TCC Orações, Um Caminho de Volta para Casa
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INTRODUÇÃO
Nada parece mais exato que a inexatidão, que a variável, o receio,
a dúvida. Os momentos se desintegram, o tempo é outro, as coisas parecem
rápidas demais, a ponto de nos compararmos à metáfora do punhado de areia
escorrendo por entre os dedos. A impressão é de insuficiência, transmitida de
geração em geração através da frustração de uma sociedade que não acompanha
suas próprias inovações. Renegados em tempo e espaço, pela criatura criada pelo
“homem-deus” trava-se uma armadilha mórbida, inconstante, de dores e estupros
constantes. Tornamo-nos cáusticos, irregulares, numa tentativa contemporânea de
abarcar o mundo e sua ainda não entendida “holisticidade”.
No momento sincrônico em que o homem revogou sua necessidade
de certezas e incertezas, as capacidades de raciocínio e lógica tornaram-se
expoentes para a análise de um mundo que até então se subjugara ao domínio de
um superior. Pensante em definições, os eruditos formaram relevâncias sobre
termos, restando aos daquela época e aos posteriores mortais, o legado da
consciência calcada no racionalismo da própria razão, da mente e do espírito.
A razão é então elevada, e em contrapartida, a consciência da
emoção é retida juntamente com a do espírito, sendo as ultimas rebaixadas pelo
discurso setecentista. O Cogito de René Descartes e as fortes teorias da filosofia do
homem, que vigoram até hoje sob outros grandes nomes, bloquearam e continuam
a fazê-lo na expressão e singularidade livre do ser humano, os quais retratam em
somatizações, o anseio pela descoberta de sua totalidade.
Por outro lado, na primeira parte do século XX, estudiosos do
movimento recobram energia acerca da análise do ser e de sua holisticidade. O
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império da dissociação, para eles, perde força. Rudolf Laban, F.M Alexander, Mabel
Todd e outros teóricos da dança e do teatro, começam de suas particulares
maneiras a se retratarem com a humanidade, propondo um olhar uno àquilo que
tanto fora dividido na história.
Em meados dos anos setenta e oitenta, os maiores referenciais
deste trabalho, induzidos pelos estudos já iniciados pelos nomes acima, irão depor
mais uma vez contra o discurso cartesiano, e, unidos às descobertas da
neurociência, elevarão o patamar das discussões sobre unicidade às ciências e às
comprovações.
São eles as maiores referências deste trabalho: António Damásio,
neurobiológo, Linda Hartley, psicóloga somática e Bonnie Baind Bridge Cohen,
criadora do Body Mind Centering (BMC) e Margha Vine, bailarina, psicóloga e
docente da Universidade Estadual de Londrina. Os mesmos revêem o pensamento
ocidental e rediscutem a maneira do ser no mundo através de seus estudos. Serão
eles abordados mais diretamente no segundo capítulo desta pesquisa.
O Body-Mind Centering (BMC), oferecerá um ponto norteador para
discursar sobre o ator. No primeiro e segundo capítulos será feita uma explanação
dos conceitos intrínsecos ao Body-Mind Centering, revelando o discurso que a linha
do BMC trabalha, e o contra-discurso, o qual o BMC irá depor..
No terceiro capítulo, será exposta a relação do indivíduo holístico
com seu desenvolvimento no mundo e seu auto-conhecimento, estabelecendo
então um paralelo com o indivíduo ator, dentro das relações de autoconhecimento,
e buscando um caminho para a expressividade do movimento.
No último dos capítulos, será feito uma síntese da prática,
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colocando os processos como pertinentes ao ator, e consequentemente à
expressividade. É um momento de reflexão acerca do ser humano, e também, do
ator, que durante a vida e suas aprendizagens, utiliza a seu favor o aprendido para
um melhor desenvolvimento. Assim, o ator fará o mesmo, encontrando com o
decorrer da vida, os melhores materiais para a sua expressividade.
Como um panorama corporal, as “Orações” serão compostas a
partir de cada sistema corporal (órgãos, fluidos, músculos) buscando a
expressividade de dada região, e assim a construção de um exercício cênico a
partir das orações que cada estrutura anatômica fizer.
“Voltando para casa” é uma reflexão que parte de um conceito
exposto no Body-Mind Centering: desvendar-se. A busca pela fluidez do
movimento, e consequentemente, pela desinibição do mesmo, me projeta a um
caminho meu, um caminho do meu auto-conhecimento, de volta para mim. Por meio
das orações, anseio voltar para casa, na tentativa de descobrir a fluidez de um
estado primordia. Nesse trajeto, investigar meu movimento, e, a fim de reconhecer o
instante inicial, permitir-me encontrar com meu movimento.
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1. O DISCURSO DA DISSOCIAÇÃO
São fortes os pensamentos que idealizam uma sociedade. Bem
como, são por vezes inflexíveis, permitindo o ponto de evitar quaisquer novos
conhecimentos, ou aprendizados, que venham a romper com o antigo pensamento,
com a velha tradição, ou apenas com um sutil hábito.
Repensar, re-elaborar, refazer caminhos é penoso, e o é,
principalmente, quando para voltar é necessário quebrar padrões, e assim re-
padronizar a si mesmo, e consequentemente o mundo ao seu redor.
Dissociar é separar o conjunto, romper partes, desestabilizar o todo.
Este é o quadro que a humanidade ocidental vem se emoldurando, tornando-se aos
poucos como uma equação matemática, e expressando-se como a divisão de uma
conta numérica.
Nesse contexto, o homem vê-se fadado a alguns conceitos lógicos,
enumerados, certos, e assim, permite ao próprio olhar, uma visão tripla de um ser
humano uno. Resumindo, olha para si e enxerga um corpo, uma mente e um
espírito.
No final do século XIX e início do próximo, várias foram os nomes e
linhas de pesquisa que iniciaram um trajeto de contraposição ao pensamento
cartesiano. Fortalecido por René Descartes, filosofo clássico, um pensamento que
desde a Grécia já veiculava por entre os pensadores, por intermédio do escrito
“Fedon”1 de Platão, o discurso da dissociação exposto nesse capítulo traz um
1 Fedon foi escrito por Platão antes de sua morte. Nesse livro, sua teoria sobre o mundo das idéias é elevada e nele é transcrito o seu postulado sobre a alma.
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primeiro instante de reflexão, a fim de mais adiante, ser exposto o outro discurso, o
da unificação, e com isso analisar a mudança de movimento possível a partir do
momento em que se dá vazão à consciência da unicidade humana.
1.1O Renascimento
Em 1596 nasce em La Haye, região de Tourine centro da França, o
filósofo René Descartes. De educação cristã, que nada diferia dos burgueses de
sua época, Descartes cresce sob o seio da mãe Igreja, nas escolas, pensamentos e
crenças de um Deus uno, onipotente, onisciente, onipresente, e respondedor de
todas as questões que a humanidade poderia fazer. (Os Pensadores, 1983, p. XX)
O Racionalismo começa a vigorar entre os eruditos, que por
intermédio da supremacia da Razão, redimensionam o mundo até então enxergado
sob os olhos de Deus.
A história caminha a passos lentos; o domínio do clero cresce cada
vez mais pela Idade Média. As fortes influências do Catolicismo veiculam por entre
o povo, artistas e nobreza, os quais respondem em suas manifestações, o ardor
pelo que estava iminente a acontecer.
Pelo excesso de poderio concedido à Igreja, a nova burguesia e a
nobreza anseiam o partilhar desse poder, e o povo acompanha impassível o
desenrolar da trama. Porém, aos poucos, o ideal do Renascimento instaura-se, e o
homem ganha seu troféu à marcha minúscula, e precisa.
Com a perda do prestígio da Igreja, a arte e o teatro medievais,
frágeis pela estrutura banalizada dos mistérios, moralidades (manifestações teatrais
de cunho religioso, que com o tempo começam a vulgarizarem) permite sem
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perceber, o adentrar de autores que ironizarão o poderio Papal, e
consequentemente toda a estrutura da época; está formado o cenário apto ao
desenvolvimento da renascença racionalista. (OS PENSADORES, 1983, p.VIII)
A renascença traz de volta os valores greco-romanos, e junto o
espírito avassalador de um homem sobre o mundo, o seu mundo. O
antropocentrismo materializa-se, e é estimulada a necessidade da contestação. Os
humanistas2 se elevam, criando nesse período as maiores Universidades da Razão
que primavam pelo resgate do modelo antigo de civilização, junto delas, grandes
autores são “ressuscitados”, dentre eles Plauto, Terêncio, Sêneca e as obras de
Vitrúvio sobre arquitetura, preparadas por Sulpício Verolano; a maioria destes,
resgatados depois da queda de Constantinopla, tornando os escritos greco-
romanos acessíveis aos universalistas. (BERTHOLD, 2001, p.269)
Ainda na arte, artistas como Botticeli, Miguelângelo, Rafael e Da
Vinci, trazem do universalismo do conhecimento, já que estes eram conhecedores
das ciências, matemáticas e artes, subsídios para inserirem nas pinturas o novo
modelo de arte. Agora, o mundo não seria mais o retrato das obras de Deus, mas a
equalização das formas, e o rigor científico no construir de sua arte. Artifícios como
o “claro-escuro”, a uniformidade das formas, a perspectiva, o estudo anatômico e o
entendimento de algumas leis da física na constituição exata do objeto artístico,
começaram a ganhar importância no cenário do século XVII.
Enquanto Shakespeare encantava o Teatro Elisabetano, juntamente
com Ben Johnson e Chistopher Marlowe, o humanismo estabelece-se a todo vapor,
principalmente na Itália, onde a maior quantidade das obras serão traduzidas e de
onde virão os últimos suspiros e o recobrar da Igreja Romana com a Contra
2 Utilizo o termo “humanismo” dizendo respeito ao momento histórico, quando estudiosos retomaram o conhecimento científico.
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Reforma.
Nesse mesmo período, as ciências e filosofia incitam o homem no
desbravar do desconhecido; quando Portugal, Espanha e posteriormente Holanda,
França e Inglaterra sairão em direção ao novo continente. Ajudados pelas
inovações científicas, o astrolábio, a bússola e as modernas embarcações, o
homem expande seu mundo, horizontes e sua mente.
A relação macro e micro existente entre a expansão européia sobre
as águas do Atlântico, e a expansão da mente humana, prepararão campo para
René Descartes e outros pensadores como Michel Montaigne(1533-1592) e Pierre
Charron (1541-1603) na empreitada do pensamento do homem daquela época. (OS
PENSADORES, 1983, p.VIII)
Vale ressaltar que todos esses acontecimentos da história,
desenrolaram-se no período de quatro séculos, já que o início da Renascença é um
fato que fulgura ainda no período medieval.
1.2 Réne Descartes e o renascimento da razão
O sempre questionador Descartes cresceu em âmbito religioso. Sua
formação em escolas Cristãs, delimitou a obra cientifica deste autor que ansiava
discursar sobre o ser humano e suas paixões.
Não encontrando certezas dentro dos estudos das humanidades,
nas quais iniciará suas pesquisas, Descartes julga encontrar nas matemáticas, o
caminho para a busca das certezas que tanto almejava. Com o discorrer de seus
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estudos, as certezas que antes eram o maior objeto para o filósofo foram abolidas,
elevando a dúvida como novo objeto de estudo, ou quem sabe como a ferramenta
no encontro de alguma possível certeza.
Descartes aceita o desafio da dúvida que transpassava a atmosfera
cultural de sua época; aceita-a para combatê-la com suas próprias armas. Eis
porque duvida metodicamente de tudo. Adota em princípio a sugestão de Montaigne
:o decisivo campo de batalha entre a certeza e a incerteza é o próprio eu. (OS
PENSADORES, 1983, p.XIV)
Seu livro, Discurso do Método (1637), foi a tentativa de encontrar
uma metodologia para a ciência. Outros escritos como Regras Para a Direção do
Espírito (1628), Sobre o Movimento do Coração (1629), Meditações (1644), As
Paixões da Alma (1649), foram escritos ou publicados nas datas que constam aqui,
dado ao fato que Descartes calou-se de algumas idéias, tendo em vista seu
contemporâneo Galileu Galilei ser queimado na fogueira da Inquisição, e por isso o
atraso na publicação de seus artigos. (OS PENSADORES, 1983, p. XIII)
Contudo nosso ponto principal que faz com que chamemos René
Descartes para essa discussão é sua visão declarada em seus escritos, porém com
ênfase maior no escrito Tratado das Paixões ou As Paixões da Alma, de 1649.
Escrito para a princesa Elisabeth, filha de Frederico V, Rei da Boêmia, torna-se
nome presente nas dedicatórias do autor, que desde Meditações e Principios da
Filosofia já os dedicava à princesa exilada em Haia, Holanda.
Descartes então, nesse livro, traz uma reflexão sobre o corpo e a
alma. É importante expor que a alma para Descartes é responsável pelas emoções,
o que aqui para nós poderia se transpor à palavra mente também.
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Dentro de suas reflexões Descartes coloca enfaticamente a
distinção entre a alma e o corpo, dando ao corpo a mísera função de co-existir sob
o domínio de uma alma situada na glândula pineal, glândula essa que é
responsável pelos ciclos circadianos, os quais regulam a relação entre vigília e
sono, ou no caso de alguns animais como o camaleão, é ela quem ativa o
mecanismo de defesa que permite ao animal a camuflagem.
(...) Porque por um lado tenho uma clara e distinta idéia de mim mesmo, na medida em que sou somente uma coisa que pensa e não é extensa, e por outro lado tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que ele é somente uma coisa extensa e que não pensa, é certo que esse eu, isto é, minha alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente e verdadeiramente distinta do meu corpo, e que ela pode ser ou existir sem ele. (DESCARTES apud D`Arcy, 2005, p.XXVII
Totalmente dissociada das funções orgânicas, a alma estaria acima
do corpo, seria ela quem poderia existir sem o mesmo, ao ponto que o corpo estaria
fadado ao fracasso sem a alma que “viveria” na parte posterior do lobo frontal.
Assim, trocariam relações de interesses. A alma interessada no corpo e o corpo
interessado na alma, e por isso co-viveriam a fim de garantir a existência do
indivíduo.
Caberia à alma com suas emoções e pensamentos se expressar no
mundo, enquanto o corpo e todas as suas funções homeostáticas (regulagem de
PH, temperatura, e garantias de bom funcionamento em geral do organismo) seriam
organizadas pelos espíritos animais, corpos muitos pequenos e responsáveis
juntamente com os nervos de impulsionar as forças para a vida do corpo, ajudando
na manutenção do calor, e circulação sangüínea. Além disso, ressalta Descartes,
que para nenhuma das funções fisiológicas, seria necessário lançar mão dos
pensamentos e emoções. Para o bombeamento de sangue do coração para o resto
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do corpo, juntamente dos espíritos animais, o coração forneceria calor para
aumentar a pressão do sangue, o qual se dirigiria para as outras cavidades
corporais através das artérias, chegando aos órgãos dos sentidos “como sobre uma
alavanca de comando, os objetos externos desencadeiam assim movimentos
predeterminados, sem que seja necessário reportar-se à dimensão psíquica de uma
sensação ou de um desejo”. (DESCARTES apud D`ARCY, 2005, p. XXXI)
Ao contrário de Descartes, Thomás de Aquino, que mais tarde será
canonizado como santo, e também Aristóteles, grande filósofo grego e escritor do
primeiro tratado sobre dramaturgia, unificam a visão do corpo, e estabelecem não
como sendo uma troca puramente de interesses, mas sim, o fluxo da vida de um
organismo uno.
Se o olho fosse um animal completo, a visão seria sua alma: com efeito, essa é a substância do olho; substância no sentido de forma. Quanto ao olho, ele é a matéria da visão, e desaparecendo esta ele não é mais olho, a não ser por homonímia, como um olho de pedra ou desenhado. Assim, é preciso estender à totalidade do corpo vivo o que vale para uma parte: a relação que existe entre a parte do ponto de vista da forma e a parte do ponto de vista da matéria repete-se entre o todo da faculdade sensitiva e o todo do corpo dotado da sensibilidade tomado como tal. (ARISTÓTELES apud D`ARCY, 2005, p. XXVIII)
Por fim, Descartes hesita em justificar concretamente as relações
que comprovariam a troca de interesses que há entre o corpo e a alma, já que são
considerados tão distintos pelo autor. O primeiro modelo que Descartes expõe no
Tratado do Homem e na Dióptrica, e retomado no Tratado das Paixões, diz da
relação causal que a glândula pineal e sua hospedeira, alma, produziriam com o
corpo. Os movimentos na glândula gerariam emoções e sensações, pre-
estabelecidas por Deus.
Na outra visão, exposta também pelo hesitante Descartes, iniciada
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em Meditações e parcialmente revelada no Tratado das Paixões, fala de uma
relação quase unívoca entre a alma e o corpo. A alma tomaria a forma do corpo e
atuaria em todas as partes do mesmo. Esse pensamento propõe quase uma união
entre os dois, embatendo-se com a visão que Descarte tanto defende da
dissociação e negação da conexão entre as duas.
Enxergamos a partir disso, a contradição que o próprio Descartes já
esboçava ao tentar explicar o homem e suas paixões. Imerso em seus
pensamentos, o filósofo que se tornou expoente ocidental, graças a suas teorias
que influenciaram as ciências exatas, humanas e biológicas, vê-se perdido entre
considerar a alma como maior, ou externa a existência do corpo, ou então, admitir
sua possível integração com o corpo humano.
Porém, para entender mais perfeitamente todas essas coisas, é necessário saber que a alma está realmente unida a todo o corpo, e não se pode dizer propriamente que esteja em alguma de suas partes com exclusão das outras, porque ele é uno e, de certa forma, indivisível, em razão da disposição de seus órgãos, que se relacionam todos um com o outro de tal maneira que, quando algum deles é retirado, isso torna defeituoso todo o corpo; e porque ela é de uma natureza que não tem a menor relação com a extensão nem com as dimensões ou outras propriedades da matéria de que o corpo é composto, mas somente com todo o conjunto formado por esses órgãos. Assim o demonstra o fato de que não poderíamos de maneira alguma imaginar a metade ou a Terça parte da uma alma nem qual extensão ela ocupa, e de que ela não se torna menos quando se corta fora alguma parte do corpo, mas se separa inteiramente dele quando se desagrega a conjunção de seus órgãos. (DESCARTES, 2005, p. 48)
Confrontamos no mesmo ponto de sua hesitação os estudos em
Body-Mind Centering e o discurso da unificação.
A fim de se chegar a algum pensamento que defina o corpo e a
mente interagindo constantemente, faz-se necessária a desconstrução das
máximas que desde o século XVI já veiculam no pensamento do ocidente.
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Encontrar em Descartes a contradição, e por um breve momento a ratificação do
que aqui venho expor como pensamento necessário antecessor para a
compreensão do Body-Mind Centering, ajuda no esclarecimento sobre a
holisticidade humana, tema que, até por alguns instantes, o maior confrontado
parece concordar.
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“Andava eu pela casa, enquanto escura, percebia a luz que por fora
entrecortada nas hastes das janelas. Era eu num breu meu, no movimento
que induzido por uma música ia. O escuro tinha um toque lento, sutil, feito
nuvem, nuvem que rarefazia quando nela eu iniciava a transmutação. E
assim era o momento meu, de olhar para mim. Sentia que nada melhor
que minha casa, minha, para encontrar os cantos onde eu tinha medo de
reencontrar. No meio do caminho encontrei uma sombra. Não pude passar
por ela. Ainda não.
Os acessos da vida se dão pela necessidade do encontro. As coisas
ocorrem em medidas exatas, num dinamismo histriônico, de momentos de
inconsciência e também de consciência.
No escuro, descobri também que meu movimento era plasmado com as
sombras, éramos quase unos num feixe de tempo que a luz não satisfazia.
E ali era o instante em que desejo se encontrava com necessidade, na
composição harmônica da presença, que meu ser expressava.
Neste mesmo instante, me deparei comigo, e com o movimento que meu
espírito fazia, pois meu espírito sou eu.
Neste mesmo instante, me deparei comigo, e com o movimento que
minha mente fazia, pois minha mente sou eu.
Neste mesmo instante, me deparei comigo, e com o movimento que
minha meu corpo fazia, pois meu corpo sou eu.
Nem tríade posso denominar, pois unicamente transporto-me, talvez em
três palavras, corpo, mente, espírito. Mas só. Encontrei o estado de
consciência em que sei de mim, ou pretendo descobrir voltando a casa, e
aos cômodos na tentativa de acendê-los, e apagá-los, no cíclico instante
das descobertas tão sonolentas e ralentadas.
No tempo a demorar, premedito enfim o encontro. É impossível não estar,
sentir o momento oportuno da chegada das velhas novidades; sendo elas,
nada mais que antigos momentos, talvez de adolescente, criança, bebê.
Momento que de velhos tem o tempo, e de novos a sensação de tê-los
revisto e encarado como particularmente meus.
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As velhas novidades, então, destroem as construídas sombras, revivendo
o momento calmo, numa espécie de estado uterino, que de hostil e
amedrontado, me revelo calmo, e brando.
Caídas as máscaras, sou atiçado a relembrar minhas mazelas e nadismos,
na esperança de fazer de mim, dono de minha casa.
Quem sabe não é hora de ser dono de casa? E retomar na sabedoria
doméstica, os afazeres de roupas, lavagens e limpezas. Arrumações.
E para a arte?
Se nada mais que artista sou.
O que fizer de mim homem, me fará, sempre, ator.”
Gustavo Torres
2. O DISCURSO DA UNIFICAÇÃO
Uma das grandes colocações do discurso da dissociação está
relacionada à questões de separação das coisas no mundo ocidental. Nele, a
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tabulação das matemáticas, as contas, o gráfico cartesiano, a enumeração (ponto
de referência na filosofia cartesiana), a disposição por critérios, enfim, a separação,
transcreve-se das áreas exatas ao pensamento do homem ocidental.
Cravado no cotidiano pessoal, o discurso setecentista que
favoreceu ao mundo, em uma possível organização, e enumeração das coisas, ao
contrário dos benefícios matemáticos, retirou dele a possibilidade de se enxergar
quanto uno, unívoco, sua unicidade, sua holisticidade.
Quanto ao foco deste estudo, venho abordar justamente o
pensamento de separação que o homem provocou em si próprio, e
conseqüentemente no mundo que estaria então, aos seus olhos, dicotomizado em
matéria e subjetivação.
“Eu estou fazendo uma distinção aqui, entre o conceito de mente geralmente utilizado na terminologia Ocidental, e também das funções mentais de armazenamento e processamento de informações, pensar, raciocínio, visualizar, imaginar, relembrar, atenção e os demais; da mente quanto consciência. Vamos primeiro olhar na mente quanto função mental. A ciência e filosofia moderna Ocidental tem a tendência de divorciar o funcionamento dos processos mentais do corpo, associando-os com o cérebro e vendo o cérebro como diferente do resto do corpo. O cérebro, composto de bilhões de células, é claramente uma parte do corpo. Ele é intimamente ligado com todas as partes do corpo, através da complexa rede de fibras nervosas e das secreções hormonais e outras substâncias que afetam o funcionamento celular. Psicologicamente, a diferenciação do corpo e da mente acontece na experiência psicossomática infantil a qual é fundamental para o processo de desenvolvimento; sem o qual ficaríamos imaturos, porém fora essa situação, estamos assumindo o divórcio. Mas, nossa mentalidade, orientada culturalmente, tem criado uma dualidade entre mente e corpo e uma hierarquia de importância, na qual a mente tenderia a dominar o corpo em detrimento de ambos.” (HARTLEY, 1989, p.XXVII).
Diferente do homem ocidental, o oriente guarda uma cultura
holística. Seus tratamentos, suas religiões, seu comportamento, todo ele não se
embasa em diferenças, que a partir disso serão dissociadas, mas calca-se sim em
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uma visão abrangente das coisas, de seu mundo, e primordialmente de si.
Isso pode ser visto na própria medicina oriental. Tratamentos como
o Reiki, técnica energética que se utiliza de alguns movimentos sensibilizadores no
corpo no paciente; a própria farmacologia chinesa, a qual não se utiliza de remédios
de ação na doença, no malefício, porém trata profundamente o paciente, em níveis
mais profundos que tenham causado aquela doença; isso sem contar a acupuntura,
e tantos outros métodos que o homem ocidental já introduz em sua rotina,
buscando como comento no início, encontrar sua ainda não entendida holisticidade.
Enquanto isso, no ocidente, a medicina alopática e farmacológica
exploram as doenças criadas muitas vezes por elas mesmas, fato que acontece
pelos inúmeros efeitos colaterais dos remédios desenvolvidos pelas indústrias,
tratando a doença, e por vezes esquecendo o doente e sua causa primordial, a qual
pode estar relacionada, como veremos adiante, ao fator emocional intimamente
ligado e nunca dissociado de seu físico.
Há diversas razões subjacentes a essa situação, e suponho que a maior parte delas provém de uma visão cartesiana da condição humana. Ao longo de três séculos, o objetivo da biologia e da medicina tem sido a compreensão da fisiologia e da patologia do corpo. A mente foi excluída, sendo em grande parte relegada para o campo da religião e da filosofia, e, mesmo depois de se tornar tema de uma disciplina específica, a psicologia, só recentemente lhe foi permitida a entrada na biologia e na medicina. (...) O resultado de tudo isso tem sido uma amputação do conceito de natureza humana com o qual a medicina trabalha. Não surpreende que, de um modo geral, as conseqüências do corpo sobre a mente mereçam uma atenção secundária, ou não mereçam mesmo nenhuma atenção. A medicina tem demorado a perceber que aquilo que as pessoas sentem em relação ao seu estado físico é um fator principal no resultado do tratamento. (DAMÁSIO, 1996, p.287)
Nesse panorama, desenvolvem-se os seres humanos. No passar
dos anos, o oriente invariavelmente recebeu as influências ocidentais, da mesma
maneira que nos deixamos levar pelas influências milenares. Contudo, há a
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necessidade de um aprofundamento para se entender essa milenaridade oriental, a
fim de uni-la com o que nos tornamos e quem sabe construirmos essa partilha e
trocas de conhecimentos entre as duas metades do globo.
É impossível, contudo, hoje dizer tão solidamente sobre as culturas
ocidental e oriental. Já comentada a influência que ambas exercem uma sobre a
outra, o desenvolver das duas inseridas no mundo globalizado, torna mais palpável
o contato e a disponibilidade de informações acerca delas, bem como a troca. Com
isso a identidade das culturas, que antes da pós-modernidade poderia talvez
considerar-se maior, hoje embora sustentada pelas grandes tradições de cada
região, abalam-se pelo abarcamento do mundo em um único relevo.
Com efeito, esse é o cenário propício para o homem pós-moderno
buscar seu entendimento, assim como o fazem desde os primórdios gregos.
Numa busca de auto-conhecimento, o homem pode deparar-se com
questões como o motivo de seu corpo reagir aos seus pensamentos, os calafrios
quando há uma situação de medo, ou o frio na barriga quando algo parece iminente
a acontecer, ou ainda como se dão as curas milagrosas de doenças como o câncer
com pacientes terminais recobrando energias, nessas vezes, por sutis mudanças de
atitude.
São essas as perguntas, que a holisticidade do ser pretende
responder.
Feito à imagem e semelhança de Deus, o corpo humano é postulado desde o princípio do texto bíblico como um território do sagrado. Não se trata apenas de um monte de órgãos, vísceras, fluidos e funções. Na língua hebraica, todas as partes do corpo humano são hipostasiadas e dotadas de atributos psíquicos e espirituais. Cada parte do corpo humano leva em si mesma uma consciência do verdadeiro Eu e de sua unidade. (MIRANDA, 2002, p.11)
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Atualmente respondemos ao poderio do corpo, a imagem do corpo.
Fadados a um ideal de perfeição, que permeia o homem desde sempre, nos dias
atuais, esse ideal é potencializado pelos meios de comunicação, que ditam as
novas tendências que o sistema de gorduras deve tomar.
Junto disso, a superexposição de corpos, e a não valorização dos
mesmos, confirma a idéia da dissociação do corpo, mente, espírito. Ao mesmo
tempo em que as pessoas expõem seus corpos, fica impossível raciocinar que as
mesmas estão expondo suas mentes, e seus espíritos. Todavia, esses são os
reflexos simples causados pela digressão do pensamento unívoco do homem.
Retomando a medicina, os tratamentos se focam nas doenças, nos
corpos. No entanto, muitas vezes esquece-se que se estará tratando do paciente
como um todo, e tal remédio que induz à liberação de tal hormônio estará, também,
atuando na mente do paciente.
Estudos atuais comprovam que o estado de humor da pessoa influi
em sua recuperação, fato esse que aos poucos consegue se introduzir na profilaxia
hospitalar. A psiconeuroimunologia, responsável por esses estudos, legará aos
hormônios e secreções que o organismo produz, a expressão das emoções. Isso
entrará em um grande processo de auto-cura e farmacologia do próprio organismo
para suas próprias doenças.
Desde a antigüidade, físicos e grandes pensadores de cada era têm pensado que o corpo influencia a alma, e a alma influencia o corpo. Nossa cultura está apenas começando a reconhecer e aceitar essa verdade novamente; além disso, a ciência tem se deparado com muitos casos que comprovam o efeito da mente sobre o corpo na cura de doenças. Em qualquer visão sobre cuidados na saúde para o futuro, estão se inserindo o ampliar da consciência da mente para a cura, e o conhecimento da totalidade da pessoa, e de todo o potencial que existe em nós. Nisso, o indivíduo pode começar a retomar a autoridade e a responsabilidade sobre si e de sua saúde, que tem sido totalmente legada à profissão médica. (HARTLEY,
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1989, p.300)
Assim, este trabalho, introduz informações que calcam esse
pensamento de holisticidade, os quais me embasam a fim de discursar sobre o ser
humano uno que se expressa no mundo contemporâneo. Para isso, uso os
conceitos da neurobiologia, e das recentes descobertas acerca dos neuropeptídios
e a inteligência celular, os quais ganham ênfase nessa discussão. Adiante,
introduzo os conceitos sobre Body-Mind Centering e relaciono o como essas
descobertas e estudos influenciam o indivíduo, e o indivíduo artista, dado ao fato
que essas mudanças de pensamentos refletem-se nos padrões de movimentos dos
seres, e conseqüentemente no modo de expressar-se perante a vida. Traço então
um paralelo, entre o ser que se expressa na vida, e o que se expressa na arte,
unindo artista e pessoa, em uma relação não dissociada.
2.1Body-Mind Centering e a busca pela holisticidade
“E eu perguntei para Bonnie: O que são todos esses bloqueios no corpo? De onde eles vêm? Ela respondeu: É a mente observando ela mesma.” (COHEN, 994, p. VII)
Em 1973, Bonnie Baindbridge Cohen, terapeuta ocupacional e
professora de dança, funda a Escola de Body-Mind Centering, em Massachussets,
Estados Unidos. Formada em Nova Iorque pela Erick Hawkins School of Dance e
pela Hunter College, Cohen passa a desenvolver no período entre 1962 e 1972,
trabalhos nos centros de reabilitação de hospitais, onde verificou que as pessoas
vinham procurá-la com problemas físicos e psicológicos. Essas constatações
fizeram com que fosse dado inicio às suas pesquisas sempre pensando: “perceber,
19
e ajudar as pessoas a se ajudarem” – nas palavras de Cohen.
O Body-Mind Centering (BMC) não é uma técnica. Não é codificada
e padronizada em seqüências prontas a serem repetidas. O seu assunto é o
movimento, e todo o trabalho é feito a partir da análise desse movimento, pois,
assistindo aos movimentos do corpo é possível ver o movimento da mente, através
da qualidade que aquele movimento expressar. “Há alguma coisa na natureza que
forma padrões. Nós, como partes da natureza, também formamos padrões. A mente
é como o vento e o corpo é como um areal; se você quiser saber como que o vento
sopra, você pode olhar o areal.” (COHEN, 1993, p.1)
Além disso, todo o seu arsenal de conhecimentos é mutável, com
intuito de acompanhar as mudanças da vida. O BMC é um processo experimental.
Para isso usa os conhecimentos das tradicionais anatomia e fisiologia, bem como,
conhecimentos da física, mecânica e neurociência. Partindo desses conhecimentos,
e unindo-os às descobertas pessoais, os conceitos tradicionais podem ser
reinterpretados.
“Body-Mind Centering tem grande relevância em oferecer a esse respeito, com base nos princípios observados, as funções da anatomia, psicologia e desenvolvimento infantil. É também baseado nas leis da física e mecânica, e no como elas são expressas no corpo humano. Entretanto, é fortemente arraigado no conhecimento e sabedoria que se encontra no subjetivo mais profundo. Body-Mind Centering permite que a nossa sabedoria fale com seus próprios termos, através de nossa voz. (...) trabalhando desse jeito, nós aprendemos a acreditar no valor de nosso próprio conhecimento sobre nós mesmos. A teoria e princípios desse trabalho, de fato, continuam a evoluir com nossas coletivas experiências”. (HARTLEY, 1953, p. XXX)
Há um diálogo direto entre o BMC e a nossa experiência.
Para o Body-Mind Centering, nosso corpo se move de acordo com
o movimento de nossa mente. As qualidades serão, a expressão dessa mente, e
20
consequentemente, a mudança da qualidade de movimento se refletirá na mudança
de algum padrão do nosso corpo/mente.
Fazendo um elo com a citação da expressão corpo/mente no
parágrafo acima, o nome Body-Mind Centering traduzido ao português, nos coloca
uma reflexão do que todo o processo proporá. “Body-Mind” já expõe a expressão
corpo/mente, enquanto “Centering”, que usualmente quereria dizer centro, ou um
movimento concêntrico, das periferias em direção ao centro, aqui reforça as
relações do corpo mente, ratificando que não se trata de uma dissociação, mas sim
de uma união.
O objetivo principal do Body-Mind Centering é a busca de um
estado que permita a espontaneidade, a abertura e a ampliação de percepções, a
fim de que possamos estabelecer um contato mais profundo com nós mesmos, se
auto-conhecer, e com isso liderar a transformação e o desenvolvimento pessoal.
Por intermédio da análise do movimento, dos padrões e qualidades
que este movimento expressa, e buscando a transformação dos padrões que
estiverem inibidos, como será explicado no segundo capítulo, por somatizações, as
quais impedem o livre fluxo do movimento, o trabalho tem a intenção de
repadronizar essas áreas, sempre na tentativa do encontro do movimento fluente e
pleno.
Mudanças em qualidades de movimento indicam que a mente está mudando de foco no corpo. Quando nós direcionamos a atenção a diferentes áreas do corpo e iniciamos o movimento a partir dessas áreas, nós mudamos a qualidade do nosso movimento. Então nós descobrimos que o movimento pode ser um caminho de observar a expressão de nosso corpo/mente, e pode também ser um jeito de encontrar mudanças na relação existente entre corpo e mente. (COHEN, 1993, p.VII)
É importante observar no trabalho com o BMC, a relação que existe
21
entre a menor estrutura do corpo e sua atividade, o movimento celular, com o maior
movimento que o corpo possa executar. Cohen comenta a necessidade do
estreitamento de relações entre os sistemas do corpo para se entender o todo. A
importância de compreender que o movimento, por maior que seja, está partindo ou
simplesmente é formado pela menor estrutura do organismo, a célula.
“Isso envolve identificação, articulação, diferenciação, e integração de vários tecidos com o corpo, descobrindo que suas qualidades contribuem para um movimento, no como ele estava envolvido no processo de desenvolvimento, e no como ele acontece sendo expressão da mente. Assim quanto mais estreita a relação, mais eficientemente nós poderemos entender as funções do organismo e tudo o que a isso está implicado.” (COHEN, 1993, p.VII)
Os caminhos para o encontro desse estreitamento entre corpo,
mente e movimento pode ser feito de várias maneiras. O toque, através do trabalho
de “hands on”, a visualização, a voz, a música, a meditação, conversas e tantas
outras formas que busquem estimular o processo de sensibilização.
“A prática do Body-Mind Centering permite a nós que gentilmente voltemos para a nossa casa ao adentrar no corpo e re-experienciar a sensação da integração harmônica, o sentimento, da mente e do espírito, que é a nossa natureza. Nós aprendemos a escutar o corpo através do silencioso trabalho de sensibilizar, nossa respiração, e o uso do imaginário guiado, no permitir que essa sabedoria nos guie na exploração de nossas necessidades. Nós aprendemos a acreditar no corpo e em seu intuitivo conhecimento. Através do toque focado e do sensível movimento guiado, áreas de tensão e bloqueio são liberadas e o núcleo da força e sustentação interna poderá ser re-experienciado. Como o corpo torna-se mais balanceado e integrado, nós podemos experimentar mais concentração e clareza da mente, assim como mais abertura e espontaneidade no ser e perceber. Livrados dos padrões habituais, nós podemos acessar e mais plenamente expressar a criatividade que existe em nós. Este trabalho realça a capacidade natural de cura do corpo.” (HARTLEY, 1989, p.XXXI).
Dentro desses processos, artista e obra se confundem. O
pesquisador é ao mesmo tempo agente e passivo da pesquisa, já que a pesquisa é
a respeito de sua própria experiência. Os princípios do BMC serão construídos a
22
partir das experiências coletivas, fazendo emergir do pessoal, da história individual,
o universal, e deste mesmo universal, retirar-se-á o específico. Como explica
Cohen, “essa é parte da natureza do trabalho. Assim como nós vamos da
experiência do nível celular até os sistemas do corpo, e até as relações familiares,
com a sociedade e eventualmente com a cultura a que estamos inseridos, nós
sempre estamos olhando no como esses princípios viajam ao longo de um contínuo
ciclo.” (COHEN, 1993, p.2)
“Existem maiores implicações culturais com a perspectiva do Body-Mind Centering e seu modelo de organização celular. Como nós temos visto cada sistema anatômico ou estrutura do corpo tem sua qualidade de expressão, sua própria função, importância, necessidade e lugar no todo corporal. Cada uma, é igualmente importante no saudável funcionamento do organismo como um todo. As relações internas entre os sistemas e suas funções, oferecem um belo modelo do microcosmo, na relação entre o indivíduo e o grupo, os subgrupos e a sociedade e as nações com o mundo. Pelo corpo, nós percebemos que se um sistema, órgão, por exemplo, for sobrecarregado, abusado, ou danificado de algum jeito, a saúde do todo estará comprometida. Apenas quando a função natural de cada um é acessada plenamente e igualmente, é que as relações saudáveis entre as partes são mantidas. Competição ou conflito entre eles, resultam em desordem; cada célula e tecido do corpo têm sua vital parte nas relações e pretende trabalhar em complementação com todas as outras partes.” (HARTLEY, 1979, p.301).
Portanto, os conceitos trabalhados nos processos em BMC,
chamados de repadronizações, visam justamente o desbloqueio do fluxo de energia
3que possa vir a impedir o livre fluir do movimento.
Por hora, é necessária a compreensão inicial dos conceitos
apresentados por Bonnie Baindbridge Cohen sobre o Body-Mind Centering, a fim de
debatermos a holisticidade e sua importância no entendimento deste trabalho.
3 Fluxo de energia nesse caso se refere à fluência do movimento.
23
2.2 O renascimento do ser
Duas são as maiores mudanças que o discurso da unificação traz
em relação ao da dissociação. A primeira delas refere-se ao vigente pensamento da
supremacia do cérebro sobre o seu vassalo corpo humano; e a segunda se coloca
na relação da separação entre o corpo e a mente, a qual legará cada um deles
funções isoladas e não integradas dentro de suas atividades.
Ambas as visões compõem uma bela canção que não pára de
entoar no pensamento do homem ocidental, que diferentemente da realidade do
oriente, enxerga cada coisa desempenhando sua determinada função, como em
uma fábrica que obedece a padronização da linha de montagem. Assim, é permitido
ao coração apenas bombear, aos rins apenas filtrar, ao estômago apenas digerir e
aos intestinos o sujo trabalho de expelir o desagradável. Sendo essa a verdade tão
defendida, porque todas as partes interagem entre si, e uma simples falha no
funcionamento renal afeta o todo e inclusive o humor da pessoa?
Cabe então, nesse momento, discorrer sobre o corpo, a mente e
esse discurso da unificação que nos coloca um corpo/mente agindo sobre o mundo,
e a partir de então, façamos a ligação desse pensamento com o que o Body-Mind
Centering nos propõe, e mais tarde, aliemos esses pensamento à filosofia do ator
em busca de sua expressividade.
Os mistérios do cérebro humano sempre foram assuntos intrigantes
para as pessoas e principalmente para os interessados na área da neurociência.
Desvendar a mente e suas obscuridades na tentativa de compreendê-la se tornou
mote para vários pesquisadores, os quais ao longo da história da ciência trouxeram
à luz descobertas essenciais para o entendimento do ser humano.
24
O cérebro é usualmente conhecido como o centro da grande
máquina corporal. Responsável por funções básicas como a homeostasia
(regulação de ph, temperatura, e bom funcionamento do organismo), e também
pelas funções da mente (imaginação, raciocínio, lógica, visualização); esse órgão é
tido como o grande motor humano, a placa mãe, o organizador dos nossos
sistemas orgânicos. Entretanto, retirando os exageros, essas são as reais funções
do cérebro.
“Eu estou fazendo uma distinção aqui, entre o conceito de mente geralmente utilizado na terminologia Ocidental, e também das funções mentais de armazenamento e processamento de informações, pensar, raciocínio, visualizar, imaginar, relembrar, atenção e os demais; da mente enquanto consciência.” (HARTLEY, 1989, p. XXVII)
A problemática está em considerá-lo parte exclusiva, superior, e
também em considerá-lo como responsável único pela consciência, tanto a
consciência do self, quanto a consciência autobiográfica (serão discorridas no
terceiro capítulo), dando a responsabilidade da consciência do ser no mundo e os
outros níveis de consciência, unicamente para o cérebro, e consequentemente,
ignorando a mesma existente no organismo todo.
Nessa visão, o cérebro sozinho é dono de um corpo que obedece
aos comandos, recebe informações, e que inexiste sem a presença de seu mestre,
além disso, esse mesmo pensamento sustenta a imagem de um cérebro que
guarda de forma solitária a inteligência e a consciência do organismo, o que se
traduziria pela comum frase: “O problema de tal pessoa é psicológico, na cabeça”.
Realmente a vida não existiria sem ele, mas há outro dissidente desse pensamento.
Junto dele, a terminologia cartesiana a respeito da maquinaria que
seria o corpo ganha força, já que Descartes reduz o corpo a uma coisa nada mais
25
interessante que as fábricas da pré-revolução industrial; traga a visão de unicidade
humana e dissocia a mente do corpo e do próprio cérebro, tomando ainda o
cérebro, como um álibi para esconder a alma humana, visto que para o filósofo o
cérebro também é só uma parte do corpo, e apenas seria o lugar do repouso dessa
alma (alma essa que seriam as emoções).
Por esse pensamento é possível entender como a sociedade
contemporânea ainda abarca o modelo de Descartes, destituindo a alma (mente) do
corpo. Vale ainda ressaltar que para Descartes, a alma são as emoções como
amor, ódio, tristeza, felicidade; o que aqui serão abordadas como atributos da
mente integrada ao corpo.
Porém, não negando a importância do cérebro para todo o
organismo, cientistas da década de oitenta, como António Damásio, começaram a
fazer experiências relevantes para o estudo da neurociência e especialmente das
relações corpo/mente.
Através desses estudos e comprovações, conseguiu-se estabelecer
cientificamente o elo entre o corpo e a mente, compreendendo-os como um só,
integrados e não dissociados em nenhum dos processos fisiológicos do organismo.
A intrínseca relação que se descobriu, diz respeito às moléculas de
neuropeptídeos encontradas no sistema imunológico e em outros vários pontos do
corpo. (DOSSEY apud ANDREWS, 2006, p.8)
“Neuropeptídios e seus receptores são a chave para entender como a mente e o corpo estão interconectados e como emoções podem ser manifestadas através de todo o corpo. Certamente, quanto mais sabemos dos neuropeptídeos, mais difícil é pensar nos termos tradicionais da mente e do corpo. Faz mais e mais sentido falar de uma única mente integrada, uma “mente do corpo”. (HARTLEY, 1989, p.XXVIII).
26
Os neuropeptídeos são um longo cordão de aminoácidos que se
unem aos receptores espalhados por todas as células do corpo provocando a
sinapse e liberando a mensagem.
Como comenta Hartley na citação acima, o entendimento dos
neuropeptídeos nos leva a entender a integração da mente e do corpo, e também
nos ajuda na compreensão de um corpo que agora não somente tem um cérebro,
mas um corpo que é um cérebro em um constante fluxo de pensamentos e
emoções, na fluência de uma inteligência não somente associada ao raciocínio dos
circuitos localizado no cérebro, mas sim, uma inteligência celular.
Experimentadores do movimento do século XX, como Rudolf Laban,
F.M Alexander, Mabel Todd, Moshe Feldenkrais, já iniciaram seus trabalhos pela
ótica que enxerga o corpo como um corpo pensante, o corpo como cérebro. Seus
trabalhos em recuperação de pessoas assoladas pelas guerras mundiais, o que
hoje se inserem na linha de educadores somáticos, foram essenciais para se
entender o que a mudança de consciência no trabalho com os “pacientes”, refletiria
nos movimentos dos mesmos, atuando não somente em seus corpos, mas sim, em
seus corpos e em suas mentes.
Com uma série de trabalho que visavam reintegrar o homem em
sua holisticidade, ou seja, conscientizá-lo de sua unicidade enquanto ser, esses
teóricos foram pontos chave para o trabalho que Bonnie Baindbridge Cohen
desenvolverá nos anos setenta com o Body-Mind Centering.
Através dessas idéias, derrubamos um pouco da supremacia
cartesiana, e instauramos um momento do novo discurso, em que o corpo e a
mente conjuntamente trabalham na regulação de nossas vidas, e não mais, como
27
Descartes tentou pregar, uma alma (mente) trabalhando pelos seus próprios
interesses.
2.3 Os neuropeptídios e a inteligência celular
Para compreender o que até agora está sendo exposto sobre o
tema da holisticidade do ser humano, como comenta Linda Hartley, é necessário o
entendimento do que viriam a ser os neuropeptídios, e o que alguns cientistas irão
chamar de inteligência celular.
Os neuropeptídios são a chave para as relações corpo/mente, já
que eles serão os justificadores do outro discurso, possibilitando explicar o que se
quer dizer do “corpo como cérebro”, e de uma “anatomia consciente”.
Segundo o Dr. Larry Dossey, um dos pioneiros da medicina
corpo/mente, há uma complexidade que envolve esse assunto, pois para entendê-lo
é necessário abrir mão dos hábitos de apontar a cabeça como região da mente.
(DOSSEY apud ANDREWS, 2006, p.7)
O médico afirma que ao considerar o corpo todo como lugar de
pensamento e inteligência, o colocamos como um grande cérebro, e assim,
chegamos à conclusão que nossa pele, células e glândulas pensem, um corpo vivo
em pensamento, e entendemos o que viria a ser a inteligência celular- comenta
Dossey. (DOSSEY apud ANDREWS, 2006, p.7).
Isso ocorre, principalmente, devido aos neurotransmissores ou
polipeptídios, um longo cordão de aminoácidos que se unem aos receptores
espalhados por todas as células do corpo provocando a sinapse e liberando a
mensagem. Vale ressaltar que os receptores são moléculas espalhadas por todo o
28
organismo, células do sistema imunológico, as quais têm número muito superior
que o de neurotransmissores ou neuropeptídios. Com isso o número de ligações
que podem ser feitas, e a quantidade que poderiam vir a ocorrer são enormes.
Esses neurotransmissores estão sendo liberados de um ponto e distribuindo-se por todo o corpo. Quando uma célula nervosa esguicha os neuropeptídeos, os peptídeos podem agir “quilômetros” de distância em outras células nervosas, dizendo às células se elas devem dividir-se ou não dividir-se, se deve fazer mais dessa ou daquela proteína, se devem “ligar ou ativar” esse ou aquele gene. Tudo no seu corpo está sendo gerado por essas moléculas mensageiras que estão em todos os lugares, e isso é que realmente impressionou a todos. Nos anos oitenta começamos a achar peptídeos no sistema imunológico e em todos os demais pontos do corpo. (Dossey apud Andrews, 2006, p.7).
Em 1989, Joan Kroc, viúva do fundador do Mcdonald`s, doou dois
milhões de dólares à Universidade de Los Angeles, a fim de que eles pesquisassem
a influência da alma sobre o corpo, no quesito cura de doenças. Com o tempo, têm-
se criado um ramo de estudos, o qual usará os neurotransmissores como forte
aliado em suas pesquisas: a psiconeuroimunologia.
Qual é a relação entre a alma de uma pessoa, seus pensamentos, emoções, comportamento e o seu sistema imunológico, responsável fundamental por sua saúde? Durante décadas foram concentrados esforços internacionais em desvendar detalhadamente os segredos das células imunológicas (as responsáveis pela defesa do organismo, como os glóbulos brancos). A conclusão dos especialistas, no final, foi de que o sistema imunológico, depois do cérebro, é o sistema mais complicado do corpo e desenvolveu, a partir de sua relação com inúmeros germes hostis, uma precisão letal. De resto - assim pensava - ele era autônomo. Todas as células entendiam tão bem o seu serviço que nenhuma delas precisava de conselhos de ninguém. De acordo com essa linha de raciocínio, pensamentos, emoções e tudo que acontecia na cabeça não tinham nada a ver com o sistema imunológico. Esse conceito estava em completa consonância com o paradigma racionalista cartesiano da ortodoxa medicina alopática. Até pelo menos 400 anos o dualismo corpo-alma era um axioma, segundo o qual as moléstias surgem apenas por causa de deslizes no plano físico e não relação nenhuma com a consciência. (ANDREWS, 2006, p.6)
Como podemos observar na citação acima, escrita pela antropóloga
29
Susan Andrews, a dualidade instituída pela renascença racionalista, que vigora até
hoje no pensamento do homem do ocidente, afeta também os rumos que a
medicina toma. Contudo, os últimos estudos na linha da psiconeuroimunologia,
retratam um avanço nas pesquisas em considerar o ser humano em sua inteireza,
em sua holisticidade.
É importante esclarecer, que por uma questão didática, a palavra
alma e a palavra mente estão sendo usadas com a mesma intenção.
Para o nosso trabalho de Body-Mind Centering, o que mais nos
interessa a respeito dos neuropeptídios, é vê-los como a resposta para a
compreensão do corpo/mente. A partir desse entendimento, é possível para o
trabalho com o BMC, enxergar o movimento de todo o organismo, e perceber que
todo ele se move: glândulas, órgãos, músculos, fluidos. Outro ponto a se entender,
será nos trabalhos de ampliação de percepções, exemplo os exercícios de
sensibilização do “Hands on”, o qual é um trabalho em que uma pessoa sensibiliza
a outra através do toque na busca do despertar de percepções naquele local e
assim ampliação do vocabulário de movimento.
Essas e outras relações do trabalho com o BMC serão mais
esmiuçadas no terceiro capítulo. Por ora, o primeiro capítulo buscou o encontro do
discurso da dissociação com o Body-Mind Centering. Nesse segundo momento, o
discurso da unificação, pretendeu expor a compreensão do que viria a ser esse
corpo/mente. Essas definições são suficientes para darmos o próximo passo:
analisar esse corpo/mente no mundo, em seu desenvolvimento e em seus
processos de aprendizagem. Com isso, compreenderemos como ocorre o processo
de auto-formação e auto-conhecimento do indivíduo, e depois, unido aos processos
de auto-conhecimento do ator, veremos o BMC como ativador de processos
30
criativos.
“Antes de qualquer coisa gostaria de introduzir a todos os interessados na
vida, um caminho de importância pessoal, contudo de possível partilha
para com aqueles que se identificarem com minha biografia.
Não tenho grandes pretensões em direcionar estradas, rumos, ou
vertentes novas de ganho para a humanidade, na busca de uma cura das
realidades pessoas. Não. A proposta daqui é bem menos intensa e
ambiciosa. Trata-se de explanar-me, e ponto final.
31
Nas minhas buscas, que com certeza tantas pessoas se equipararão, farei
aqui um tracejo simples e talvez até mal rebuscado de andanças pela vida
e pelos Olimpos, querendo ser simplesmente eu, eu e minha busca, eu e
minha pulsão, eu embrenhando e desembrenhando, eu esporadicamente
arrebatando-me e transportando-me em um universo tão eloqüente e ao
mesmo tempo tão rústico e estranho.
Assim, quando não mais conhecer nada, estarei pronto para conhecer e
isso é o que basta a fim de que me torne mais que fui no momento
antecessor, menos do que serei no momento posterior, e
inimaginavelmente estranho aos olhos do que sou agora. Serei espécie de
desconhecido, estrangeiro, forasteiro, escondido nas mesmas mascaras e
proporções, quem sabe maior, mais gordo, menos feio, mais robusto,
porém, desconhecido, desencontrado. Serei então feliz, pois mudarei,
transmutarei de sombras, na finalidade de encontrar nos novos ares do
dia seguinte repouso e desequilíbrio, em um ciclo que tende a continuar
até que a morte nos separe.
Desconhecido e plurisignificado, já que não mais conseguirei atribuir a
mim os mesmos quesitos de que hoje atribuo, encontrarei algo mais que o
momento, encontrarei o momento anterior unindo-se ao momento
posterior, e juntos me formando.
Certa vez ouvi uma história, contada não sei por quem que dizia sobre os
castelos de areia em uma praia. Ao construí-los a criança sempre fica com
um punhado de areia entre os dedos, entre as roupas. Quem sabe, quando
a água do mar vier pela noite, as ondas levem o castelo e a criança triste
tentará agarrá-lo a fim de que ele não corra, morra, perca-se. Fundida à
pele da criança ela chorará, contudo guardará em seu bolso aquele ultimo
punhado que restou da construção antiga. Na nova casa, unira o castelo
construído e destruído de ontem, ao castelo construído e destruído de
hoje, de amanha e assim por diante. E no mesmo saquinho onde guardou
o restou do passado, colocará o presente. As areias se misturarão, os dias
se misturarão, os ossos crescerão, e choro virá a tona. A criança crescerá;
e crescendo verá que precisara constantemente de um veredicto para
seus grãos, precisa de vez em quando esvaziar o que tinha para que
32
coisas novas surjam. Será ela, a criança, sozinha, sem pai nem mãe, a
escolher quais grãos deverão sair e quais ficar, e assim ela crescerá,
florescerá e será até o fim de sua vida, trocando com o mundo grãos,
pegando dos outros e das coisas e entregando os seus em um processo de
escambo vital, na sabedoria de arrumar a melhor maneira possível de
quem sabe em outro tempo voltar ao primeiro castelo, ao primeiro
punhado, à primeira emoção, ao primeiro sorriso, ao primeiro suspiro,
antes da onda se aproximar e levar o seu primeiro e ultimo castelo.
Amplo de sentidos, a história traz até àqueles que compreendem o
momento do momento, do momento, do momento. Em qual momento
estou, e para onde vou?
Para onde vou?
Se assim como eu, vive a mesma pergunta, e ainda não lembra onde
construiu seu primeiro castelo, bem como quando, como e porque, então
a nossa busca é parecida, e vale a pena refletirmos sobre a vida, a
expressão da vida e o puro momento.
Voltando para casa, depois de uma ida à praia, faz-se a hora de limpar os
pés, sacudir das roupas as areias que não queremos e deitar um pouco na
cama ou colo de alguém. Já que a vida é grande jornada, já que somos
capazes de caminhar por entre as paisagens, já é hora de pensar e pensar
e pensar.
Limpo de todas as sujeiras do dia, o que fica em nós somatiza um pouco
do que serei amanhã, e me revela através de minhas emoções como sou
diante das coisas.
O dia já vai amanhecer, e aquela criança precisa descansar, amanhã será
um novo dia. Com novas histórias e novos castelos. Novos castelos.”
Gustavo Torres
33
3. BMC: O DISCURSO DE AUTO-CONHECIMENTO
Este é o terceiro momento necessário para trazer à tona os
conhecimentos que o BMC abrange.
No primeiro deles, o primeiro capítulo deste trabalho, busquei
explanar os conceitos relativos ao discurso da dissociação. No segundo capítulo,
pretendi analisar questões relativas à holisticidade e unicidade dos seres humanos.
Isso se faz necessário, pelo motivo de que o BMC utiliza dessa consciência de um
ser uno para fazer com que o trabalho aconteça.
34
Após esse momento de discussão sobre o corpo/mente, trazendo
para o diálogo Descartes, Bonnie Baindbridge Cohen, Linda Hartley, Susan
Andrews, Larry Dossey, partimos para o terceiro ponto do trabalho, o qual tem a
intenção de analisar alguns momentos do ser humano no mundo, suas emoções,
sentimentos, incorporações e somatizações, convergindo tudo isso para seu
desenvolvimento, seu auto-conhecimento.
O BMC é um estudo que, como já dito, trabalha com o indivíduo e
sua experiência no mundo. É um trabalho de empirismo, pois é no cotidiano que se
estabelece qual é o próprio método de trabalho da pessoa, a partir do conhecimento
individual, de uma sabedoria que pretende brotar desse conhecimento de si. Sendo
assim, o Body-Mind Centering estabelece uma ponte estreita e declarada com a
vida, pois é com ela que ele irá evoluir, e por ela que serão criados mais e mais
materiais no estudo coletivo do Body-Mind Centering.
É claro que os trabalhos em psicologia, e principalmente em arte,
trabalham com a pessoa e sua vida, e sempre será uma pesquisa sobre o ser
humano. Contudo, friso a questão do esclarecimento que o BMC propõe a partir de
seu trabalho com a vida, já que para entendê-lo devemos compreender-nos, afinal,
o trabalho não é nada mais que olhar para si na busca de um estado de pleno
movimento, de fluência, sem couraças, e desinibido das somatizações que a vida
nos encarou.
Portanto, nas pesquisas em Body-Mind Centering e em todo o
trabalho prático, o objetivo principal será o de desinibir o movimento, afim da
ampliação do vocabulário da pessoa, e consequentemente, trará uma nova
consciência sobre si, e sobre a anatomia a qual se estiver trabalhando.
35
Gostaria também de ressaltar a palavra consciência, processo de
auto-percepção e sensações que o organismo identifica e registra. Para nós, será
de extrema relevância entendê-la, já que o autoconhecimento pede a auto-
consciência.
Nesse ponto, retomo a importância de se entender o cérebro como
parte do corpo e desempenhando suas funções de controle do organismo, e retomo
também, o pensamento do BMC que frisa que o cérebro não é lugar uno da
consciência humana. Assim como podem pensar que o cérebro é o lugar isolado da
mente, ele também não é o lugar isolado da consciência.
Trago de volta essa discussão do parágrafo acima, somente para
deixar claro o ponto em que partimos para explanar o segundo capítulo.
António Damásio será novamente um forte aliado. Suas pesquisas
em neurobiologia sobre consciência e emoções serão de grande valor para esse
momento. Em seus escritos: O Erro de Descartes, e O Mistério da Consciência, fica
claro o ponto de vista que ele e o Body-Mind Centering estarão colocando para
esse século XXI. Damásio dá uma definição simples, porém esclarecedora a
respeito do que seria a consciência e da importância de seu aparecimento na
evolução dos animais.
Embora eu não veja a consciência como o ápice da evolução biológica, penso que é um momento decisivo na longa história da vida. Mesmo quando recorremos à simples e clássica definição de consciência encontrada nos dicionários - que apresenta como a percepção que um organismo tem de si mesmo e do que o cerca -, é fácil imaginar como a consciência provavelmente abriu caminho na evolução humana, para um novo gênero de criações, impossível sem ela: consciência moral, religião, organização social e política, artes ciência e tecnologia. De um modo ainda mais imperioso, talvez a consciência seja a função biológica crítica que nos permite saber que estamos sentindo tristeza ou alegria, sofrimento ou prazer, vergonha ou orgulho, pesar por um amor que se foi ou por uma vida que se perdeu. O páthos, individualmente vivenciado ou observado é um subproduto da consciência, tanto quanto o desejo. Jamais teríamos
36
conhecimento de nenhum desses estados pessoais sem a consciência. Não culpe Eva por conhecer; culpe a consciência, e agradeça a ela. (DAMÁSIO, 1999, p.18)
O importante de entendermos por ora, é como se dão os processos
de auto-formação e de autoconhecimento, a fim de que nos próximos sub-capítulos
sejam esmiuçados os desvios que podem acontecer ao indivíduo em seu processo
de vida.
Dentro dos níveis de consciência, dois são os mais relevantes para
nós nesse momento: a consciência central, da qual emanará o self central, e a
consciência autobiográfica, da qual virá o self autobiográfico.
O self central corresponde à parte da consciência que se recria todo
momento, com a finalidade de interagir com os objetos à que o organismo
estabelece quaisquer relações, enquanto o self autobiográfico é responsável pela
parcela imutável de nós que se forma ao longo da vida pelas nossas experiências e
vivências sociais.
Tomar conhecimento disso agora irá nos ajudar a compreender os
processos de incorporações que o organismo fará, processos estes que podem
gerar somatizações no organismo, as quais serão as principais responsáveis pelo
bloqueio do movimento. Tudo isso assistido pelos nossos sentimentos e emoções,
autores de nossas relações com o mundo, de nossas perguntas e respostas ao
ambiente externo, e também, assistido pela nossa consciência, presente em todo o
organismo.
Em tabela feita por Damásio a qual exemplifica a regulação da vida
e as necessidades para o desenvolvimento do ser, o neurocientista trata essa
tabela de níveis básicos de regulação da vida pelo nome de kit de sobrevivência.
37
Tabela- Níveis de Regulação da vidaRazão superior Planos de ação complexos, flexíveis e específicos
para cada situação formulados em imagens conscientes e podem ser executados como comportamento.
ConsciênciaSentimentos Padrões sensoriais indicativos de dor ,prazer e
emoções tornam-se imagens.
Emoções Padrões de reação complexos, estereotipados, que incluem emoções secundárias, emoções primárias.
Regulação básica da vida Padrões de reação complexos, estereotipados que incluem regulação metabólica, reflexos, o mecanismo biológico subjacente ao que se tornará dor e prazer, impulsos e motivações.
O nível básico de regulação da vida - o kit de sobrevivência - inclui os estados biológicos que podem ser percebidos conscientemente como impulsos e motivações e como estados de dor e de prazer. As emoções encontram-se em um nível mais elevado e complexo. As setas duplas indicam relação causal ascendente ou descendente. Por exemplo, a dor pode induzir emoções, e algumas emoções podem incluir um estado de dor. (DAMASIO, 1999, p.79)
A partir de agora, analisemos essa tabela, a fim de compreender
como funcionam os padrões de regulação da vida, percebendo assim, como o
organismo se forma através de sua vida e de suas experiências, e como isso influirá
em seu movimento.
Entretanto, primeiro façamos uma clarificação no vocabulário,
tirando dúvidas acerca das expressões usadas na tabela, tais como: emoções
primárias, secundárias, como também, a diferenciação de emoção e sentimento.
Com isso daremos um passo importante nesse momento, buscando esclarecer
como se dá o processo de desenvolvimento, compreendendo como que os
indivíduos retêm algumas informações, descartam outras, e como é feita a síntese
dessas informações na formação do self autobiográfico de cada um de nós.
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As emoções primárias são aquelas responsáveis por respostas
imediatas, inatas dos organismos. Reações que não são necessárias a elas
nenhum tipo de informação prévia, ela já está aderida a nós desde que nascemos.
Por exemplo: um pinto no alto de um ninho, após avistar uma águia vindo em sua
direção, sabe exatamente que tem de abaixar ou fugir da mesma, sem mesmo
nunca ter visto uma. Enquanto as emoções secundárias são aquelas que causam
uma mudança em nossa paisagem corporal, como exemplo o encontro de um
grande amigo, ou da morte do mesmo; o frio na barriga, o rubor nas bochechar, a
sensação de um aperto no peito, e tantas outras, são as reações recorrentes que
caracterizam uma emoção secundária.
Trago também a essa discussão vocabular as palavras emoção e
sentimento, tão comumente usadas no nosso dia a dia. Contudo, é necessário
compreender como a utilizaremos nesse trabalho.
Primeiro devemos entender as emoções como a própria etmologia
da palavra nos induz: movimento para fora. A partir de então, podemos
compreender que as emoções são as nossas reações externas, reações àquilo que
sentimos e, portanto, externalizamos. Contudo, o sentimento, caracteriza-se por um
estado interno, algo que somente a pessoa saberá e sentirá. Por exemplo: ao
sentir-se triste, o ato e a vontade de chorar são atributos da emoção, bem como a
paisagem corporal que aquela emoção transformará no corpo da pessoa; mas,
somente ela saberá qual é o sentimento, de dor ou de prazer, enquanto os outros
somente verão a emoção.
3.1 Somatizações e desenvolvimento
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As duas palavras que nomeiam esse subcapítulo serão necessárias
para traçar o caminho que o BMC trabalha. São elas: somatizações e
desenvolvimento. A primeira, fruto da última: desenvolvimento.
No processo de desenvolvimento ou auto-formação, o indivíduo
estabelece trocas com o meio, e também, reafirma as informações genéticas já
estabelecidas em si; confrontando a todo instante, por intermédio das emoções e
sentimentos, seu repertório com o repertório que o mundo irá propor todo momento.
As emoções são a chave para compreender como as incorporações
(somatizações) são afirmadas no panorama do nosso corpo/mente. Como dito nas
explicações sobre emoções primárias, secundárias e sentimentos, elas serão os
nossos veículos sensoriais e medidores das relações do interno com o externo.
Tanto as emoções e os sentimentos alteram a nossa paisagem
corporal, trazendo posturas, movimentos, tensões determinadas pela emoção ou
sentimento que está acontecendo.
No caso das emoções, que darão forma para os sentimentos por
meio das tensões na paisagem corporal, elas serão as respostas dos nossos
sentimentos, alterando todo o nosso organismo.
O processo funciona da seguinte maneira, segundo o neurobiólogo
António Damásio. O confronto com o mundo gera imagens acerca das informações
coletadas, as quais confrontadas com nossos anteriores repertórios, bem como,
com nossas informações calcadas de antigas gerações, acabam por formar uma
reposta, uma emoção, e também um sentimento. No final desse processo, os
resquícios que sobrarem, ou seja, o aprendizado a respeito do confronto de
informações, fundirão ao corpo/mente do indivíduo, resultando em incorporações; o
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que nos leva a concluir que a todo momento estamos incorporando o mundo e nos
confrontando com o mesmo.
Isso responde a questões referentes às diferenças de povos, de
costumes e hábitos, já que, inseridos cada qual em seu espaço, formarão suas
formas de socialização, reprimindo partes e liberando outras, de acordo com o
modo de vida de sua comunidade.
Desde criança, o indivíduo sofre “incorporações” (no sentido de receber os condicionamentos impostos inconscientemente) por parte da cultura em que está inserido, que o impedem de manifestar-se por inteiro, criando aquilo que se pode denominar de hábitos inconscientes, e que, ao longo de seu desenvolvimento, são gravados nas partes mais profundas de seu ser. A criança aprende rapidamente a parar de agradar a si mesma com sua exploração concreta de movimento para agradar àqueles que estão à sua volta. Um poderoso sistema bio-anato-fisiológico humano, cheio de potenciais e capacidade de exploração, é repentinamente cortado pela imposição de limites dos mais variados; terreno que se torna extremamente fértil para o desenvolvimento de hábitos e padrões.” (Vine, 2005, p.84).
Assim, todo momento que as incorporações ou somatizações
acontecem, estamos concomitantemente respondendo a elas, de acordo com
nossos pré-conceitos. Estas informações são capitadas pelos órgãos dos sentidos,
os quais enviam sinais nervosos a pontos no cérebro chamados córtices sensoriais
iniciais. O interessante é que esses pontos não são ligados entre si, criando então a
problemática de entender a imagem como uma reunião das respostas sensoriais
nos canais de saída do cérebro. Isso nos leva ao conceito de “sincronicidade” das
informações externas, chegando à conclusão de que a união das mesmas é apenas
temporal.
Com isso quero esclarecer que, as incorporações chegam através
de vários canais sensoriais, os quais entram no organismo por vias diferentes e se
confrontam com informações diferentes, vindas de várias coisas do ambiente
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externo e se encontrando, apenas temporalmente em nós. Essas informações
podem tanto vir do externo como de outras partes do corpo, e isso gerará o
confronto, que através dos córtices de saída, gerarão a resposta, gerarão a
emoção.
O conceito de imagem é muito importante para nosso trabalho, pois
ela é a base da mente, como postula Damásio. Através das imagens, serão
codificadas e decodificadas as informações, trazendo-as a uma prévia
materialização que acontecerá no ato da emoção.
É importante saber, que as informações inatas do corpo, com as
quais as informações irão se confrontar são aquelas oriundas de nossas pré-
disposições, e estão localizadas no hipotálamo, no tronco cerebral e no sistema
límbico (essas informações inatas, correspondem as funções homeostáticas e
instintivas). Já o conhecimento adquirido é representado nos córtices de alto nível e
em núcleos abaixo do nível do córtex, núcleos chamados de massa cinzenta. Esse
conhecimento novo se forma na modificação contínua das representações
dispositivas, ou seja, no nosso cotidiano das incorporações.
A genética dentro de todo esse esquema ajuda a revelar um quadro
apto de comparação aos dois tipos de conhecimento humano: inato e adquirido.
Enquanto o genoma humano corresponde a aproximadamente 100 mil genes, as
ligações sinápticas podem esbarrar em 10 trilhões de possibilidades. Isso
demonstra a capacidade genética de garantir o conhecimento inato, além do inicial,
o qual será apurado com o decorrer da vida e das aprendizagens incorporadas.
Define-se então que muitas atividades do organismo são efetivadas pela condução
genética. Contudo, a maior parte das especificidades é revelada no decorrer da
vida. (DAMASIO, 1996, p.138)
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A intercomunicação, então, dos dois momentos do conhecimento,
inato e adquirido, deve ser constante e harmônica, já que uma depende da outra
para o bom funcionamento do organismo.
Isso nos leva a uma das questões mais relevantes para esse
entendimento. O organismo funciona por necessidade.
Essa sentença me leva a debater a própria regulação biológica do
organismo, já que a necessidade e a regulação, equilíbrio e harmonia do corpo
estão totalmente interligadas.
Como citado acima, a palavra “quantidade de ligações sinápticas”,
essas mesmas, serão um conceito essencial para entender a regulação.
Ao mesmo tempo em que as sinapses (ver capítulo um, sub-
capítulo “neuropeptídios e inteligência celular”, está explanado o conceito de
sinapse) podem liberar uma reação a acontecerem, elas podem inibir alguma das
funções do organismo de suceder. Dois são os tipos de sinapse: inibidora e
estimuladoras. O próprio nome já sugere a função de uma que seria estimular
algum processo, e da outra inibir algum processo.
Essa função aconteceria então da seguinte maneira: uma
informação vinda do meio externo como exemplo uma ofensa, seria captada pelos
órgãos dos sentidos e a resposta a essa emoção, uma talvez raiva, refletiria no
corpo uma paisagem. Essa paisagem poderia vir a ser a tensão nos músculos do
corpo, ou até sentir como se “a cabeça estivesse fervendo”. Essa informação da
ofensa percorre todo o corpo através dos canais nervosos (nervos motores e
sensoriais periféricos), ou da corrente sanguínea, que transporta sinais químicos
(hormônios neurotransmissores e neuromoduladores, os chamados neuropeptídios)
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liberando em algum momento a resposta do organismo, que é chamada sinapse, a
mensagem que é liberada da acoplagem dos neuropeptídios com algum receptor.
Essas ligações geram a resposta, no caso a emoção, e tudo isso ao mesmo tempo
acontece para que simplesmente tenhamos a sensação de estar “fervendo”.
No meio disso, algo fica em nós, marcado, gravado em nosso
corpo/mente, e serão essas as somatizações ou incorporações.
No momento desse acontecimento da ofensa, muita coisa
aconteceu. No meio dessa explicação, a pessoa que teria sofrido essa suposta
ofensa estaria se desregulando a partir do acontecido. A resposta que o organismo
teve, de se sentir “fervendo”, ou tensionar os músculos, foi a resposta do
corpo/mente que permitiu ao mesmo encontrar o caminho menos danoso ao
organismo.
Como comenta Damásio, através de um “mecanismo pré-
organizado” de ações bioreguladoras do organismo (estados corporais), ele busca
manter a sua plena atividade, sintonizando-se ao mundo externo e tanto recebendo
quanto emitindo estímulos a fim de não se instabilizar. Dessa relação, a nossa
disposição orgânica se direciona e redireciona, de acordo com as necessidades de
padronização a qual aquele indivíduo está inserido, ou seja, o organismo se auto-
regula a fim de continuar seu processo harmônico em sua comunidade. (DAMÁSIO,
1996.p. 145)
Retomando o exemplo do “kit de sobrevivência” tabelado no início
desse capítulo, o processo de auto-formação no desenvolvimento do ser humano,
permite a socialização e a construção de uma paisagem favorável diante do meio
onde vive. Ao nascer, a pessoa lança mão se seu “kit de sobrevivência”, uma
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espécie de ações fisiológicas instintivas, as quais regem involuntariamente o
organismo. Com o tempo, os processos de aprendizagem e aculturação elevam os
índices de estratégias para a sobrevivência. O vocabulário instintivo amplia-se
diante do repertório adquirido, e juntos armam o planejamento mais eficaz dentro
das possibilidades, e almejando o funcionamento regular ou próximo de, do
organismo. (DAMÁSIO,1996, p. 154)
A evolução pessoal garante bons e maus resultados na cotidiana
construção de nosso organismo. Momentos que nos sentimos em alta, e outros
cabisbaixos por determinada situação. Numa hora como essa, o momento
desagradável causa certa agitação visceral, e por ser uma reação corporal, utiliza-
se nesses casos a palavra somático. Isso então serão os processos de
desenvolvimento e auto-formação, bem como, somatizações.
Do grego “soma”, que quer dizer corpo, um estado somático
imprime sobre nosso organismo a informação adquirida sob determinada forma.
Damásio irá chamar de “o marcador somático”, referindo-se às situações em que
absorvemos tal sensação na nossa constituição e na manutenção da harmonia do
organismo.
A harmonia será o objetivo do corpo, na busca da menor lesão para
seus sistemas durante a vida. Por isso, o trabalho com o Body-Mind Centering será
o de buscar essa harmonia, através da livre fluência do movimento, e desinibição
das tensões somatizadas no decorrer da vida.
No último subcapítulo deste capítulo, explanarei por quais vias que
o BMC trabalha, e buscarei paralelo com o trabalho do ator, a fim de ser ele, o
BMC, processo e treinamento para a dança e o teatro.
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3.2 O BMC e a arte
Até agora, o trabalho tinha uma característica de analisar o ser
humano em sua integridade. A responsabilidade inicial era essa, expor o ser
humano e seu confronto diário com o mundo que o cerca, em uma competição de
aliados e inimigos, os quais eram decididos todo momento, transformando aliados
em informações positivas e inimigos em somatizações inibidoras.
Ainda falando do que já fora discursado, o primeiro capítulo buscou
sintonizarmos com a freqüência que o Body-Mind Centering se situa, descobrindo
então, a linha na qual está inserido o trabalho, e a partir disso, poder discursar e
refletir sobre um trabalho que venha a desenvolver o BMC como estimulador de
consciência e de processos criativos.
No terceiro capítulo, a reflexão sobre o homem e seu percurso
natural pelo mundo, trouxe o parecer acerca do desenvolvimento humano, como
ocorria, e quais eram as reações do organismo ao se deparar com as situações
cotidianas. Entendendo os conceitos de incorporações, somatizações, auto-
formação e desenvolvimento é possível tracejar um elo entre tudo isso e a palavra
auto-conhecimento, auto-consciência, as quais nos levarão ao contato direto com a
filosofia do ator.
Esses dois momentos então, nos condicionam a refletir sobre a
conscientização sobre si que esse trabalho propõe, ou seja, a consciência sobre
nós enquanto seres humanos, e consequentemente, nos leva a discursar sobre o
ator, que nada mais é que um indivíduo em constante trabalho e busca sobre si
mesmo.
“O Trabalho do Ator sobre si mesmo”, marca o parecer de
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Constantin Stanislavski sobre o ator e seu trabalho no mundo e sobre si. Teórico
teatral, que dá início à reforma que os seus seguidores continuarão a propagar, o
russo Stanislavski, declarou a vida do ator como sendo seu material de expressão,
da onde tiraria quaisquer repertórios e informações para guiá-lo em seus processos
artísticos.
Na dança, Isadora Duncan e Rudolf Laban, já introduziam
sincronicamente à Stanislavski, um percurso parecido, o qual, daria vazão à
singularidade humana no fazer artístico. Assim, a expressão individual, unida à
consciência una, holística, seriam os mestres do movimento, e mais uma vez a vida
seria material único de manifestação artística.
Mais tarde, o caminho que Laban já começara a trilhar, dará
seguimento com a linha da Educação Somática, cabendo aos artistas, o uso da
mesma como referência em seus processos criativos.
O Body-Mind Centering, calcando-se no discurso da unificação,
sugerirá para os artistas, um veículo, um estímulo, uma forma livre de olhar para si,
bastando simplesmente através de seus próprios materiais (o seu próprio
movimento) encontrarem caminhos de liberar a expressividade plena e fluida do
movimento.
Como colocado neste capítulo, as somatizações e incorporações,
impedem o livre fluir do movimento.
Dentro da teoria em Body-Mind Centering, vários são os padrões de
desenvolvimento, iniciando já no útero materno, e “terminando” na fase do
caminhar, são eles: padrões uterinos (que se desenvolvem no útero materno),
simetria “navial” (pontos de consciência como os da estrela do mar), o padrão da
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boca (esse já fora do útero, nos primeiros momentos de nascimento), o padrão pré-
espinhal (buscando o sustentar da coluna), os padrões espinhais (alcançando a
sustentação e travando as zonas como pescoço e lombar, a fim de iniciar os
movimentos de sustentação e troca de pesos que o caminhar exige), Padrão de
empurrar (já buscando ligação com o solo), padrão de puxa e empurrar, padrão
homólogo (já caminhando, membros superiores desenvolvem um movimento e
inferiores outro), padrão homolateral (simetria bilateral, membros esquerdos
desenvolvem um movimento, e membros direitos outro), padrão contralateral
(membros opostos se alinham, direito e esquerdo, o caminhar), padrão espiral,
(consciência de trocas de peso e movimento ordenado).
Esses padrões podem ser revivenciados através de explorações em
cima dos mesmos. Alguns exercícios já utilizados nas Escolas de Body-Mind
Centering podem ajudar a estimular a vivencia dos mesmos, descobrindo como
“uma sessão terapêutica” se há bloqueio nessa área da anatomia. Caso haja, o
trabalho contínuo visará liberar essa tensão, e consequentemente livrar o
movimento e permitir o livre acesso e fluxo da energia por aquele local, alcançando
a expressividade plena daquela região que o movimento passar.
Para o trabalho do ator, o que liberar o fluxo de energia daquela
região do indivíduo, ajudará o ator a encontrar a expressividade daquele
movimento, e assim a fluência daquela região do organismo.
Além da possibilidade do trabalho com os padrões de
desenvolvimento do indivíduo, o Body-Mind Centering faz o trabalho com os
sistemas do corpo, são eles: a pele, o sistema músculo-esquelético, os órgãos, o
sistema nervoso, sistema digestório, sistema respiratório, sistema endócrino,
sistema reprodutor, sistema circulatório, sistema linfático, sistema urinário e sistema
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vocal.
Trabalhando com a consciência voltada para cada um desses
sistemas, é possível chegar à mesma condição, a de desbloquear as células que
estiverem inibidas durante o processo de desenvolvimento.
O trabalho então partiria da visualização da anatomia particular. O
ator se concentraria em algum sistema ou órgão, passando a se movimento focado
no mesmo, buscando as características, a densidade e a forma que o mesmo tem
para influenciar o movimento.
O processo então caberia a dois lados, ao terapêutico e ao de
processo criativo, mesclando-se e acontecendo ao mesmo tempo, não dissociados,
além disso, indivíduo e ator comporiam, como sempre foram, a mesma coisa, a
mesma vida a mesma arte, quebrando de vez a comum frase que rotula “a partir do
momento que entra na sala de ensaio, seus problemas ficam para fora”.
Essas são algumas das vias já trabalhadas pelo Body-Mind
Centering, tanto para processos terapêuticos, quanto para processos artísticos.
Contudo, são várias as formas já trabalhadas, e infinitas as que ainda estão por se
descobrir. Ao afirmar que o Body-Mind Centering é um trabalho empírico, e mais,
um trabalho que cresce com as descobertas de cada pessoa que trabalha com essa
pesquisa, é possível constatar que muitas são e ainda serão os caminhos de se
compreender, afinal, na vida, cada pessoa se descobre de um jeito e por isso,
descobre um mundo a sua maneira.
No último capítulo dessa pesquisa, tentarei expor meus processos
em Body-Mind Centering na construção de uma cena. Como, através desse estudo,
adquiri a consciência de mim, e de meu trabalho, chegando momentaneamente a
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uma pequena parcela dele, uma construção cênica.
Com o título de “Orações”, a prática é um caminho vocacionado
meu para com a arte, numa tentativa de orar todo momento que me movimento, e
todo momento que tomo consciência da partícula cósmica inserida no manto
celeste.
4. ORAÇÕES: UM DISCURSO PESSOAL
Abordar-me como matéria prima da arte é motivo para uma reflexão
sobre o meu discorrer perante a vida. A fim de compreender a fusão da expressão
diária com a expressão no palco, necessito encontrar um canal, um veículo que
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direcione minha expressividade rumo ao espaço cênico, ao movimento cênico, ao
momento expressivo.
Aqui, insiro minha pesquisa em Body-Mind Centering, no instante
em que preciso de um movimento que atualize minhas vivências da vida e as
transportem para a cena de maneira tão expressiva e suficientemente verdadeira
como na vida.
Equivalentes à emoção das ruas, casas, dias felizes e tristes, o meu
movimento cênico carrega, então, todas essas particularidades, da minha fusão do
mundo, do meu embaralhar do mundo, a partir das experiências que eu concateno
para a criação de uma particularidade, de um movimento com tônus, força,
dinâmica, determinados pela minha história de vida.
“Corpespiriente” resume bem a tentativa contemporânea de vida.
Cunhado pela professora Doutora e performer Margarida Vine, esse termo vem
estabelecer o corpo holístico e suas transformações perante a vida, para enfim
expressar-se de acordo com o repertório. Um ser convergido, resultado de uma
vida, de uma individualidade a qual será a mesma transcrita à cena, com todas as
complexidades e diretrizes. (VINE, 2005, p.23)
A partir desse corpo, dessas experiências embutidas, o artista se
faz uno e único em cena, criando de acordo com suas vivências um elo entre si e o
próximo, ou seja, a partir de suas experiências, confronta-as com as experiências
do outro artista ou do público, criando assim os significantes e a decodificação de
sua vida no palco.
Contudo, retomando a questão do Body-Mind Centering e o
movimento expressivo, encontrei por meio desse trabalho um potencializador de
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meus processos criativos. Se para a arte o conhecer-se avança fronteiras de
desvendamentos no palco, o BMC é um ativar do meu processo de conhecer-me,
pelo qual desenvolvo meus conhecimentos sobre mim e consequentemente sobre a
arte.
Olhar-me e enxergar-me através de minha anatomia, bem como
sentir-me, reconhecer o pulsar das artérias, a localização de cada ponto interno, e
com isso descobrir o potencial expressivo ali existente, tornou-se um caminho que
me auxilia no encontro com a expressividade na cena.
Com esse trabalho, exploro questões de tônus, flexibilidade,
equilíbrio, força, por intermédio de meus sistemas anatômicos, percebendo
empiricamente, que os mesmos podem garantir tais padrões de movimento quando
ativados conscientemente.
Por exemplo: ao ativar conscientemente (quando digo ativar
conscientemente estou me referindo a trabalhar com aquele sistema diretamente,
pensar no sistema circulatório é o trazer à consciência e assim trabalha-lo por
visualização, um dos processos em BMC) um sistema como a exemplo do sistema
circulatório, temos as possibilidades de ativar o arterial, e o venoso. Ao pensar no
sangue arterial, e em suas qualidades como cor, textura, caminhos, podemos
encontrar referências que nos ajudem a percebê-los em nós mesmos. Então,
empiricamente e através da improvisação, podemos ampliar os movimentos que o
sangue arterial passa, com exemplo da força da pulsação com a qual ele é
bombeado. Ao ampliar esse movimento, temos um movimento pulsante, que nos
eleva do chão e nos ajuda em saltos, ou então nos ajuda no deslocamento, no
primeiro deslocamento direto no espaço.
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Esse é um exemplo possível de se descobrir com o trabalho em
BMC. Por ser uma busca pessoal, empírica e que se estenderá pela vida toda, o
BMC é um conhecimento sensível sobre si, e particular. Por isso, dependendo das
somatizações de cada pessoa, o sistema soará diferente e consequentemente o
movimento também o será.
“Orações” então, são os meus movimentos com destino a arte, com
destino ,o que para mim seria, a Deus. Elas serão reflexões em movimento, pedidos
em movimento, agradecimentos em movimentos.
Cada sistema então, refletirá o seu desejo de orar a Deus, e assim,
purgará suas mazelas, suas somatizações com o movimento que o mesmo
exprimir.
Assim como a busca da vida pode ser um retorno à sabedoria
primordial, ao momento de plenitude e onipotência, minha busca primordial será o
encontro com a vida-arte, com Deus-arte, não dissociados também, no desvendar
do meu estado uterino, do meu estado de onipotência.
4.1 O Início do meu Discurso
Minhas pesquisas na área de educação somática tiveram inicio em
2005, quando entrei no projeto de Doutoramento da Professora Margarida Morini
Vine. Nele tive contato com diversas áreas e teorias que abordam o movimento
expressivo: Moshe Feldenkrais, Improvisação por Contato, Práticas Meditativas,
Biopsicologia, F.M. Alexander, Rudolf Laban, Dança Vocal, e Body-Mind Centering.
Todas as teorias citadas acima contribuíram para o
desenvolvimento do meu pensamento, que viria a se encontrar com o BMC. A partir
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de então, o trabalho de visualização, “Hands on”, improvisação, sensibilizações,
busca de consciência celular, entre outros exercícios começaram a compor o meu
repertório e o meu pensamento sobre esse processo de estudo.
Em 2007, com a apresentação do trabalho “Somos Todos Anjos
Caídos ou Não”, já havia me envolvido com várias vertentes que contribuem na
pesquisa em Body-Mind Centering, como exemplo, tive contato com o Instituto
Visão Futuro em Porangaba, São Paulo, onde fui beneficiado com uma bolsa
integral para cursar Biopsicologia. Além disso, o contato com outros profissionais
como o bailarino, Jovair Longo, como também com um dos licenciados da escola de
Body-Mind Centering dos Estados Unidos, Mark Taylor, favoreceram o meu
amadurecimento quanto aos conhecimentos necessários para se compreender o
BMC.
Contudo, o contato com a performer e professora Margarida Morini
VIne, foi essencial para me ajudar a compor as informações em um processo
pessoal, me auxiliando no percurso e na compreensão do Discurso da Dissociação
e o da Unificação.
A prática que apresento com esse trabalho, então, molda-se a partir
desses contatos e encontros que tive a felicidade de ter no alongar da minha
graduação. Em quatro anos, pude ter a sensação de ter encontrado um caminho
para o meu movimento.
4.2 Orações: A Prática
Tantos foram os discursos, e este para mim é o encontrado.
Orações foram as maneiras mais condizentes com minha vida para expressar-me
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nesse momento, e gostaria de compartilhar este trabalho e este termo com àqueles
que interessarem-se em se juntar a mim.
Numa tentativa de a todo instante elevar-me, tocar o que para mim
é o divino, Deus, através do movimento, pude identificar esse instante. O instante
em que busco, desejo, agradeço, anseio, contradigo, expresso. Da mesma maneira
que sempre me ajoelhei e rezei, agora escolho outro repertório para me religar, uso
outros movimento, a fim de encontrar o sagrado.
Na busca de um estado expressivo, e deste movimento expressivo,
utilizo minha anatomia e o trabalho com o BMC, sensibilizando-me e buscando
essas orações, em palavras, ruídos, gestos, cores, intenções: movimentos. Tudo
em movimento.
Com o conhecimento do Body-Mind Centering, busco o meu motivo
de expressão, o qual esse trabalho, tenta retratar, principalmente nesse capítulo,
em que minhas indagações, e meus pensamentos estão mais expostos.
Assim, conhecer o trabalho, me inserir nessa pesquisa, e permitir
que ela pulse em mim, foi um caminho de me deparar com minha prática, que assim
como o BMC, representa não só um tema, mas sim uma filosofia, ou o que já
postulei como “o meu motivo de expressão”.
Portanto, durante os processos, quis encontrar esse ponto. Utilizar-
me dos conhecimentos de minha holisticidade e do BMC, para encontrar a
expressividade, e por meio da prática, meu motivo de expressão.
Traduzidos então pelas orações, elevo meus motivos subjetivos.
Todos os meus exercícios foram como já citados, calcados no BMC.
Aqui gostaria de relatar meu momento subjetivo. Escrever apenas o que é possível
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de se escrever, e durante a cena, expressar-me na verdade de minha vida, no
motivo de meu movimento.
4.3 Orações
“Tenho o costume de prestar contas à arte do que sou, afinal, nada
mais encaro de material expressivo do que a mim mesmo. Colocado como matéria
tão sôfrega do horário da criação, introduzo para a arte o meu vocabulário que
necessita ser ampliado para o grande encontro que me fui designado.
Tenho uma dúvida pairada no ar: Qual será esse encontro?
No fim de minhas histórias, reconheço nos momentos de
exploração, que tenho contato com uma parcela de novidades, as quais ressurgem
naquele momento, como fala de outro nível de consciência, senão aquele a que
acostumamo-nos a tratar tão usual.
Num outro nível do pensar, a consciência de minha anatomia
resolve criar gritos, já que não tenho a decência de permitir que tais vozes (que
nada mais são que a minha única voz) emanem para completo entendimento do
que sou.
A calmaria se desfaz, e o momento enérgico do processo criativo
me chama a atenção. Ao adentrar no momento de criação, quando preparado estou
para alterar minha cotidianeidade e encontrar-me com um estado de presença
cênica, ali, tão somente, embrenho até fronteiras antes nunca conhecidas, a fim de
estabelecer contato com minhas zonas mais recônditas. Como por sorte as
encontro, ora como queira, ora como não as quisesse ter visto, sou para a arte um
encontro e reencontro de razões tão esquecíveis por mim mesmo.
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A criação, que Michelangelo descreveu tão bem no encontro das
pontas do homem com as de Deus, me leva ao pensar gênico. Se houver tão
grande contato da divindade com o ser humano, na criação, apontamos o dedo á
Deus, ser grande criador e onipotente sobre a sua.
Assim, o simples momento de criatividade, leva-nos ao escuro
abismo do desconhecido existente dentro de nós, no qual, inseridas as mais
estranhas realidades criadas ao longo da existência, faz brotar a arte.”
“A cada passo, pássaro, passo, pássaro, que pássaro a um passo.
Porque de repente falta chão, e cada passo, pássaro, ai... passo, pássaro. Um dia
pássaro, outro passo, dia pássaro, outro passo, e mais outro, mais e mais. Quando
sem mais nem menos um passo passa; depressa. Pássaro na verdade é cada
passo, por menos passo que passe, um pássaro.
A vida é pequenininha.
Por isso, Deus, me faça assim: que meus passos atinjam mais que
a mim mesmo. A ponta dos meus pés estejam longe, bem longe, e eu não mais as
veja. Assim, estarei eu a ponto de sempre desvendar, mas nunca de saber. Estarei
isento de qualquer maldade, de qualquer malefício.
Pai, eu tenha olhos para olhar por onde ando, e sentidos para saber
realmente. Que não comece a contar do dois, mesmo sabendo dos perigos do
primeiro passo. Pássaro, passo, pássaro. Ele voou.
Na segunda feira tive um sentido vago.
Que eu consiga ter menos sentidos vagos e mais embutidos. Minha
carne seja sólida, e saiba que nela reside a existência. Quando meus olhos se
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fecharem, serei eu perdido num outro devaneio, pois o mundo acabou-se. Fechou-
se, calou-se. Mundo fechado, mundo calado. Calado.
Ontem limpei minha tranqueiras. Os cantos mais escuros deixei
para outros. Deixei para quem realmente fosse tinhoso. Porque eu, não sou assim
não. Eu sou destemido, desencanado.
Tenho em mim uma espécie de sonolento atrito de pedaços. Meus
pedaços ao se atritarem causam o movimento.
Meu Deus, meu movimento é tão simples, sujo quase casado com a
desesperança. Ele não sabe para onde vai, só sabe que vai ao longe, como num
passo gigante. No encontro com dívidas traiçoeiras. Não as pago, pois não tenho
como.
Aonde consigo meu Pai? Aonde? Em que instância posso desistir
disso tudo e re-encenar minhas próprias criações?
Quem disse que seria diferente.
Há tantos por aí.
Eu sou um deles. Um deles que caiu de amor.
Que eu tenha a medida exata de um amor, a distância mais
aparente de duas pessoas, para no final de tudo não ser sozinho.”
“Somos um marcapasso, incutidos no mundo pelas batidas,
pulsações, lampejos. Cada movimento, vivo. Expresso então o sangue, a cor, o
divino.
Que eu tenha sangue o bastante para existir, linfa suficiente para
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amar, células ágeis para movimentarem-se. Para enfim, me reconhecer, no mundo
meu, no sangue meu.
Saber então, que nada mais sou que a versão humilhada dos céus,
pois abaixo dele percebo que o toco com meus olhos, mesmo sabendo que meu
coração nunca deixou de estar lá.
Deitado no mundo, coberto pelas minhas inquietudes, posso eu
entrar e ver que o mundo e eu somos, coração que marca cada passo em direção
ao existir. Poesia.”
“Para habilitar minhas contradições que se respondem em meus
artigos escritos a corpo, me desfaço de plantas sub-humanas que tomam minhas
entranhas; lá elas arregaçam meu verdadeiro momento, o que é verdadeiro entre
gemidos e gritos que dão prazer e selvageria para ser.
Começo a transubstanciar-me em rugidos anti-sonoros, não posso
ser ouvido. Respondo um gemido assim: Ai desfaça! Sou recomeço de mim.
Expresso o sentido exato entre mim e mim de outro. O mim de outro é a parte que
me atraio e que me faço homem. Perante sim, tenho receios de desbravar a não
região incabível de movimentos.
Venham todos os que acreditam em cinética resolução do acaso.
Penso por acaso em variar de vez enquanto minhas sombras. Cubram-se, quero
vergonha, mas aceito, pois preciso. Quero caminhar em outro.aceito, preciso. Vento
que voa que se vai que come, tenho fogo aonde não preciso de nada, ou sim. Sou
certo em pensar em movimentos?
Tenho a contradição de ser para todos os efeitos meu dividendo,
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porque quando sou demais, peco na vertente que me leva. Suspiro, para fins
enérgicos, nessa hora recobro a consciência de que nada sou senão aquele que
age em subjetividades. A escolha do momento nada mais é que expressão exata de
quem eu sou. Não nego, pois caso negue, negarei o que me tornei: um pé calmo.
Chute a reflexão desajeitada. No âmago do tempo, reencontro calma. Enfim, ar.
A oportunidade que retive, em ver sombras, é um pedaço
quebrantado de inérticos vazios. Esqueço de hora, por tempo que sou vivifico. Com
efeito, não sigo a padronização que me dissessem, palavras calam, num próximo
momento de questão oculta. Reconheço a cálida e gélida fronteira, aplainada de
cima a baixo, no volver das colunas que me sustentam. Pego um requinte de
novidade, e re-sonho questões menos valorosas. Eu só queria encontrar
expressões. Manifesto para sempre, o legado de pouco ser, já que muito penso
sobre minha expressão. Ela é mais que simples progresso de minha alma, ela é
complexo progresso de minha alma.
Regressivo progresso?
Expresso na manhã, o que a noite me incumbiu, a fim de quem não
cessasse o ciclo expressivo da vida. Levanto. Num calmo sentido de frente para o
espelho da reconhecida falha. Nada mais do que a ultima me dissesse.
Expresso.
Dois por favor.
É do tamanho que surjo.
Em meio a águas turbulentas, tenho a visão de que ponho no lugar
a coluna do mundo.
Meu coração então pulsa. Ele pulsa do lado esquerdo, mas isso não
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quer dizer que não tenho coração do outro. Coração contou-me outro dia que
reconhecia a bela donzela que não me agradava. E eu, por assim pensar agrado
àqueles que querem por um sequer sentido expressar-se.
E no turbilhão da vida gigante, ela roda. E lá de cima, a vida menina
enxerga o presente futurista que condiz com minhas articulações do passado.
Ganho em dúvidas e perco em certezas.
O que á para mim no dia de amanhã? Senão um pequeno leque de
hojes?
A mão redonda, de pontas afiadas aponta sua ponta para o ponto
culminante da tragédia. No ápice das coisas a vida gigante dá outra volta. Suspiro,
respiro, transpiro. Em ordem contratante.
Vem.”
CONCLUSÃO: Voltando Para Casa
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“A prática do Body-Mind Centering nos permite que gentilmente voltemos para casa, dentro de nossos corpos, e reexperienciemos a harmonia da integração, da sensação, sentimentos, mente e espírito, os quais são nossos por natureza.” (HARTLEY, 1989, p.XXXI)
Voltar para casa. Voltar para a casa depois de um trabalho, depois
de uma festa, depois de um encontro, depois de um exame, depois de um dia
atribulado, depois de um beijo, depois de um soco, depois de um parto, depois de
um cansaço, depois de uma chuva, depois de uma vida. Voltar para o mesmo
estado de onipotência que um dia já sentimos em nossa primeira casa, no útero,
durante o estágio celular.
O estado de ser que uma célula pode experienciar é como um sentimento de descanso, paz, simplicidade. Mas lá também pode ser haver o sentimento de poder, onipotência; a célula original é o centro do universo - e é o próprio universo. (HARLEY,1989, p.14)
No respirar de uma célula, na pulsação da mesma, é ali que se
encontra um estado livre de fluência. Desvendar então a mim mesmo, é isso que
me possibilito com esse trabalho.
Ao saber qual o motivo de meu movimento, descobrir sua
expressão através de sua anatomia, vejo o caminho a percorrer, de minhas
somatizações, de minhas membranas que precisam ser quebradas, retiradas, afim
de que eu flua, e pulse como uma célula, em um estado divino, um estado artístico.
Reconhecer minha criação. E a mim, como uma espécie de Deus,
que olha para ela com respeito.
É hora de assumir-me como holístico, enxergar. Trabalhar
arduamente, e procurar, mesmo que seja por milésimos de segundos, provar dessa
fluência, dessa onipotência, desse Deus. E disso retirar a minha arte.
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E disso retirar a minha arte.
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