii) "quando o autor do delito for ocupante de função de direção ou assessoramento , desde que esteja dita atividade vinculada aos entes que por ela foram elencados (órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público)".

Em razão da primeira situação esposada, assevera que o reconhecimento da majorante não exige que o funcionário público, autor de crime, seja integrante do rol das entidades previstas na parte final do § 2º do art. 327 do Código Penal, pois, "em verdade, a condição de ocupante de cargo em comissão era suficiente, independentemente do ente a que

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pertencia o servidor para fazer incidir a causa de aumento de pena debatida" (fl. 261).

O recorrente menciona, também, que uma interpretação diversa conduzirá às situações despropositadas em que "um ocupante de função de simples assessoramento em sociedade de economia mista (ente de personalidade jurídica de direito privado) pudesse ser punido com pena mais gravosa do que um ocupante de cargo em comissão em autarquia (ente de personalidade jurídica de direito público)." E cita, por fim, julgado desta Corte, que justifica o recrudescimento da reprimenda, em virtude do cargo em comissão (fl. 262).

O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso (fls. 1.140/1.147).

A em. Ministra relatora, Maria Thereza de Assis Moura, afirmou que o Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE, órgão no qual a recorrida exerceu cargo em comissão, tem natureza de autarquia, ente não mencionado no § 2º do art. 327 do CP, o que afastaria a incidência da majorante, sob pena do emprego da analogia em prejuízo do réu (in malam partem ).

Nessa diretriz cita as doutrinas do escol de Luiz Regis Prado, Rogério Greco e Alberto Silva Franco, para concluir que "eventual aplicação da causa de aumento em tela a ocupante de cargo em comissão ou função de direção ou assessoramento em autarquia teria como fundamento a aplicação da analogia, recurso integrativo que, conforme ressaltado, não se admite na esfera penal em prejuízo do réu", negando, assim, provimento ao recurso especial.

Trago o voto vista acerca da questão.

Ab initio , secundo as palavras da . Ministra relatora, ao rechaçar técnica de integração da norma penal, mediante a utilização da analogia, como decorrência lógica do princípio da legalidade.

Não por outro motivo o seu douto voto vem respaldado com os escólios doutrinários de Rogério Greco, Alberto Silva Franco e Cezar Roberto Bitencourt, este último, no ponto, em explícita alusão ao § 2º do art. 327 do Código Penal, assevera "impossível ao interprete dar-lhe extensão maior que aquela o legislador concebeu." (Código Penal Comentado, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.226/1.227).

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No entanto, numa visão pós-positivista há muito alcançada por nossa cultura jurídica, insta separar o que é opção do Direito Penal, aí incluídas suas condutas e sanções, com todas as imperfeições inerentes à produção legislativa, e a aplicação do Direito, sem desviar-se da verdadeira vontade da norma.

Diz o art. 327, caput , e §§ 1º e 2º do Código Penal:

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000 )§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº 6.799, de 1980 )

Com efeito, a partir da leitura do dispositivo em comento, percebe-se que houve uma sucessão de leis no tempo, no sentido de elastecer o conceito de funcionário público para fins penais.

A Lei n. 6.799, de 23 de junho de 1980, transmudou o que era parágrafo único do art. 327 do CP em parágrafo 1º – sem, contudo, alterar a redação original, que, no ano 2000, teve como acréscimo ao conceito de funcionário público, "quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para execução de atividade típica da administração pública ." (Lei n. 9.983/2000) –, e trouxe a redação do parágrafo 2º, justamente a causa de aumento de pena nos moldes atuais.

À época, a novel majorante reacendeu o debate doutrinário, que já era travado no âmbito do direito administrativo, a respeito do alcance do conceito de entidade paraestatal . De um lado, uma corrente restritiva, v.g., Cretella Júnior (Curso de Direito Administrativo , 6a. edição, n° 32, Forense, Rio de Janeiro, 1981) e Themístocles Brandão Cavalcanti (Tratado de Direito Administrativo , vol. II, p. 108, Livraria Freitas Bastos, RJ e SP, 1964), que

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consideravam apenas as autarquias como paraestatal; e de outro, a corrente extensiva, liderada por Hely Lopes Meirelles, cuja compreensão abrange as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as fundações instituídas pelo Poder Público e os serviços sociais autônomos (Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 320).

Veja-se, então, que no Direito Penal prevaleceu, por meio de uma interpretação integradora, um conceito de funcionário público mais abrangente do que aquele definido pelo Direito Administrativo, que, a par do que já dizia o caput do artigo, tanto englobou o rol reproduzido no § 2º do art. 327 do CP, como os próprios entes autárquicos. Nesse passo, os escólios doutrinários de Rogério Greco, confira-se:

O § 1º, acrescentado ao art. 327 pela Lei n. 9.983, de 14 de julho de 2000, criou o chamado funcionário público por equiparação, passando a gozar desse status o agente que exerce cargo, emprego ou função em entidades paraestatais (aqui compreendidas as autarquias , sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações instituídas pelo Poder Público ), bem como aquele que trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Curso de Direito Penal: parte especial , volume IV - 9. ed. - Niterói, RJ: Impetus, 2013, p. 391/392, destaquei).

A própria causa de aumento de pena reforçou o entendimento daqueles que compreendiam as entidades paraestatais de maneira mais ampla, o que, por via de consequência, elasteceu o conceito de funcionário público disposto no § 1º do art. 327 do Código Penal.

No ponto, insta trazer o ilustrado entendimento do em. Ministro Moreira Alves, que, após rememorar o debate doutrinário do campo administrativo, acerca do conceito de paraestatal, ensina:

Há a necessidade, pois, de voltar ao texto penal para, com elementos que dele se extraiam, dar sentido à expressão entidade paraestatal por ele empregada . Ora, não me parece razoável que, tendo o "caput" do artigo 327 do Código Penal adotado conceito amplíssimo de funcionário público para os efeitos penais, tenha ele, ao equiparar a funcionário público, no § 1º, quem exerça cargo, emprego ou função em entidade paraestatal,

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se utilizado dessa expressão para restringi-la às autarquias , até porque, tratando-se de expressão de conteúdo controvertido, se a Lei pretendesse restringi-la exclusivamente às autarquias, curial seria que ao invés dela empregasse a expressão própria: autarquia. Só isso basta para demonstrar que, ou a Lei teve os servidores das autarquias como enquadrados no conceito amplíssimo de funcionário público que adotou o "caput" do artigo 327, ou, se os teve como funcionários públicos por equiparação não restringiu o disposto no § 1º desse dispositivo exclusivamente a eles, mas alcançou os de outras entidades também, as mais das vezes, compreendidas como paraestatais, como, pelo menos, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações instituídas pelo Poder Público.Ademais, a inclusão nesse artigo 327 do § 2o pela Lei n° 6.799/80 , a qual não se fez para modificar o conteúdo da expressão entidade paraestatal utilizada no § Io que permaneceu inalterado, serve, no entanto, a meu ver, como elemento a robustecer a interpretação dele no sentido de, pelo menos, abranger outros entes que não as autarquias. Com efeito, ao prever aumento de pena para os autores dos crimes previstos no Capítulo em que está inserido o artigo 327 do Código Penal - e esses autores são inequivocamente os funcionários públicos como conceituados no "caput" e os a ele equiparados pelo § Io, sendo petição de principio pretender-se que estes só sejam os servidores autárquicos - teve como igualmente graves as condutas delituosas dos que forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão não só da administração direta, mas também de sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo

poder público. (HC n. 79.823-3/RJ, 1ª T., DJ 2.2.2001, destaquei).

Tal interpretação construída pela doutrina e jurisprudência, necessária que foi para a conformação do aludido conceito no âmbito penal, não pode ser agora olvidada mediante a literalidade estanque da majorante, para afastar o devido alcance do § 2º do art. 327 do CP a todos que a norma quis abarcar como funcionário público, sob pena de negar-se o claro objetivo do conjunto normativo.

Vale dizer: por força da compreensão erigida, à imagem e semelhança da equiparação ao conceito de funcionário público, tal qual os moldes do disposto ao art. 327 do CP – com contribuição, repisa-se, do

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próprio § 2º –, admite-se, em matéria penal, em casos estritamente necessários uma interpretação que corresponda ao espírito da norma.

Ao dissertar sobre os tipos de interpretação válida da lei penal, aduz Álvaro Mayrink Veiga a respeito da interpretação lógica, aí incluídos suas vertentes sistemática e histórico-político.

Denomina-se lógica, a interpretação que busca a vontade da lei, além de suas palavras, revelando o espírito nela contido. É através da interpretação lógica que se pode atingir a ratio legis (Scire leges non hoc est verba earum teneri, sed vim ac potestatem).O elemento lógico serve para determinar o sentido da norma, através da "intenção do legislador" .A discordância entre a expressão escrita e a vontade da norma pode ser quantitativa ou qualitativa. A primeira, quando a lei queria expressar, com as palavras empregadas, uma coisa diversa, e a segunda, quando queria dizer mais ou menos. A ratio legis não deve confundir-se com os motivos ocasionais do fato (occasio legis).Diz MANZINI que a investigação sobre a ocasião da norma é muito mais útil à valoração política da lei do que é sua interpretação jurídica . [...]O elemento sistemático toma em consideração, a situação das disposições penais, em relação ao sistema, e aproveita as comparações entre as diversas disposições (v.g., a colocação sistemática do roubo qualificado pelo resultado morte, como crime contra o patrimônio, exclui, no homicídio, as formas qualificadas).A utilidade deste meio é evidente porque cada norma jurídica representa uma parcela do ordenamento jurídico. A fixação do princípio geral é indispensável, para a exata interpretação da norma. Mediante o emprego do elemento sistemático, atingimos a verdadeira objetividade do tipo . Como bem salienta MANZINI. Pode-se confrontar uma norma incriminadora, com o nomem iuris assinalado na rubrica colateral, visto que o nome sintetiza a noção, podendo, muitas vezes, aclará-la. Tais rubricas não possuem valor decisivo per se, mas apresentam relevância exegética.Já o elemento histórico está em razão de ser o Direito um produto histórico-cultural e toda norma jurídica deve ser visualizada, através de sua evolução . O intérprete deve atentar

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para os antecedentes históricos, o processo de formação (projetos, debates parlamentares), a exposição de motivos, as suas respectivas reformas. (Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, n. 38, 1999, Janeiro/Março, p.p. 49/56. grifei).

Veja-se, na espécie, que não há criação de regra em desfavor do réu, o que, de fato, acarretaria analogia in malam partem , mas sim mero reconhecimento da vontade da norma, pois a incidência do § 2º do art. 327 do CP, como em uma via de mão dupla, não poderia deixar de alcançar toda equiparação ao conceito de funcionário público – justamente para fins penais –, uma vez que a própria majorante ajudou a construí-lo.

Naquele referido julgado, da Suprema Corte, da relatoria do em. Ministro Moreira Alves, não passou despercebida a imperfeição do art. 327, § 2º, do CP. Contudo, segundo infere-se do douto voto, entendeu Sua Excelência que não fica impedido o reconhecimento da majorante para os funcionários autárquicos, in verbis :

Daí se extrai, não só que é imperfeito esse dispositivo, porque não previu o aumento de pena quando o autor do crime é ocupante de cargo em comissão ou de função de direção e assessoramento de autarquia (que não integra a administração direta, nem foi nominada na parte final dele) , mas também que, dado o interesse na proteção da sociedade de economia mista, empresa pública e fundação instituída pelo poder público – que, a esse respeito, são colocadas no mesmo nível da administração direta, porque, como acentua MIRABETE ("Manual de Direito Penal", Parte Especial - Arts. 235 a 361 do CP, 9a. ed. , p. 291, Editora Atlas S/A, São Paulo, 19 96), "embora possam não ter elas fins próprios do Estado, são constituídas, ao menos em parte com patrimônio público, visam à realização de vários fins de interesse coletivo, e se submetem às normas e controle do Estado, justificando-se a maior proteção que a lei vai-lhes emprestando" – não se justifica que qualquer servidor autárquico por mais subalterno que seja tenha, se ocupante de comissão de somenos importância, sua pena agravada em virtude do disposto nesse § 2° para a defesa dessas entidades paraestatais, e não sejam elas defendidas contra atos previstos como crimes dessa natureza praticados, por exemplo, por diretores- presidentes dessas entidades .

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Por outro vértice, releva-se notar que não resvala em analogia in malam partem o recrudescimento da pena àqueles que desempenham seu ofício nos entes autárquicos, que, em razão do posto de alta responsabilidade, locupletaram-se às custas da Administração, porquanto ocupantes de cargo em comissão ou de chefia ou assessoramento, quando a eles – e sobretudo a eles – cabiam zelar pela coisa pública.

E isso constata-se não só a partir da evolução legislativa adrede trazida, mas também pelos inúmeros instrumentos normativos de combate à corrupção de que o Estado lança à mão, ano após ano.

A meu ver, essa busca permanente na defesa do erário, bem como no proporcional apenamento desses agentes que mancham a carreira pública, devem ser levados em consideração pelo magistrado na interpretação da norma penal quando da apuração dessas condutas que, infelizmente, ainda grassam em nosso país.

Roberto Livianu, em Corrupção e Direito Penal - Um diagnóstico da corrupção no Brasil , faz coro quanto à necessidade de uma nova construção interpretativa das leis, que, ao revés de configurar-se medida arbitrária, atende aos valores da ética no combate à corrupção:

O juiz, como mero intérprete da lei deve ceder lugar ao juiz que solucione conflitos sociais, de acordo com os princípios constitucionais, uma vez que seu poder de decisão repousa na própria sociedade. De fato, uma sociedade que se apresenta conflitiva, diante da pluralidade de opiniões, não pode depender de um modelo de pura aplicação da lei, sendo necessário que haja condições de enfrentar constantes transformações sociais.Desta forma, deixa de haver uma simples interpretação das leis, mas a busca da norma de seus valores subjacentes, o que diferencia o princípio da fidelidade à lei com sua interpretação literal, mas com a busca de seu sentido e sua finalidade, cuja ultimo ratio descansa "no sistema de valores éticos e políticos que

lhes servem de fundamento." (p. 198/199).

O abandono à interpretação literal – e em tudo isolada – da norma penal guarda sua necessidade para hipótese como a dos autos, em que a ora recorrida, quando ocupava cargo de chefia e de direção, em concurso com outras três pessoas, durante 12 anos, desviou, por 78 vezes (!), a

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vultosa quantia de R$ 1.649.143,05, do fundo do Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE, numerário que se torna mais significativo quando se constata o rombo de fundo previdenciário, cujo desfalque tem reflexos diretos na aposentadoria e na saúde de seus beneficiários.

E essa medida – de abandono à interpretação literal, em atendimento a ratio legis – já foi realizada pelo Supremo Tribunal Federal, justamente ao interpretar o § 2º do art. 327 do CP, no caso em que também apurado crime de peculato, cujo acusado era Governador de Estado. Confira-se, no ponto, trecho do judicioso voto do em. Ministro Carlos Velloso no INQ. 1.769/DF, Pleno:

A regra do § 2º do art. 327 do Código Penal é que a pena será aumentada da terça parte quando o autor do crime for ocupante de cargo em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.Numa interpretação literal do texto, poder-se-ia concluir que o governador, denunciado pelo crime de peculato, não se incluiria no dispositivo legal indicado.Ter-se-ia, com isso, mera interpretação literal. Mas a interpretação literal não é interpretação, mas simples leitura do texto a ser interpretado. A partir dessa leitura, passa-se, então, à interpretação. Esta exige, primeiro que tudo, que se busque a ratio do texto interpretando, a fim de que seja realizada sua finalidade . É o que procuraremos fazer. O governador, o prefeito, o presidente da República, enfim, qualquer autoridade pública pode ser sujeito do crime de peculato. É dizer, tais autoridades estão na cabeça do art. 312 do Código Penal. Indaga-se agora: qual a razão da regra do § 2º do art. 327 do Código Penal? A razão é esta: quem exerce cargo em comissão geralmente exerce cargo de direção. Esse servidor tem, pois, relativamente aos servidores que chefia, responsabilidade maior, e maior, evidentemente, poder de disposição dos bens públicos. Se é assim relativamente ao servidor que ocupa cargo em comissão, o que dizer exercentes dos cargos de chefia do executivo, do prefeito, do governador ou do presidente da República? Evidentemente que esses dirigentes superiores da administração pública têm responsabilidade muito maior do que o mero exercente de cargo em comissão, do detentor de DAS. E o poder de disposição dos bens públicos, que detêm é, também, muito maior do que o do mero exercente de cargo em comissão, do mero detentor de DAS.

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Observada, então, a ratio legis, a razão da norma inscrita no § 2º do art. 327 do Código Penal, forçoso é convir que está o governador nela incluído . O raciocínio não implica interpretação analógica ou extensiva, mas, simplesmente, interpretação compreensiva do texto. Está-se, simplesmente, interpretando a norma, observada a sua razão e a sua finalidade . Afasto, destarte, a alegação no sentido de que não seria aplicável, no caso, a regra do § 2º do art. 327 do Código Penal. (DJ 3.6.2005, destaquei).

Nesse julgado, a possibilidade de aplicação da majorante aqui versada, até para alcançar os chefes do Poder Executivo, nas três esferas da Federação, foi reconhecida pelo em. Ministro Sepúlveda Pertence, para quem seria "um rematado absurdo de punir mais gravemente o auxiliar do que o responsável geral pela Administração Pública", em que pese não se confundir o munus público com o cargo de direção e tampouco com o em comissão, tal qual estampa a letra fria da lei.

Por isso mesmo, vaticinou Sua Excelência, o Min. Sepúlveda Pertence, ao ponderar tal medida interpretativa com o principio da legalidade:

Dir-se-á que o princípio da reserva legal não permite corrigir os absurdos lógicos a que leve a interpretação estrita da lei incriminadora. É certo, mas a meu ver a assertiva há de ser tomada cum grano salis. Ela vige só quando o texto da lei penal repila a leitura que, a partir da ratio da disposição, elida as possíveis consequências absurdas dela.

E qual é a razão da majorante do § 2º do art. 327 do CP, senão de apenar de maneira mais proporcional os agentes que ocupam lugar de destaque na Administração Pública – seja ela Direta ou Indireta –, em respaldo ao amplo conceito de funcionário público, para efeitos penais?

No mesmo passo, ainda, julgados de ambas as Turmas desta Corte:

A causa de aumento de pena prevista no § 2º do art. 327 do Código Penal incide a todos aqueles que, à época do delito, detinham cargos de confiança, tendo em vista que o aumento da pena decorre da maior reprovabilidade do agente que, no

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exercício de função pública e nela ocupando cargo que demanda com maior rigor a retidão da sua conduta funcional, vale-se de sua posição para a prática de conduta ilícita. (REsp n. 819.168/PE, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., DJ 5.7.2007)

A disposição do parágrafo 2º do artigo 327 do Código Penal, inequivocamente, compreende implicitamente as autarquias, fazendo, com faz, enumeração que vai dos órgãos da administração direta aos entes paraestatais, suprimindo, assim, qualquer dúvida sobre os funcionários autárquicos, cuja exclusão caracterizaria interpretação de resultado absurdo. (REsp n. 940.861/SP, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª T., DJe 10.3.2008).

Dessa forma, rogando a mais respeitosa vênia ao voto da em. Ministra relatora, diviso malferido o art. 327, § 2º do CP, pois, entendo que não se pode perder de vista a evolução da equiparação do conceito de funcionário público, que, além dos horizontes do Direito Administrativo, se aperfeiçoou para alcançar todo aquele que faz mau uso da coisa pública, tal como ocorre na espécie.

À vista do exposto, dou provimento ao recurso especial do Ministério Público do Estado do Paraná, para restabelecer a pena cominada em 1º grau, de 5 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, a Rosângela do Rocio Smaniotto, condenada pela prática do crime de peculato (CP, art. 312).

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VOTO

MINISTRA ASSUSETE MAGALHÃES: Sr. Presidente, essa questão é bem

interessante e, efetivamente, vou pedir a mais respeitosa vênia à eminente Ministra

Relatora para acompanhar a divergência.

Como bem demonstra o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz, em seu voto, a

partir da fl. 8, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre entendeu que a

fundação, instituída pelo Poder Público, é espécie do gênero autarquia, tanto que o art.

109, incisos I e IV, da Constituição Federal não contemplam as fundações, instituídas pelo

Poder Público, mas, não obstante isso, o Supremo sempre entendeu que as fundações

de direito público federais, embora não estivessem literalmente mencionadas no art. 109,

incisos I e IV, da Constituição Federal, eram espécie do gênero autarquia e, como tal,

inserem-se na competência da Justiça Federal, tanto em matéria cível, quanto em

matéria penal, quando há ofensa a bem, serviço ou interesse dessas fundações públicas

federais.

O voto do Ministro Schietti cita, inclusive, um precedente, não é um

precedente recente, mas confesso que foi o único que foi encontrado, um precedente de

2008, desta Turma, cuja ementa registra:

"A disposição do § 2º do art. 327 do Código Penal inequivocamente

compreende as autarquias, fazendo, como faz, enumeração que vai

dos Órgãos da Administração Direta aos Entes paraestatais,

suprimindo, assim, qualquer dúvida sobre os funcionários públicos,

cuja exclusão caracterizaria a interpretação de resultado absurdo".

Nesse precedente, de 2008, desta Turma, entendeu-se, unanimemente,

que aquela causa de aumento de pena alcançaria os servidores das autarquias federais,

já que as fundações, instituídas pelo Poder Público, constituem também espécie de

autarquias.

Pedindo a mais respeitosa vênia à eminente Ministra Relatora e ao Ministro

Sebastião Reis Júnior, acompanho a divergência.

Documento: 1275071 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 04/09/2014 Página 25 de 27

Superior Tribunal de Justiça

CERTIDÃO DE JULGAMENTOSEXTA TURMA

Número Registro: 2011/0080217-0 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.385.916 / PR

MATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 4838395 483839505

PAUTA: 17/10/2013 JULGADO: 17/12/2013

Relatora

Exma. Sra. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA

Relatora para Acórdão

Exma. Sra. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES

Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. OSWALDO JOSÉ BARBOSA SILVA

SecretárioBel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁRECORRIDO : ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTOADVOGADO : MARCELO KINTZEL GRACIANO E OUTRO(S)CORRÉU : VALDEMIRO MACHADOCORRÉU : NANCY ANUNCIATTA SMANIOTTOCORRÉU : LUCY MARIA SMANIOTTO

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes Praticados por Funcionários Públicos Contra a Administração em Geral - Peculato

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo no julgamento após o voto-vista antecipado do Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz dando provimento ao recurso especial, divergindo do voto da Sra. Ministra Relatora, e o voto do Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior acompanhando o voto da Sra. Ministra Relatora, e os votos das Sras. Ministras Assusete Magalhães e Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE), acompanhando a divergência, a Turma, por maioria, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Assusete Magalhães, que lavrará o acórdão, vencidos a Sra. Ministra Relatora e o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior, que negavam provimento ao recurso.

Votaram com a Sra. Ministra Assusete Magalhães os Srs. Ministros Rogerio Schietti Cruz e Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE) quanto ao provimento do recurso.Documento: 1275071 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 04/09/2014 Página 26 de 27

Superior Tribunal de Justiça

CERTIDÃO DE JULGAMENTOSEXTA TURMA

Número Registro: 2011/0080217-0 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.385.916 / PR

MATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 4838395 483839505

PAUTA: 17/10/2013 JULGADO: 20/02/2014

Relatora

Exma. Sra. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA

Relator para Acórdão

Exmo. Sr. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ

Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. EITEL SANTIAGO DE BRITO PEREIRA

SecretárioBel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁRECORRIDO : ROSÂNGELA DO ROCIO SMANIOTTOADVOGADO : MARCELO KINTZEL GRACIANO E OUTRO(S)CORRÉU : VALDEMIRO MACHADOCORRÉU : NANCY ANUNCIATTA SMANIOTTOCORRÉU : LUCY MARIA SMANIOTTO

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes Praticados por Funcionários Públicos Contra a Administração em Geral - Peculato

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Retificando decisão proferida em Sessão do dia 17.12.2013, o resultado do julgamento passa a ser: Prosseguindo no julgamento após o voto-vista antecipado do Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz, dando provimento ao recurso especial, o voto do Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior acompanhando o voto da Sra. Ministra Relatora, e os votos das Sras. Ministras Assusete Magalhães e Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE) acompanhando a divergência, a Turma, por maioria, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Rogerio Schietti, que lavrará o acórdão, vencidos a Sra. Ministra Relatora e o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior, que negavam provimento ao recurso.

Votaram com o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz as Sras. Ministras Assusete Magalhães e Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE).

Documento: 1275071 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 04/09/2014 Página 27 de 27