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O CONCEITO DE AÇÃO EM DIREITO PENAL. LINHAS CRÍTICAS SOBRE A ADEQUAÇÃO E UTILIDADE DO CONCEITO DE AÇÃO NA CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO CRIME 1 Fabio Roberto D'Avila Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), Pós-Doutorando pela Johann Wolfgang Goethe Universität (Frankfurt am Main – Alemanha), Bolsista da Fundação Alexander von Humboldt (Bonn - Alemanha), Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. e-mail: [email protected] I - A ação como supraconceito (Oberbegriff) Ao longo dos anos, a ciência jurídico-penal tem presenciado inúmeras tentativas de obtenção de um supraconceito de ação (Oberbegriff), onicompreensivo das diversas formas de aparição do tipo de ilícito e capaz de propiciar à dogmática penal um elemento fundante pré-típico, elemento anterior às atribuições axiológicas específicas do Direito Penal, a figurar na tão ambicionada posição de “pedra angular” da construção teórica do crime. Os problemas enfrentados em tal intuito, todavia, têm sido proporcionais à multiplicidade de funções que lhe são atribuídas. Funções consideradas necessárias à justificação da existência da ação como elemento estrutural 1 Este texto foi originalmente publicado no livro “Ensaios penais em homenagem ao Professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa”, org. por Ney Fayet Júnior, Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003, pp. 279-304.

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O CONCEITO DE AÇÃO EM DIREITO PENAL. LINHAS CRÍTICAS SOBRE A ADEQUAÇÃO E UTILIDADE DO CONCEITO DE AÇÃO NA CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO CRIME1

Fabio Roberto D'AvilaDoutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade

de Coimbra (Portugal), Pós-Doutorando pela Johann Wolfgang Goethe Universität (Frankfurt am Main –

Alemanha), Bolsista da Fundação Alexander von Humboldt (Bonn - Alemanha), Professor do Programa de

Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS.e-mail: [email protected]

I - A ação como supraconceito (Oberbegriff)

Ao longo dos anos, a ciência jurídico-penal tem presenciado inúmeras

tentativas de obtenção de um supraconceito de ação (Oberbegriff),

onicompreensivo das diversas formas de aparição do tipo de ilícito e capaz de

propiciar à dogmática penal um elemento fundante pré-típico, elemento

anterior às atribuições axiológicas específicas do Direito Penal, a figurar na

tão ambicionada posição de “pedra angular” da construção teórica do crime.

Os problemas enfrentados em tal intuito, todavia, têm sido proporcionais à

multiplicidade de funções que lhe são atribuídas. Funções consideradas

necessárias à justificação da existência da ação como elemento estrutural

1 Este texto foi originalmente publicado no livro “Ensaios penais em homenagem ao Professor

Alberto Rufino Rodrigues de Sousa”, org. por Ney Fayet Júnior, Porto Alegre: Ricardo Lenz,

2003, pp. 279-304.

primário e, por este exato motivo, dificilmente afastáveis. Afinal, ou obtém

fundada justificativa na relevância das funções por ela exercida ou assistirá à

ação um papel meramente figurativo da construção teórica do crime,

desprovido, na expressão de Jescheck e Weigend, de um efetivo “valor

sistemático”.2/3

De fato, para a obtenção de um conceito unitário de ação, não basta

qualquer referência nominal ou atribuição aleatória de significado. A evolução

da dogmática tem afirmado que, para o preenchimento sistematicamente

sustentável deste privilegiado espaço, torna-se necessário o atendimento a

três funções essenciais. (a) Função classificatória (elemento básico), através

da qual todas as formas de expressão do ilícito-típico – comissivas e

omissivas, culposas ou dolosas – podem ser conduzidas como diferentes

espécies de um mesmo gênero representado pela “ação”. (b) Função de

união (função definitória e elemento de união), através da qual o conceito de

ação deve ser detentor de um conteúdo material de tal forma consistente que

possa reunir, como elemento estrutural acentuadamente próximo, as

atribuições de tipicidade, ilicitude, culpabilidade e, para alguns, também

punibilidade, de forma a tornar-se, nas palavras de Roxin, a “coluna

vertebral”4 de todo o sistema penal (função definitória). Não deve, porém,

antecipar qualquer juízo de imputação, mas, isto sim, manter-se

absolutamente neutro em relação aos demais elementos do crime (função ou

elemento de união).5 (c) E, por fim, função de delimitação, através da qual o

conceito de ação deve ser capaz de excluir todos os fenômenos que, de

2 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner

Teil. 5.ª ed., Berlin : Duncker e Humblot, 1996, p.218.3 Assim, MARINUCCI, Giorgio, Il reato come ‘azione’. Critica di un dogma, Milano : Giuffrè,

1971, p.1 ss.; JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.218 s..4 ROXIN, Claus, Strafrecht. Allgemeiner Teil, vol. 1, 3.ª ed., München : Beck, 1997, p.184.5 Algumas sistematizações optam por diferenciar a função definitória da função de união,

como ocorria, por exemplo, nas edições anteriores do Lehrbuch de Jescheck. Contudo a

grande proximidade existente entre elas parece tornar preferível uma abordagem conjunta,

como o faz Roxin, reunindo ambas sob a função de união.

antemão, possam ser considerados indignos de qualquer consideração

jurídico-penal.6

O atendimento a todas essas exigências, de modo a justificar a função

básica estrutural aspirada pelos conceitos unitários de ação, tem-se revelado,

entretanto, demasiadamente problemático. Dificuldades que, ao nosso sentir,

devem-se não tanto à correção ou incorreção desta ou daquela elaboração,

mas às impossibilidades teóricas advindas do próprio objeto em análise. As

tentativas levadas a cabo por inúmeras elaborações (v.g., causal, final, social

ou negativa da ação), revelam falhas, embora não coincidentes, em pontos

substancialmente diversos e de difícil correção. Falhas estas que, já há algum

tempo, vêm sendo objeto de crítica não só pela literatura especializada, como

ainda por inúmeros manuais de Direito Penal, e, nesta medida, também

elemento propulsor do surgimento de teorias alternativas como o “conceito

pessoal de ação” de Roxin,7 representativo, a nosso ver, de uma das

propostas mais consistentes de que se tem notícia nos últimos anos. Mas não

só. As contundentes críticas às tentativas de construção de um supraconceito

multifuncional de ação, capaz de, assim, corresponder aos exigentes anseios

da dogmática penal, têm dado vazão a uma segunda alternativa: a renúncia a

um tal conceito pré-típico de ação, em prol da realização típica como

categoria elementar-estrutural da teoria do crime.

Este percurso, assinalado pela renúncia a esse pesado conceito de

ação, ao qual, pelas razões deste breve escrito, confiamos a nossa adesão,

encontra seus fundamentos já nos célebres trabalhos de Beling, Die Lehre

vom Verbrechen (1906),8 e Radbruch, Der Handlungsbegriff in seiner

Bedeutung für das Strafrechtssystem (1904),9 e assume incontornável

6 Assim, ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.184 s.; MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.3;

JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.219.7 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202 ss..8 BELING, Ernst, Die Lehre vom Verbrechen, Tübingen : J.C.B. Mohr, 1906, p.v, Vorwort.9 RADBRUCH, Gustav, Der Handlungsbegriff in seiner Bedeutung für das Strafrechtssystem,

Berlin : Guttentag, 1904, p.141 ss..

expressão nas investigações de, entre outros, Gallas,10 Roxin,11 Lenckner,12

Otto,13 Figueiredo Dias,14 Fiandaca e Musco15 e, principalmente, no estudo

específico e exaustivo desenvolvido por Marinucci, Il reato come ‘azione’.

Critica di un dogma (1971).16/17

Não se trata, portanto, de uma proposta nova ou doutrinariamente

isolada, em que pese pouco noticiada pela literatura jurídica brasileira. Ao

contrário, como bem ilustram as referências acima, trata-se de

posicionamento jurídico solidamente respaldado, que se tem afirmado, ao

longo de debates e investigações cientificamente comprometidas, nos mais

diversos e significativos espaços de discursividade jurídico-penal.

Não se pretende, contudo, afirmar a ausência de uma qualquer

potencialidade didática ou teórico-expositiva expressada por um conceito

unitário de ação18 nem, pois, sua absoluta inutilidade dogmática em uma 10 GALLAS, Wilhelm, «Zum gegenwärtigen Stand der Lehre vom Verbrechen», in: Beiträge

zur Verbrechenslehre, Berlin : de Gruyter, 1968, p.29.11 Referimos a posição antes sustentada por Roxin, em ZStW 74 (1962), p.548 s., com

tradução em língua portuguesa: «Contribuição para a crítica da teoria finalista da acção», in:

Problemas Fundamentais de Direito Penal, tradução de Ana Paula dos Santos Luís

Natscheradetz, 2. ed., Lisboa : Vega, 1993, p.108 s..12 SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch Kommentar, 26.ª ed., München :

Beck, 2001, Vorbem.37, vor §13 (p.156).13 OTTO, Harro, Grundkurs Strafrecht. Allgemeine Strafrechtslehre, 6.° ed., Berlin; New York :

de Gruyter, 2000, p.51 s..14 DIAS, Jorge de Figueiredo, Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas, São Paulo

: Revista dos Tribunais, 1999, p.214 ss..15 FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte generale, 3. ed., reimpressa e

atualizada com o d. lgs. 30 de dezembro de 1999, n.507, Bologna : Zanichelli, 2000, p.149.16 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], passim.17 Para outros trabalhos neste mesmo sentido, ver as referências de

SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, ob. cit., [n.12], Vorbem.37, vor §13 (p.156).18 Mezger, por exemplo, faz menção a razões unicamente didáticas, para que a omissão

ainda seja estudada no âmbito da teoria da ação (MEZGER, Edmund, Modernas

orientaciones de la Dogmática jurídico-penal, tradução de Francisco Muñoz Conde, Valencia :

Tirant lo Blanch, 2000, p.27). Ver ainda, a referência de Mantovani acerca da análise

quadripartida do crime (MANTOVANI, Ferrando, Diritto Penale, 4.ª ed., Padova : Cedam,

dimensão não pré-típica, de conformação mais enxuta.19 O que se quer é, por

outro lado, salientar a impossibilidade de se obter um conceito pré-típico de

ação capaz de preencher a totalidade das funções que lhe são atribuídas,

como pretendem as mais diversas teorias da ação, de maneira a conferir-lhe

a condição de elemento fundamental da doutrina do crime, de pedra angular

do sistema jurídico-penal. Impossibilidade que se faz ainda mais evidente no

que tange à função classificatória. Muito embora proponha a mais elementar

das funções da ação – ação como denominador comum às diferentes formas

de surgimento do crime, destacando-se, entre elas, comissão e omissão –, e,

por isso, essencial a toda e qualquer proposta conceitual de ação que se

pretenda minimamente unitária, consiste indiscutivelmente em uma das mais

difíceis de ser alcançada.

Assim, com o interesse voltado mais ao atendimento da função

classificatória, poderíamos sintetizar a nossa questão inicial, nos seguintes

termos: será possível obter-se um supraconceito de ação, capaz de, em um

momento anterior à tipicidade, recepcionar os conceitos de comissão e

omissão?

Parece-nos, sinceramente, que não. Para tanto, passamos a salientar

alguns dos problemas enfrentados pelas tradicionais teorias da ação, com

particular atenção à função classificatória, sem, todavia, por se tratar de

críticas já praticamente consolidadas pela doutrina, ingressar em uma análise

pormenorizada de cada uma delas. Dedicaremos, nesta medida, mais

atenção ao conceito pessoal de ação, elaborado por Claus Roxin.

II - Algumas considerações críticas às diferentes propostas de elaboração de um conceito unitário

1. O conceito causal (natural) de ação

2001, p.132).19 Conforme será exposto ao final deste trabalho.

Partindo de uma perspectiva acentuadamente naturalista, os

defensores da teoria causal da ação propõem um conceito elaborado a partir

de três elementos básicos: conduta humana, voluntariedade e modificação do

mundo exterior. O que, já na sua elaboração inicial por Liszt, como bem

noticia Roxin, enfrentou problemas exatamente no que tange à absorção do

fenômeno omissivo. Afinal, a omissão não altera a realidade e, assim sendo,

tornava-se necessária uma correção na tomada de significado dos elementos

conceituais inicialmente propostos.20 A “modificação” do mundo exterior,

tomada inicialmente sob uma perspectiva mais estrita, passa então a

conceber, na elaboração de Liszt, não só a “causação”, mas também a “não-

evitação” de uma alteração do mundo exterior. Comissão e omissão, reunidas

sob um conceito unitário e amplo de ação, assumem, com isso, a forma

expressa por uma “mudança do mundo exterior referível à vontade do

homem”.21

Esta forma de perceber a ação conduz, como se percebe, a uma

substancial diferença entre ação e omissão na elaboração lisztiniana, como

também, diga-se, em relação à concepção de omissão defendida por Beling.

Em Liszt, a possibilidade de reconhecer-se na omissão um processo

mecânico, como a “inervação dos nervos motores”,22 próprio do agir, está

prontamente descartada. Para o autor, a omissão não é um fenômeno

mecânico, mas o “não emprehendimento de uma acção determinada e

esperada” e, assim, um simples descumprimento às determinações jurídicas

(non facere quod debet facere).23 O que, por sua vez, indica uma profunda

redução do conteúdo de significação autônomo do seu conceito unitário de

ação, para os elementos conduta humana e voluntariedade.

Diferentemente não ocorre com a elaboração de Beling. Embora este

autor tenha uma concepção eminentemente psicofísica do fenômeno

20 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.187.21 LISZT, Franz v., Tratado de Direito Penal Allemão, tomo I, traduzido por José Hygino

Duarte Pereira, Rio de Janeiro : Briguiet, 1899, p.193.22 LISZT, Franz v., ob. cit., [n.21], p.19823 LISZT, Franz v., ob. cit., [n.21], p.206 ss.

omissivo - “a contenção dos nervos motores” - , sua proposta de um modelo

conceitual de ação atende a uma conformação acentuadamente enxuta. No

intuito de restringir o conceito de ação verdadeiramente aos seus elementos

mínimos, Beling propõe um conceito restrito ao mero “comportamento

humano voluntário” (gewolltes menschliches Verhalten), do que resulta tanto

a ação em seu sentido estrito – “movimento corporal voluntário” (die gewollte

Körperbewegung) – como a omissão – “imobilidade voluntária” (die gewollte

Regungslosigkeit).24 Definição esta que, pela estreita conformação que

apresenta, mereceu do próprio Beling, a referência de “fantasma exangue”.25

Nesta medida, tanto a elaboração de Liszt quanto a proposta de Beling

convergem em um conceito de ação estabelecido sobre os elementos

voluntariedade e conduta humana, que, contudo, não parecem atender às

expectativas que lhe são exigidas.

Excluído, de pronto, o elemento conduta humana como capaz de, por

si só, conferir existência a um supraconceito de ação, uma vez que, sem uma

precisa definição daquilo que se deve entender por isso, não possui ele

qualquer significado,26 além de afastar, como é óbvio, toda e qualquer

possibilidade de considerar a pessoa jurídica como sujeito ativo de crime, o

que, independentemente do seu mérito, não nos parece salutar em âmbito

categorial-sistemático,27 resta-nos exclusivamente o elemento voluntariedade.

Devemos, por certo, concordar acerca do potencial limitativo do

referido conceito,28 em detrimento de usual crítica quanto a sua excessiva

amplitude.29 Porém, não se apresenta idôneo em relação às demais funções,

mormente no que tange à classificatória. Observe-se que a voluntariedade,

24 BELING, Ernst, Die Lehre vom Verbrechen, Tübingen : J.C.B. Mohr, 1906, p.9.25 BELING, Ernst, ob. cit., [n.24], p.17.26 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.220.27 Ver, sobre o tema, FARIA COSTA, José de. «A responsabilidade jurídico-penal da empresa

e dos seus órgãos», in: Direito Penal económico e europeu: Textos doutrinários. Problemas

gerais, vol. I, Coimbra : Coimbra, 1998.28 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.188.29 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.220.

embora presente na grande maioria das manifestações do ilícito-típico, não é,

em realidade, uma constante em todas elas. Tal é o que ocorre nas hipóteses

de crimes omissivos por culpa inconsciente, como, v.g., na omissão do dever

de agir, por esquecimento imputável a título de negligência. Não há, aqui,

qualquer voluntariedade por parte do agente, uma vez que sequer se ocupa

de forma intelectiva acerca da “ação” cometida por si. Além do mais, não nos

parece igualmente solucionar a questão, valer-se em uma concepção de

voluntariedade potencial, isto é, no fato de ter havido a possibilidade de

atender voluntariamente ao mandamento de agir, eis que se manifestar de

forma voluntária e ser possível manifestar-se de forma voluntária não apenas

são categorias logicamente distintas, como a afirmação desta nega a própria

existência, in concreto, daquela.30

Por fim, vale ainda salientar que o próprio Beling, ao elaborar um

conceito de ação conformado em termos demasiadamente estreitos, como já

observamos, propõe coerentemente, no prólogo de sua obra “die Lehre vom

Verbrechen”, a utilização do tipo penal como elemento primário da construção

do crime. Em memorável assertiva, afirma Beling caber ao Tatbestand a

posição de “pedra fundamental e angular do atual Direito Penal”.31 Idéia a que

voltaremos no final deste breve escrito.

30 Acompanhamos aqui as críticas trazidas por Roxin. ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.187 ss..31 “...der Tatbestand ein Grund- und Eckstein des heutigen Strafrechts ist” (BELING, Ernst,

ob. cit., [n.24], p.v, Vorwort). Contudo, devemos ainda salientar que, em outro escrito, embora

Beling mantenha a afirmação do Tatbestand na posição de conceito-base do Direito Penal,

observa, através de uma nota de rodapé, que se deve excluir de tal assertiva o conceito de

ação (ver BELING, Ernst, Die Lehre vom Tatbestand, Tübingen : J.C.B. Mohr, 1930, p.8 e

nota 1). Tal fato decorre, ao nosso sentir, de o conceito de ação belinguiano encontrar-se

muito próximo do conceito de Tatbestand. Como bem salienta Marinucci, para não antecipar

os elementos do crime (“internos” ou “externos”) no conceito de ação, o conceito de ação em

Beling apresenta-se descomprometido com conteúdos materiais, buscando atender apenas à

função “negativa” (MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.50 s.). Para uma detida análise do

conceito de ação no pensamento de Beling, bem como das contradições acerca de suas

premissas iniciais, ver (MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.51 ss.).

2. O conceito final de ação

Valendo-se do agir doloso como forma paradigmática do fenômeno

criminoso e buscando a elaboração de um conceito ontológico de ação,

Welzel propugna um conceito de ação em que, para além do elemento

causal, apresenta-se indispensável o atributo finalidade. “A finalidade ou o

caráter final da ação”, afirma Welzel, “fundamenta-se no fato de o homem,

graças ao seu saber causal, poder prever, dentro de certos limites, as

conseqüências possíveis de sua atividade, estabelecer, portanto, fins

diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu plano, à consecução desses

fins”.32 A finalidade torna-se, pois, “a coluna vertebral da ação final”, na qual,

para o reconhecimento da existência de uma ação humana, apresenta-se

imprescindível a verificação de determinadas fases dessa finalidade, a

desenvolver-se, inicialmente, (I) em um plano interno, meramente mental,

com (a) a antecipação do fim perseguido; (b) a seleção dos meios adequados

e (c) a consideração dos efeitos concomitantes; e, em segundo momento, (II)

em um plano exterior, com a colocação em prática do curso causal adequado

à obtenção do já anteriormente planeado.33

Como se percebe, a tentativa de superação do modelo causal de ação

não se dá a partir de uma verdadeira substituição dos seus pressupostos,

nomeadamente da causalidade, mas sim de uma complementação pelo

elemento finalidade. O pretendido paradigma ontológico torna-se possível

mediante a combinação de dois elementos de natureza igualmente

ontológica: a causalidade e a finalidade. Daí afirmar corretamente Marinucci,

que o “torto” ontológico da teoria causal não está, aos olhos do finalismo, na

valorização da “causalidade”, mas em havê-la dissociado da “finalidade”.34

Em oposição a esse modelo, todavia, levantam-se inúmeras críticas,

que, muito embora tenham sido repetidamente consideradas pelas tentativas

32 WELZEL, Hans, Derecho Penal aleman, trad. da 11.° ed. alemã por Juan Bustos Ramírez y

Sergio Yáñez Pérez, 4.ª ed., Santiago de Chile : Jurídica de Chile, 1997, p.39.33 WELZEL, Hans, ob. cit., [n.32], p.40 s..34 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.70.

de correção não só de Welzel como de muitos outros finalistas, não obtiveram

respostas suficientemente adequadas. No que tange principalmente à função

classificatória, em relação à qual a manutenção de um critério ontológico de

causalidade já pode antecipar as dificuldades que se impõem, os problemas

se tornam absolutamente insuperáveis. Neste exato sentido, Roxin chega a

afirmar que hoje sequer se discute sobre a capacidade de o conceito final de

ação figurar como elemento primário do sistema jurídico-penal, eis que, pela

ausência de causalidade na omissão, torna-se impossível absorver tal forma

de expressão do ilícito-típico.35

Ao exigir a existência de causalidade na ação – causalidade, destaca-

se, ontológica –, a teoria final da ação tornou absolutamente insustentável o

atendimento à pretendida função classificatória através da compreensão do

fenômeno omissivo. Não há causalidade ontológica na omissão e, por isso,

menos ainda, possibilidade de controlar o curso causal no sentido de atingir

os fins planeados.36 Logo, não há na omissão uma ação em sentido final.

Diante disso, Welzel busca solucionar a questão, a partir do

entendimento do fenômeno omissivo como omissão de uma ação final, isto é,

ao omitir, o sujeito deixaria de praticar uma ação final possível. E, nesta

medida, de forma semelhante ao que se passa na teoria causal,37 afirma a

existência de finalidade também na omissão, porém agora uma “finalidade

potencial”.38 Da estrutura da direção final da ação, afirma Welzel, deve

desprender-se a “capacidade de ação”, necessária ao “poder final do fato”.

Contudo também aqui valem as mesmas objeções direcionadas à teoria

causal. Ação e capacidade de ação, finalidade e finalidade potencial, não são, 35 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.190. Sobre a dificuldade do conceito final de ação em

absorver os fenômenos omissivos, ver também, WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner,

Strafrecht. Allgemeiner Teil, 30. ed., Heidelberg : Müller, 2000, p.27.36 OTTO, Harro, ob. cit., [n.13], p.50.37 Para uma equiparação crítica entre a “finalidade em si” e a “voluntariedade” dos

naturalistas, ver MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.72 ss..38 Afirma Welzel, nesse sentido, que a “omissão é a não produção da finalidade potencial

(possível) de um homem em relação a uma determinada ação” (WELZEL, Hans, ob. cit.,

[n.32], p.238).

em hipótese alguma, categorias teóricas equivalentes ou, ao menos, que

permitam um denominador comum. Trata-se, na verdade, levando em

consideração o pensamento de Welzel, de categorias que se excluem

mutuamente. Ou seja, só faz sentido falar-se em finalidade potencial e

capacidade de ação na ausência, respectivamente, de finalidade real e de

ação real, de uma determinada ação, que embora possível ao sujeito, não

chegou a ser praticada, não chegou a existir. Daí absolutamente impossível

retirar da “capacidade de ação” o elemento básico comum das manifestações

comissivas e omissivas do ilícito-típico: capacidade de ação, de fato, não é

ação.39

Devemos também observar, ainda no que tange ao conceito de ação

potencial, na elaboração omissiva de Welzel, que tal raciocínio só é possível

à luz de uma expectativa de ação informada pelo tipo penal, o que, por si só,

já contradiz a pretendida natureza ontológica e pré-típica da ação finalista.40

Veja-se que, em uma dimensão verdadeiramente ontológica, a própria

categoria de capacidade de ação é inimaginável. Sua natalidade está

necessariamente condicionada a exigências axiológicas estabelecidas, in

casu, pela norma penal, ou seja, somente haverá omissão, caso haja uma

determinação de agir, caso o sujeito tenha deixado de praticar uma ação que

era exigida dele. Não há como se cogitar a omissão de uma ação, sem o

dever de praticá-la. Assim, para a formulação de um qualquer juízo acerca da

“omissão de uma ação”, é preciso uma referência típica prévia à

consideração acerca da ação final, de forma a identificar a existência de um

dever descumprido, o que, por conseguinte, como se percebe, subtrai

totalmente a pretendida dimensão pré-típica do finalismo.41/42

39 Nesse sentido, afirma corretamente Roxin que “capacidade para realizar uma ação” não se

confunde com a ação em si (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.136). 40 Para as suas razões em sentido contrário, ver WELZEL, Hans, ob. cit., [n.32], p.239. 41 Como bem afirma Gallas, no âmbito dos crimes omissivos é possível falar-se, até mesmo,

de uma preexistência da norma jurídica em relação ao próprio conceito de conduta (GALLAS,

Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.28). Ver, ainda, MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.95 s..42 Devemos salientar, que a crítica ora formulada é meramente referencial e interessada, daí

não termos em consideração os últimos escritos de Welzel. A propósito, ver DIAS, Jorge de

3. O conceito social de ação

A multiplicidade de formas assumida pela teoria social da ação desde

Eb. Schmidt, passando pelos valiosos contributos de Maihofer, Engisch, entre

outros, leva-nos, por uma necessidade de síntese, a delimitar as nossas

referências, o que se faz em prol do trabalho de Jescheck e Weigend, pela

sua incomparável importância e atualidade.43

Conforme Jescheck e Weigend, agir e omitir, em razão de seus

elementos de natureza ontológica, respectivamente “finalidade” (Finalität) e

“dirigibilidade” (Steuerbarkeit), são formas de manifestação do homem, que

não podem ser reunidas neste mesmo plano. Contudo tal intuito pode ser

logrado com êxito, se devidamente considerado a partir do significado desses

comportamentos no mundo que os circunda ou, em outras palavras, a partir

do seu significado social. A ação assume, pois, a definição de um

“comportamento socialmente relevante”, no qual, por “comportamento”, deve-

se entender “toda a resposta do homem a uma exigência situacional

conhecida ou, ao menos, conhecível, através da realização de uma

possibilidade de reação que lhe é colocada pelo mandamento”.44

Utilizando como ponto de partida um conceito axiológico, isto é, a

relevância social, são indiscutíveis as vantagens que angaria quando

comparado com as elaborações anteriores, de base ontológica, para a

obtenção de um conceito unitário de ação, capaz de reunir as expressões

comissivas e omissivas.45 Não podemos negar, como bem salienta Figueiredo

Dias, que é possível a apreensão não só do agir, mas também do omitir em

Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.209 s. e HÜNERFELD, Peter, Strafrechtsdogmatik in

Deutschland und Portugal. Ein rechtsvergleichender Beitrag zur Verbrechenslehre und ihrer

Entwicklung in einem europäischen Zusammenhang, Baden-Baden : Nomos, 1981, p.207 ss..43 Para uma abordagem mais detida do conceito social, ver MARINUCCI, Giorgio, ob. cit.,

[n.3], p.76 ss.. Ver, ainda, em exposição didática de acentuada clareza, WESSELS,

Johannes; BEULKE, Werner, ob. cit., [n.35], p.26 ss..44 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p. 223.

um plano pré-jurídico, levando aqui em consideração, valorações sociais

outras que não aquelas especificamente jurídico-penais. Porém, assim

agindo, a elaboração social acaba por deixar de fora do seu conceito de ação

a essência do ilícito nos crimes omissivos, ou seja, “a ação positiva omitida e

juridicamente imposta, devida ou esperada”, que, por conseguinte, frustra

claramente a sua função de definição.46

Nos crimes omissivos, o conteúdo de significação social da omissão

está de tal forma vinculado com o tipo penal que, para a sua apreensão,

impõe-se necessariamente a verificação de significado da descrição típica.

Em verdade, o seu significado social decorre exatamente dessa apreciação

axiológica, independentemente de uma necessária e autônoma valoração

pré-jurídica. Ou, em outras palavras ainda, o significado social da omissão

penal advém exatamente da existência de uma obrigação jurídica de agir,

cuja plena expressão, deve ser encontrada no tipo penal.47/48 Daí poder-se

falar, até mesmo, que “os comportamentos socialmente significativos que

interessam ao mundo do direito penal são os comportamentos que se

encontram inseridos no tipo legal”.49

E, por fim, merecem ainda a nossa atenção as críticas acerca da

excessiva abertura do conceito de “relevância social”, em detrimento da sua

função limitativa. Tal fato, como bem noticia Roxin, conduz à inserção, no

conceito social de ação, de outros critérios, como voluntariedade,

dominabilidade e, no caso de Jescheck, “resposta à exigência situacional”,

atraindo para si objeções semelhantes àquelas direcionadas às demais 45 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.195. Também, DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14],

p.211 s..46 DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.210 s..47 Assim, DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.211; ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.195

s.; GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.27 s.; MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.78 ss.. 48 Observa corretamente Otto, que a assertiva no sentido de apenas as condutas socialmente

relevantes despertarem o interesse jurídico-penal consiste, na realidade, em uma afirmação

vazia de conteúdo, pois, para sabermos verdadeiramente acerca dessa relevância, é

necessário perguntarmos ao ilícito penal (OTTO, Harro, ob. cit., [n.13], p.51).49 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.79.

teorias, ou ainda, críticas absolutamente corretas, no sentido da indevida

antecipação – e, assim, perda da sua necessária neutralidade – de critérios

de imputação.50

4. O conceito negativo de ação

Esta elaboração, bem representada pelos trabalhos de Herzberg, Die

Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip (1972), e Behrendt, Die

Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen Handlungsbegriffs auf

psychoanalytischer Grundlage (1979), busca encontrar na "evitabilidade" um

elemento comum entre ação e omissão. “Em termos jurídico-penais”, afirma

Herzberg, “age quem, como garante, não evita algo que poderia evitar”, de

forma que, prossegue o autor, é possível definir a ação jurídico-penal, como

“o não-evitar evitável em posição de garante”.51 Conceito este que, no

desenvolvimento posterior de Behrendt, assume a forma levemente

modificada de uma “não-evitação evitável da situação típica”.52/53

Porém também esta tentativa de elaboração de um conceito unitário de

ação não se mostrou suficientemente eficaz. Em verdade, equivoca-se em

um ponto fundamental. Da mesma forma como as tentativas de elaboração

de um conceito unitário de ação, positivo, isto é, de um “supraconceito de

ação”, fracassam ao generalizar indevidamente elementos próprios dos

fenômenos comissivos, também a tentativa de elaboração de um conceito

unitário de “ação”, negativo, isto é, de um “supraconceito de omissão”, 50 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.195; DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.211 s.. 51 HERZBERG, Rolf Dietrich, Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, Berlin :

de Gruyter, 1972, p.177.52 BEHRENDT, Hans-Joachim, Die Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen

Handlungsbegriffs auf psychoanalytischer Grundlage, Baden-Baden : Nomos, 1979, p.132.53 Voltando-se à “evitabilidade” no intuito de encontrar um elemento comum entre ação e

omissão, embora com, destaca-se, significativas diferenças em relação às demais, está

também o conceito de Jakobs, segundo o qual “conduta é a evitabilidade de uma diferença

de resultado” (Verhalten ist die Vermeidbarkeit einer Erfolgsdifferenz) (JAKOBS, Günther,

Strafrecht. Allegmeiner Teil, 2.ª ed., Berlin; New York : de Gruyter, 1993, p.143).

enfrenta problemas da mesma natureza. A generalização de elementos

comuns aos fenômenos omissivos não apenas transporta para o agir uma

realidade claramente estranha a este, como, em razão da própria natureza

normativa da omissão, acaba por antecipar na pré-tipicidade elementos de

imputação. Ora, como é facilmente perceptível, a evitabilidade de um

determinado resultado não é uma questão que possa ser resolvida em âmbito

pré-típico, mas problema específico de imputação penal ou, mais

propriamente, de imputação objetiva.54

5. O conceito pessoal de ação

Por fim, impõe-se ainda a análise do que nos parece a melhor proposta

teórica – embora não isenta de críticas – para um conceito onicompreensivo

de ação, surgida nos últimos anos. Aliás, proposta que desperta o nosso

interesse não só pela sua incontestável relevância no espaço de

discursividade jurídico-penal. A elaboração da teoria da ação pessoal de

Roxin marca uma virada de posicionamento em relação àquele sustentado

em 1962, em artigo publicado na ZStW 74,55 quando propôs, tal qual ora

fazemos, a renúncia a um supraconceito de ação. Afirmava então Roxin:

“Creio, com efeito, que nenhuma teoria da acção e, ainda mais nenhum outro

conceito fundamentado ontologicamente de modo similar, podem constituir a

base de um sistema de que possam derivar resultados práticos. Tais

intenções são em princípio inúteis, pois não se pode solucionar nenhum

problema jurídico com conceitos que são prévios aos conteúdos de sentido

jurídico, precisamente devido ao facto de o serem. É natural que assim seja,

54 Assim, JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.222; DIAS, Jorge

de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.212; ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.200. Sobre os critérios de

imputação objetiva, ver ainda D’AVILA, Fabio Roberto, Crime culposo e a teoria da

imputação objetiva, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001, p.38 ss. e 80 ss..55 Citamos o referido artigo em sua versão traduzida para o português. Ver nota 11.

embora poucas vezes se tome em consideração que não se pode extrair de

um conceito algo que nele não está incluído”.56

A revisão dessa forma de pensar, motivada, como noticia em seu

Lehrbuch, por uma necessidade de questionar o conteúdo da ação típica, ou

seja, o conteúdo deste “elemento” a que se quer atribuir a característica

“típica”, bem como a necessidade de um substrato comum, que permita não

só uma função de união, mas também de delimitação, levam Roxin à

elaboração do denominado conceito pessoal de ação.57 Todavia, em que

pesem os esforços dispendidos nesse intuito, não nos parece terem superado

as incontáveis objeções já enfrentadas pelas demais teorias.

A ação, na teorização roxiniana, assume a forma de “manifestação da

personalidade” (Persönlichkeitäusserung), seu elemento fundamental. E

como “manifestação da personalidade” deve-se entender “tudo o que for

atribuível a um ser humano como centro de ação anímico-espiritual”.

Encontram-se, nesta medida, excluídas de plano, todas as “reações”

(Wirkungen) meramente somáticas que não estão “submetidas ao controle do

Eu”, da “instância condutora anímico-espiritual do homem”, uma vez que,

assim sendo, não consistem em manifestações da personalidade. Percebe-

se, pois, desde já, uma dependência do conceito de manifestação da

personalidade, em relação ao de dominabilidade (beherrschbar), ou seja, as

manifestações devem ser “dominadas ou domináveis” pela “vontade e

consciência”, para que possam vir a constituir “manifestações da

personalidade”.58

a) Objeções metodológico-classificatórias

56 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.11], p.108.57 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.201 s.. Ver ainda, ROXIN, Claus, «Il concetto di azione nei

piu’ recenti dibattiti della dommatica penalistica tedesca», in: Studi in memoria di Giacomo

Delitala, vol. III, Milano : Giuffrè, 1984, p.2103 ss..58 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202.

Já no que tange ao aspecto metodológico-classificatório cuja sutileza

não implica menor importância, duas considerações críticas se fazem

necessárias.

Inicialmente devemos observar que muitas das mazelas dogmáticas

ainda hoje encontradas na estrutura dos crimes omissivos devem-se à

imposição de uma categoria de referencial positivo – leia-se, a ação –, como

seu elemento estrutural básico. De fato, a utilização deste paradigma positivo

como elemento primeiro de todos os crimes, comissivos e omissivos, impôs

não apenas uma realidade dogmática absolutamente estranha à omissão

como, elevando o agir a modelo, relegou o omitir a uma posição claramente

excepcional. Bem afirma, neste sentido, Marinucci, que a consideração de

algumas espécies como “espécies privilegiadas”, acarreta a conseqüente

degradação das demais, tratando-as como “exceções”, “casos limites”.59

Pois bem, diferente não é o caso da elaboração de Roxin. Como todos

os demais conceitos unitários, o conceito pessoal de ação teve de optar por

um elemento básico, mantendo, para tanto, e como normalmente é feito, um

referencial terminológico positivo, a “ação”. A ação é, aqui, genus e specie,

preservando todo o seu potencial discriminatório em relação à espécie

omissiva.

No que se refere, por sua vez, à relação entre manifestações do

“centro anímico-espiritual” e “manifestações da personalidade”, ainda

importam algumas objeções de cunho terminológico ou conceitual. Como já

referimos, Roxin realiza uma certa equiparação entre as manifestações do

centro anímico-espiritual e as manifestações da personalidade, o que, a

nosso ver, conduz a uma exagerada abertura da definição de “manifestação

da personalidade”. É indiscutível que toda manifestação da personalidade é

uma manifestação anímico-espiritual, afinal ela é formada por manifestações

anímico-espirituais, contudo não temos tanta certeza se toda manifestação

anímico-espiritual pode ser considerada manifestação da personalidade.

Imaginemos, por exemplo, uma hipótese de omissão por culpa inconsciente, 59 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.54 s..

que ocorre uma única vez na vida do sujeito. Poderá este fato ser

considerado uma manifestação da sua personalidade? A resposta

obviamente dependerá do significado que é atribuído à “personalidade” e,

exatamente aqui, reside a nossa crítica: para uma solução positiva, necessita

de demasiada amplitude. Em nosso entender, o conceito de personalidade é

mais estrito que aquilo que se pode compreender por pessoalidade, ou seja,

por manifestação do ser como pessoa. Expressa-se de forma mais precisa

em fenômenos que, de uma forma ou de outra, estão aptos a atribuir feição

própria ao ser ou, em outras palavras, nas manifestações advindas do

conjunto de elementos que atribuem uma feição própria ao ser. Como se vê,

muito aquém do conceito roxiniano.

b) Objeções à função limitativa

Embora o nosso interesse esteja voltado mais à função classificatória

que veremos em seguida, acreditamos serem de grande proveito para o seu

correto entendimento algumas breves palavras acerca da multiplicidade de

critérios utilizados por Roxin, no atendimento da função limitativa.

Não é ação aquilo que não corresponder a uma manifestação da

personalidade. Podemos considerar esta assertiva como o critério central da

função limitativa no conceito pessoal de ação. Entretanto não basta saber

que, por “manifestação da personalidade”, devem-se entender as

manifestações do “centro anímico-espiritual” do agente. É preciso traduzir

isso em um critério minimamente heurístico, um critério que possa expressar

o que, afinal, deve-se considerar, para fins de limitação, como “manifestação

da personalidade”.

Pois bem, logo ao início de sua exposição, Roxin refere-se ao critério

“controle do ‘Eu’” (Kontrolle des “Ich”) ou “dominabilidade” pela “vontade” e

pela “consciência” (..., die durch Willen und Bewusstsein nicht beherrscht

oder beherrschbar sind...), através do que considera ser possível a exclusão

dos eventos oriundos de atos realizados durante o sono, em delírio, em

decorrência de um ataque convulsivo e reações puramente reflexas.60 Ou

seja, para que uma determinada manifestação humana possa ser

considerada manifestação da personalidade é preciso ser, ao menos,

dominável pela “vontade” e pela “consciência”. Verifica-se, aqui, como já

referido, uma clara vinculação entre dominabilidade/controlabilidade e

personalidade.

Contudo – para abordarmos apenas uma das questões mais

complexas –, tal critério não parece obter uma aplicação adequada nas

hipóteses dos movimentos reflexos e ações automáticas no trânsito. Este

controvertido grupo de casos, já levantado muitas vezes como motivo de

objeção para as teorias causal e final em razão da ausência de

preenchimento dos requisitos básicos voluntariedade e finalidade

respectivamente, representa uma parcela significativa dos acontecimentos no

cotidiano moderno. Tanto os movimentos reflexos quanto as ações

automáticas, fenômenos que não se confundem, consistem, nas próprias

palavras de Roxin, em “movimentos sem reflexão consciente” (ohne

bewusste Überlegung in Bewegung).61 Movimentos em que, quer pela sua

natureza, quer pelas circunstâncias em que estão inseridos, não há “espaço”

para uma reflexão consciente sobre o agir.

Ilustrativo, no que tange aos movimentos reflexos, apresenta-se o

julgado no qual o motorista, ao realizar uma curva, é surpreendido pela

entrada, em seu veículo, de um inseto que, direcionando-se contra os seus

olhos, faz com que ele perca o controle do carro, provocando um acidente.

No que se refere, por sua vez, aos atos automáticos, que, pela prática

continuada, são incorporados ao nosso dia-a-dia como ações espontâneas,

imediatas (v.g., caminhar, digitar, bem como a maioria dos atos realizados por

um motorista), tem-se o seguinte exemplo: um motorista, em velocidade

regular, é surpreendido por um pequeno animal na pista, em razão do que, na

60 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202.61 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.212.

tentativa de desviar o veículo, choca-se contra a divisória da pista, causando

a morte do seu acompanhante.62

Em ambos os casos, como bem reconhece Roxin, não há “reflexão

consciente”, ou seja, o agir não decorre de uma disposição de vontade

consciente do sujeito e, por certo, nem poderia decorrer, pois, se assim fosse,

a ação estaria descaracterizada como ato reflexo ou ato automático. Ao

contrário, são ações oriundas, no primeiro caso, de um reflexo defensivo e,

no segundo, de um automatismo gerado pela prática. O que, ante a

“necessidade” de identificar aqui uma ação, torna, como se percebe,

inaplicável o critério inicial da dominabilidade pela vontade e consciência.

Assim sendo, Roxin busca solucionar a questão através da proposta

de um novo critério que, segundo afirma, estaria inserido na idéia de

personalidade: “direção final interna” (innere Zielgerichtetheit) ou “finalidade

inconsciente” (unbewusste Finalität), que consistiria na “adaptação do

aparato anímico a circunstâncias ou eventos do mundo exterior”.63

O surgimento desse novo critério leva-nos, de pronto, a três objeções:

Primeiro, que a elaboração deste último critério atende, como já bem

referimos, a uma “necessidade” de reconhecer aqui uma ação, ou seja, que o

conceito pessoal de ação está realmente informado pelo tipo penal, ou, em

outras palavras, busca conformar aquilo que é jurídico-penalmente

interessante. Demonstra, pois, uma demasiada proximidade de seus critérios,

com a axiologia própria do sistema penal, de forma que a personalidade é

mais uma personalidade jurídico-penalmente relevante. Segundo, que, a

priori, a possibilidade de reconhecer uma “finalidade interna” – conceito, que,

embora possua capacidade heurística, reclama, ao nosso sentir, um maior

desenvolvimento – estaria prejudicada pelo critério inicial de dominabilidade.

Não podemos esquecer, que, para Roxin, somente é manifestação da

personalidade, aquilo que for dominável pela vontade e consciência, que haja

o “controle do Eu”, aqui inexistente. A sua inserção, portanto, como categoria

62 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.211 s..63 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.214.

secundária, posterior, é impossível e, se anterior, acreditamos, termina por

esvaziar o critério inicial. Terceiro, que esta multiplicidade de critérios retira

em muito a objetividade e utilidade do conceito proposto, decorrente de uma

categoria de “manifestação da personalidade” demasiadamente aberta,

pluriforme e, por isso, pouco heurística.

c) Objeções à função classificatória

Por fim, devemos abordar o verdadeiro objeto do nosso interesse, a

função classificatória. Diga-se desde já, ponto de maior fragilidade do

conceito pessoal de ação.

Questiona-se: será possível reunir sob o conceito de manifestação da

personalidade os fenômenos comissivos e omissivos? Para tanto, sugerimos

voltar a um questionamento já mencionado: pode-se considerar como

manifestação da personalidade um crime omissivo por culpa inconsciente?

Ou, em outras palavras, para usar um exemplo trabalhado pelo próprio Roxin:

pode-se considerar o mero esquecimento uma ação, ou seja, uma

manifestação da personalidade? Em que pese Roxin afirmar categoricamente

que sim, não podemos concordar com um tal entendimento.

Não nos é permitido, neste momento, realizar uma análise

pormenorizada da outrora tão discutida natureza da omissão jurídico-penal.

Contudo é sabido que as incontáveis tentativas de “naturalizar” a omissão, de

encontrar um qualquer elemento ontológico neste peculiar fenômeno,

perderam, ao longo dos anos, significativo espaço para as teorias normativas,

de forma a, hoje, podermos afirmar um já significativo consenso.64 A realidade

64 A título unicamente de ilustração, ver CADOPPI, Alberto, Il Reato Omissivo Proprio. Profili

introduttivi e politico-criminale, vol.1, Padova : CEDAM, 1988, p.158; PADOVANI, Tulio,

Diritto Penale, 5.° ed., Milano : Giuffrè, 1999, p.151; FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo,

ob. cit., [n.15], p.530 s.; MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.137, FRAGOSO, Heleno

Cláudio, «Crimes omissivos no direito brasileiro», Revista de Direito Penal e Criminologia, 33

(1982), p.44; MEZGER, Edmund, ob. cit., [n.18], p.27; GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.25

omissiva, não há dúvida, não pertence ao mundo do ser, mas do dever ser.65

É esta, de fato, a dimensão que lhe confere forma e fundamento. Em síntese,

um fenômeno meramente normativo, conformado pelos quadros axiológicos

do ordenamento jurídico-penal.66

Mas, se isso é verdade, torna-se absolutamente impossível cogitar-se

a existência de uma omissão, de um esquecimento, em uma dimensão

ontológica. Na medida em que a existência da omissão está condicionada a

considerações axiológicas, a juízos de valor, faz-se claramente perceptível

que, em uma dimensão pré-axiológica, a omissão é o nada, e como nada,

não pode ser apreendida, não pode ser, portanto, considerada uma

manifestação da personalidade.

Entretanto, muito embora a referida categoria “manifestação da

personalidade” traduzida como tudo aquilo que advém do “centro anímico-

espiritual do homem” ou, em outras palavras, controlável pela vontade e

consciência humanas, indique, em um primeiro momento, uma conformação

de caráter ontológico e, por este exato motivo, incapaz de traduzir um

fenômeno de natureza axiológica como a omissão, Roxin toma o cuidado de

observar também uma dimensão valorativa no conceito proposto. Conforme

afirma, o conceito pessoal de ação não possui uma dimensão unicamente

ontológica, mas também valorativa,67 que se torna apreensível a partir da

existência de “expectativas” (Erwartungen) socialmente fundadas. São,

segundo o autor, essas expectativas que permitem converter a ocorrência de

um “nada”, em manifestação da personalidade, e que, por estarem

socialmente fundadas, isto é, dissociadas da esfera de valoração jurídica,

ss..65 Neste exato sentido, MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.137. 66 Como bem salienta Gallas, a apreensão de um qualquer substrato natural só seria possível

a partir do processo volitivo do omitente, que, contudo, falta nas hipóteses de culpa

inconsciente (GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.25 s.). 67 Observe-se que o conceito pessoal de ação é, na definição de Roxin, um conceito

normativo: “der hier entwickelte personale Handlungsbegriff ist also ... ein normativer Begriff”

permitem a leitura do fenômeno omissivo em uma dimensão pré-típica.68 Em

síntese, o conceito pessoal de ação seria capaz de perceber, através de um

juízo de valor viabilizado pela existência dessas expectativas, o

descumprimento de um “dever” (expectativa) pré-jurídico de agir e, assim, da

ocorrência de uma omissão em uma dimensão prévia ao tipo.

Isso, todavia, não nos parece assim tão claro. Em primeiro lugar,

coloca-se saber a partir de qual critério o conceito pessoal de ação pretende

avaliar a ocorrência do não-atendimento de uma “expectativa de ação”. A

aplicação do critério inicial, isto é, das emanações anímico-espirituais do ser

humano, não se apresenta, por certo, idônea em apresentar uma qualquer

resposta a tal questionamento. Afinal, onde estaria o elemento axiológico?

Novamente nos deparamos com a necessidade de encontrar um outro

critério, agora capaz de viabilizar um juízo de valor acerca do bom ou mau

atendimento das expectativas sociais. E, ao que tudo indica, tal elemento

deve ser acrescentado ao critério-base, a partir de uma dedução da

categoria, absolutamente ilimitada na elaboração roxiniana, “personalidade”.

Bem reconhece Roxin: a personalidade, em sua teoria da ação,

funciona não como um só elemento, mas “múltiplas categorias valorativas”.69

Todavia esta conformação que lhe é atribuída pelo autor impõe, a nosso

sentir, a aceitação de uma entre duas alternativas. Ou se deve reconhecer

uma tal amplitude à personalidade, que a tornaria excessivamente maleável

e, nessa medida, impraticável como critério.70 Ou devemos aqui reconhecer

(ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.215).68 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207.69 Ver ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207.70 Tal afirmação nos parece respaldada pela própria resposta de Roxin às críticas de

Jescheck e Weigend. Estes autores, atribuindo uma demasiada estreiteza – que, como já

referimos, é, a princípio, esperada – à categoria “manifestação da personalidade”,

consideram-na incapaz de atender a determinados casos juridicamente relevantes, como, por

exemplo, a omissão de uma determinada conduta, em razão do desconhecimento de uma

situação de perigo, que, inclusive, poderia ser punida a título de culpa (JESCHECK, Hans-

Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.222). No entanto a resposta de Roxin é

negativa. Também essas hipóteses limites estariam compreendidas pelo conceito proposto, o

uma inegável aproximação do conceito social de ação, substituindo todas

essas “múltiplas categorias”, por uma categoria ampla de “relevância social”,

sujeita, nesta medida, a todas as críticas que lhe são opostas, inclusive pelo

próprio Roxin.71 Hipótese esta que devemos prontamente afastar, em razão

da própria crítica que lhe é feita por Jescheck e Weigend, bem como pelas

expressas palavras de Roxin.72 Resta-nos, então, mais uma vez, a primeira

hipótese.

Por fim – e aqui se coloca a principal objeção –, mesmo que a

personalidade se apresentasse como critério suficientemente delimitado para

as funções axiológicas a que se propõe, ainda assim não estaria apta em

propiciar um correto atendimento à função classificatória. A única avaliação

axiológica que interessa para a apreciação da omissão jurídico-penal,

consiste, como já tivemos oportunidade de observar, na avaliação propiciada

pela tipicidade, resultando absolutamente despiciendas outras considerações

de cunho valorativo. Nem sempre haverá o não-atendimento de expectativas

prévias àquela noticiada pelo tipo penal, o que, obviamente, retira a

possibilidade de identificar a omissão em uma dimensão pré-típica.

A correção do que ora referimos vê-se vivamente reforçada pelas

próprias palavras de Roxin, que, em postura científica exemplar, reconhece,

neste particular, a falha do seu conceito de ação. Segundo o autor, existem

hipóteses em que o tipo penal é efetivamente o primeiro fator de

consideração axiológica, fator primeiro de conversão de um não-fazer, em

uma omissão jurídico-penalmente relevante (como, v.g., costuma ocorrer nas

que atesta, a nosso ver, uma excessiva flexibilidade (ver ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.203).

Ainda sobre a excessiva amplitude do conceito de Roxin, podemos referir a crítica de

Mantovani, segundo o qual a teoria proposta “priva de rigorosi connotati delimitativi”

(MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.132).71 Sobre o conceito social de ação, ver as considerações acima. 72 Um dos objetos de crítica por Jescheck e Weigend é exatamente a falta de preocupação,

na elaboração de Roxin, no que tange à relevância social (JESCHECK, Hans-Heinrich;

WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.222), que, por sua vez, resta confirmado na resposta de

Roxin. Segundo o autor, os seus critérios normativos não devem ser confundidos com os

critérios utilizados pela teoria social da ação (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202 s.).

legislações penais no âmbito da economia, comércio e indústria).73 Nesses

casos, afirma Roxin, “não há ação antes do tipo”, é, em realidade, o tipo que

pressupõe a ação.74/75

III. Para a renúncia ao conceito de ação como Oberbegriff

As dificuldades enfrentadas na tentativa de encontrar um denominador

comum que assim viabilize a construção de um modelo unitário e pré-típico

de ação são, de fato, inúmeras, decorrentes da substancial diferença entre

natureza dos fenômenos comissivos e omissivos. Daí julgarmos

absolutamente atual a já tão conhecida afirmação de Radbruch: “tão certo

que um conceito e sua parte contrária, que posição e negação, a e não-a não

são possíveis de serem colocados sob um conceito superior comum: tão

certo é que ação e omissão devem coexistir separadamente”.76

Esta lúcida conclusão a que chegara, já em seu tempo, Radbruch, levou-

o a afirmar, como única solução possível, a “desconcertante” divisão do

sistema em dois conceitos autônomos, ação e omissão. Dever-se-ia, no

entender de Radbruch, renunciar à ação como o grande conceito do sistema, 73 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207.74 “Es gibt hier vor dem Tatbestand keine Handlung, vielmehr ist der Tatbestand deren

Voraussetzung” (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207). No entanto, observa Roxin que o fato

de algumas omissões serem indissociáveis do tipo não invalida o critério da manifestação da

personalidade, uma vez que expõe devidamente a realidade da existência humana através

da conjugação de elementos naturais com axiológicos (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207)75 Embora também defensor da existência de uma conduta unitária preexistente ao tipo penal,

Galiani tem igualmente de reconhecer a existência de casos em que a conduta (omissão) não

preexiste à norma. Referindo-se à omissão própria, afirma: “qui l’omissione, è vero, non

«preesiste» all’opera del legislatore. Il ‘comportamento omissivo’ è, fin da principio,

determinato dall’esistenza della norma penale che impone il dovere di agire. Manca quindi

un’omissione come oggetto «preesistente», cioè «prenormativo», di regolamentazione, dato

che l’omissione sorge ‘per le prima volta’ nel momento della sua regolamentazione”

(GALIANI, Tullio, Il problema della condotta nei reati omissivi, Camerino : Jovene Editore,

1980, p.109). 76 RADBRUCH, Gustav, ob. cit., [n.9], p.141 s..

em relação à qual todos os demais conceitos seriam apenas predicados. A

ação seria, pois, dividida nos conceitos autônomos de ação e omissão, o que,

por conseguinte, implicaria a idêntica duplicação de todos os demais

conceitos. Eles passariam, por isso, a ser analisados sempre em uma relação

de duplicidade, como predicados da ação ou predicados da omissão.77

Tal assertiva, ainda hoje absolutamente pertinente, encontrou

reconhecimento mesmo entre os teorizadores do finalismo, fervorosos

defensores de um conceito unitário de ação.78 Aliás, não só reconhecimento.

Em sua célebre investigação sobre os crimes omissivos, Armin Kaufmann,

vivamente influenciado pelas conclusões de Radbruch, propõe uma

elaboração em duplicidade, utilizando-se, para tanto, do denominado

“princípio de inversão” (Umkehrprinzip).79

O acerto da premissa utilizada por Kaufmann não impediu, todavia,

que lhe emprestasse uma leitura, em nossa opinião, demasiadamente

estreita. Não apenas ao manter a ação como elemento paradigmático como

ao aplicar um simples e estrito processo de inversão de signos, Kaufmann

acaba por equivocadamente identificar na ausência de finalidade e

causalidade, indispensáveis ao agir final, os elementos essenciais da

omissão. Bastaria, nessa medida, a supressão desses elementos para, então,

obter-se a essência da omissão como fenômeno.80 Kaufmann conclui daí

poder afirmar o denominador comum entre a ação e a omissão na

“capacidade de agir” (Handlungsfähigkeit).81

O equívoco que perpassa a elaboração de Armin Kaufmann consiste,

em realidade, naquilo que vem insistentemente acompanhando o ainda tão

incipiente desenvolvimento da teoria dos crimes omissivos, a imposição de 77 RADBRUCH, Gustav, ob. cit., [n.9], p.143.78 Ver MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.94. 79 KAUFMANN, Armin, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, Göttingen : Otto Schwartz,

1959, p.87 ss..80 KAUFMANN, Armin, ob. cit., [n.80], p.87. Sobre isto, ver também MARINUCCI, Giorgio, ob.

cit., [n.3], p.94.81 KAUFMANN, Armin, ob. cit., [n.80], p.89.

um modelo absolutamente estranho a esta particular forma de surgimento do

ilícito-típico.82 Não há dúvida, devemos reiterar, de que o incontestável déficit

apresentado pela dogmática dos crimes omissivos deve-se ao fato de ter

continuamente ocupado um lugar secundário em relação aos crimes

comissivos. Como se fosse possível, a partir dos estudos desta particular

expressão do ilícito-típico, obter-se, quer por dedução, quer por inversão, os

elementos necessários também para uma justa reposta penal no âmbito dos

tipos omissivos. A omissão, entretanto, não é uma forma que possa derivar

do agir nem o seu simples oposto. Mas simplesmente algo diferente, algo

diverso, e,como tal, deve ser estudado.

O grande mérito da investigação de Radbruch deve ser entendido,

assim o vemos, como uma eloqüente chamada de atenção para a diversidade

essencial das formas de manifestação do crime. Para a inadaptação dos

elementos decorrentes da infração a uma norma mandamental àqueles

oriundos da infração a uma norma proibitiva. De fato, os crimes comissivos e

omissivos encontram-se, nesta medida, em uma efetiva relação de oposição,

o que, entretanto, não equivale a afirmar que constituam por isso, assim

acreditamos, realidades que possam, como reflexo, ser percebidas. Como se

em um simples inverter dos elementos estruturais do agir, pudéssemos obter

a complexa estrutura do omitir.83

A irredutibilidade do fenômeno omissivo a um denominador comum

advém, pois, da sua manifesta diversidade estrutural e teleológico-funcional.

Diversidade que, anunciada por Radbruch,84 encontra plena receptividade na 82 Ver, MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.40 s. e 91 s.; MAZZACUVA, Nicola, Il disvalore

di evento nell’illecito penale. L’illecito commissivo doloso e colposo, Milano : Giuffrè, 1983,

p.149 s.. 83 Segundo Marinucci, “qualquer que seja a (hipotética) função que deva assumir o buscado

conceito geral de ação não se pode jamais construir “adaptando” uma ou outra “espécie” à

fisionomia de uma qualquer “espécie privilegiada”: adaptando, por exemplo, o “omitir” ao

esquema do “fazer positivo” (ou vice-versa) e o fazer (ou o omitir) “culposo” ao fazer (ou

omitir) “doloso” (ou vice-versa)”(MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.41). Também,

FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., [n.15], p.525 s..84 RADBRUCH, Gustav, ob. cit., [n.9], p.140.

moderna dogmática jurídico-penal85 e exige, daí, um estudo dissociado do

fenômeno comissivo, capaz de identificar na natureza normativa específica da

omissão, os elementos informadores e conformadores de uma expressão

autônoma, de uma manifestação do ilícito-típico com inegável feição própria.86

Somente tal reconhecimento pode permitir a proposta de soluções adequadas

para os incontáveis problemas ainda hoje enfrentados na teoria dos crimes

omissivos e obter, a partir daí, avanços que se fazem tão necessários.

Assim, ante a impossibilidade de redução a um conceito unitário e a

conseqüências perniciosas de tentativas improfícuas, outra alternativa não

nos parece haver, senão a renúncia a um conceito unitário de ação. Com total

razão Marinucci, ao afirmar que “hoje, a renúncia a construir um conceito

unitário de ação ou ao menos a radical redução de suas funções

sistemáticas, aparece cada vez mais como um objetivo não só alcançável,

85 Bem destaca Figueiredo Dias, “a análise do conjunto dos tipos-de-ilícito constantes de um

ordenamento jurídico-penal conduz, na verdade, à conclusão de que existem diferenças

teleológico-funcionais (e também estruturais) entre quatro espécies de aparecimento do

crime e que convidam a uma sua consideração dogmática autônoma: os crimes dolosos de

ação, os crimes dolosos de omissão, os crimes negligentes de ação e os crimes negligentes

de omissão” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Questões fundamentais do Direito Penal

revisitadas, São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p.216). Neste mesmo sentido, ver

FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., [n.15], p.148 s.; e ainda, de forma detalhada,

MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.123 ss.. Por outro lado, Mantovani, embora reconheça

a impossibilidade de redução ontológica, fundamenta o seu supraconceito de conduta a partir

de uma função categorial, que reconhece, nas diversas manifestações do ilícito-típico, “uma

exteriorização do homem no mundo social”. (MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.132).

De forma semelhante, Mezger procura reduzir ao máximo o conteúdo do seu conceito de

ação, propondo, com efeito, a “conduta humana”, como denominador (MEZGER, Edmund,

ob. cit., [n.18], p.23 s.). 86 Com razão Fragoso, ao afirmar que a omissão “não é uma modalidade de ação e não é

ação negativa, mas algo essencialmente diverso e distinto da ação. No direito penal moderno

a omissão constitui forma especial de aparecimento do fato punível” (FRAGOSO, Heleno

Cláudio, ob. cit., [n.64], p.44). Também assim, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit.,

[n.15], p.166.

senão ademais necessário, ou inclusive o único metodologicamente

correto”.87

A célebre assertiva de Beling, em prol do Tatbestand como “pedra

fundamental e angular do atual Direito Penal”,88 faz-se, por tudo isso, ainda

hoje atual. À luz das diferentes propostas para um conceito unitário de ação

até então formuladas, a mais coerente alternativa ainda consiste em abdicar

de um elemento pré-típico para todas as expressões do ilícito-típico. Não

mais a ação, mas o Tatbestand, ou, mais especificamente, a realização do

tipo penal,89 deve ser o conceito-base. Conceito que, em face de sua

essência jurídico-penal, está muito longe dos problemáticos90 e pouco úteis91

conceitos multifuncionais de uma ação pré-típica. Mas não só. Exatamente

por esta feição, apresenta-se absolutamente capaz de permitir um

desenvolvimento autônomo das diferentes formas de surgimento do ilícito-

típico, quer sejam comissivas, omissivas, dolosas ou culposas. Admite,

assim, uma leitura quadripartida do ilícito-típico, respeitosa de suas

87 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.4. 88 BELING, Ernst, ob. cit., [n.8], p.v, Vorwort. 89 DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.215. Vale salientar, no que tange ao

pensamento de Mezger, que muito embora adote um conceito unitário de ação, em que pese

verdadeiramente mínimo (conduta humana), este autor não manifesta qualquer objeção em

relação à proposta de utilizar-se da realização do tipo penal como conceito superior, na

medida em que, como bem destaca, a própria defesa da conduta humana como denominador

só se faz viável a partir da consideração de todos os tipos penais. Afinal, se houvesse, por

exemplo, tipos penais que descrevessem condutas de animais, o conceito de ação como

conduta humana perderia a sua validade (MEZGER, Edmund, ob. cit., [n.18], p.24). Neste

particular, faz-se oportuno atentarmos para a já referida questão da pessoa jurídica. 90 Bem destaca Figueiredo Dias, “em vista do complexo das considerações anteriores” –

acerca das diversas teorias da ação – “é preferível que a doutrina do crime renuncie a

encontrar a sua ultima Thule nos resultados de uma excessiva abstração generalizadora e

classificatória que vai implicada na aceitação de um qualquer conceito pré-jurídico geral de

ação” (DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.214).91 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.11], p.108.

insuperáveis particularidades e, nesta medida, idônea a respostas mais

adequadas, a uma dogmática mais exata e mais justa.92

O antigo conceito de ação deixa de existir, pois, como supraconceito,

como Oberbegriff, abandonando a sua dimensão pré-típica e, dessa forma,

também a necessidade de reivindicar um desenvolvimento teórico próprio.93

Passa a ser absorvido pela própria tipicidade ou como mais um elemento do

ilícito-típico, a cuja existência se atribui única e exclusivamente uma restrita

função de delimitação,94 ou através da função exercida por elementos de

imputação já pertencentes ao tipo penal. Apresenta, dessa maneira, a sua

renuncia à posição de elemento fundamental da estrutura teórica do crime, a

ser ocupada pelo conceito jurídico-penal de realização típica.

92 Assim, MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.133; FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo,

ob. cit., [n.15], p.166 s..93 Bastante ilustrativa, parece-nos a proposta de Otto. Segundo o autor, a conduta jurídico-

penalmente relevante é, senão, uma conduta suscetível de controle pela vontade. Este é o

elemento que aparece presente em todas as condutas jurídico-penais. No entanto, tal

assertiva não necessita do desenvolvimento de uma teoria da ação. Afinal, a possibilidade de

atender ao mandato jurídico é, em verdade, pressuposto deste, de forma que, para falar-se

em infração a uma norma mandamental ou proibitiva, é preciso admitir-se que ao sujeito era

possível atendê-lo. Daí não ser preciso falar em um conceito pré-típico, mas apenas de

elementos fundamentais ao tipo de ilícito (OTTO, Harro, ob. cit., [n.13], p.51 s.).94 Restaria aqui, usando as palavras de Figueiredo Dias, “apenas uma certa (e restrita)

função de delimitação”, que, contudo, “não deve ser desempenhada por um conceito geral de

ação, antes deve sê-lo por vários conceitos de ação tipicamente conformados”. A ação torna-

se, pois, apenas mais um elemento dos tipos-de-ilícito, a exercer um “papel secundário no

sistema teleológico”, ou seja, a simples função de excluir da tipicidade o juridicamente

irrelevante (DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.215, itálico do autor). De forma

semelhante, afirma Lenckner, que ao conceito de ação, “como elemento geral da infração”,

caberia “apenas uma função negativa” (SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, ob. cit., [n.12],

Vorbem.37, vor §13 (p.156))