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TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO- FILOSOFIA - FACULDADE SÃO LUIZ - BRUSQUE -SC

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FACULDADE SO LUIZ JORGE LUS CASTRO DE SOUZA

A PROPOSTA DE UMA TICA COMUNITARISTA SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE

BRUSQUE 2011

JORGE LUS CASTRO DE SOUZA

A PROPOSTA DE UMA TICA COMUNITARISTA SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE

Trabalho de concluso de curso para obteno do grau de Bacharelado em Filosofia pela Faculdade So Luiz

Orientador: Lawall

Prof.

Ms.Francisco

BRUSQUE 2011

Dedico este trabalho aos meus pais Jos Paulo e Jucileide, aos meus irmos Jos Paulo, Josyane, James, aos meus cunhados Marcos e Elli, minha sobrinha Julia Mori e minha av Roslia Vieira, bem como meus amigos, Tnia Calhau, Anne Roepcke, Maria Oneda, Herbert e Tasa, Hideraldo e Margarida

Agradeo primeiramente a Deus, aquele que tudo prov em minha vida. Agradeo, com grande admirao, aos grandes pastores e mestres que Deus ps em minha caminhada: Dom Anglico Sndalo Bernardino e Dom Jos Negri. Aos sacerdotes que foram meus formadores e amigos: Padre Almir, Padre Vanderlei, Padre Paulo,Padre Ronchi,Padre Valmir,Padre Joo,Padre Norbey,Padre Jos Carlos, Padre Vicente SCJ, Padre Djalmo, Padre Andr SCJ, Frei Edimar Moreira A todos os meus irmos da Ordem do Carmo, Comunidade Bethnia e companheiros de curso, de forma especial queles que estiveram mais prximos: Felipe Xavier, Murilo Guesser, Erik Dorf Schmitt, Edegar Fronza Jr e William Fernandes de Jesus, Willian T. Cludio e, por fim, ao meu orientador Prof. Mestre Francisco Lawall.

RESUMOO presente trabalho monogrfico, de ordem terico-bibliogrfico, busca apresentar a tica comunitarista segundo MacIntyre. Tendo como problemtica a repercusso da mesma na atualidade e suas possveis limitaes filosficas. A tica comunitarista uma proposta de atualizao da tica aristotlica. Para tanto ser utilizada como obra bsica: Depois da Virtude (2001), de MacIntyre. Ser apresentado num percurso de reflexo a partir dos comportamentos emotivistas, que se enquadram na preferncia e no sentimentalismo. Neste mesmo caminho, apresenta-se uma reflexo daquela que conhecida como tica comunitarista, defendida pelo mesmo contrapondo-se a tica emotivista. Este trabalho quer auxiliar na valorizao do pensamento deste escocs e seu modelo tico, descrevendo o comunitarismo, recuperando as virtudes morais nos indivduos, virtudes estas, que capacitam o homem para realizar o bem de modo compartilhado e no interior de determinada comunidade, j que no se pode conceber o indivduo apartado da comunidade poltica de que faz parte. Finalizando, sero mostradas algumas crticas sobre o pensamento oferecido por MacIntyre. Para ele, as alternativas contemporneas ficam por conta de comunidades mais ou menos organizadas em torno de crenas comuns, tais como igrejas, seitas ou certos tipos de associaes polticas. A pequisa justifica-se como busca de um modelo tico baseado na recuperao das virtudes como instrumentos apropriados de formao moral. Nesse sentido, MacIntyre uma rica oportunidade para dialogar com a atualidade, no contexto tico. PALAVRAS CHAVE: MacIntyre; Comunitarismo; Virtudes.

SUMRIOINTRODUO .................................................................................................... 6 1. A TICA COMUNITARISTA CONFRONTADA COM A TICA EMOTIVISTA ...... 8 1.1 Conceituao de tica e moral na Filosofia ................................................... 9 1.1.1 Conceituao de tica ........................................................................... 9 1.1.2. Conceituao de moral ....................................................................... 10 1.1.3. A relao entre moral e tica .............................................................. 14 1.2 A teoria da tica emotivista ........................................................................ 16 1.3. A teoria da tica comunitarista .................................................................. 19 2. A TICA COMUNITARISTA SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE .................. 25 2.1. Vida e obra de Alasdair MacIntyre ............................................................. 25 2.2. A influncia da tica aristotlica na obra de MacIntyre ................................ 41 2.3. A atualizao da tica aristotlica em Alasdair MacIntyre............................ 44 3. PONTOS POSITIVOS E CONTROVRSIAS DA PROPOSTA MACINTYREANA ....................................................................................................................... 47 3.1. O comportamentalismo sentimental, histrico e cultural e a tica Macyntireana ...................................................................................................................... 47 3.2. O lugar na tica comunitarista de MacIntyre na filosofia poltica .................. 59 3.3 Discusso de autores sobre a proposta comunitarista Macyntireana ............ 66 CONSIDERAES FINAIS................................................................................ 72 REFERNCIAS ................................................................................................. 76

INTRODUOMacIntyre ganhou destaque em nosso tempo atravs de sua grande defesa tica comunitarista, fazendo uma releitura da tica aristotlica, construindo uma proposta que pretende combater os modelos ticos contemporneos, que se baseiam no modelo iluminista de justificao da moralidade pelo dado emprico, chamando-os de emotivistas, atualizando o pensamento Aristotlico da tica de virtudes. Baseando-se na crtica estabelecida por MacIntyre, chegamos anlise da possibilidade de uma tica comunitria que possa vir a ser indispensvel para a manuteno das tradies que permitem prticas sociais convenientes sociedade atual. Mostrar a repercusso da tica apresentada por MacIntyre na atualidade e quais as possveis crticas dessa proposta filosfica. Este trabalho tem como tema a proposta de uma tica comunitarista segundo Alasdair MacIntyre, com o objetivo geral de apresentar a tica comunitarista segundo este autor. Dada a condio socivel presente no ser humano, despertado aps este se conhecer racional e passvel de pensamento, reflete-se sobre as relaes que estes humanos desenvolvem. Todo o comportamento relacional dos homens ao longo dos tempos foi gerado por circunstncias e motivaes variadas, quando no por estados de submisso, mas o fato o interesse do homem em relacionar-se, socializar-se e ao mesmo tempo, valorar ou intencionar como e por que estabelecer este contato entre si. No campo moral tem-se muitas descries de como o ser socivel; muitas ticas so estudadas na busca de melhor entenderem essa relao. Neste mesmo caminho, apresenta-se nesta pesquisa uma reflexo daquela que conhecida como tica comunitarista, defendida por Alasdair MacIntyre. Ser

7 desenvolvida num percurso de reflexo a partir dos comportamentos emotivistas, que se enquadram na preferncia e no sentimentalismo, quando estudam-se alguns comportamentos ou atitudes. Em seu discurso terico, MacIntyre apresenta o comunitarismo como o resgate dos valores morais, das virtudes, j anteriormente apree ndidas de Aristteles. MacIntyre acredita que a vivncia comunitria, embora criticado por no garantir os direitos individuais, se torna fonte de novos valores em sociedades em que a conscincia moral esteja subtrada. Assim, objeto deste trabalho de concluso de curso a tica comunitarista segundo MacIntyre, tendo como objetivos: apresentar primeiramente o conceito de tica e de moral; da tica emotivista; descrever a proposta da tica comunitarista, como atualizao da tica aristotlica; mostrar os pontos positivos e limitaes da proposta macintyreana.

1. A TICA COMUNITARISTA CONFRONTADA COM A TICA EMOTIVISTA a partir de uma anlise histrica da moral que MacIntyre prope articular e justificar uma teoria tica comunitria vinculada tradio aristotlica, que venha por meio de uma anlise da racionalidade prtica tambm vinculada tradio, mas que ao mesmo tempo essa racionalidade no seja relativizada. Entende-se que preciso construir argumentos vlidos que passem pelas premissas relativas natureza humana. Podemos entender que esses conceitos apresentados, para renovar a concepo de moralidade em Aristteles, passam pela prpria narrativa, prtica e tradio.1 A histria da moralidade e a histria da filosofia moral formam uma nica e mesma histria. A multiplicidade de moralidades emergidas nos diferentes contextos sociais na histria correspondem diferentes filosofias morais que organizam tais moralidades com base em racionalidades diferentes, uma vez que toda a filosofia moral tem uma sociologia particular como sua contrapartida. Repassando a histria da filosofia, analisa-se a noo de virtude. MacIntyre destaca o critrio de avaliao moral constitudo pela forma de vida na qual o cidado est inserido e pelo carter de seu autor que se funde e desenvolve num contexto social junto participao dos que possuem bens internos. Assim, todo amadurecimento moral de uma pessoa acontece na reflexo sobre o tipo de vida que ela leva e pela construo de uma narrativa individual em funo de seus atos

Cf. VERSSIMO, Martha. Teorias sobre a natureza dos Valores. Disponvel em: . Acesso em 31 de jul. 2011.

1

9 que sero julgados como virtudes e vcios. As virtudes relacionam-se ento com as prticas, mas tambm com a boa vida para o homem. 2

A histria da vida est embutida na histria das comunidades de onde o sujeito deriva a sua identidade. O que sou, , portanto, em grande parte, o que herdei, um passado especfico que se apresenta de alguma forma no meu presente. Encontro-me como parte de uma histria, isto , como portador de uma tradio. E o que sustenta uma tradio o exerccio das virtudes relevantes. As virtudes encontram o seu objetivo no apenas sustentando as relaes sociais necessrias a atingir os bens internos a uma prtica, e no apenas sustentando uma forma de vida individual na qual o indivduo busca o seu prprio bem, mas tambm sustentando as tradies que fornecem as prticas vida individual e seu contexto. 3

O que importa nesse estgio a construo de formas locais de comunidade dentro das quais possam se sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral durante a nova idade das trevas que j estamos vivendo.

1.1 Conceituao de tica e moral na Filosofia 1.1.1 Conceituao de ticaSegundo Valls, 4 o termo tica deriva do grego ethos e significa modo de ser, carter, ou seja, designa a reflexo filosfica sobre a moralidade e os cdigos morais. Ao nortear a conduta humana, esclarece, sistematiza e determina as diretrizes e os princpios da moral. Sendo assim, a tica uma criao consciente e reflexiva sobre a moralidade, e tambm uma criao espontnea e inconsciente de um grupo social. Para Oliveira 5 a tica uma reflexo sobre os costumes ou as aes humanas em diversas manifestaes e em diversas reas, tida como os costumes considerados corretos, devendo o cidado se adequar aos padres vigentes numa sociedade, pois, caso no siga, passvel de coao das aes e dos costumes humanos considerados virtuosos.

2 3

Cf. VERSSIMO, 2011. Cf. Ibid. 4 Cf. VALLS, Alm. O Que a tica. So Paulo: Brasilense. 1998. p. 16. 5 OLIVEIRA, M. Arajo de. tica e sociabilidade. So Paulo: Loyola, 1993. p. 22.

10 Na Filosofia, conforme Tugendhat,

A tica pode ser considerada a parte da filosofia que tem como objeto de estudo o domnio da ao humana, que desvenda no o que o homem , mas aquilo o que ele "deve fazer" perante o seu campo do juzo de valor e no o do juzo de realidade, da existncia. 6

Os valores podem ser padres sociais ou princpios mantidos pela sociedade, de modo que cada um adquire uma percepo individual de valor, com pesos diferenciados que, sob determinado enfoque, dependero do modo de vida de cada pessoa, de suas convices filosficas, experincias ou de crenas religiosas. A conscincia se manifesta diante de possibilidades variadas, decorrentes de uma ao realizada. No processo de condutas, avaliam-se os meios e os fins, pesam-se as conseqncias que podem ser esperadas.7 Singer,8 nos lembra que o estudo da tica vem articulado a questes culturais, polticas e econmicas, mostra o respeito e a valorizao da tica enquanto direito e dever de todos em uma sociedade mais democrtica e humana, sendo a cultura de uma sociedade o bom ponto de partida para o estudo do tema por conter o registro histrico dos mais diferentes grupos sociais, elementos como o agir, o pensar, o sentir e o reagir, para formar a realidade tica social. Percebe-se que a discusso tica tem sido constante em toda a histria da filosofia, sendo complexo conceitu-la de forma radical, mas sempre possvel mostrar sua importncia nas aes humanas e o papel que desempenha ao ajudar o homem na igualdade social. Dentre todos os conceitos, um ponto comum, que a grande parte dos pensadores estuda os comportamentos humanos dentro do contexto social onde esto inseridos, o que demonstra que a tica fundamental para o convvio das pessoas, por estabelecer a importncia dos valores, a responsabilidade e a conscincia no indivduo de se reconhecer e conhecer os outros.

1.1.2. Conceituao de moral

6 7

TUGENDHAT, Ernst. Lies sobre tica. Petrpolis: Vozes.1997. p. 31. Cf. VERSSIMO, 2011. 8 SINGER, Peter. tica Prtica. Lisboa: Gradiva. 2000. p. 23.

11 De acordo com Appel 9 a moral algo relativo, cultural e temporal, j que um conjunto de regras de condutas sociais, logo, que varia de sociedade para sociedade, ou seja, dependente da herana cultural de cada sociedade.Nos remonta a resultado dos valores de um determinado povo, o que a torna temporal, visto que suas normas no so eternas ou imutveis, muito pelo contrrio, variam conforme as pocas e a assimilao de novos valores sociais dentro de um novo contexto histrico. Entretanto para Weston10, o principal aspecto da Moral o seu sentido de obrigatoriedade. As normas estabelecidas devem ser seguidas por todos os componentes da sociedade, de forma coletiva, envolvendo questes como o que "certo" e o que "errado", o que podemos ou no fazer:

A moral relaciona-se com o limite da liberdade humana ao normatizar e estabelecer at que ponto o homem livre e a hora em que deve regrar-se e limitar-se para sentir-se seguro dentro de uma sociedade, ao mesmo tempo em que um ser autnomo e pensante, um agente modificador e transformador. Moral pode ser entendida como a padronizao do "certo" e do "errado"; tambm afirma que esta temporal e cultural como conduta de regra, por visar o coletivo. As normas morais adotam limites que aos poucos tornam-se costumes e tradies. Aqueles que vivem sob certa neutralidade quanto ao agir moral ou imoral, so tidos como amorais, alienados, indiferentes. 11

E continua o autor:

E esses indivduos so rapidamente devorados pela sociedade, perdem a sua identidade mediante um caos moral. Apesar de vivermos em uma sociedade dita democrtica, sua base poltica o conflito junto diversidade de opinies. A liberdade do indivduo quanto ao pensar e agir, se confrontada com a coletividade, perde para esta. A coletividade est sempre acima da individualidade, de forma que o sujeito moral, o imoral e o amoral geram um conflito em uma convivncia politicamente democrtica em sociedade. 12

Podemos observar que, de um lado, temos atos e comportamento dos homens e determinados problemas morais, e, do outro lado, temos os juzos que aprovam ou desaprovam moralmente esses atos. Mas, tanto os atos quanto os9

APPEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna. So Paulo: Vozes, 1994. WESTON, Anthony. tica para o Dia-a-Dia. Lisboa: Esquilo. 2002. p. 68. 11 WESTON, 2002, p. 68. 12 WESTON, loc. Cit.10

12 juzos morais pressupem normas que apontam o que se deve fazer, levando por vezes o indivduo deslocado da conduta moral estabelecida a tentar argumentar para justificar o seu comportamento desnivelado. Destacamos que a moral um fato histrico e a tica uma cincia da moral, que enfoca o modo comportamental do homem. Ao histrico moral, Weston13 cita trs campos de reflexo como fundamentais: a) Deus como fonte da moral (o poder sobrenatural); b) A natureza como fonte da moral (igualando o homem ao animal, como fator biolg ico da moral e seus sentimentos;c) O homem como origem e fonte (o homem um ser majoritrio, com essncia eterna e imutvel). Estas trs concepes procuram a origem e a fonte da moral fora do homem como um ser histrico e social. O comportamento moral existe desde as sociedades mais primitivas, onde a moral muda e se desenvolve nas diversas sociedades. Tais mudanas histricas da moral, conforme o autor, levantam dois problemas: causas que determinam estas mudanas e o seu sentido ou direo. Assim, normas, mandamentos ou prescries no escritas, a partir de virtudes que beneficiam a comunidade, fazem nascer a moral com a finalidade de assegurar uma concordncia do comportamento individual com interesses coletivos. a necessidade de ajustar o bom comportamento aos interesses coletivos que leva o indivduo a contribuir para reforar ou minar a unio. Estabelece-se o que bom e o que mau, deveres e obrigaes conforme o que se considera bom ou til para a comunidade, com uma conduta moral nica e vlida para todos.14 Para Weston15 a coletividade como um limite da moral, mas uma moral pouco desenvolvida porque obrigatria, enquanto que a verdadeira moral baseada na responsabilidade pessoal espontnea e inerente ao indivduo. O autor cita como exemplo a diviso da sociedade antiga em duas classes antagnicas, com clara diviso da moral. Existia uma moral dominante, dos homens livres, considerada como verdadeira, efetiva, fundamentada e justificada nas grandes doutrinas ticas dos filsofos da antiguidade e a moral dos escravos.

13 14

Ibid., p. 57. Cf. WESTON, loc. Cit. 15 Cf. WESTON, loc. Cit.

13 Aristteles, lembra Weston16, opinava que uns homens so livres e outros escravos por natureza, e que esta distino justa e til, j que os escravos eram objeto de um tratamento desapiedado, feroz, e que nenhum dos grandes filsofos daquele tempo julgava imoral. Reprimidos, os escravos eram influenciados por aquela moral servil e forados a considerar a si prprios como coisas. Desaparecendo o mundo antigo, assentado sobre a instituio da escravido, nasce a nova sociedade feudal e dos camponeses servos, que eram vendidos e comprados com as terras s quais pertenciam e no podiam abandonar. Havia a garantia ao senhor feudal e homens considerados livres (artesos, pequenos industriais, comerciantes, etc.) sujeitos autoridade da Igreja como o instrumento do senhor supremo, Deus. Frankl17 relata que a moral da sociedade medieval correspondia s suas caractersticas econmicas, sociais e espirituais entrelaadas com o papel dominante da Igreja na sociedade, cuja moral estava impregnada de contedo religioso. Na Idade Mdia havia pluralidade de cdigos morais, como o cdigo dos nobres, o cdigo das ordens religiosas, o cdigo das corporaes, o cdigo dos universitrios. Somente os servos no tinham cdigo e nem direitos diante da aristocracia feudal. Esse breve passeio histrico relevante para se compreender a moral vivida na sociedade, pelo fato de esta mudar historicamente de acordo com as reviravoltas no desenvolvimento social, passando por constantes mudanas, como visto da sociedade escravista feudal sociedade burguesa. Uma nova moral,

verdadeiramente humana, implica num desenvolvimento do esprito coletivista, e a histria mais uma vez apresenta uma sucesso de morais correspondentes s diferentes sociedades que se sucedem no tempo, postas numa relao onde a conquista de uma sociedade determinada prepara o caminho para um nvel posterior e mais avanado ou mais rico do que a outra sociedade. Afinal, o homem um ser criador, transformador, mas produz somente em sociedade, materialmente e espiritualmente.16 17

18

Cf. WESTON, loc. Cit. FRANKL, George. Os Fundamentos da Moralidade: Uma Investigao da Origem e Finalidade dos Conceitos Morais. Lisboa: Bizncio. 2003. p. 45. 18 DAMASCENO, Mrcia Marques. O Projeto Filosfico Central De Alasdair Macintyre. Prometeus - Viva Vox - Dfl - Universidade Federal De Sergipe. Ano 4 - n.7 Janeiro-Junho / 2011. Disponvel em: http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/prometeus/7/6.pdf Acesso em 31de jul. 2011.

14 O progresso histrico-social cria as condies ideais para o progresso moral, afeta os homens de uma determinada sociedade sob o ponto de vista moral, tanto de forma positiva quanto negativa, como, por exemplo, a abolio da escravido, que enriqueceu o mundo da moral, integrando nele o escravo. O exemplo demonstra que o progresso histrico cria condies para o progresso moral e traz conseqncias para este, porque os homens no progridem somente na direo moralmente boa, mas tambm na direo m, pela violncia, pelo crime e pela degradao moral. 19 Mas, h vcios morais, antigas virtudes morais que correspondem a interesses da classe dominante, valores morais reconhecidos depois de o homem percorrer um caminho no seu progresso social e moral, pois a mudana numa linha ascensional tem suas razes na mudana de formaes sociais.

1.1.3. A relao entre moral e ticaSegundo Novaes 20 a imposio a que as pessoas so submetidas na necessidade de convivncia faz surgir a moral, reunio de regras destinadas a orientar os indivduos numa comunidade social. Os termos "tica" e "moral" so constantemente empregados como sinnimos, mas o fato moral, difere da tica, que se designa pela reflexo filosfica sobre o mesmo. Os problemas simplesmente morais so restritos, nunca generalizados e correspondem singularidade daquela situao; trata-se de um problema prtico-moral. J os problemas ticos so caracterizados pelas generalidades, como problemas terico-ticos. Assim, quando se indaga o que correto, o que bom, sendo de carter amplo e geral, o problema terico, ou tico. A moral a ao; a tica a norma, j que ela no cria a moral, e sim, faz uma abordagem cientfica da moral; a cincia do comportamento moral dos homens na sociedade, enquanto enfoca o comportamento humano

cientificamente.

Podemos entender que moral o que vivido, o que acontece. J a tica, , ou, pelo menos, deveria ser, o objeto. A tica estuda, aconselha e at ordena. A moral expresso da existncia. Tanto a tica como a moral relacionam-se a valores e a decises com19 20

Cf. DAMASCENO, 2011, Cf. NOVAES, Adauto. tica. So Paulo: Companhia das Letras.1992. p. 5-8.

15conseqncias para o prprio indivduo e para os outros. A Moral pode ser conceituada como o conjunto de regras de conduta vlidas, que regula o comportamento individual e social das pessoas, envolvendo o conjunto de costumes, normas e regras de conduta em uma sociedade, cuja obedincia imposta, variando de cultura para cultura e sempre se modifica com o tempo em uma mesma sociedade. 21

Oliveira 22 explica que os dois vocbulos se referem a qualidades humanas, como o modo de ser ou o carter, em que se baseiam os costumes ou as normas, o que pauta o comportamento moral do homem. Assim, a tica analisa as regras e os princpios morais destinados a orientar a ao humana; sua estrutura capaz de analisar diferentes opes sobre o que ou no correto em determinado momento. Como os indivduos s podem viver em funo da comunidade, ficam refns do sacrifcio pessoal que fazem. A tica, como a moralidade, no se situa no campo puramente dos valores, porque a sociedade cria valores e aes que orientam e determinam o impulso moral e impelem a ao dos indivduos. Tais valores levam ao prprio aperfeioamento e ao bem comum do grupo para se poder dizer que possuem valor moral. Quando o homem encontra um dilema, os valores pr ou contra determinam a sua escolha. 23 Pelo exposto, encontramos que uma reflexo tica e moral contempornea acha-se em constante processo de reviso, pois a sociedade da informao se v confrontada com descobertas e possibilidades tecnolgicas, intervenes cientficas at ento nunca pensadas, como a gentica molecular e discusses tico-jurdicas (aborto, eutansia, reproduo humana), dentre outras. O comportamento ensinado e utilizado como exemplo, como cultura que se apodera de cada um de ns e determina a nossa conduta. A tica norteia o caminho a ser seguido.

O homem aparentemente livre, mas diante de uma situao concreta obrigado a escolher um caminho e, assim surge a tica como limitao da liberdade individual. Nasce a responsabilidade, que elemento moral de qualquer conduta. A tica, se comparada moral, possui um carter mais abrangente, vai alm do que seja o "certo" e o "errado" temporais, do bem e do mal. Ao contrrio da moral, a tica permanente e universal e parte do individual rumo ao bem comum. A moral trata de questes mais concretas e prticas21 22

NOVAES, 1992, p.67. OLIVEIRA, 1993, p.28. 23 DAMASCENO, 2011

16enquanto que a tica lida com temas mais complexos e tericos que dizem respeito ao juzo de valores que todos possumos. 24

Podemos entender que a tica fragmentou-se ao longo do tempo, seja tica mdica, tica jurdica, tica social, mas, no seu discurso inicial, o "esprito" tico universal e lembra que a tica envolve a questo da escolha, que a diferencia da moral. Apesar de tica e moral possurem uma ligao intrnseca referente a valores humanos, possuem diferenas e particularidades. O fato que impossvel conceber uma sociedade sem moral e sem tica, visto que as duas formam os principais pilares do respeito e do comportamento social humano.

1.2 A teoria da tica emotivistaSegundo Verssimo 25, as teorias respondem ao problema da natureza dos valores, como realismo moral, subjetivismo moral e emotivismo. Por realismo moral entende-se o bem e o mal como propriedades das situaes e das pessoas. O correto e o incorreto so propriedades das aes, e essas propriedades morais so parte real do mundo. O realismo moral consiste em saber se h fatos acerca do correto e do incorreto e de que tipo se trata. O subjetivismo moral defende que existem fatos morais, mas que estes so subjetivos, porque podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo do sujeito que os pratica. Os juzos morais descrevem os nossos sentimentos de aprovao ou reprovao acerca das pessoas e do que elas fazem. O certo ou errado depende, dos sentimentos de cada um.

O subjetivismo partilha com o emotivismo a idia de que no existem verdades morais independentes dos sujeitos individuais e de que os juzos morais derivam dos sentimentos que cada pessoa tem acerca de um determinado assunto. Porm os emotivistas vo mais longe, afirmando que ao utilizarmos a linguagem moral apenas manifestamos as nossas emoes e tentamos convencer os outros a agirem de uma determinada maneira. Deste modo, os juzos morais no expressam qualquer tipo de fato e no transmitem valor de verdade algum, mesmo que estejam relacionados com pessoas. 26

24 25

Ibid. VERSSIMO, 2011. 26 Ibid.

17 Para um realista, os juzos morais no dependem do que o sujeito faz, ou seja, das propriedades que as pessoas e as situaes assumem. Segundo um subjetivista o juzo moral possui valor de verdade, embora no seja objetivo (verdadeiro). Os juzos morais relatam fatos morais e esses fatos podem ser avaliados quanto ao seu valor de verdade, apesar de serem subjetivos, ou seja, apesar de diferirem de pessoa para pessoa.27

Segundo um emotivista o juzo moral possui valor de verdade, embora no seja objetivo (falso). Para um emotivista os juzos morais no relatam qualquer tipo de fato, logo, no expressam valor de verdade. Para os emotivistas, os juzos morais descrevem apenas os nossos sentimentos de aprovao ou reprovao (Falso). O emotivismo no aceita a existncia de fatos morais subjetivos. Logo, se os nossos sentimentos de aprovao ou reprovao forem considerados como tal, o emotivismo no os aceita. Para os emotivistas os juzos morais manifestam apenas emoes do sujeito sem valor de verdade algum. 28

O emotivismo nos apresentado por seus mais cultos protagonistas como uma teoria acerca do significado dos enunciados para emitir juzos morais. Segundo Alasdair MacIntyre, o emotivismo

[...] a doutrina segundo a qual todos os juzos valorativos e mais especificamente, todos os juzos morais no passam de expresses de preferncia, expresses de sentimento ou atitudes, na medida em que so de carter moral ou valorativo. Os juzos particulares podem naturalmente, reunir elementos morais e factuais. 29

Essa teoria distingue o juzo moral do factual. Os juzos morais no so verdadeiros ou falsos; no terreno do fato existem critrios racionais por meio dos quais podemos chegar a um acordo quanto ao verdadeiro e o que falso. Mas nos juzos morais, por serem expresses de atitudes ou sentimentos, os emotivistas no chegam nem ao verdadeiro nem ao falso; e no se tem um acordo no juzo moral por meio de nenhum mtodo racional, pois no existe nenhum. Somente se chega a um acordo, caso se produza certos resultados no racionais sobre as emoes ou o comportamento dos que discordam, empregamos os juzos morais para expressarIbid. Ibid. 29 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. EDUSC, 2001, p. 30.28 27

Traduo Jussara Simes. 2. ed. Bauru:

18 nossos prprios sentimentos e atitudes, mas tambm para produzir tais resultados em outras pessoas.30 Segundo MacIntyre, o emotivismo consiste numa teoria filosfica que devemos confrontar, pois como teoria do significado de certo tipo de enunciados, o emotivismo fracassa claramente por, pelo menos, trs razes muito diferentes. Primeiro, se essa teoria pretende elucidar o significado de determinada classe de enunciados, de expressar sentimentos ou atitudes, uma parte essencial da teoria ter de consistir em uma identificao e caracterizao dos sentimentos ou atitudes em questo. Mas a teoria resta em silncio sobre esse ponto:

Os juzos morais expressam sentimentos ou atitudes o que se diz. Que espcie de sentimentos ou atitudes? Perguntamos. Sentimentos ou atitudes de aprovao a resposta. Que espcie de aprovao? perguntamos, talvez para acrescentar que existem diversos tipos de aprovao. na resposta a essa pergunta que todas as verses do emotivismo permanecem em silncio. 31

A segunda razo do fracasso do emotivismo consiste no fato de que o emotivismo, como teoria do significado de determinado tipo de enunciado, empenhase numa tarefa impossvel desde o incio, porque caracteriza como equivalentes as expresses de preferncia pessoal e expresses valorativas, citando o modo como as elocues do primeiro tipo dependem de quem as emite para quem, por qualquer poder justificativo que tenham, ao passo que as elocues valorativas no so dependentes de forma semelhante na sua fora justificadora do contexto da elocuo. O escocs critica a equivalncia:

Isso parece suficiente para provar que existe uma grande diferena de significado entre os membros das duas classes; contudo, a teoria emotivista deseja torn-los equivalentes em significado. Isso no apenas um erro; um erro que exige explicao. 32

A terceira que o emotivismo pretende ser uma teoria acerca do significado de enunciados; mas a expresso de sentimentos ou atitudes no funo do significado dos enunciados, mas de seu uso em determinadas ocasies. Tal uso de30 31

MACINTYRE, 2001, p. 31. Ibid., p. 32. 32 Ibid., p. 33.

19 um enunciado para expressar sentimentos ou atitudes no tem absolutamente nada a ver com o seu significado. Ao contrrio, ela deveria ser proposta como teoria do uso compreendido como finalidade ou funo de membros de determinada classe de expresses e no acerca do seu significado. Como demonstra o exemplo de MacIntyre:

O professor primrio furioso, para usar o exemplo de Gilbert Ryle, pode dar vazo aos sentimentos gritando com o garotinho que acaba de cometer um erro de clculo: sete vezes sete igual a quarenta e nove! Mas o uso desse enunciado para expressar sentimentos ou atitudes no tem absolutamente nada a ver com o significado. 33

O emotivismo revela-se uma tese emprica, um rascunho preliminar de tese emprica, a ser concludo por observaes sociolgicas, psicolgicas e histricas. MacIntyre a isso acrescenta:

Quero argumentar que qualquer projeto dessa forma estava fadado ao fracasso, devido a uma discrepncia inerradicvel entre seu conceito em comum de normas e preceitos normais, por um lado, e o que tinham em comum apesar de divergncias muito maiores em seu conceito de natureza humana, por outro lado. Ambos os conceitos tm uma histria e suas relaes s podem tornar-se inteligveis luz dessa histria. 34

Observa-se que o surgimento do emotivismo demonstra com nfase que tal teoria incorporou-se em nossa cultura, passou por uma transformao do eu e de seu relacionamento com seus papis, das modalidades mais tradicionais de existncia para as formas emotivistas contemporneas.

1.3. A teoria da tica comunitaristaAs teorias ticas nascem e desenvolvem-se em diferentes sociedades como resposta aos problemas resultantes das relaes entre os homens. Os contextos histricos so, pois, elementos muito importantes para se perceber as condies que estiveram na origem de certas problemticas morais que ainda hoje permanecem atuais.33 34

Ibid., p. 33. Ibid., p. 99.

20 MacIntyre diz:

Se existe, ento, para as coisas que fazemos, algum fim que desejamos por si mesmo e tudo o mais desejado por causa dele; e se nem toda coisa escolhemos visando outra (...), evidentemente tal fim deve ser o bem, ou melhor, o sumo bem. 35

A idia aristotlica de bem est indissociavelmente ligada idia de felicidade e idia de virtude. A felicidade significa a realizao plena do ser; o bem supremo da poltica. Segundo Aristteles, "tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem que esse bem supremo a felicidade e consideram que o bem viver e o bem agir equivalem a ser feliz." 36 Aristteles, ao tratar do tema da virtude, a divide em dois tipos: virtudes dianoiticas, tambm chamadas virtudes da razo e virtudes morais. Para Aristteles, a chamada virtude intelectual deve, "em grande parte, sua gerao e crescimento ao ensino, e por isso requer experincia e tempo." 37 De outro lado "a virtude moral adquirida em resultado do hbito, de onde o seu nome se derivou, por uma pequena modificao dessa palavra." 38 Segundo ele: "a sabedoria filosfica, a compreenso e a sabedoria prtica so algumas das virtudes intelectuais; e a liberalidade e a temperana so algumas das virtudes morais." 39 A virtude moral se constitui em um meio termo entre dois extremos, e adquirida pelo hbito. Afirma ele:

evidente, pois, que nenhuma das virtudes morais surge em ns por natureza, visto que nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hbito.(...). No , portanto, nem por natureza nem contrariamente natureza que as virtudes se geram em ns; antes devemos dizer que a natureza nos d a capacidade de receb-las, e tal capacidade se aperfeioa com o hbito. 40

Aristteles, apesar de ter sido discpulo de Plato, diferencia-se do ponto de vista de seu mestre, pelo fato de ser um filsofo eminentemente prtico, no sentido de entender que as virtudes adquirem-se pelo agir, e no por meio da contemplao.35 36

MACINTYRE, 2001, p. 17. Ibid., p. 19. 37 Ibid., p.40. 38 MACINTYRE, loc. Cit. 39 Ibid., p.39. 40 Ibid., p.40.

21 Da advm a relao que ele estabelece entre a virtude e o hbito, capaz de produzir em ns uma segunda natureza. Em suma, para Aristteles o bem "a finalidade em todas as aes e propsitos, pois por sua causa que os homens realizam tudo o mais". 41 A felicidade , na viso aristotlica, o supremo bem, j que buscada por si mesma e no por qualquer outro interesse. Para Aristteles, a honra, o prazer, a razo, e todas as demais virtudes, ainda que as escolhamos por si mesmas (visto que as escolheramos mesmo que nada delas resultasse), fazemos isso no interesse da felicidade, pensando que por meio dela seremos felizes. Segundo Galuppo, 42 vem da a indissocivel relao entre os trs conceitos bsicos da tica de Aristteles: bem, felicidade e virtude.

Conceitos, estes, fundamentais ao entendimento de todo o arcabouo terico do comunitarismo. O contexto histrico de surgimento do comunitarismo se refere a um perodo bem distante e diverso do atual. O pensamento comunitrio acompanha as transformaes pelas quais a sociedade vem passando desde a Grcia antiga at nossos dias. 43

Alasdair MacIntyre defende o conceito de virtude, derivado da filosofia de Aristteles, e acrescenta a idia de tradio, importantssima para se compreender o sentido do agir humano. MacIntyre concebe Aristteles como sendo o autor capaz de ser confrontado com os autores da modernidade liberal, assim como o "representante de uma longa tradio, algum que articula o que inmeros antecessores e sucessores tambm articulam com graus variveis de xito." 44 MacIntyre45 seguindo os passos de Aristteles, entende que "toda atividade, toda investigao, toda prtica tem algum bem como finalidade", afirma que, "o bem" ou "um bem" aquilo a que os seres humanos normalmente aspiram". Conforme Galuppo 46, a modernidade emergiu em razo da ruptura com o mundo antigo-medieval, ocorrida, paulatinamente, com o advento da Revoluo Cientfica, das Grandes Navegaes e da Reforma. Com a Modernidade, no haviaIbid., p.25. Cf. GALUPPO, Marcelo Campos. A virtude da justia. In: Extenso, v. 10 11. Belo Horizonte: 2001, p. 67 187. Disponvel em: . Acesso em 31 de jul. 2011. 43 GALUPPO, 2001. 44 MACINTYRE, 2001, p. 249. 45 Ibid., p. 252. 46 GALUPPO, 2001.42 41

22 mais um nico centro orientador da conduta, o que exigiu que o indivduo, e no mais a comunidade, como entendia Aristteles, fosse o referencial na tomada de decises. MacIntyre v na multiplicidade de centros orientadores um obstculo ao entendimento da vida, entendida como unidade.

Qualquer tentativa contempornea de considerar cada vida humana como um todo, (...) se depara com duas espcies de obstculo, um social e um filosfico. Os obstculos sociais provm do modo como a modernidade divide a vida humana numa srie de segmentos, cada um com suas prprias normas e modalidades de comportamento. Portanto, o trabalho fica afastado do lazer, a vida privada afastada da vida pblica, a vida empresarial afastada da pessoal. 47

Afirma MacIntyre:

A teoria aristotlica das virtudes pressupe, portanto, uma distino fundamental entre o que qualquer indivduo em determinado momento acredita ser bom para ele e o que realmente bom para ele como homem. para alcanar o segundo bem que praticamos as virtudes e o fazemos por meio da escolha de meios para alcanar tal fim, meios em ambos os sentidos acima caracterizados. Tais escolhas exigem discernimento, e o exerccio das virtudes requer, portanto, a capacidade de julgar e fazer o certo, no lugar certo, na hora certa e da maneira certa. 48

MacIntyre, reafirmando a dimenso comunitria do pensamento de Aristteles, aduz a insistncia deste em sustentar a tese de que as virtudes devem ser analisadas, no somente tendo em vista a vida do indivduo, mas, sobretudo, a vida da plis, j que no possvel desvincular-se o indivduo da comunidade poltica de que faz parte. 49 MacIntyre, ao transportar o pensamento de Aristteles (principalmente no que se refere sua dimenso comunitria traduzida em um projeto compartilhado de busca de um bem comum) para o contexto da sociedade contempornea, afirma:

Um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis pensar no que consistiria, em qualquer poca, fundar uma comunidade para realizar um projeto comum, realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os47 48

MACINTYRE, 2001, p. 343. Ibid., p. 255. 49 Ibid., p. 256-257.

23participantes do projeto. Como exemplos modernos de tal projeto, podemos pensar na fundao e na administrao de uma escola, um hospital ou uma galeria de arte; no mundo antigo, os exemplos caractersticos teriam sido os de uma seita religiosa, ou de uma expedio, ou de uma cidade. 50

Contrapondo os paradigmas polticos afirma MacIntyre:

Essa idia de comunidade poltica como projeto comum estranha ao mundo individualista liberal moderno. assim que, pelo menos s vezes, encaramos nossas escolas, hospitais ou instituies filantrpicas; mas no temos idia de tal forma de comunidade envolvida, como Aristteles diz que a plis est envolvida, na totalidade da vida, no com esse ou aquele bem, mas com o bem do homem como tal. No de admirar que se tenha relegado a amizade vida privada e, portanto, ela esteja enfraquecida em relao ao que um dia foi. 51

Paralelamente s mudanas ocorridas no campo da moralidade, ocorreram transformaes no conceito de identidade. Para compreendermos o sentido de uma ao, devemos, inevitavelmente, perquirir sobre as crenas que condicionam o comportamento de algum, e no somente isso, pois tambm necessrio que se conheam as intenes e o cenrio onde a ao se desenvolve. 52

A vida uma histria narrada, donde se extrai a importncia do conceito de narrativa para se compreender o sentido do agir. Cada um de ns, sendo o protagonista de seu prprio drama, tem papis coadjuvantes nos dramas de outras pessoas, e cada drama restringe os outros. 53

Galuppo 54 explica que se trata de uma narrativa contada por cada um de ns. Nela, cada um se v a si mesmo como centro da vida, o que , obviamente, paradoxal, pois o tema da tradio em MacIntyre de vital importncia. por meio da tradio que compreendemos o sentido de nossa ao e, conseqentemente, de nossa histria. Para MacIntyre, portanto, a virtude no pode ser reduzida, como dito, a um amontoado de capacidades profissionais, mas, sim, analisada, tendo-se em vista a identidade do eu desenvolvida no contexto de uma tradio. Assim como em50 51

Ibid., p. 257. Ibid., p. 265. 52 Ibid., p. 33-35. 53 Ibid., p. 359. 54 GALUPPO, 2001.

24 Aristteles, tambm em MacIntyre, o agir virtuoso se refere ao agir visando o bem em geral, sobretudo de modo compartilhado (ou seja, conjuntamente, no interior de uma comunidade, seja ela domstica ou poltica, uma vez que no posso busc-lo individualmente). MacIntyre afirma:

A vida virtuosa para o homem a vida passada na procura da vida virtuosa para o homem, e as virtudes necessrias para a procura so as que nos capacitam a entender o que mais a vida virtuosa para o homem. 55

Portanto, como Aristteles, tambm MacIntyre pode ser considerado um comunitarista, j que toda a sua filosofia desenvolvida tendo por base as virtudes aristotlicas, virtudes estas que capacitam o homem realizar o bem de modo compartilhado e no interior de determinada comunidade, j que no se pode conceber o indivduo apartado da comunidade poltica de que faz parte. A individualidade e a fragmentao do indivduo no contexto da sociedade moderna constitui, segundo MacIntyre, um bice ao desenvolvimento das virtudes no sentido atribudo por Aristteles. MacIntyre relaciona as virtudes como algo que informa a vida do indivduo e no como um conjunto de habilidades profissionais, donde se extrai a importncia que ele confere a phrnesis como a virtude capaz de conduzir o homem na busca por uma vida virtuosa e conseqentemente capaz de realizar o bem comum dos participantes de uma comunidade. 56

55 56

MACINTYRE, 2001, p. 369. GALUPPO, op. cit.

2. A TICA MACINTYRE

COMUNITARISTA SEGUNDO

ALASDAIR

2.1. Vida e obra de Alasdair MacIntyreAlasdair MacIntyre57 considerado um dos autores que tem escrito, de uma forma mais inteligente e informada, sobre tica, constituindo, hoje, uma das vozes mais autorizadas e singulares neste domnio. Profundamente devedor do pensamento filosfico de Aristteles e de Toms de Aquino, o filsofo escocs conseguiu, numa obra notvel, comentar e continuar a filosofia de Aristteles e de Aquino e, simultaneamente, construir uma teoria tica singular e inovadora. A singularidade da teoria tica de MacIntyre justifica-se pelo fato de no se integrar nem nas perspectivas ticas surgidas com o moderno iluminismo, nem nas perspectivas ps-modernas e ps-nietzscheanas. A crtica que faz esterilidade da tica moderna e, em particular, perspectiva individualista liberal, faz dele um comunitarista tico. No entanto, a complexidade da tica de MacIntyre difcil de arrumar e de etiquetar.

Alasdair MacIntyre nasceu na Esccia em 1929. Estudou no Queen Mary College, formou-se na Universidade de Londres e na Universidade de Manchester. Lecionou em vrias universidades britnicas e americanas, incluindo a Oxford University de 1963 a 1966, Uni versity of Essex de 1966 a 1970, na Brandeis University de 1970 a 1972, na Boston University de 1972 a 1980, Wellesley College de 1980 a 1982, na Vanderbilt University de 1982 a 1988 e Yale University de 1988 a 1989. Atualmente est vinculado a University of Notre Dame. Dentre as principais obras de Alasdair MacIntyre encontram-se A Short History of Ethics (1966); Secularization and Moral Change (1967); After Virtue (1981); Whose Justice, Which Rationality? (1988); Three Rival Versions of Moral Enquiry (1990); Dependent Rational Animals (1999); Marxism and Christianity; Against the Self-Images of the Age (1971). Macintyre foi, ainda, o organizador das coletneas: Humes Ethical Writtings e Hegel: A Colection of Critical Essays [Cf. GALUPPO, 2001].

57

26

A crtica que ele faz ao relativismo tico radical, to querido de uma certa ps-modernidade, pode fazer-nos tentar ver nele um universalista tico, coisa que ele no . E a crtica que ele faz tese kantiana da autonomia do agente moral e do imperativo categrico, obriga-nos a colocar MacIntyre num lugar bem diferente de todos os que se mostram devedores da filosofia do grande Immanuel Kant. No , por isso, um acaso, a rejeio que MacIntyre faz da tica de John Rawls, a qual mais no do que um kantismo de contedo social e igualitrio. A complexidade da tica de MacIntyre tal que tambm no possvel arrumar o seu pensamento junto dos seus compatriotas escoceses que, no sculo XVIII, criaram a tica utilitarista. No fundo, a melhor designao para a tica de MacIntyre dizermos que estamos perante um neo-aristotelismo e um neotomismo. Mas, mesmo assim, fica de fora tudo aquilo que novo e inovador no pensamento de MacIntyre, e que muito. E aquilo que novo no pensamento de MacIntyre tanto, que no ser exagero afirmar que h uma tica antes de MacIntyre e uma tica depois de MacIntyre. 58

O mesmo Galuppo relata que MacIntyre um autor to complexo que s possvel estud-lo adequadamente lendo a sua obra. Por essa razo, seguem trechos e comentrios por ordem cronolgica de publicao. A Short History of Ethics59 considerado um clssico da histria da tica,pois guia o leitor atravs da histria da filosofia moral, desde os gregos at ao sculo XX. No prefcio da 2 edio, escrito em 1997, MacIntyre reconhece a ampla aceitao da obra e tambm suas limitaes pelo fato de o ttulo ser inadequado e no figurar na obra referncia filosofia oriental. Tambm constitui falha o fato de o autor ter dedicado apenas 20 pginas, num total de 280 pginas, filosofia moral da cristandade medieval. Nos livros seguintes, em particular no After Virtue e no Three Rival Versions of Moral Enquiry, houve oportunidade de emendar tal erro, dedicando parte desses livros a analisar a tica da cristandade medieval, com relevo para a tica de Agostinho de Hipona e para a tica de Toms de Aquino, considerada central para compreender o pensamento de MacIntyre e a sua crtica tica moderna.

Ibid. As obras Short History of Ethics, After Virtue , Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues. Chicago, A Short History of Ethics, e Three Rival Versions of Moral Enquiry, de Alasdair MacIntyre, foram lidas e estudadas na sua verso original, isto , no ingls. Todavia, para as citaes neste texto sero usadas as tradues feitas, dos livros acima referendados, pela professora Mirella Vieira e por Jorge Lus Castro de Souza [nota do pesquisador].59

58

27 O livro A Short History of Ethics acentua o contexto histrico das idias e conceitos morais, antecipa o que ser a caracterstica principal das obras posteriores. MacIntyre pretende com a nfase no contexto histrico lembrar o leitor de que no possvel o inqurito moral e a compreenso dos conceitos ticos sem uma clara aluso poca histrica que os criou; que no possvel uma tica sem uma histria da tica, nem uma filosofia sem uma histria da filosofia. O que diferencia MacIntyre de Nietzsche a noo de genealogia usada para a compreenso da origem e evoluo dos conceitos ticos.

Mas, ao contrrio do que pensava Kant, impossvel compreender a moral, desligando as questes morais dos seus contextos e das circunstncias. Desde logo, com esta argumentao, o filsofo escocs mostra que necessrio regressar a Aristteles, fazer o trabalho de casa sobre a tica a Nicmaco e a tica a Eudemo e, depois, atualizar a tica aristotlica, sem perder de vista o carter historicista, situado e contextual da tica. 60

No citado prefcio, MacIntyre reconhece a justia das crticas no s com relao brevidade e superficialidade com que apresenta a filosofia moral da Idade Mdia crist, mas tambm a falta de clareza com que analisa a filosofia moral do iluminismo escocs e alemo do sculo XVIII, em particular a filosofia de Adam Smith e a filosofia moral de Kant. Depois de dedicar 109 pginas tica grega, e apenas 10 pginas tica medieval, MacIntyre resume a tica europia moderna e contempornea (desde o Renascimento at ao sculo XX) em 149 pginas.

O seu grande erro foi tentar resumir a poca mais importante da histria da tica ocidental em apenas 10 pginas. Com efeito, o autor havia de reconhecer, nos seus livros posteriores, a extrema importncia da tica dos dois primeiros sculos da nossa era e da tica dos sculos XII e XIII, num caso e noutro, perodos que conheceram um florescimento invulgar da tica. esse reconhecimento, tantas vezes esquecido, quer pela tica iluminista do sculo XVIII, quer pela tica individualista contempornea, que lhe vai permitir ensaiar uma alternativa ao atual vazio moral que ameaa as sociedades ocidentais material e tecnologicamente desenvolvidas, mas espiritualmente empobrecidas. 61

A este propsito comenta MacIntyre:60 61

GALUPPO, op. cit. Ibid.

28 necessrio corrigir as minhas omisses e erros, de duas maneiras diferentes. Primeiro, tomar na devida considerao a contributo da cristandade, o qual deve ser no s aumentado, mas revisto radicalmente. A base desse relato imputa tica crist um paradoxo por resolver, pois tentou prescrever um cdigo para a sociedade, a partir de afirmaes originalmente dirigidas a indivduos e a pequenas comunidades que se separaram do resto da sociedade na expectativa de um segundo regresso de Cristo, que de fato no ocorreu. Aquilo que eu no consegui reconhecer foi que esse paradoxo j tinha sido resolvido pelo Novo Testamento, atravs das doutrinas paulinas da igreja e da misso da igreja no mundo. Essas doutrinas definem, com sucesso, uma vida para os cristos que inclui tanto a esperana na segunda vinda de Cristo, como o comprometimento com a atividade do mundo. 62

Est criado o terreno para fertilizar uma nova tbua de virtudes que implica tanto a obedincia Lei Divina, captada pela razo e pela f, como a obedi ncia revelao, mediada pela Igreja.

O captulo sobre Kant, embora pequeno, toca numa questo central: o imperativo categrico como critrio de uma tica formalista, independente das circunstncias, do contexto e da cultura. Precisamente aquilo que mais afasta a tica de MacIntyre da tica moderna: a concepo kantiana do imperativo categrico, que defende que ns devemos agir no respeito por mximas que sejamos capazes de tratar como se fossem leis universais. Na vida real, no existe tal coisa. O Homem como agente moral um ser situado, condicionado pelas circunstncias e com laos que o prendem a uma comunidade com uma dada tradio. Pretender que possvel criar abstratamente um Homem universal, capaz de se libertar das circunstncias e separado da comunidade e da tradio, o mesmo que recusar a evidncia da evoluo histrica e da diversidade cultural. Um olhar pela Histria Ocidental faz-nos lembrar que a tica ocidental mudou consoante os contextos histricos e culturais. 63

O livro After Virtue, ao ser publicado em 1981, foi imediatamente reconhecido como uma das maiores crticas filosofia moral contempornea. O livro ocupa-se da relao da filosofia com a histria e da questo do relativismo das virtudes. O livro possui 19 captulos, num total de 286 pginas e aborda questes do tipo: a natureza do desacordo moral atual, o projeto iluminista da justificao da moral, razes que explicam o projeto iluminista, as virtudes nas sociedadesMACINTYRE, Alasdair. Dame,1998. p. 65. 63 GALUPPO, op. cit.62

A Short History of Ethics. Notre Dame: University of Notre

29 hericas, as virtudes em Aristteles, as virtudes na Idade Mdia, a concepo tradicional das virtudes e, ainda, a tica de Nietzsche face tica de Aristteles. O livro faz a defesa filosfica da variedade e heterogeneidade das crenas, conceitos e prticas morais, revela e explica a ascenso e a queda das diferentes moralidades.

Esta tese conduz MacIntyre afirmao da atual ausncia de critrios morais que possam imprimir uma direo moral nas modernas sociedades ocidentais. Na ausncia de critrios morais, torna-se difcil arranjar argumentos para combater os novos males contemporneos. Este fato resulta do corte radical com as tradies, imposto por grande parte das concepes ticas ps-kantianas e ps-nietzscheanas. Sabendo que, umas e outras, obtiveram o predomnio do pensamento tico contemporneo das sociedades ocidentais, no difcil antever por que razes as concepes ticas ancoradas na defesa dos laos comunitrios e culturais continuam a ser to mal aceites. Ora, a concepo tica de MacIntyre um dos melhores exemplos de uma tica ancorada nos laos comunitrios e culturais. O fato de ele ter fundamentado a sua tica em dois autores ignorados e combatidos pela tica individualista do iluminismo, respectivamente Aristteles e Toms de Aquino, torna a sua tica um caso ainda mais singular no panorama atual do pensamento filosfico. 64

A tica de MacIntyre profundamente preocupada com o Bem. Mas , tambm, uma tica racionalista que, contudo, no se distancia do processo de criao das emoes e dos afetos e da dependncia das circunstncias e dos contextos culturais e sociais. uma tica situada. Sobre o papel da razo, MacIntyre afirma:

A razo ensina-nos tanto a encontrar o nosso verdadeiro objetivo como a alcan-lo. Temos, ento, um esquema tripartido no qual a natureza humana em estado natural inicialmente discrepante e discordante dos preceitos da tica e precisa de ser transformada pelo ensino e experincia da razo prtica em natureza humana como ela dever ser para poder realizar a sua finalidade. Cada um dos trs elementos do esquema - a concepo da natureza em estado natural, a concepo dos preceitos da tica racional e a concepo da natureza como ela dever ser para poder realizar a sua finalidade - requer referncia aos outros dois estados para que o seu estado e a sua funo se tornem inteligveis. 65

64 65

Ibid. MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1984. p.

53.

30 noo aristotlica de erro junta o filsofo escocs o conceito tomista de pecado igual a erro. A verdadeira finalidade do homem j no pode ser completamente realizada neste mundo, mas apenas no outro. Esta perspectiva percorreu a noo aristotlica de erro. Esta perspectiva percorreu todo o perodo da Histria do Ocidente, desde a afirmao do cristianismo at, pelo menos, ao Renascimento. Mas foi s com a vitria do iluminismo e da sua concepo tica individualista, a partir do sculo XVIII, que entrou em declnio. 66

essa concepo que a nova tica de MacIntyre pretende recuperar, colocando-a em dilogo quer com a concepo iluminista, na verso individualista kantiana e na verso utilitarista de Adam Smith, quer com a concepo genealogista de Nietzsche. Desse dilogo a trs vozes poder nascer uma nova tica que d respostas para as interrogaes contemporneas. Pelo menos, essa a esperana de MacIntyre. 67

O perodo em que a concepo testa da moral foi predominante, ela representava uma resposta satisfatria para o problema da escolha do bem. Dizer aquilo que uma pessoa devia fazer era o mesmo que dizer qual era o curso de ao capaz de fazer cumprir a verdadeira finalidade do homem. E dizer isso era o mesmo que dizer o que que a Lei Divina, iluminada pela razo, prescrevia. 68 Durante esse longo perodo da histria da civilizao ocidental, no houve, na verdade, uma crise moral prolongada. Cada um conhecia o lugar que lhe estava reservado e o caminho a seguir estava previamente traado pelos laos comunitrios e culturais que uniam cada um aos seus. A maior parte dos proponentes medievais desta perspectiva moral acreditava, claro est, que fazia parte de uma verdade revelada por Deus, mas descoberta pela f e pela razo, em conjunto. Toms de Aquino, no sculo XIII, foi a voz sublime desta proposta moral. A Lei Moral Divina constituiu, durante esse perodo, o instrumento para elevar o homem do estado da natureza natural para o estado da natureza que permite ao homem a realizao da sua verdadeira finalidade. Foi s a partir do momento em que a corrente que rejeita a viso teolgica da natureza humana comeou a ser

66 67

GALUPPO, op. cit. Ibid. 68 Ibid.

31 preponderante, a partir de Descartes, que a proposta moral da cristandade medieval comeou a ser substituda lentamente pelas vises positivistas, utilitaristas e individualistas. O sculo XIX e o sculo XX assistiram, assim, vitria dessa substituio.

Alasdair MacIntyre no v nessa vitria um sinal de progresso espiritual e tico da civilizao ocidental. Traando um quadro comparativo com o perodo que antecedeu a queda do imprio romano sob o avano das hordas brbaras vindas do Leste e do Norte da Europa, MacIntyre argumenta que os novos brbaros partiram, desta vez, no da periferia do imprio, mas do centro do imprio para a periferia. E, sem termos conscincia disso, a nova barbrie tomou conta dos destinos do imprio e corri o esprito e a moral das sociedades ocidentais tecnologicamente desenvolvidas. Aplica-se, neste cenrio, a tese de Toms de Aquino sobre a diferena entre bens interiores e bens exteriores e a sua argumentao de que existe alguma incompatibilidade entre eles. Quando uma sociedade comea a dar preferncia aos bens exteriores, inicia um processo de excluso das virtudes, j que estas s podem florescer em sociedades que do a primazia aos bens interiores. 69

Ao lembrar esta tese de Toms de Aquino, o filsofo escocs est a avisarnos que j percorremos o caminho que nos leva ao abandono das virtudes, porque as sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas deixaram-se, h muito, seduzir pelos bens exteriores, vendendo a alma ao dinheiro e aos bens exteriores que ele proporciona. A responsabilidade da excluso das virtudes nas sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas no pode deixar de ser assacada predominncia da tica individualista, nascida com Kant e alimentada, mais tarde, pela genealogia da tica ps-moderna.

A atual tica individualista ignora um fato extremamente importante que Aristteles lembrou h 24 sculos: o Homem uma entidade funcional, com uma natureza essencial e uma finalidade essencial. Na tica a Nicmaco, Aristteles toma essa caracterstica como ponto de partida do inqurito tico e afirma que a relao do Homem com a vida boa anloga do harpista face ao tocar bem harpa. Esta concepo funcional do homem ainda mais antiga do que Aristteles e no deriva apenas da sua biologia metafsica. As suas

69

Ibid.

32razes podem encontrar-se nas formas de vida social expressas nas obras dos filsofos e poetas da tradio clssica grega. 70

E continua o autor:

De acordo com essa tradio, ser Homem cumprir e realizar um conjunto de papis e funes, cada um dos quais com a sua finalidade: ser membro de uma famlia, ser um cidado de uma polis, etc. Quando a moderna tica individualista comeou a ver o homem como indivduo separado das suas funes, o Homem deixou de ser encarado com um conceito funcional. Comeou a um doloroso caminho de empobrecimento moral que atingiu o seu cume com os avanos niilistas que marcaram o sculo XX. O paradoxo do sculo XX exprime-se pelo fato de nunca um sculo ter conhecido tanto progresso material e tecnolgico e, simultaneamente, tanta regresso espiritual e moral. 71

O refgio emotivista constitui uma defesa irracional, mas compreensiva, face a um paradoxo: apesar da abundncia material e tecnolgica, o sculo XX no conseguiu providenciar alimento para o corpo e para a alma para uma grande parte da populao mundial. A inveno do indivduo, ocorrida a partir do Renascimento, correspondeu a importantes transformaes na vida social das populaes europias. Quando o "self" se separa dos modos de pensamento e de cultura herdados, torna-se necessrio criar novos consensos que permitam a inveno de novas tradies culturais, porque a idia de um "self" separado da tradio herdada no passa de uma mera ideia sem correspondncia com a realidade. 72 No final do livro After Virtue, MacIntyre coloca Aristteles e Nietzsche a dialogar, dando a crer que o fracasso do projeto iluminista deixou apenas duas alternativas: ou a vitria do irracionalismo niilista de Nietzsche, to encarecidamente abraada pela tica ps-moderna, ou o regresso a um Aristteles vivificado e complementado por Toms de Aquino. Nietzsche apresentado como o ltimo antagonista da tradio aristotlica. O desprezo com que Nietzsche trata Aristteles nas raras aluses que lhe faz nas suas obras, bem a prova do reconhecimento de que fora elevado categoria do seu principal adversrio. Esse antagonismo a traduo da oposio entre o individualismo liberal, numa das suas vrias verses, e a tradio aristotlica, em qualquer das suas verses, mas, sobretudo, na verso de70 71

Ibid. Ibid. 72 Ibid.

33 Toms de Aquino. No fundo, MacIntyre prope apenas uma alternativa aceitvel ao niilismo nietzscheano, com o nome de neotomismo. A obra filosfica de Alasdair MacIntyre pretende constituir-se como um importante contributo para a criao dessa alternativa.

A minha prpria concluso muito clara. que, por um lado, apesar de trs sculos de filosofia moral e de um sculo de sociologia, ns ainda no temos uma afirmao racionalmente defensvel e coerente de um ponto de vista individualista liberal; e que, por outro lado, a tradio aristotlica pode ser reafirmada de uma forma que restaure a inteligibilidade e a racionalidade ao nosso envolvimento moral e s nossas atitudes sociais. 73

O livro After Virtue termina com uma viso pessimista da condio tica do homem contemporneo: ao contrrio do que aconteceu com a queda do Imprio Romano, em que a invaso brbara se deu a partir do exterior, as sociedades contemporneas do Ocidente esto j, sem o saberem, a ser comandadas por novos brbaros que surgiram a partir do centro do imprio e tomaram conta do seu destino, sem que ns tomssemos conscincia disso. esse paradoxo que torna a nossa condio absurda. O pessimismo desta afirmao aliviado pela proposta tica de MacIntyre que v no regresso tradio aristotlica e tomista um instrumento de salvao. Essa proposta passa pelo reconhecimento da necessidade de nos ligarmos a uma comunidade, com fortes laos de pertena e uma forte identidade cultural, semelhana do que os primitivos cristos fizeram nos primeiros sculos da nossa era. Assim sendo, continua em aberto a esperana de que as sociedades ocidentais possam sobreviver vinda de novas idades das trevas. No livro Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues?, MacIntyre estabelece a diferena entre a razo prtica dependente e a razo prtica independente. A primeira comum aos homens e aos animais inteligentes no humanos, como o chimpanz, o co ou o golfinho. A segunda prpria apenas do homem. A passagem da razo prtica dependente razo prtica independente faz-se, lentamente, durante a infncia e a adolescncia, graas experincia acumulada, aprendizagem, ao exemplo dos mais velhos e transmisso da herana cultural:

73

MACINTYRE,1984, p. 259.

34O que uma criana que est a fazer a transio do exerccio da inteligncia animal, na infncia, para o exerccio da razo prtica independente tem de realizar, uma transformao do seu esquema motivacional, para que as razes externas tambm se tornem internas...Quais so as qualidades que uma criana deve desenvolver, primeiro para redirecionar e transformar os seus desejos, e subsequentemente para os dirigir consistentemente em direo aos bens dos diferentes estdios da sua vida? So as virtudes intelectuais e morais. porque a no aquisio dessas virtudes torna impossvel realizar essa transio que as virtudes tm uma importante funo e lugar na vida humana. 74

Essa tese permite a MacIntyre fazer a crtica de fundo tica moderna individualista. As sociedades que prezam mais pelos bens exteriores, ou seja, pelas riquezas materiais, do que pelos bens interiores, isto , as virtudes intelectuais e morais, impedem o desenvolvimento das virtudes. E MacIntyre acrescenta:

O progresso da criana em direo a uma condio na qual ela capaz de controlar os seus desejos e avali-los , ento, uma componente essencial de uma prolongada iniciao aos hbitos que so as virtudes. E os professores da criana tambm precisam, de certa forma, de possuir essas virtudes, caso queiram ser capazes de instruir a criana. Mas estaramos a cometer um erro, se inferssemos disto que uma parte da educao da criana deve constituir uma rea especfica para a educao moral. Tal como as virtudes so exercidas em todas as nossas atividades, tambm so aprendidas em todas as atividades, nos contextos da prtica em que ns aprendemos com os outros a cumprir os nossos papis e funes, primeiro como membros de uma famlia, depois, nas tarefas escolares, e depois, como trabalhadores agrcolas, carpinteiros, professores, pescadores ou msicos. Assim, ser educado nas virtudes, juntamente com as competncias relevantes, no diferente de aprender a cumprir esses papis e funes de uma forma correta. 75

O longo processo de transio da razo prtica dependente para a razo prtica independente exige que a criana desenvolva competncias de julgamento autnomo, mas para que isso seja possvel, necessrio que, primeiro, crie e fortalea os laos com uma determinada comunidade e tradio cultural. Os pais e os professores so os primeiros responsveis desse processo. Para que a criana se transforme num adulto independente, tem, durante muito tempo, de manter as dependncias fsicas, intelectuais, afetivas e morais com os progenitores e osMACINTYRE, Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues. Chicago: Open Court, 1999. p. 87. 75 MACINTYRE,1999, p. 89.74

35 professores. Se os progenitores e os professores no forem capazes de aplicar as virtudes, dificilmente a criana pode vir a tornar-se um adulto eticamente independente e com virtudes. dependente e com virtudes. 76 A presena e a orientao continuada dos pais e dos professores, capazes de aplicarem as virtudes , segundo MacIntyre, Provavelmente ser um adulto eticamente

independente e sem virtudes, que bem pior do que ser um adulto eticamente

o primeiro passo para fazer da criana um agente moral independente. Aquilo que a criana teve de aprender para se tornar educada ser capaz de controlar os seus desejos e perguntar se este ou aquele desejo particular um dos que melhor satisfazer aqui e agora e assim a criana mover-se apara alm do seu estado animal inicial de ter razes para agir desta maneira, em vez daquela, para um estado humano especfico de ser capaz de avaliar aquelas razes, rev-las ou abandon-las e substitu-las por outras. 77

Alasdair MacIntyre defende que uma das distines entre a razo prtica independente do homem e a razo prtica dependente da criana ou do golfinho e do gorila que o homem capaz de avaliar as suas razes, julgar os atos passados e corrigir situaes e aes. A razo prtica independente a capacidade para avaliar as razes que os outros avanam para justificar uma determinada ao e, tambm, as razes que ns damos para justificar as nossas aes.

O Homem o nico animal capaz de o fazer. Quais so as capacidades exigidas ao agente moral autnomo capaz de exercer a razo prtica independente? Desde logo, tem de possuir, em algum grau, as virtudes intelectuais e morais. S dessa forma ser capaz de se distanciar dos seus desejos imediatos e imaginar, com realismo, futuros alternativos. O paradoxo de tudo isto que a aquisio das virtudes intelectuais e morais que nos podem tornar agentes morais autnomos exige o contacto prolongado e a orientao segura da nossa famlia, dos nossos professores e de outras figuras da nossa comunidade de quem ns dependemos afetiva, intelectual e culturalmente durante grande parte da nossa vida. 78

76 77

GALUPPO, 2001. MACINTYRE, op. cit., p.91. 78 GALUPPO, op. cit.

36 Ou seja, para nos tornarmos julgadores autnomos, capazes do exerccio da razo prtica independente, precisamos estabelecer, desde o nascimento at idade adulta, laos profundos de dependncia cultural e comunitria, para nos apoiarem no processo de julgamento, de deliberao e de escolha moral.

A crtica que MacIntyre faz ineficcia e esterilidade da moderna tica individualista, preponderante nas sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas a ausncia crescente de oportunidades seguras e prolongadas para a criao de laos de dependncia cultural e comunitria durante a infncia e a adolescncia. No fundo, a ausncia cada vez maior de comunidades com virtudes. semelhana do que Aristteles afirma na tica Nicmaco, tambm MacIntyre d um relevo particular s condies particulares no processo de deliberao e de escolha moral. Muitas vezes, somos incapazes de escolher o bem porque no damos a ateno devida, nem estamos bem informados sobre as condies particulares da situao. o que Aristteles chama de erro intelectual que afeta e diminui a nossa capacidade de julgar e de exercer a razo prtica. Outras vezes, fazemos generalizaes abusivas a partir de evidncias insuficientes. Mas, ns podemos, tambm, escolher mal por causa de um erro moral: tornamo-nos insensveis ao sofrimento alheio, deixamo-nos escravizar pelas paixes ou deixamo-nos prender num projeto fantasioso. E os nossos erros intelectuais so, muitas vezes, produto dos nossos erros morais. A melhor forma de nos protegermos desses erros optarmos pela colegialidade e pela amizade, uma e outra facilitadoras do fortalecimento dos laos que nos unem a uma tradio cultural e a uma comunidade. 79

MacIntyre afirma, a este respeito:

No contexto de prticas particulares, geralmente s podemos buscar apoio nos nossos colegas de trabalho, para nos apercebermos dos nossos erros especficos nesta ou naquela atividade particular e das origens desses erros nas nossas falhas a respeito das virtudes e competncias. Fora desses contextos de prtica, temos de nos apoiar nos amigos, incluindo os familiares, para nos corrigirmos. Quando somos incapazes de nos apoiar nos colegas e amigos, ento a nossa confiana nos nossos julgamentos pode tornar-se sempre uma fonte de iluso. E para sermos julgadores prticos eficazes temos de ter confiana justificada nas nossas concluses. Ter de continuar geralmente a depender dos outros no nosso raciocnio prtico, no significa que ns no devamos, de tempos a tempos, defender e agir de forma distinta dos juzos dos outros, incluindo aqueles de quem confiamos. A independncia de esprito

79

GALUPPO, op. cit.

37exige isso. Mas preciso razes excepcionalmente boas para o fazer. 80

MacIntyre reconhece e acentua a necessidade de dependncia mtua, tanto durante o processo de desenvolvimento da razo prtica independente, como depois. O grande problema que nem sempre as pessoas de quem dependemos, possuem as virtudes consideradas necessrias para o desenvolvimento e a sustentao da nossa razo prtica independente. Por vezes, vivemos rodeados de pessoas que, no s no possuem as virtudes, mas, tambm, fazem uso da manipulao, da opresso e da explorao, tornando-se causas ativas da deficincia de carter. H, portanto, comunidades virtuosas, onde h condies para o florescimento de pessoas virtuosas e h comunidades vis e maliciosas, onde no h condies para o desenvolvimento do carter. MacIntyre identificou trs aspectos essenciais em que a existncia das virtudes se torna essencial ao florescimento e desenvolvimento humano:

Sem o desenvolvimento de um certo nvel de virtudes intelectuais e morais, no podemos atingir, nem continuar a exercer o razo prtica; e sem ter desenvolvido algum nvel de virtudes, no podemos cuidar e educar adequadamente os outros no processo de aquisio e sustentao do exerccio da razo prtica. Mas agora preciso ter em considerao um terceiro aspecto: sem as virtudes, no podemos proteger-nos uns aos outros adequadamente contra a negligncia, as simpatias deficientes, a estupidez, a mentalidade aquisitiva e a malcia. 81

Entendemos que a tica de MacIntyre incorpora a tica do cuidar dos outros, considerando que a linguagem moral do cuidar dos outros deve estar sempre presente durante o processo de deliberao e de tomada de decises.

H uma relao complexa entre o cuidado e a educao que recebemos e o cuidado e a educao que ns devemos aos outros. Mas , apesar de tudo, em virtude daquilo que recebemos que ns devemos. Ento, o que dizer das pessoas que no receberam? Algumas delas podem ser, em resultado disso, bastante deficientes. Outras pessoas, que foram capazes de se tornarem julgadores

80 81

MACYNTYRE, 1999, p. 97. Ibid., p.97- 98.

38prticos independentes, olham pelos seus progenitores sem terem boas razes para lhes estar gratos. 82

MacIntyre quer dizer-nos com isto que h sempre esperana no processo de aquisio das virtudes. At em ambientes estreis e vis possvel criar e educar pessoas de carter, mas difcil, porque os sistemas de relaes sociais que so deficientes nas virtudes esto mais aptos para produzirem um carter deficiente. Contudo, nem os sistemas de relaes sociais mais virtuosos garantem o desenvolvimento de um bom carter. No garantem, mas tornam mais provvel e mais fcil. MacIntyre retoma a perspectiva aristotlica da razo prtica, segundo a qual cada um de ns dialoga com os outros com que nos relacionamos socialmente, quer essas relaes sejam restritas famlia, escola, ao local de trabalho ou s instituies comunitrias onde exercemos a cidadania. 83

A criao e a sustentao dessas relaes so inseparveis do desenvolvimento dessas disposies e atividades atravs das quais cada um levado a tornar-se um julgador prtico independente. por isso que o bem de cada um no pode ser alcanado sem tambm alcanar o bem daqueles que participam nessas relaes. Isso assim porque ns no podemos ter uma compreenso adequada do nosso prprio bem, desligados do florescimento e desenvolvimento da comunidade onde nos relacionamos socialmente. 84

A importncia das comunidades virtuosas para o desenvolvimento do carter e para o florescimento das virtudes das pessoas que as habitam evidenciado por MacIntyre da seguinte forma:

Quando uma rede com tais relaes familiares e comunitrias est a florescer, isso acontece porque essas atividades dos membros dessa comunidade que aspiram a um bem comum, so informadas pela sua racionalidade prtica. Mas aqueles que beneficiam do florescimento comum, incluem os que so menos capazes de julgamento prtico independente, como as crianas, os doentes, os feridos e os deficientes, e o seu florescimento individual ser um importante critrio do florescimento de toda a comunidade. 85

82 83

Ibid., p.101. GALUPPO, 2001. 84 GALUPPO, 2001. 85 MACINTYRE, 1999, p. 109.

39 Ou seja, uma sociedade que trata mal as crianas, os idosos, os doentes e os deficientes uma sociedade doente e incapaz de florescer.

O significado do conceito de bem comum para Alasdair MacIntyre no seguramente a soma dos bens particulares de cada indivduo, porque h bens particulares que so mais importantes para o indivduo do que a totalidade do bem comum. Por exemplo: a vida de um familiar querido vale mais, para uma determinada pessoa, do que todo o bem comum de uma comunidade. O bem do indivduo no aparece subordinado ao bem comum, mas o bem comum tambm no surge subordinado ao bem do indivduo. Mas, o indivduo para poder definir e procurar o seu bem individual em termos concretos e particulares, tem de reconhecer, em primeiro lugar, o bem comum como um bem que o indivduo capaz de fazer seu. Para que o indivduo reconhea o seu bem individual, necessrio que ele reconhea, antes, o bem comum. Passa-se exactamente a mesma coisa com a dialtica dos deveres e dos direitos. Na verdade, uma pessoa s est em condies de poder reconhecer e usufruir bem de um direito se, antes, tiver reconhecido e interiorizado o correspondente dever. Quer isto dizer que uma pessoa incapaz de se identificar com o bem comum, no reconhece devidamente o seu bem individual. 86

E isso assim, porque lhe faltam as virtudes, sem as quais impossvel esse reconhecimento, conforme MacIntyre:

Sem tais virtudes e sem o seu exerccio, ns no seremos capazes de deliberar adequadamente com os outros acerca da distribuio das responsabilidades. E, uma vez que tal deliberao necessria para alcanar o nosso bem comum, sem as virtudes seremos incapazes de o conseguir. 87

Uma comunidade preocupada com o bem comum uma comunidade onde todos do e recebem na justa medida, nas alturas adequadas, nos montantes certos e de modo apropriado. Uma comunidade de pessoas que d e recebe, exige consensos acerca da tbua de virtudes.

O filsofo escocs Alasdair MacIntyre faz suas a tbua de Aristteles e a tbua de Toms de Aquino, no receando afirmar a sua atualidade. Justia, coragem, temperana e prudncia. Mas, tambm, a verdade, a confiana, a concrdia, a humildade, a generosidade, a caridade, a misericrdia, a esperana e a86 87

GALUPPO, 2001. MACINTYRE, op. cit., p. 111.

40benevolncia. Estas virtudes so essenciais a uma comunidade de pessoas que do e recebem na justa medida, nas alturas adequadas, nos montantes certos e de modo apropriado. Sem a prtica destas virtudes, falta o cimento que pode unir a comunidade: a confiana. Mas, o exerccio da razo prtica independente torna-se ainda mais complicado quando a pessoa tem de optar por agradar a uma comunidade e desagradar a outra comunidade a que pertence. o caso de uma tomada de deciso que leva a pessoa a optar por estar mais tempo em casa, com os filhos, ainda que isso a obrigue a desistir de uma promoo no emprego. Cada um de ns desdobra a sua vida por uma srie de comunidades, onde precisa de se adaptar a diferentes regras e normas, respeitar diferentes lealdades e dar e receber de diferentes maneiras. 88

Alasdair MacIntyre acrescenta s tbuas de virtudes de Aristteles e de Toms de Aquino uma virtude a que d o nome de generosidade justa.

Cataloguei trs caractersticas salientes que so informadas pela virtude da generosidade justa: so as relaes comunitrias que comprometem os nossos afetos, o alargamento das relaes dos membros de uma comunidade s relaes de hospitalidade para com os estranhos e, atravs do exerccio da virtude da misericrdia, a incluso daqueles que tm necessidades urgentes. 89

A generosidade justa exige uma ao no calculista e no proporcional. A generosidade justa incorpora a virtude da misericrdia e tambm as virtudes da temperana e da prudncia, como, por exemplo, se eu no der aos outros na medida certa das minhas possibilidades, quando necessrio e a quem precisa, poderei estar a fazer uma de duas coisas erradas: ou dou a quem no precisa e depois fico impedido de dar a quem precisa, ou dou mais do que aquilo que posso dar e, rapidamente, fico sem condies de poder ajudar quem vier a precisar de mim. Para evitar esses dois erros que a temperana e a prudncia so necessrias. Mas, para alm das virtudes da generosidade, justia, caridade e misericrdia, preciso considerar as virtudes do receber, tais como gratido, cortesia e pacincia. Em sociedades que do a preferncia aos bens materiais e ao modo de ser aquisitivo, torna-se extremamente difcil optar pelas comunidades naturais, como a famlia, quando essa opo pode fazer diminuir ou perigar a nossa posio na hierarquia social das restantes comunidades. por essa razo que no h exagero88 89

GALUPPO, 2001, p.13. MACINTYRE, 1999, p. 126.

41 quando se diz que as sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas so sociedades contra a famlia e as comunidades naturais.

2.2. A influncia da tica aristotlica na obra de MacIntyreAtualmente, o pensamento aristotlico passa por um perodo de

renascimento e revalorizao com a publicao de obras com novas interpretaes na segunda metade do sculo XX. As obras de Alasdair MacIntyre so exemplo dessa proliferao no campo da Filosofia. A obra aristotlica de extrema importncia tanto para a Filosofia e para muitas outras cincias que constantemente fazem reflexes na contemporaneidade.

Aristteles expe uma teoria do ethos e da justia da Atenas do sculo IV a.C., discutindo conceitos como "o bem", "a virtude", "a justia", "a lei", "a amizade" e "a felicidade". Nos Tpicos, apresenta um mtodo de argumentao (o dialtico) que parte de opinies geralmente aceitas, por todas as pessoas, ou pela maioria, ou pelos mais eminentes (os filsofos). Aristteles, diferentemente de seu mestre Plato (de ndole essencialmente idealista), foi ideologicamente mais conservador, dando maior nfase s condies reais do homem e de suas instituies, discordando, inclusive, da teoria das formas ou idias de Plato, por consider-la desnecessria para os fins da cincia. 90

Para Lacerda 91 o mundo concebido por Aristteles de forma finalista, onde cada coisa tem uma atividade determinada por seu fim. O Bem a plenitude da essncia, aquilo a que todas as coisas tendem. O Bem, portanto, a finalidade de uma coisa (ou de uma cincia, ou arte). Assim, a finalidade da medicina a sade, e a da estratgia a vitria. Dentre todos os bens, contudo, h um que supremo, que deve ser buscado como fim ltimo da plis. Esse bem a felicidade, entendida no como um estado, mas como um processo, uma atividade atravs da qual o ser humano desenvolve da melhor maneira possvel suas aptides. Os meios para se atingir a felicidade so as virtudes (formas de excelncia), discutidas por Aristteles na tica a Nicmaco. As virtudes so disposies de carter cuja finalidade a realizao da perfeio do homem, enquanto ser racional. A virtude consiste em umLACERDA, Bruno Amaro. O pensamento de Aristteles e as reflexes jusfilosficas atuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponvel em: . Acesso em: 31 de jul. 2011. 91 LACERDA, 2001.90

42 meio-termo entre dois extremos, entre dois atos viciosos, um caracterizado pelo excesso e outro pela falta, pela carncia.

Aristteles divide as virtudes em dianoticas (ou intelectuais), s quais se chega pelo ensinamento, e ticas (ou morais), s quais se chega pelo exerccio, pelo hbito. As virtudes ticas, enquanto virtudes do saber prtico, no se destinam ao conhecer, como as dianoticas, mas ao. Para sua aquisio o conhecimento tem pouca ou nenhuma importncia. Das virtudes dianoticas, a de maior importncia a phrnesis (prudncia), capacidade de deliberar sobre o que bom ou mau, correto ou incorreto. Das virtudes ticas, a mais importante a justia. Aristteles distingue a justia em duas importantes classes: a universal e a particular. A justia universal o cumprimento da lei (lei, na Antiguidade, designava mais o modo de ser da plis do que propriamente uma prescrio). O homem justo, portanto, aquele que, como Scrates, no dilogo platnico Crton, cumpre a lei. Neste caso, abrange as demais virtudes, pois o que a lei manda cumprir todas as virtudes ticas particulares. A justia particular o hbito que realiza a igualdade, a atribuio a cada um do que lhe devido. Neste caso, a justia se coloca ao lado das demais virtudes, pois respeitar a igualdade implica, quando necessrio, agir com coragem, ou com temperana etc. 92

Segundo Lacerda 93, Aristteles estabelece as bases do que posteriormente denominou-se lgica formal, expondo os raciocnios analticos, que tm por base o silogismo dedutivo. O silogismo de Aristteles pode ser definido assim: um trio de termos, no qual o ltimo, que a concluso, contm uma verdade qual se chega obrigatoriamente, atravs dos outros dois. A lgica formal aristotlica,

essencialmente demonstrativa, embora tendo sofrido diversas crticas, atravessou os sculos praticamente sem ser alterada e predominou sobremaneira sobre sua lgica dialtica. No incio da segunda metade do sculo XX, entretanto, ocorreu uma redescoberta das diversas formas de racionalidade de Aristteles pelos filsofos. O primeiro foi Chaim Perelman94 que, insatisfeito com o formalismo lgico, foi buscar nos Tpicos e na Retrica de Aristteles a lgica do discurso no formalizvel (tico, poltico e jurdico), formulando sua "teoria da argumentao", mais conhecida por "nova retrica", uma retomada da retrica e principalmente da dialtica aristotlica. Os Tpicos, portanto, foram revalorizados, sendo considerados, no mais como um

92 93

Ibid. Ibid. 94 PERELMAN apud DAMASCENO, 2011, p. 4.

43 modo de pensar do passado, mas como um modo de pensar diferente do contido nos Analticos. Merece referncia tambm a recente obra do brasileiro Olavo de Carvalho 95, Aristteles em nova perspectiva, de 1996, em que expe interessante teoria (a teoria dos quatro discursos) sobre as relaes entre lgica formal e lgica dialtica. Ainda sobre essa relao, Carvalho cita o filsofo Eric Weil, que apresenta um excelente argumento: se para Aristteles a lgica analtico-formal to importante na construo do conhecimento, por que ele nunca se utiliza dela em seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente? Os raciocnios dialticos expostos nos Tpicos no se referem s demonstraes cientficas (apodticas), mas s deliberaes e s controvrsias. Diferentemente dos raciocnios apodticos (analticos) que partem de premissas verdadeiras e primeiras, esses raciocnios partem de opinies geralmente aceitas e, por isso, so apenas provveis. Funcionam como meio de persuaso e de convencimento por um discurso cuja funo levar a uma deciso.

A estrutura da argumentao dialtica, que motiva uma deciso, diferente do silogismo, pelo qual se passa das premissas concluso necessariamente. A passagem dos argumentos dialticos deciso, ao contrrio, no obrigatria, pois uma deciso envolve sempre a possibilidade de decidir de outro modo (ou mesmo de no decidir). Da a importncia da dialtica de Aristteles na atualidade. Os raciocnios so raciocnios dialticos e no analticos. A lgica no uma lgica de demonstrao formal, mas uma lgica argumentativa, que no utiliza provas analticas, mas dialticas, que visam o convencimento do juiz no caso concreto. Como os casos concretos no se repetem, no podem ser tratados de modo universal. As normas de uma sociedade no devem ser axiomas, mas "lugares comuns", princpios comumente aceitos. Dentro dessa concepo, o Direito, por exemplo, no deve ser entendido como um sistema formal j pronto, pois comporta opinies e raciocnios os mais diversos. O Direito constri-se atravs da argumentao que promove sua interpretao e aplicao. Nesses termos, no deve o juiz decidir atravs de um silogismo, com base em um sistema dedutivo, mas sim criar um sistema prprio para cada problema, para cada caso concreto, que possibilite que todos nele envolvidos tenham oportunidades iguais de emitirem suas opinies e seus valores. S assim uma deciso poder ser considerada justa. 96

95 96

CARVALHO, apud DAMASCENO, 2011, p. 8. Ibid.

44 Portanto, atravs dos raciocnios dialticos, recorre-se a argumentos de todas as espcies. Atravs da ao virtuosa, a justia pode ser alcanada, o cumprimento da lei e realizao da igualdade tornam-se possveis de prtica.

2.3. A atualizao da tica aristotlica em Alasdair MacIntyreConforme Martins 97, no ambiente acadmico da filosofia no to comum em termos de pesquisa tica, a investigao sobre pensadores recentes, dando-se certa preferncia ao estudo de filsofos antigos, medievais e modernos. Aqui no Brasil, isso decorre talvez da jovialidade das nossas universidades, cuja mais antiga sequer completou ainda os seus 80 anos de existncia. possvel que possa ficar mais fcil escrever sobre um pensador antigo do que sobre um contemporneo, pelo lastro de obras e de crticos que esses to recentes ainda no possuem em se comparando aos filsofos do passado e modernos, quando seus respectivos sistemas ou propostas j adquiriram certa "quilometragem" de reflexes e indagaes, portando de um imenso contedo bibliogrfico entre fontes primrias e secundrias nos diferentes idiomas. No caso desta pesquisa, d-se um certo salto epistemolgico ao analisar um pensador como Alasdair MacIntyre, porm com a caracterstica de seu sistema se prender a uma natureza historicista, haja visto que ele se pauta em um pensador da Histria da Filosofia Antiga (Aristteles) e outro da Medieval (Toms de Aquino).

Escrever sobre Alasdair MacIntyre pensar principalmente a tradio, sem, contudo, descartar de serem debatidos os problemas contemporneos e emergentes que permeiam o debate da filosofia hoje, sobretudo no mbito da filosofia prtica, notadamente no campo da tica e da poltica, projetados nos diversos desafios que requer a sociedade hodierna. Em sua obra Depois da Virtude, MacIntyre, como pioneiro do movimento comunitarista, surge como uma reao tradio tanto da filosofia anglo-saxnica bem como da norte-americana, realiza uma profunda anlise sobre o porqu do fracasso moral da modernidade, denunciando a abstrao de uma

MARTINS, Daniel. A educao e o pensamento comunitarista em Alasdair Macintyre. Publicado em: 14 de outubro de 2010. Disponvel em: . Acesso em 31 de jul. 2011.

97

45proposta moral na sociedade jurdica do dever-ser, preocupada exclusivamente em fundamentar teorias do que em narrar histrias. 98

Conforme Martins 99 o fato desse pensador, nascido em 1929 na Escc