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18 TECENDO OS CAMINHOS DA ACESSIBILIDADE NO MArquE: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Flora Bazzo Schmidt MArquE/UFSC Sandra Regina Carrieri de Souza MArquE/UFSC RESUMO O presente artigo constitui-se em relato de ações desenvolvidas pela equipe do Setor Pedagógico do Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral da Universidade Federal de Santa Catarina (MArquE/UFSC), com o objetivo de acolhimento à diversidade de público do Museu na exposição “Rendas de Bilro:Coleção MArquE. O Setor Pedagógico do MArquE tem estruturado projetos junto a grupos, considerando e adequando sua linguagem e sua abordagem de acordo com especificidades dos visitantes, visando tornar o espaço museal um local de acolhimento, pertencimento e construção de conhecimento. Dentro dessa lógica, foi desenvolvido o projeto educativo desta exposição, com o objetivo de comunicar o acervo e o discurso narrativo, tornando-o acessível a vários tipos de público. Palavras-chave: Museu. Educação em Museus. Acessibilidade. Inclusão. Comunicação Museológica. ABSTRACT This article aims to present an overview of the educational propositions developed by the Museum Education team at the Museum of Archeology and Ethnology Professor Oswaldo Rodrigues Cabral of the Federal University of Santa Catarina (MArquE / UFSC), with the purpose of welcoming the diversity of the Museum's public in the exhibition “Rendas de Bilro:Coleção MArquE” (Bobbin Lace: MArquE´s Collection”). The Museum Education team has structured projects with groups, considering and adapting its language and its approach according to the specificities of the visitors. Therewith, the team aims to make the museum a place of welcoming, belonging and knowledge construction. Within this logic, the educational project of this exhibition was developed with the objective of communicating the collection and the narrative discourse, making it accessible to various types of public. Keywords: Museum. Museum Education. Accessibility. Inclusion. Museological Communication. INTRODUÇÃO A acessibilidade aos museus é um tema previsto na legislação vigente no território brasileiro, bem como em normas, declarações, recomendações e tratados internacionais e, mais especificamente, está presente no Estatuto de Museus, Lei no 11.904, de 14 de janeiro de 2009 (BRASIL, 2009), no Art. 35 que apresenta que “os museus caracterizar-se-ão pela acessibilidade universal dos diferentes públicos, na

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TECENDO OS CAMINHOS DA ACESSIBILIDADE NO MArquE: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Flora Bazzo Schmidt – MArquE/UFSC

Sandra Regina Carrieri de Souza – MArquE/UFSC

RESUMO O presente artigo constitui-se em relato de ações desenvolvidas pela equipe do Setor Pedagógico do Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral da Universidade Federal de Santa Catarina (MArquE/UFSC), com o objetivo de acolhimento à diversidade de público do Museu na exposição “Rendas de Bilro:Coleção MArquE”. O Setor Pedagógico do MArquE tem estruturado projetos junto a grupos, considerando e adequando sua linguagem e sua abordagem de acordo com especificidades dos visitantes, visando tornar o espaço museal um local de acolhimento, pertencimento e construção de conhecimento. Dentro dessa lógica, foi desenvolvido o projeto educativo desta exposição, com o objetivo de comunicar o acervo e o discurso narrativo, tornando-o acessível a vários tipos de público. Palavras-chave: Museu. Educação em Museus. Acessibilidade. Inclusão. Comunicação Museológica. ABSTRACT This article aims to present an overview of the educational propositions developed by the Museum Education team at the Museum of Archeology and Ethnology Professor Oswaldo Rodrigues Cabral of the Federal University of Santa Catarina (MArquE / UFSC), with the purpose of welcoming the diversity of the Museum's public in the exhibition “Rendas de Bilro:Coleção MArquE” (Bobbin Lace: MArquE´s Collection”). The Museum Education team has structured projects with groups, considering and adapting its language and its approach according to the specificities of the visitors. Therewith, the team aims to make the museum a place of welcoming, belonging and knowledge construction. Within this logic, the educational project of this exhibition was developed with the objective of communicating the collection and the narrative discourse, making it accessible to various types of public. Keywords: Museum. Museum Education. Accessibility. Inclusion. Museological Communication.

INTRODUÇÃO

A acessibilidade aos museus é um tema previsto na legislação vigente no

território brasileiro, bem como em normas, declarações, recomendações e tratados

internacionais e, mais especificamente, está presente no Estatuto de Museus, Lei no

11.904, de 14 de janeiro de 2009 (BRASIL, 2009), no Art. 35 que apresenta que “os

museus caracterizar-se-ão pela acessibilidade universal dos diferentes públicos, na

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forma da legislação vigente”, garantindo, por meio de ações de comunicação e

programas de exposições, a promoção do acesso aos bens culturais.

No senso comum, a acessibilidade é associada apenas aos aspectos

referentes ao uso dos espaços físicos, entretanto, numa compreensão mais ampla, o

conceito de acessibilidade está intimamente ligado à questão dos direitos humanos

e não pode estar dissociado do conceito de inclusão social. Sendo assim, para que

se promova acessibilidade, é necessário que se identifique e se elimine os diversos

tipos de barreiras que possam se constituir como entraves para que as pessoas

realizem suas atividades e funções e exerçam sua cidadania, em qualquer ambiente,

em condições similares aos demais indivíduos.

No que se refere às pessoas com deficiência, de acordo com a Lei N° 13.146,

de 6 de julho de 2015, por barreiras entende-se:

IV - barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros (...) (BRASIL, 2015, n.p.)

Já no que se refere à realidade do cotidiano de um espaço museal, pode-se

pensar em diversos níveis ou possibilidades de acesso, entre os quais se destacam:

1. Acessibilidade aos códigos culturais; 2. Acessibilidade aos meios de produção cultural; 3. Acessibilidade física; 4. Acessibilidade sensorial; 5. Acessibilidade cognitiva e informacional; e 6. Acessibilidade econômica e social (IBRAM, 2012, p. 7)

A democratização do acesso aos bens culturais não é um tema novo, porém, no

cotidiano dos museus, frequentemente não se aborda adequadamente questões

como formação e acolhimento de novos públicos, conforto ambiental e eliminação de

barreiras comunicacionais.

Reforçando essa percepção, Néstor García Canclini coloca:

Os bens reunidos por cada sociedade na história não pertencem realmente a todos, ainda que formalmente pareçam ser de todos e estar disponíveis ao uso de todos. (CANCLINI, 2004, p. 96)

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Ciente de que, embora garantido legalmente, o acesso aos bens culturais não

ocorre espontaneamente, mas depende de ações que transformem esse direito em

prática social, a equipe do Setor Pedagógico do Museu de Arqueologia e Etnologia

Professor Oswaldo Rodrigues Cabral – MArquE vem concentrando esforços para a

estruturação de projetos que objetivam comunicar o acervo e tornar o discurso

expositivo acessível a vários tipos de público. Nesse sentido, o Setor Pedagógico do

MArquE tem atuado junto a grupos, considerando e adequando sua linguagem e sua

abordagem de acordo com especificidades dos visitantes, visando tornar o espaço

museal um local de acolhimento, pertencimento e construção de conhecimento para

todos.

MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA PROFESSOR OSWALDO

RODRIGUES CABRAL

O Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral –

MArquE é uma instituição museal da Universidade Federal de Santa Catarina –

UFSC. Em seu plano museológico, finalizado no ano de 2016, a equipe do museu

estabeleceu como sua missão:

Atuar em favor da preservação, pesquisa, comunicação e valorização do patrimônio arqueológico e etnológico brasileiro, com foco no litoral catarinense, promovendo o amplo acesso e difusão dos conhecimentos gerados na Universidade Federal de Santa Catarina. (UFSC, 2016, p. 12)

O MArquE tem abraçado projetos que não se limitam ao trabalho expográfico

ou a projetos de duração limitada, sinalizando a abertura do Museu para práticas

contemporâneas, interculturais e interdisciplinares (UFSC, 2016). Dentre essas

práticas, merece destaque a atuação do Setor Pedagógico no sentido de adequar

linguagem, elaborar recursos complementares e propor estratégias que cumpram o

papel de potencializar a comunicação do acervo, formando e acolhendo novos

públicos que passam a se sentir pertencentes a este espaço cultural.

O acervo do MArquE conta com coleções diversas, relacionadas ao seu

âmbito de atuação, qual seja, a arqueologia e a etnologia. Dentre elas, pode-se citar

duas coleções de Rendas de Bilro, nomeadas em homenagem a seus respectivos

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colecionadores: Doralécio Soares e Oswaldo Rodrigues Cabral. Somam 400 peças

de Rendas de diferentes técnicas, tamanhos e motivos, colecionadas a partir do ano

de 1967(GHIZONI e LOPES, 2017).

EXPOSIÇÃO RENDA DE BILROS: COLEÇÃO MARQUE

A exposição de curta duração Rendas de Bilro: Coleção MArquE, com

curadoria de Lucas Figueiredo Lopes e Vanilde Rohling Ghizoni, apresentou um

recorte destas duas coleções. Localizada na sala de exposições de curta duração do

Pavilhão de Exposições Antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, seu período de

abertura compreendeu os meses de maio, junho e julho de 2017. De acordo com os

curadores, a seleção, composta por rendas de variados pontos e formas, traz em si

a criatividade e a habilidade das rendeiras (GHIZONI e LOPES, 2017).

Imagem 1: Exemplares de Rendas de Bilro da Coleção Oswaldo Rodrigues Cabral que fazem parte do acervo exposto. Fonte: Acervo MArquE

As Rendas são resultado do ato de trançar e entremear fios têxteis presos a

pequenas hastes de madeira torneada, a que chamamos bilro. Tal trabalho é feito

sobre um pique, molde da renda em papel, preso a um rebolo, almofada cilíndrica de

pano grosso. É o movimento dos bilros que trança e entremeia os fios - sendo

assim, os pontos são produzidos no ar, diferenciando a renda do bordado (Ibid.).

A exposição foi composta por um texto de abertura, um glossário, três vitrines

com rendas e materiais para sua execução, e 16 molduras com rendas. O texto de

abertura destacou diferentes pontos de vista acerca das Rendas de Bilro, que se

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entrelaçam na compreensão desta “arte do fazer” (Ibid.): herança trazida dos Açores

pelas famílias que povoaram Florianópolis e passada de mãe para filha; arte;

atividade exclusivamente feminina; complemento da economia familiar; resistência à

modernização dos processos de tecelagem; representação da cultura material da

Ilha de Santa Catarina.

A expografia da exposição levou em conta, para além do tratamento das

rendas como objetos artísticos, a acessibilidade física do espaço, conforme previsto

no Plano Museológico da instituição:

(...) a acessibilidade física deve ser uma preocupação constante nas ações-fim do museu, notadamente nas exposições. É imprescindível que a expografia leve em conta a literatura que indica fatores como: a distância entre objetos para a livre circulação de pessoas cadeirantes, usuárias de bengalas ou andadores, etc.; as características dos textos no que se refere ao contraste de cores, a características e tamanhos adequados de fontes; a altura dos objetos e expositores; dentre outros aspectos. (UFSC, 2016, p. 41).

Figura 2: Visão geral da exposição “Rendas de Bilro: Coleção MArquE”. Fonte: Amanda Antunes Bueno – Coordenadoria de Acessibilidade Educacional – UFSC

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SETOR PEDAGÓGICO/MArquE

O Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral

tem uma histórica relação educativa com seus públicos, o que fica explícito em

relatos e registros institucionais (SCHMIDT, 2015). No ano de 2012, tal relação

ganha novos contornos a partir da abertura de um novo espaço expositivo, o

Pavilhão de Exposições Antropólogo Silvio Coelho dos Santos, além da contratação

de uma pedagoga para compor a equipe e do início da estruturação do Setor

Pedagógico. Hoje, o setor faz parte da estrutura do MArquE e conta com duas

pedagogas lotadas.

Importante ressaltar a compreensão de que o Museu é, por si só e como um

todo, um espaço educativo, por ser um espaço no qual as relações travadas (com

sujeitos, objetos e espaços) comunicam discursos e estabelecem noções de

pertencimento e/ou exclusão. Nas palavras de Carmen Lidón Bektran Mir, “os

espaços de contato (exposições, edifícios, serviços, sinalização) são espaços de

comunicação que veiculam discursos” (MIR, 2009, p. 125). Espaços que, portanto,

educam.

A estruturação do setor pedagógico é percebida, nesse sentido, como uma

ferramenta para potencializar o caráter educativo do Museu, pela realização de

opções teóricas claras e proposições intencionais nelas embasadas, buscando dar

um sentido sistemático, inclusivo e coerente à relação educativa com os públicos.

Nesse sentido, Sander afirma:

(...) a ação educativa dos museus ocorre constantemente em todos os setores da instituição, visto que todo o trabalho museológico é educativo. Por outro lado, o surgimento de um núcleo educativo dentro do museu consolida um perfil pedagógico dos mesmos e, desse modo, estabelece uma relação mais próxima com a educação (2006, p. 43).

Assim como Martha Marandino, compreendemos assim que “os setores

educativos dos museus devem não só planejar bem suas práticas, mas concebê-las

a partir de opções educacionais claras” (MARANDINO, 2009, p. 34). Importante

ressaltar, portanto, a opção pelo Sociointeracionismo como vertente teórica

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educacional a ser adotada no desenvolvimento das ações elaboradas e efetivadas

pelo Setor.

Destacamos a seguir algumas diretrizes decorrentes das opções teóricas do

setor pedagógico do MArquE:

a) O reconhecimento de que os visitantes são sujeitos sociais que trazem

consigo pré-concepções e se encontram em um estágio de desenvolvimento

real que deve ser reconhecido e respeitado, não em um sentido de nos

atermos a ele, mas de buscar proporcionar a cada um “apoios e recursos, de

modo que ele seja capaz de aplicar um nível de conhecimento mais elevado

do que lhe seria possível sem ajuda” (FINO, 2001, p. 279).

b) A compreensão de que a mediação é fonte impulsionadora do

desenvolvimento, compreensão esta que decorre da concepção de que o

aprendizado se efetiva primeiramente numa esfera interpsíquica, ou seja, por

meio das trocas e interações entre sujeitos.

As representações da realidade e a linguagem são sistemas simbólicos que fazem a mediação do homem com o mundo. É o próprio grupo cultural quem fornece as representações e o sistema simbólico, pois, ao interagir como outro, o indivíduo vai interiorizando as formas culturalmente construídas, as mesmas que possibilitam as relações sociais (ROMERO, 2015, s/ pag.).

c) O reconhecimento da especificidade do lócus em que a mediação ocorre.

Se a linguagem é compreendida como primordial no processo de mediação,

esta não pode se sobrepor ao que é específico do espaço museal, ou seja: o

enfrentamento dos objetos, a contemplação destes, a vivência deste espaço

que tem uma expografia para comunicar um discurso, com suas cores, sua

dimensão espacial, seus cheiros, sons e múltiplas possibilidades de

construções de sentido.

d) A defesa da indivisibilidade entre afetivo e cognitivo. É fundamental que

todas as proposições sejam planejadas e efetivadas visando a constituição de

momentos significativos que ampliem a noção de pertencimento dos visitantes

ao espaço museal e constituam momentos de envolvimento afetivo com o

espaço do Museu.

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e) O entendimento de que a o acesso igualitário aos museus constitui

prerrogativa básica para a democratização da cultura e deve garantir um

direito conquistado por meio de convenções internacionais, normas e

decretos. Acessibilidade envolve “o TER ACESSO, o PERCORRER, o VER, o

OUVIR, o TOCAR e o SENTIR os bens culturais produzidos pela sociedade

através dos tempos e disponibilizados para toda a comunidade” (IBRAM,

2012, p.22, grifos no original).

Acessibilidade é aqui entendida num sentido lato. Começa nos aspectos físicos e arquitetônicos, mas vai muito além, uma vez que toca outras componentes determinantes, que concernem aspectos intelectuais e emocionais: acessibilidade da informação e do acervo. Uma boa acessibilidade do espaço não é suficiente. É indispensável criar condições para compreender e usufruir os objetos expostos num ambiente favorável. Para, além disso, acessibilidade diz respeito a cada um de nós, com todas as riquezas e limitações que a diversidade humana contém e que nos caracterizam, temporária ou permanentemente, em diferentes fases da vida. (Instituto Português de Museus, 2004, p.17)

Tendo em vista as diretrizes supracitadas, o Setor Pedagógico do MArquE

vem buscando contribuir com as ações dos diferentes setores do Museu, assim

como fazer proposições próprias, para que os visitantes sejam acolhidos em um

espaço acessível a eles, nos aspectos comunicacional, físico e educacional, visando

retirar obstáculos e tornar o espaço museal um local de acolhimento, pertencimento

e construção de conhecimento. Nesse sentido foram planejadas as ações junto à

exposição “Rendas de Bilro: Coleção MArquE”.

AÇÕES JUNTO À EXPOSIÇÃO “Rendas de Bilro: Coleção MArquE”

Conforme supracitado, a exposição “Rendas de Bilro: Coleção MArquE” foi

concebida levando em conta premissas da acessibilidade física, com a retirada de

obstáculos e o planejamento para uma boa circulação e visualização de pessoas

com diferentes tipologias de deficiência. Apresentou-se instigante, porém, o desafio

de buscar tornar a exposição também minimamente acessível para o público cego.

Nesse sentido, dois recursos de acessibilidade foram pensados para compor o

espaço expositivo: textos em Braille e protótipos táteis de rendas.

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Os protótipos táteis foram realizados em papel, tendo em vista a

bidimensionalidade do acervo exposto e a disponibilidade de uma impressora de

corte tipo Silhouette Portrait para elaborar o recurso. A ideia do protótipo tátil em

papel foi inspirada no Trabalho de Conclusão de Curso da hoje museóloga Janaína

Vigano, intitulado “Sinta(-se) à vontade: acessibilidade e inclusão em espaços

culturais através de protótipos táteis” (VIGANO, 2015). Inicialmente foram pensadas

em legendas táteis para as rendas, que seriam disponibilizadas ao lado das obras,

juntamente com legenda em Braille. Porém, ao realizarmos testes deste formato

ficou claro que o relevo não seria suficiente para uma percepção adequada dos

detalhes das rendas, uma vez que a máquina de corte trabalha com um limite de

espessura, e que a posição não seria a mais adequada para o manuseio neste caso

específico. Nesse sentido, optou-se por fazer o recorte à máquina de seis

exemplares de rendas da exposição e disponibilizá-las sobre um expositor para

permitir sua livre manipulação.

Imagem 3: expositor com protótipos em papel. Fonte: Acervo Setor Pedagógico/MArquE

As rendas foram selecionadas principalmente em razão de seu tamanho, uma

vez que a máquina de corte disponível para a elaboração do recurso tem como

dimensão máxima de recorte o tamanho de uma folha A4 (297 x 210 mm). Também

buscou-se cortar rendas com maior prevalência dos pontos trança e perna cheia

(INSTARTE, 2015), pois os testes mostraram que os pontos mais fechados, como o

ponto pano ou paninho (Ibid.), por seu grau de detalhamento, apresentava

dificuldade ao corte e também à percepção no toque.

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Ainda como recursos de acessibilidade comunicacional, para pessoas cegas

ou com baixa visão, foram disponibilizados o texto de abertura e o glossário em

Braille, disposto sobre um totem localizado próximo à entrada da exposição, ao lado

do texto impresso.

Outro recurso de acessibilidade comunicacional foi a Contação de Histórias

“Maria Rendeira”, livre adaptação do conto “A rendeira da Ilha de Santa Catarina e a

Virgem”, registrada por Franklin Joaquim Cascaes. Este recurso foi pensado para

tornar acessível o conteúdo teórico/textual da exposição para públicos infantis e

outras públicos que se relacionam melhor com informações orais e lúdicas.

O conto de Cascaes foi apresentado ao Setor Pedagógico pela atriz Andréa

Rihl quando da mesa-redonda “Outras Histórias em Cascaes”, ocorrida no MArquE

no contexto da 15ª Semana de Museus, em 2017. Tal compartilhar suscitou a

pesquisa no acervo para encontrar o registro original de Franklin Cascaes, que faz

parte da Coleção Profª Elizabeth Pavan Cascaes, composta por manuscritos,

desenhos e esculturas do artista.

O conto narra a história de Maria Tibúrcia, uma rendeira da Ilha de Santa

Catarina. A rendeira recebeu uma encomenda vultosa de renda e a aceitou para

ajudar o marido, que trabalhava na pesca artesanal, a sustentar a casa. Assim,

somou um intensivo trabalho na renda ao seu trabalho doméstico. Nas palavras de

Cascaes,

Para dar conta da encomenda e cumprir a sua palavra de honra, ela passou a trabalhar em excesso e ficou fisicamente muito debilitada. Fazia serão até de madrugada. Não se lembrava nunca nem de tomar um gole de café corrido, quanto mais outro alimento. (CASCAES, s/d, n.p.)

Sua fraqueza a fez adormecer e sonhar. Em sonho, fora ao porto de pesca

procurar por seu marido, preocupada que estava com ele, mas em seu lugar

encontrou uma senhora caminhando sobre as águas – a Virgem Maria – que após

ouvir Maria Tibúrcia disse-lhe que o marido já estava perto de chegar, e que os

metros de renda que faltavam para completar a encomenda estavam prontos.

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A partir da leitura do conto original, optou-se por realizar uma livre adaptação

deste para as contações. As alterações feitas no texto podem ser definidas em

quatro eixos:

a) a inclusão de parte introdutória, de autoria própria, apresentando a origem

de Maria Tibúrcia e de sua arte: vinda criança dos Açores, aprendeu a fazer

renda com a mãe. Esta parte permitiu apresentar de forma lúdica conteúdos

como: a colonização açoriana e as dificuldades encontradas pelas famílias em

seu local de origem e durante a viagem (FLORES, 2000), aspectos culturais e

materiais da execução da Renda de Bilros (GHIZONI e LOPES, 2017)

b) a retirada da menção específica à Virgem Maria, referência cristã, por se

considerar o Museu como espaço público e laico que deve acolher e respeitar

a pluralidade de crenças e religiões dos públicos visitantes. A aparição é

chamada na história de “criatura fantástica”, e a ela foram atribuídas

diferentes leituras pelos visitantes, de sua identidade original a Iemanjá, de

acordo com as referências de cada grupo, tendo todas sido acolhidas como

possibilidades;

c) a inserção da referência a outras tradições de origem açoriana, ampliando

o repertório dos visitantes pelo contato com o Pão-por-Deus e a Ratoeira;

d) a inclusão de elementos cênicos e musicais, ampliando as linguagens de

forma a constituir uma relação mais sinestésica dos visitantes com o conteúdo

da história.

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Imagem 4: grupo assiste à contação de Histórias “Maria Rendeira”. Fonte: Acervo Setor Pedagógico/MArquE

CONCLUSÃO

Diante destas ações propostas e vivenciadas na prática, é possível concluir,

conforme afirmam Duarte e Cohen (2007), que a acessibilidade pode constituir-

se porta de entrada para a equiparação de oportunidades, inclusive a de

participação nas atividades culturais, para todas as pessoas, não tendo seu foco

direcionado a apenas determinado grupo. Ficou evidenciado para a equipe o quanto

recursos de acessibilidade beneficiam a relação do Museu com os seus públicos de

maneira geral, ainda que tenham sido elaboradas com um público-alvo específico.

Como exemplo, pode-se citar o recurso dos protótipos de renda feitos em

papel, pois foi grande o interesse do público vidente de várias faixas etárias e de

diversos níveis de escolaridade por esse recurso. Frente a este indicativo, em todas

as mediações efetuadas foram apresentados os recursos de acessibilidade, de

forma contextualizada, convidando os visitantes a experimentar vivenciar outros

sentidos para além da visão. Percebeu-se o envolvimento dos visitantes com os

recursos, e espera-se que isto tenha possibilitado sensibilizá-los para um olhar mais

inclusivo.

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Imagem 5 – Criança da Educação Infantil manipula de olhos fechados um protótipo de papel,

observada por seus colegas, suas professoras e a mediadora, dentro da Exposição. Fonte: acervo Setor Pedagógico/MArquE.

Esse resultado é bastante significativo, pois demonstra que os objetivos

almejados - comunicar o acervo, retirar obstáculos e ampliar o acesso para

tipologias específicas de visitantes - foram ampliados, abrangendo também a

questão da diversidade e a equiparação de oportunidades.

Muito há a ser constituído no sentido de proporcionar maior acessibilidade

física, comunicacional e educacional nos espaços museais. Inúmeros são os

desafios colocados pela variedade de necessidades apresentadas pelas diferentes

tipologias de público. O projeto efetivado na exposição “Rendas de Bilro: Coleção

MArquE” buscou responder a alguns destes desafios, dentro das condições

concretas do trabalho cotidiano no Setor Pedagógico do MArquE. A experiência

aponta algumas possibilidades de ação e, mais do que isso, a riqueza e a

potencialidade de um trabalho voltado para tornar as ações de comunicação

museológica mais acolhedoras e inclusivas.

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Flora Bazzo Schmidt É pedagoga formada pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2010). É servidora da UFSC, no cargo de Pedagoga. Lotada no Museu de Arqueologia e Etnologia Prof. Oswaldo Rodrigues Cabral, é uma das responsáveis pelos projetos de educação museal junto aos públicos, atuando principalmente nos seguintes temas: educação da infância, formação de professores, contação de histórias e brincadeiras cantadas. Sandra Regina Carrieri de Souza Possui graduação em PEDAGOGIA pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), pós-graduação em educação e práticas pedagógicas inclusivas e título de mestre em administração universitária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Os principais estudos concentram-se nas políticas públicas e institucionais de inclusão educacional. Atualmente atua como pedagoga no MArquE/UFSC.