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TECNOLOGIAS DO IMAGINÁRIO E CIBERCULTURA Coordenação: Prof. Dr. André Pase ([email protected]) Mesa 1 - TRANSFORMAÇÕES NO JORNALISMO Coordenação: Karen Sica Introdução à rastreabilidade e ao engajamento nos cibermeios Lucas Santiago Arraes Reino 1 Resumo: O presente artigo reúne informações a respeito do ciberjornalismo e suas características: interatividade, hipertextualidade, personalização, memória, multimidialidade e instantaneidade. Em seguida inclui a rastreabilidade entre elas e discute como essa capacidade de mensurar a performance pode ser realizada, trazendo o conceito de engajamento e das novas formas de consumo midiático. Palavras-chave: Engajamento, Ciberjornalismo; Rastreabilidade Introdução Desde o começo da existência humana, para viver em comunidade e sobreviver às adversidades era preciso relacionar-se melhor, por isso a comunicação sempre esteve no topo das prioridades humanas. Isso está tão internalizado que se pode ver em cada novo rebento que chega a uma família, depois de dar os primeiros passos, ou mesmo até antes deles, são esperadas e incentivadas as primeiras palavras, até porque só os gestos, choros e sorrisos não permitem aos bebês, conseguirem o que desejam, para serem compreendidos eles precisam ter sua comunicação melhorada. Assim como com os pequenos infantes, a comunicação entre os seres-humanos precisa ser desenvolvida constantemente, se nos primeiros momentos da história ela era feita de forma mais básica e objetivando a sobrevivência, sendo através de rugidos, gestos entre outras formas menos complexas, quase como grandes bebês, ela ganhou palavras e outros recursos, e o desenvolvimento dessa comunicação caminhou junto com a própria evolução humana. Innis (1951) desenvolveu em seu livro O Viés da Comunicação, teoria a respeito da grande influência da comunicação sobre a civilização ocidental, através de pesquisas históricas ele traçou uma linha do tempo das transformações realizadas e suas implicações, como a comunicação desenvolveu-se, as sociedades e podemos hoje analisar com essa linha de raciocínio o jornalismo. Cada período histórico, cada civilização, para Innis (1951), possuía uma comunicação que trabalhava pela construção de seu próprio monopólio conhecimento, ou oligopólio, até que uma perturbação desse equilíbrio surgia. O monopólio acaba sendo uma forma de equilíbrio porque o caminho natural do conhecimento é que os que mais tem, acabam sendo os que mais recebem, e os que menos possuem, acabam não recebendo também. 1 Professor do Curso de Comunicação Social Jornalismo da UFMA de Imperatriz (MA) e doutorando em Comunicação pela PUCRS

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TECNOLOGIAS DO IMAGINÁRIO E CIBERCULTURA Coordenação: Prof. Dr. André Pase ([email protected])

Mesa 1 - TRANSFORMAÇÕES NO JORNALISMO

Coordenação: Karen Sica

Introdução à rastreabilidade e ao engajamento nos cibermeios

Lucas Santiago Arraes Reino1

Resumo: O presente artigo reúne informações a respeito do ciberjornalismo e suas

características: interatividade, hipertextualidade, personalização, memória,

multimidialidade e instantaneidade. Em seguida inclui a rastreabilidade entre elas e discute

como essa capacidade de mensurar a performance pode ser realizada, trazendo o conceito

de engajamento e das novas formas de consumo midiático.

Palavras-chave: Engajamento, Ciberjornalismo; Rastreabilidade

Introdução

Desde o começo da existência humana, para viver em comunidade e sobreviver às

adversidades era preciso relacionar-se melhor, por isso a comunicação sempre esteve no

topo das prioridades humanas. Isso está tão internalizado que se pode ver em cada novo

rebento que chega a uma família, depois de dar os primeiros passos, ou mesmo até antes

deles, são esperadas e incentivadas as primeiras palavras, até porque só os gestos, choros e

sorrisos não permitem aos bebês, conseguirem o que desejam, para serem compreendidos

eles precisam ter sua comunicação melhorada.

Assim como com os pequenos infantes, a comunicação entre os seres-humanos precisa ser

desenvolvida constantemente, se nos primeiros momentos da história ela era feita de forma

mais básica e objetivando a sobrevivência, sendo através de rugidos, gestos entre outras

formas menos complexas, quase como grandes bebês, ela ganhou palavras e outros

recursos, e o desenvolvimento dessa comunicação caminhou junto com a própria evolução

humana.

Innis (1951) desenvolveu em seu livro O Viés da Comunicação, teoria a respeito da grande

influência da comunicação sobre a civilização ocidental, através de pesquisas históricas

ele traçou uma linha do tempo das transformações realizadas e suas implicações, como a

comunicação desenvolveu-se, as sociedades e podemos hoje analisar com essa linha de

raciocínio o jornalismo.

Cada período histórico, cada civilização, para Innis (1951), possuía uma comunicação que

trabalhava pela construção de seu próprio monopólio conhecimento, ou oligopólio, até que

uma perturbação desse equilíbrio surgia. O monopólio acaba sendo uma forma de

equilíbrio porque o caminho natural do conhecimento é que os que mais tem, acabam

sendo os que mais recebem, e os que menos possuem, acabam não recebendo também.

1 Professor do Curso de Comunicação Social – Jornalismo da UFMA de Imperatriz (MA) e doutorando em

Comunicação pela PUCRS

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Na separação proposta por Innis (1951), a argila, o estilete e a escrita cuneiforme do

começo da civilização na Mesopotâmia é o ponto inicial. É possível ver o prosseguimento

do surgimento e adoção dessas tecnologias de comunicação e suas transformações

chegando até o rádio a TV e à Internet. A cada nova ferramenta de comunicação novas

formas de comunicar surgiam junto, novas formas de relação e outras transformações

sociais aconteciam a reboque.

Com a chegada da Internet e sua comercialização um novo meio de produzir e consumir

notícias surgiu. Nomeado como jornalismo on-line, jornalismo digital, webjornalismo,

ciberjornalismo ou outros nomes menos populares, ele rapidamente ganhou a atenção das

pessoas, sendo hoje uma das principais fontes de informação dos brasileiros e,

provavelmente, de diversos outros povos.

Segundo pesquisa da Target Group Index (2014), que teve parceria do Ibobe no Brasil e

foi publicada em abril de 2014, 47% dos brasileiros usam a Rede Mundial de

Computadores como primeira fonte de informação, sendo a média mundial de 45%.

Foram mais de 200 mil pessoas entrevistadas em 70 países por quatro continentes. Entre

outros dados sobre os brasileiros, também sabe-se que a média de tempo conectado por dia

é de 3h39min, 10 minutos a mais do que se gasta com TV.

Atravessando fases iniciais, após a chegada da internet comercialmente no Brasil em 1995,

com um primeiro momento de transposição de conteúdo, de um meio para outro, passando

por diversas mudanças. Silva Júnior (2005, p.65) classifica o jornalismo na Internet em

três fases: a primeira é a transpositiva, quando os jornais transportavam para a Internet o

conteúdo impresso, sem alterá-lo; a segunda fase, chamada de perceptiva, quando os

veículos de comunicação percebem as novas possibilidades de uso da tecnologia,

oferecendo suporte a vídeo, áudio, hiperlinks, conteúdo exclusivo e outros, iniciando a

produção de um conteúdo exclusivo para os jornais on-line; e a terceira fase, chamada

hipermidiática, que privilegia o desenvolvimento de “conteúdo exclusivo para a Internet,

aproveitando-se das novas velocidades de conexão, ferramentas de interação e publicação

entre outras inovações que agregaram ao suporte tecnológico da produção para web”

(CANAVILHAS, 2001, p.66).

O que se pode entender, tentando formar um conceito que diferencie os modelos de

ciberjornalismo é que o primeiro está preso à fase transpositiva dos conteúdos, enquanto o

terceiro seria uma tendência natural da apropriação do espaço, com um formato exclusivo

para a Rede, seria um “produto de uma preocupação jornalística específica para a Internet

e suas particularidades” (GALARÇA, 2004, p.67).

Atualmente novas discussões sobre as fases do ciberjornalismo surgem, Barbosa (2013),

defende que já vivemos uma quinta fase, mas ainda assim as diversas características

próprias que fazem desse meio um tipo já amadurecido de jornalismo são vistas como as

mesmas, sem novas adições, o que soa estranho se refletirmos o quanto mundo nesses

cerca de 20 anos de jornalismo na Internet no Brasil.

Apesar dessas mudanças, boa parte do que o ciberjornalismo, termo que será adotado neste

artigo pela conexão da palavra e do conceito com o ciberespaço, é hoje já podia ser

vislumbrado no começo das pesquisas na área que identificaram as características e

estabeleceram o que hoje temos como base do que é o jornalismo feito para o ciberespaço.

Características do Ciberjornalismo

Schwingel (2008) realizou um extenso levantamento sobre os termos mais adotados e

quais pesquisadores preferiam um em contrapartida de outros. Apesar de já haver um

tempo já transcorrido de jornalismo na Internet, ainda é possível encontrar todos os

termos, e outros como jornalismo hipermidiático ou jornalismo eletrônico, sendo

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utilizados por autores que são referência na área, portanto é preciso fazer uma definição de

qual terminologia usar e sua defesa.

On-line refere-se à condição de estar conectado à Internet, representaria a ligação entre o

jornalismo e a publicação na internet, apesar de aparentemente correto, o termo é limitado,

já que não representa a grandeza do meio, mas trata como apenas um adicional, como uma

transposição do jornalismo que é feita ao se conectar.

Webjornalismo seria uma junção de jornalismo com o termo World Wide Web, assim

como é feito com a televisão, telejornalismo, com o rádio, radiojornalismo. O problema é

que a Web é um pedaço do todo que é a realidade do jornalismo nesse meio, ela é uma

representação visual através de uma linguagem para navegadores, mas e as outras formas

que vem ganhando espaço para o jornalismo, como os aplicativos para celulares, estes

ficariam de fora, receberiam outra terminologia ou tornariam o termo incompleto, o que

não seria positivo.

Jornalismo digital seria uma ampliação da abrangência, mas feita em excesso. Isso porque

o digital abarca quase todas as áreas do jornalismo hoje, então o termo serviria para tratar

das tecnologias digitais na diagramação, na produção de vídeos ou mesmo na transmissão

de rádio, não servindo para o escopo deste trabalho. O digital é o oposto do analógico, tem

sua ligação com a tecnologia usada pelo jornalismo, mas é muito mais amplo.

Ciberjornalismo é o termo mais adequado para o trabalho porque ele é o resultado da

mesma reflexão que criou os termos provenientes de cibernética, como cibernação e,

especialmente, ciberespaço. Sendo assim, o ciberjornalismo é o jornalismo produzido,

publicado ou consumido no ciberespaço? Ou todas as opções anteriores em conjunto? Se a

relação está vinculada à produção então todas formas de jornalismo são ciber atualmente,

já que é improvável encontrar redações que não tenham acesso à Internet.

Restando a veiculação e o consumo, ficam ambos como condição para ser ciberjornalismo.

Se um conteúdo é feito para jornal impresso, mas uma cópia é publicada na Internet, isso

não a torna ciberjornalismo, também pode-se dizer de uma notícia é publicada em um site

e depois é impressa em papel e lida fora do ambiente digital. Em ambas as situações as

possibilidades de uso das características da Internet são excluídas e deixam, portanto, de

ser ciberjornalismo.

Para ser ciberjornalismo é necessário ser publicado e consumido no ciberespaço, outras

opções tornam-se híbridas. No decorrer dos anos de sua existência, diversos autores

tentaram identificar as características do ciberjornalismo e discutir como eles são

utilizados.

O ciberjornalismo possui diferenças em relação às outras mídias. Bardoel e Deuze (2001)

são os primeiros a sistematizar as características diferenciadoras do ciberjornalismo, os

autores citam a interatividade, hipertextualidade, multimidialidade e personalização de

conteúdo como características desse jornalismo. Palacios (2003) adicionou a memória, ou

perenidade, e a instantaneidade, ou atualização contínua, assim como Rocha (2000) e

Mielniczuk (2001) acompanharam sua interpretação dessas características.

Em livro organizado por Canavilhas (2014) uma nova característica é adicionada a lista, a

ubiquidade, definida como a condição de estar presente em todos os lugares, uma

consequência das novas tecnologias que foram popularizadas mais recentemente, como os

telefones celulares inteligentes, os tablets e a conexão de banda larga para esse tipo de

aparelho.

Schwingel (2008) aponta outras duas características que podem ser adicionadas a essa

delimitação, a flexibilização dos limites de tempo e espaço como fator de produção e a

utilização de ferramentas automatizadas no processo de produção, ambas relacionadas a

investigação da autora a respeito de sistemas de publicação para o meio.

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Para uma análise mais aprofundada, cada uma das características será destrinchada a

seguir.

Rocha (2000) afirma que a instantaneidade é a capacidade de transmitir, instantaneamente,

um fato. As publicações em rede podem acontecer em tempo real e se aproximam da

velocidade do radiojornalismo, a mais instantânea das três mídias tradicionais, seguido por

TV e jornal. É muito rápido fácil e barato inserir ou modificar notícias na web. Não é

necessário conhecimento em linguagens de computador, pois são usados sistemas de

atualização com interface amigável e outras tecnologias que diminuem a necessidade de

um conhecimento aprofundado para inserção de informações.

A instantaneidade vem sendo uma das marcas mais impactantes nos outros meios. Os

ciberjornais furam, como é dito no jargão jornalístico, os outros meios, não esperando a

hora de ir para o ar o programa de TV ou rádio para noticiar, ou mesmo o dia seguinte

para imprimir o jornal. O instantâneo na Internet é concomitante, pode realizar

simultaneamente vários instantâneos, múltiplas coberturas, é a multiplicação do jornalismo

em tempo real, já que ao mesmo tempo o real é representado em seus diversos novos fatos.

Perenidade também é conhecida como arquivamento ou memória. O arquivamento das

informações em formato digital é simples e de alta capacidade. Além disso, a cada dia os

níveis de armazenamento aumentam, enquanto o tamanho dos dispositivos de memória,

como os discos rígidos diminuem de tamanho. Por outro lado, ela pode ser transferida e

copiada mais facilmente, a um baixo custo relativo. Palacios (1999 apud Mielniczuk 2001)

aponta para o fato do acúmulo das informações ser mais viável técnica e economicamente

do que em outras mídias. Sendo assim, o volume de informação diretamente disponível ao

usuário é consideravelmente maior no webjornalismo, seja em relação ao tamanho da

notícia ou à disponibilização imediata de informações anteriores. Desta forma, surge a

possibilidade de acessar com maior facilidade material antigo. Rocha (2000) lembra que a

informação digitalizada tem mais facilidades para a recuperação: “é possível guardar-se

grande quantidade de informação em pouco espaço, e essa informação pode ser recuperada

rapidamente com busca rápida full text” (ROCHA, 2000).

A recuperação dessa informação armazenada vem mudando a realidade dor jornais nos

meios digitais, eles perceberam que a conexão dos fatos novos com notícias do passado

podem gerar mais leitura, o tempo navegando pelo site aumenta. Ao rastrear o percurso de

entrada dos leitores nos ciberjornais é possível perceber que nem todos entram pela capa

do site, pela porta de entrada comum, muitos vêm a partir de buscas sobre assuntos

diversos, procurando a partir de palavras-chave em ferramentas de pesquisa como o

Google, chegando em matérias de outros dias, a memória é o passado das notícias, mas

sempre renovada agora no ciberjornal.

Também merece ser ressaltado que matérias antigas são recuperadas constantemente para

a capa dos jornais, iniciativas como a do Blue Bus, noticiário online sobre comunicação,

que publica diariamente uma chamada para algum texto divulgado anteriormente, com a

etiqueta Old but gold (antigo mas de ouro, em tradução do inglês), ou da Folha de S.

Paulo, que em sua capa coloca o que acontecia no mesmo dia e fora noticiado anos atrás,

são exemplos de como a memória não é apenas uma biblioteca acessada por poucos

leitores.

Interatividade no webjornalismo acontece quando o usuário da informação jornalística se

considera parte do processo de publicação (BARDOEL e DEUZE, 2001). Rocha (2000)

descreve que as mídias tradicionais sempre tiveram algum tipo de interação, como nas

seções de cartas de jornais e TVs e nos telefonemas para programas de rádio. Mas é no

webjornalismo que a interação atinge seu ponto máximo, já que o leitor pode escolher

vários caminhos para ler notícias, comentar e ver seus comentários publicados e à

disposição de outros leitores entre outras opções. Diante de um computador conectado à

Internet, acessando um webjornal, o usuário estabelece relações com a máquina, com a

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própria publicação, através do hipertexto e com outras pessoas - seja autor ou outros

leitores (MIELNICZUK, 2001).

No estágio atual da Internet no Brasil é possível ver como a interatividade cresceu com o

desenvolvimento e popularização dos sites de redes sociais, como o Orkut, primeiramente,

e o Twitter e Facebook em seguida, nos quais muitos dos conteúdos publicados pelos

usuários é originado de jornais e revistas na Internet, além dos próprios veículos

incentivarem o compartilhamento do conteúdo e usares as redes para gerenciar os

comentários nas notícias publicadas em seus portais.

Multimediação, multimidialidade ou convergência de mídias ocorre na web, pois é

possível unir texto, imagem, som e vídeo. Rocha (2000) afirma que em breve, se poderá

usar cheiro, pois já existem pesquisas com transmissão de informações olfativas.

Mielniczuk (2001) resume que “no contexto do webjornalismo, multimidialidade, trata-se

da convergência dos formatos das mídias tradicionais (imagem, texto e som) na narração

do fato jornalístico”.

Com diversos sites permitido que todas as pessoas publiquem vídeos (Youtube, Vimeo

etc), áudios (Goear, Soundcloud etc.), aléms das já conhecidas plataformas de texto, ficou

muito mais simples ser multimídia, mas poucas são as iniciativas que fazem a

convergência, que fazem com que um vídeo complemente um texto, no geral o que ainda

se vê, como no G1, um dos maiores sites de notícia do Brasil, é uma mídia repetindo a

outra.

Bardoel e Deuze (2000 apud MIELNICZUK, 2001) chamam a atenção para a

hipertextualidade pela possibilidade de, a partir do texto noticioso, apontar para outros

textos como originais de releases, outros sites relacionados ao assunto, material de arquivo

dos jornais, textos que possam levantar os prós e os contras do assunto em questão, função

que em outras mídias ficava a cargo somente de jornalistas.

Ser hipertextual é não ficar preso a um consumo linear, no qual uma página segue outra,

no ciberjornalismo os leitores fazer sua linearidade, definem seu trajeto de leitura, nem

sempre de uma matéria de esportes para outra, ou a dissecação de toda uma editoria antes

de ir para a próxima. Ser hipertextual é permitir a liberdade de interação com o conteúdo,

é o que permite o primeiro passo de saída da passividade do internauta.

Rocha (2000) afirma que usar hiperlinks é o mesmo que navegar na Internet. O uso de

hiperlinks em conteúdo multimídia (áudio, vídeo, fotos, animações) é chamado de

hipermídia. Mídias tradicionais também usam hiperlinks, como o sistema de sumário e

número de páginas de livros, os sistemas de organização da Bíblia, as chamadas de capa

de jornais.

A personalização de conteúdo, também denominada de individualização, é a adaptação de

um produto aos desejos ou preferências do usuário do site. O Google Notícias, site da

gigante de buscas na Internet, permite ao leitor determinar que notícias ele quer que

apareçam no site, a quantidade listada na página principal e até a cor do website em

questão. “Como toda a informação está sendo tratada por computadores, é rápido colher

informações sobre usuários/leitores e oferecer a mídia que mais interessa a eles. Esta

personalização de conteúdo pode se realizar de diversas maneiras” (ROCHA 2000). Assim

como a forma, o conteúdo deve ser pensado para o leitor, podendo ser o principal atrativo

de um site.

Outros exemplos de personalização estão mais destacados hoje em dia com o uso

do RSS (formato coringa de distribuição de conteúdo) e de aparelhos móveis como

smartphones e tablets, que possuem ferramentas próprias de leitura, coletando o conteúdo

dos sites de notícia e re-empacotando de acordo com a personalização desejada pelo leitor.

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Rastreabilidade como Característica do Ciberjornalismo

Quando uma pessoa acessa um site de notícias ela não está apenas consumindo

informações, lendo notícias ou acessando um espaço onde ela pode interagir comentando

suas ideias sobre temas atuais, mesmo sem nem sempre entender do que está falando

(BUENO; REINO, 2013). Ela está também oferecendo aos administradores do site

informações diversas sobre seu equipamento, seu tipo de conexão, hábitos de navegação,

sites acessados, localização entre outras. Sem nem sempre saber, estamos sendo estudados

pelos sites que navegamos.

Ferramentas como o Google Analytics (GA), o Piwik, o Parse.ly, o KISSMetrics, o Clicky

entre outras, permitem que um pequeno arquivo seja carregado junto com o restante do

site e que essas informações sejam coletadas e apresentadas aos administradores, elas

podem ser agrupadas de diversas formas e permitem que os jornais, ou qualquer outro site,

tenha comportamentos personalizados para cada usuário ou mesmo que haja uma

compreensão maior sobre quem é o leitor do veículo, algo muito mais avançado que as

pesquisas de opinião feitas para conhecer o público de TVs, impressos ou programas de

rádio.

Essas ferramentas de rastreamento de acesso permitem saber qual é a palavra-chave que

levou o leitor a acessar o site. Isso oferece a compreensão para preparar o site para ter

mais audiência, usando técnicas de SEO (Search Engine Optimization, a otimização para

sites de busca, em inglês), que seria otimizar, no jargão técnico, o jornal para ser mais

encontrado pelos que buscam notícias do que seus concorrentes.

Entender esse público e seu comportamento não é pouco importante, sites como o

Imperatriz Notícias, jornal laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal do

Maranhão, por exemplo, tem nos sites de busca mais de 79% das fontes de visitas feitas ao

jornal. Rastrear o leitor é essencial para a sobrevivência, ou autossuficiência, da

publicação, usando ferramentas como o GA ou outras já citadas.

Mas existem outras formas de rastrear que focam na forma que os olhos navegam pelas

páginas, a questão da usabilidade. Assim como em jornais impressos onde são discutidas

as páginas mais valiosas para o leitor, onde a página três seria a mais nobre, e os olhos

correriam de uma forma determinada, destacando lugares em detrimento de outros,

segundo pesquisas, os sites podem rastrear a leitura das notícias em tempo real e em cada

página ou a cada mudança da capa.

Em 2011, pesquisa apresentada no Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos

Interdisciplinares da Comunicação) da região Nordeste, Bueno e Reino (2011)

demonstraram que é possível entender como os leitores leem os jornais e como isso pode

impactar na forma e no conteúdo de cada publicação.

Ao usar uma ferramenta chamada ClickTale, os pesquisadores conseguiram informações

sobre quais eram as áreas do site que recebia mais atenção dos leitores, quais matérias

foram lidas por completo, onde o mouse passeava ou repousou e até que trechos das

notícias recebiam mais atenção do que os outros, tudo através de um pequeno (menos de

10kb) software que fazia esse rastreamento e compilava os dados coletados.

São dois exemplos de ferramentas que permitem rastrear o leitor, quando falamos de

interatividade destaca-se muito mais a participação ativa do internauta, mas é possível

também identificar que a interação entre leitor e jornal está muito mais profunda e

complexa com a coleta daqueles dados que são repassados passivamente por quem acessa

a publicação digital.

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Quantidade x Qualidade

O rastreamento permite uma contabilização das informações, com bancos de dados mais

acessíveis e maleáveis, essas informações quantificadas permitem uma enorme gama de

análises, como demonstrado anteriormente. Porém, como em uma clippagem de jornais, a

quantidade não é o suficiente para compreender o que é coletado, é preciso debruçar-se

sobre eles e analisar o que foi retirado.

Algumas métricas já existem há algum tempo e tentam traduzir os números, como as

métricas de televisores ligados em um determinado canal, utilizado pelo Ibope brasileiro

ou o Nielsen nos Estados Unidos. Mesmo falho, esse é um sistema que acabou tornando-se

o padrão da indústria e que tem muitas travas impedindo de mudar.

As redes de TV e anunciantes compram as classificações de um único

fornecedor credenciado com um interesse de longa data em agradar a ambos, O

sistema de classificações resultante tem uma inércia que se torna difícil para

novos concorrentes e que impede mudanças significativas nos métodos de

medição. O sistema de classificações é configurado para fornecer uma moeda

consistente, ou seja, um sistema de avaliação de valor, para a condução de

acordos de negócios, e não prioritariamente para fornecer uma contabilidade

precisa de todos que assistem à TV. (JENKINS, GREEN, FORD, 2014, p.156)

Portanto, além de ser uma métrica direcionada para quem gerencia o negócio do ponto de

vista econômico, também é falho a contabilizar por amostragem uma parcela que não

representa o todo. Por exemplo, no Brasil apenas aparelhos de pessoas que moram na

região da Grande São Paulo, Grande Rio de Janeiro, Grande Belo Horizonte, Grande

Curitiba, Grande Porto Alegre, Grande Florianópolis, Campinas, Grande Vitória, Grande

Goiânia, Grande Salvador, Grande Recife, Grande Fortaleza, Grande Belém e Distrito

Federal (IBOPE, 2015) são mensurados, uma parte do país acaba decidindo para todo o

resto o que é que deve ser mantido na programação da TV aberta.

Para dificultar ainda mais a medição de TVs, hoje é possível assistir a programação

através de computadores, celulares, há aparelhos de som de automóveis que trazem TV

neles e nem todos os conteúdos consumidos são adiquiridos por uma distribuição oficial,

downloads de filmes e músicas já não são mais os únicos na lista de descarga de arquivos,

há novelas, programas de TV e tudo mais que antes era consumido massivamente e através

de apenas um meio, espalhado por dispositivos.

Analisando as mudanças na produção e consumo de mídia, partindo dessa análise sore os

problemas com mensuração nas TVs americanas, Jenkins, Green e Ford (2014) começam

a discutir novas formas de medir, não só qualitativamente, essa relação entre o consumidor

e o produto, utilizando o termo engajamento. Os modelos baseados em engajamento veem a audiência como uma cooperativa

de agentes ativos cujo trabalho pode gerar formas alternativas de valor de

marcado. Essa abordagem privilegia os públicos dispostos a buscar conteúdo

através de vários canais, visto que os espectadores acessam os programas de

televisão em seus próprios horários (..) Tais modelos valorizam a propagação

dos textos de mídia, uma vez que as audiências engajadas são mais propensas a

recomendar, discutir, pesquisar, repassar e até gerar material novo em resposta.

(JENKINS, GREEN, FORD, 2014, p.156)

Com as mudanças na forma de consumir produtos midiáticos as formas de medir devem

acompanhar as mudanças. Os ciberjornais não podem mais ficar apenas nas visitas,

páginas vistas e taxas de rejeição, é preciso medir o engajamento e ele vai além das

quantidades individuais, ele é quantitativo, qualitativo e interligado.

Considerações parciais

Um ciberjornal deve apreciar mais um leitor que acessa várias matérias publicadas em seu

site ou que ele acesse esporadicamente e comente em todas as visitas? Será que acessar o

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jornal a partir de redes sociais e comentar por lá as notícias é mais vantajoso para o

veículo ou pior? Qual é o engajamento ideal para que o veículo de comunicação seja

relevante para o seu público-alvo? É preciso criar novas metodologias que enquadrem esse

novo perfil de consumo e integre esses diversos meios.

A rastreabilidade é uma característica evidente e que abre as portas para novas

possibilidades de compreensão da audiência, mas sozinha ela é só um conjunto de técnicas

de coleta de números que não podem ser usados de forma benéfica e consciente.

Não é possível definir apenas neste artigo o que deve ser feito, mas algumas questões já

podem ser colocadas: É preciso ser qualitativo já que cada veículo de determinados

públicos, determinadas redes sociais sendo utilizadas entre outras diversas características

que o tornam único. Não é possível esperar que um modelo fechado possa definir

exatamente o que é engajamento para toda diversidade midiática existente.

Outro ponto que é relevante para o prosseguimento dessa reflexão posterior é que o

engajamento possui escalas, que não há uma linha vermelha delimitando a passagem para

o público comum tornar-se engajado, então é preciso entender que há uma série de passos

a serem feitos e que uns deixam mais próximo e outros mais distante do maior

engajamento.

Também é preciso manter em mente que nem tudo é rastreável, quantificável e que a

complexidade das relações humanas nunca poderá ser completamente colocada em

números absolutos, portanto é preciso abrir espaço para o desconhecido ou

incomensurável e isso não é ruim. A dúvida sobre o quanto essa avaliação deve sempre

existir no trabalho de pesquisa científica.

Há três aspectos que devem ser colocados sempre em perspectiva dentro da análise a ser

feita, há os atores envolvidos na comunicação, há os objetos que interferem e alteram esse

processo e há o lugar pelo qual comunica-se e cria-se conexões. O lugar é o meio, mas

também é o ambiente do qual se fala e do qual se recebe o que é dito. Se alguém diz algo

(ator) utilizando recursos tecnológicos como um celular (objeto) isso é dito dentro de um

meio (blog/internet) e todos esses pontos interferem.

Muitos outros pontos podem surgir dessa análise e é preciso mais tempo e dedicação para

debruçar-se por todo o tema. Fórmulas fáceis para entender o engajamento estão

disponíveis, mas o resultado ainda está longe de ser o suficiente para quem busca respostas

convincentes. É no ciberjornalismo, por sua característica de rastreabilidade, que é

possível caminhar mais rapidamente nessa seara.

Novas pesquisas devem seguir a partir daqui, talvez estudando a interconexão entre

páginas de jornais e redes sociais, talvez definindo conceitos teóricos dessa escala de

engajamento ou mesmo refazendo os passos aqui feitos e buscando outros caminhos para

alcançar uma compreensão maior, o que em nada depreciaria o que aqui foi feito já que o

objetivo científico fica acima dos egos e desejos pessoais.

Referências

Bardoel, Jo, Deuze, Mark,. Network Journalism: Converging Competences of Media

Professionals and Professionalism. (2001) In: Australian Journalism Review 23 (2),

pp.91-103.

BUENO, Thaísa; REINO, Lucas Análise de usabilidade do webjornal Imperatriz

Notícias. Intercom Nordeste - Maceió, 2011. Disponível em:

<http://intercom.org.br/papers/regionais/nordeste2011/resumos/R28-0515-1.pdf>.

________Comentários em notícias expõe o analfabetismo funcional da população

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Porto Alegre “padrão-FIFA”: vamos

sonhar juntos? 2

Andressa dos Santos Pesce3

RESUMO

O artigo discute a noção de tecnologias do imaginário, sendo interesse central a

compreensão das técnicas jornalísticas utilizadas na construção de imaginários.

Primeiramente, apresentaremos a noção de imaginário, para então passarmos à discussão

do que consistem as tecnologias do imaginário, utilizadas no discurso jornalístico. A

abordagem ainda realiza um diálogo dos efeitos dos megaeventos esportivos na

transformação de cidades. Em uma breve aproximação empírica, o enfoque é Porto

Alegre, sede da Copa do Mundo de 2014, sonhada pela mídia a partir de suas

transformações para o Mundial.

PALAVRAS-CHAVE: Tecnologias do imaginário; imaginário; jornalismo; Porto Alegre.

Introdução

Os projetos para Porto Alegre, em época de Copa do Mundo, despertaram o

fascínio por mudanças, nítido a cada leitura de reportagem na mídia local. Os meios de

comunicação contribuíram para fazer emergir uma cidade idealizada. Cimentaram sonhos

de novas avenidas, arenas, sistemas de transporte. As cidades que se lançam a sediar

megaeventos esportivos ganharam visibilidade midiática. A cobertura jornalística sobre a

Copa em Porto Alegre (ou a Porto Alegre da Copa) explorou diferentes facetas da cidade,

seus habitantes, sua cultura. Essa exposição potencializa sua utilização na construção de

um imaginário de uma capital que ascendeu a uma condição totalmente diferente. Em

meio à poeira dos escombros e ao tique-taque do relógio, que mostrava o atraso das obras,

a mídia local também sonhou (fez sonhar?) com a Porto Alegre “padrão-FIFA” de

qualidade.

Estudar o imaginário e de que forma as tecnologias do imaginário contribuem para

sua constituição nos permite chegar à compreensão da participação da mídia nesse

processo, a partir da espetacularização do real (SILVA, 2003). Discutir se as obras foram

concluídas vai além de nossa tarefa. Vale, sim, notar a presença de sonhos e utopias que

constituíram a base do discurso jornalístico sobre estes mesmos legados. A ideia é

perceber de que forma as promessas para a cidade foram exploradas no jornalismo e

2Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Tecnologias do Imaginário e Cibercultura no XIII Seminário

Internacional da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). 3Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade dos Meios de Comunicação

Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail:

[email protected].

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constituíram, de certa forma, a base de uma argumentação sobre realizações futuras.

Algumas obras, de fato, não passaram de promessas que foram o motor de uma nova

cidade idealizada pela mídia. Entretanto, o que nos interessa é levantar as pistas de que,

através do discurso jornalístico, emergiu o desejo de que os projetos para a Copa e para a

cidade ganhassem vida, saíssem do papel.

Os megaeventos esportivos, de forma geral, adquirem tal importância que são

incluídos no planejamento estratégico4 das cidades. A ideia de promover a reestruturação

urbana para a Copa ou Olimpíadas torna-se um dos fascínios que promove a disputa para a

obtenção do direito de sediar. Da Costa (2008) observa que os megaeventos, no Brasil, são

marcas que pontuam a narrativa da cidade e o desenvolvimento do país. Para centros

urbanos menos desenvolvidos, a Copa se torna então uma oportunidade única de

transformar o espaço através da mobilização de esforços e recursos que não seriam

disponibilizados ou que demandariam um período muito longo para se concretizarem.

O Brasil tem algumas experiências em megaeventos esportivos e a maioria delas

ocorreu no Rio. Em 2007, a capital do Rio recebeu os Jogos Pan e Para-americanos. No

mesmo ano do Pan, o Brasil garantia a realização da Copa do Mundo de 2014. Esse

megaevento tinha sido sediado em 1950 no Brasil. A questão da falta de estádios que

atendessem aos pré-requisitos quase emperrou a candidatura. Em julho de 2007, ao

entregar sua proposta à FIFA, o Brasil garantia que 18 cidades estavam aptas a sediar

jogos. Em 30 de outubro do mesmo ano, saiu o anúncio oficial em Zurique, na Suíça. Em

relação às Olimpíadas, a situação é inédita: em 2009, o Rio foi escolhido como a primeira

cidade brasileira sede das Olimpíadas, em 2016.

O megaevento contemporâneo se tornou a medida e o padrão de um tipo de

transformação fundamental para acirrar a competição entre as cidades que buscam o status

de “globais”. Isso ajuda a explicar a disputa entre metrópoles mundiais para sediá-los.

Apesar disso, cabe considerar que a realização dessas competições continua a reproduzir o

favorecimento de poucos e a criação de novas desigualdades no espaço urbano. Ao

privilegiar construções de alto investimento, as cidades que sediam estão abertas à uma

configuração capitalista de seus espaços. Barcelona, sede olímpica em 1992 na Espanha,

serviu de modelo e inspiração para essa padronização urbana, principalmente para cidades

ocidentais. É um modelo a ser seguido - e um dos mais bem sucedidos (DA COSTA,

2008).

4 Na definição de Carvalho (2000), o planejamento estratégico consiste na identificação de uma crise na

centralidade econômica da cidade; na necessidade de torná-la competitiva aos investimentos estrangeiros;

em uma ação que venda a imagem da cidade para o mundo, a partir da descoberta de algo que possa se

constituir em sua marca de identidade.

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A cidade sediou os JO antes de passar por um forte momento de

desindustrialização que atingiu a economia. A indicação como sede foi precedida pela

criação de um plano de desenvolvimento urbano. Como resultado, notou-se o aumento na

construção de escritórios e também no preço inflacionado de imóveis, além da criação de

20 mil postos de trabalho permanentes ou empregos “não-olímpicos” na economia. Depois

da experiência de Barcelona, a disputa aumentou significativamente, refletindo a

importância e o crescimento das Olimpíadas como um megaevento global. A competição

para sediar os JO de 1992 envolveu mais de 20 cidades, aumentou para 40 em 2004 e, em

2008, mais de 50 entraram na disputa (DA COSTA, 2008). Na avaliação de Da Costa

(2008), esse aumento do interesse é também reflexo da queda na ajuda governamental aos

planejadores do espaço urbano a partir da década de 90.

A mídia atualmente desempenha um papel central na realização de um

megaevento. Horne (2006) destaca que a promoção dos megaeventos esportivos

(Olimpíadas e Copa do Mundo de Futebol, especialmente) depende do Estado e da mídia.

O Estado constrói o que é e o que não é legítimo na prática esportiva e, ao fazê-lo,

determina os interesses do consumidor esportivo, além de viabilizar parcerias entre

autoridades locais, voluntários e organizações comerciais. A mídia, para Horne (2006),

também é essencial, pois sem sua participação, os megaeventos não chamariam a atenção

do público e o patrocínio de empresas. É neste sentido que Pierre Bourdieu (1997) fala da

planetarização dos Jogos Olímpicos, a partir de sua íntima relação e dependência da mídia.

O sociólogo afirma que as Olimpíadas atendem à indústria do entretenimento e dos meios

de comunicação que, por sua vez, transformam a natureza, a proporção e o interesse do

público nos megaeventos.

Os aspectos ligados à comunicação, como direitos de televisão, publicidade e

licença de patrocínio, estão se tornando cada vez mais fontes de financiamento do esporte,

especialmente dos megaeventos (TAVARES E DA COSTA, 1999). O aumento nos gastos

com direitos de transmissão exclusivos ilustra a importância desta etapa de negociação

entre as organizações midiáticas. No caso das Olimpíadas, os direitos de transmissão para

televisão5 correspondem a cerca de um terço da renda total com o evento, seguidos de

renda com patrocínio, bilheteria e merchandising (HORNE, 2006). Já na Copa do Mundo,

a audiência cresceu em 2014, segundo a entidade que organiza o evento, mostrando que a

transmissão é bastante rentável - pelo menos para a FIFA TV.

Segundo dados publicados no site da federação, a Copa de 2014 na FIFA TV bateu

recordes de audiência. Nos Estados Unidos, por exemplo, o evento foi considerado um

5A estreia da transmissão dos JO ao vivo pela televisão ocorreu em 1960 durante as Olimpíadas de Roma,

quando telespectadores de 19 países europeus assistiram às provas.

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“divisor de águas” para o futebol. Segundo a federação, a audiência durante a Copa bateu

os índices de dois campeões de público televisivo no país norte-americano: os

campeonatos de basquete da National Bastketball Association (NBA) em 2014 e de

beisebol da World Series em 2013. Ainda de acordo com os números oficiais da FIFA, a

Copa no Brasil registrou as maiores audiências de TV de todos os tempos na Alemanha,

Holanda e Bélgica. A final de 2014 entre Alemanha e Argentina atraiu a maior audiência

na história da TV alemã, com uma média de 34,7 milhões assistindo pela ARD

(Agrupamento das Emissoras Regionais de Rádio e Televisão Alemãs).

A quantidade cada vez maior de pessoas que acompanham pela mídia as

competições esportivas também leva à uma maior projeção das cidades-sede. A cobertura

jornalística explora diferentes facetas das cidades, seus habitantes, sua cultura. Essa

exposição, em nível regional, nacional e global, potencializa sua utilização na construção

da imagem das cidades. Há uma geração de capital simbólico, capaz potencialmente de

auferir rendas e de obter vantagem no cenário competitivo urbano (HARVEY, 2006). A

circulação global (de pessoas, de mercadorias, de informações) implica em uma

ressignificação das cidades no interior do sistema produtivo internacional, que viram

produto de consumo, cuja imagem pode ser vendida internacionalmente. Campanhas de

marketing de divulgação das sedes e uma cobertura jornalística positiva sobre a cidade são

oportunidades para transformar a ideia que se tem de um local.

Durante os anos de preparação, o Mundial revelava desejos por cidades que

receberiam atletas, turistas e negócios. Os espaços urbanos precisavam parecer atrativos

aos novos visitantes e investidores em potencial. A capital do Rio Grande do Sul, Porto

Alegre, foi escolhida em maio de 2009 como uma das sedes do Mundial, além de ter sido

cotada como sede da Copa das Confederações de 2013, também organizada pela FIFA6. A

possibilidade de realização desses eventos impôs mudanças físicas na capital, mas também

operou na dimensão simbólica, enquanto oportunidade de uma nova representação da

cidade. A cobertura jornalística local priorizou assuntos como o andamento e a construção

de obras, que se tornaram um acontecimento jornalístico de grande relevância. Vários

projetos voltaram ao debate público – alguns novos, outros, bem conhecidos.

Os sonhos da Porto Alegre “padrão-FIFA”

O metrô, o estádio Beira-Rio e a revitalização da Orla do Guaíba foram algumas

das obras detalhadas, analisadas, projetadas e sonhadas pelas lentes da mídia. Muitas

6O evento ocorreu um ano antes da Copa do Mundo de Futebol e é considerado um preparativo para os

países que recebem o Mundial. Seis capitais brasileiras sediaram a Copa das Confederações: Rio de Janeiro,

Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador, Recife e Brasília. A falta de garantias de que o Beira-Rio estaria pronto

até junho de 2013 foi a justificativa da FIFA para que Porto Alegre fosse excluída dessa lista.

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vezes, a insistência em determinadas obras parece redimensionar sua importância. É como

se elas já estivessem ali, em pleno funcionamento, incorporadas ao cotidiano, como uma

peça real (e fundamental) do cenário urbano. Que motor é esse que turbina, dá vida, ao

real? O imaginário, responde Silva (2010). Na condição de pesquisador, nossa tarefa é

justamente revelar as estratégias de comunicação que recobrem o real de camadas de

imaginário.

Para Silva (2003), o imaginário é uma construção histórica. O principal desafio do

pesquisador que se lança ao estudo de imaginários é justamente mostrar a presença do

concreto no imaginário, e do imaginário no concreto, revelando a naturalização da cultura.

O autor observa que as sociedades produzem representações e passam a acreditar nelas

como se fossem naturais. Se o imaginário é uma máquina que turbina e colore o real,

notamos que a realidade das obras em Porto Alegre tornava-se por vezes fantástica,

desejável, mágica, temida, quando representada pela mídia. A vida comum, naturalizada

nos meios de comunicação, ganha uma nova abordagem através da dimensão da

espetacularização do real. Notícia vira espetáculo. De que forma isso é possível? Através

das tecnologias do imaginário.

Utilizando conceitos já formulados por Maffesoli e Debord, Silva afirma que as

tecnologias do imaginário “estabelecem ‘laço social’ (Maffesoli) e impõem-se como o

principal mecanismo de produção simbólica da ‘sociedade do espetáculo’ (Debord)”

(2003, p.21). O autor destaca que as tecnologias do imaginário disseminam imaginários e

são típicas da “sociedade do espetáculo”, baseada no apelo pela sedução e pela emoção.

Silva (2003) esclarece que a mídia (compreendida enquanto informação, arte e

entretenimento) reúne todas as características das tecnologias do imaginário. O autor

chama a atenção para a mudança na relação entre emissores e receptores, hoje baseada na

interação, na adesão e no transitório. No lugar da manipulação, a sedução; em vez de

persuasão, a construção de imaginários: “a submissão voluntária (adesão), subjugação

consentida (audiência), dominação suave, limpa e regulada (consumo), conivência política

e legítima (democracia formal)” (SILVA, 2003, p.71).

A mídia tem a intenção de nos fazer acreditar que o que escreve é verdade; o

leitor/telespectador/ouvinte/usuário tem que acreditar na notícia. Para isso, conforme já

destacado, representa a realidade, mas uma realidade particular. Silva (2003) explora as

questões que envolvem o uso da técnica jornalística, ao abordar as noções de exatidão e de

verdade no jornalismo. E ressalta: o jornalismo nunca alcançará a verdade, somente a

exatidão; não produz verdade, utiliza técnicas:

[...] a verdade que se enuncia, o que sobrevém, o que emerge, é o fato de que a

técnica jornalística espetaculariza o acontecimento, levando ao não-

acontecimento. O jornalismo espetacular forja o seu destinatário, cria o seu

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receptor e programa o seu jornalista. Instala-se, de ponta a ponta, um imaginário

(SILVA, 2003, p.105).

Esse efeito de espetacularização resulta dos processos de construção da notícia,

reconstrução do acontecimento e dramatização. A formatação do acontecimento modifica

a percepção do destinatário. É como se sua “bacia semântica” fosse irrigada, passando a

influenciar no seu imaginário. Conforme explica Silva (2003), o termo “bacia semântica”,

empregado por Durand, significa um “canal de irrigação do real pela imaginação”. Desta

forma, Silva (2003) compreende as tecnologias do imaginário como dispositivos de

alimentação dessas bacias. Assim, as tecnologias do imaginário contribuem para a

produção de mitos e também ditam visões de mundo e estilos de vida. Na medida em que

todo imaginário é uma narrativa, essas tecnologias podem ser chamadas de “fábricas de

mitologias” (SILVA, 2003).

É aqui que nosso objeto de pesquisa, a cidade de Porto Alegre, entra em cena

novamente. O que a mídia fabricou a respeito dessa cidade, quais utopias foram

disseminadas, que tipo de sentimento ficou evidente quando se abordou as transformações

da cidade rumo à Copa? É pertinente ressaltar que alguns ícones, obras, que marcaram o

período de chegada do Mundial não ficaram prontos a tempo; outros, nem saíram do

papel. No entanto, essas obras contribuem para essa multiplicidade de representações de

Porto Alegre. Além disso, os planos existiram na dimensão simbólica e imaginária,

mobilizaram desejos, provocaram euforia nas manchetes de jornal. Vivemos um período

importante de alterações do traçado urbano da capital gaúcha: a Porto Alegre da Copa do

Mundo. A partir dessas mudanças, foi latente a expectativa de que uma cidade

ressignificada estava emergindo no imaginário. Cabe indagar como a mídia representou

essa cidade que se transformava física e simbolicamente - afinal, estava prestes a se tornar

uma cidade “padrão-FIFA”.

Uma nova Porto Alegre se desenhava no horizonte de 2014: uma cidade de novas

ruas, avenidas, meios de locomoção, estádios. Os contornos desse “desenho” foram

estabelecidos também, através de palavras e imagens, pelo discurso jornalístico. Para

representar esse novo lugar os meios de comunicação usaram o artifício da aceleração do

tempo, que permitia ver (em imagens, fotos) ou imaginar (pela descrição do texto) os

projetos já concluídos. Assim, as tecnologias midiáticas possibilitaram que tais obras

fossem vistas por todos os ângulos, ainda que algumas nem tenham iniciado. Neste cenário

de renovação urbana, o estádio Beira-Rio, a orla do Guaíba e o metrô foram alguns dos

símbolos que representaram essa nova cidade.

O imaginário do medo, da preocupação e da polêmica marcou a cobertura

jornalística das obras, especialmente na abordagem sobre os estádios. O estádio oficial da

federação em Porto Alegre foi o Beira-Rio, do Sport Club Internacional. A reforma iniciou

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oficialmente em julho de 2010 e terminou com as proximidades do primeiro jogo da Copa

na cidade, em 15 de junho. A obra estava orçada em R$ 330 milhões, em um contrato

privado de responsabilidade do Internacional, segundo informa a Matriz de

Responsabilidades. A reforma, que visava se adequar às exigências da FIFA, incluiu novas

arquibancadas, cobertura, camarote, setores de imprensa e de hospitalidade, duas mil

vagas de estacionamento e construção de edifício garagem com mais três mil vagas. A

estimativa era de uma capacidade de atender 62 mil torcedores. No entanto, o projeto

intitulado Gigante para Sempre não abrange somente a modernização do estádio, de

acordo com informações da Secopa:

[...] o projeto do Sport Club Internacional é ainda mais ambicioso, prevendo a

revitalização urbana de toda a área onde está localizado, com a construção de

um centro de convenções, um hotel cinco estrelas, um centro de medicina

esportiva, prédios comerciais, uma delegacia do turista, além da recuperação de

parte da orla do Guaíba7.

A renovação da Orla do Guaíba foi outro projeto “desarquivado” pelas instituições

políticas e pela mídia local antes da Copa do Mundo. Mas não é de hoje que a região que

compreende o Guaíba, próxima ao estádio Beira-Rio, ganha destaque no planejamento da

cidade; sempre foi um dos pontos estratégicos. A construção do porto tornou-se central

para o governo estadual durante a primeira onda modernizadora na cidade no início do

século XX. Na época, o porto era considerado como o elemento que sintetizou o

imaginário de “modernização” e de “progresso” da cidade e do Estado. Atualmente, as

narrativas sobre a cidade enfatizam muito a imagem do pôr-do-sol no Guaíba. É um dos

cartões-postais da cidade e ganhou espaço nos materiais oficiais de promoção e divulgação

da Copa do Mundo no Brasil8.

Em dezembro de 2007, dois meses depois da escolha do Brasil como sede do

Mundial, a prefeitura de Porto Alegre apresentou um plano de revitalização da orla. Pouco

antes da Copa, em novembro de 2013, havia expectativa de que alguns armazéns fossem

reformados no prazo de um ano. Durante o Mundial, algumas festas e eventos foram

realizados no espaço que compreende o Cais do Porto (o espaço foi chamado

Embarcadero) e a beira do Guaíba (a Fan Fest da FIFA). Mas o projeto de revitalização

não avançou muito.

Além do estádio Beira-Rio e da orla do Guaíba, quando o assunto é transporte

público, o metrô surgiu como a representação da solução para os problemas de trânsito na

cidade pré-Copa do Mundo. Anunciado como uma obra da Copa, o metrô não foi

7Informações sobre os estádios em Porto Alegre no site da Secopa. Disponível em: <

http://www.secopapoa.com.br/default.php?p_secao=37>. Acesso em: 10 out. 2014. 8BRAZIL is calling you: Copa 2014. Vídeo da FIFA TV. Disponível em: <

https://www.youtube.com/watch?v=pSwANq8gRS8>. Acesso em abril de 2015. Nesse vídeo da FIFA TV

sobre Porto Alegre, além do pôr-do-sol no Guaíba, a maioria das imagens também está relacionada à

natureza, destacando os parques da Redenção e Moinhos de Vento.

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construído para o Mundial e nem tem data para ser concretizado. O projeto começou a

ganhar maior visibilidade midiática a partir de 2009, quando ainda era considerado uma

obra de mobilidade urbana na Matriz de Responsabilidades da Copa. Notícias sobre a

construção do metrô foram publicadas em sites criados pelo governo federal e municipal9

para divulgar ações relacionadas ao megaevento. Os meios de comunicação locais também

deram espaço ao projeto. Mesmo que localizado no nível das intenções (e não das

concretizações), é um plano idealizado e apoiado por alguns jornais locais. Causa fascínio

e está ligado ao imaginário da cidade neste tempo específico.

Esse desejo antigo de ampliar o deslocamento por trens em Porto Alegre foi

despertado novamente com a Copa. Em 1976, foram desenvolvidos estudos para um

projeto que objetivasse a redução do fluxo de veículos na BR-116, região metropolitana da

capital gaúcha. Em 1980, foi fundada a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S.A.

(Trensurb), que iniciou cinco anos depois a operação de trens. No entanto, vale diferenciar

esse sistema de transporte por trens do projeto do metrô, que passou por novos debates a

partir da proximidade do Mundial. O metrô volta a ser discutido como a solução para os

problemas de mobilidade urbana. No site da prefeitura de Porto Alegre, a obra é

considerada prioridade às vésperas do megaevento. De acordo com a prefeitura, o projeto

do metrô terá integração com os sistemas de BRTs e com o Trensurb, em 14,88

quilômetros de extensão nas 13 estações. A expectativa era de que o metrô atenda 300 mil

passageiros por dia.

Todos esses desejos e expectativas foram desenvolvidos em projetos urbanísticos

pelos governos e lançados ao debate público pela mídia, que explorou cada um desses

projetos, detalhou as obras e fez crescer a importância desses temas para a cidade. Na

próxima etapa, pretendemos mostrar de que forma os meios de comunicação agiram como

protagonistas na arte de criar o sonho de uma nova Porto Alegre nascida da Copa do

Mundo.

Vamos sonhar juntos?

Ficará mais claro notar os mecanismos da mídia que permitiram incorporar

símbolos como o metrô, o estádio e a orla, no cotidiano urbano a partir da leitura da versão

online de Zero Hora (ZH), que publicou um infográfico (FIG 1) intitulado “Como será o

9A notícia sobre a construção do metrô foi publicada em sites criados pelo governo federal e municipal para

divulgar ações relacionadas à Copa do Mundo. Disponível em:

<http://www.portal2014.org.br/noticias/982/PORTO+ALEGRE+CONFIRMA+METRO+PARA+COPA.ht

ml> e <http://www.copa2014.gov.br/noticia/porto-alegre-tera-r-1-bilhao-do-orcamento-do-governo-federal-

para-obras-do-metro>. Acesso em 02 dez 2013.

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metrô de Porto Alegre”10. A figura traz informações como a extensão da linha, o custo

total, o tempo de percurso, a tarifa, o início e a duração das obras e previa que o projeto

levasse até cinco anos, a partir de 2011, para ser concluído.

Figura 1 – Infográfico no site do jornal ZH (14 de outubro de 2011).

O veículo em vermelho, preto e branco, que aparece no infográfico, é uma

possibilidade imaginada, já que concretamente o metrô ainda havia sido materializado.

Rua da Praia, Cairu, Triângulo e Fiergs são as localidades em destaque como rota da linha.

Há também uma ferramenta de interação com o internauta: quando ele aproxima o mouse

na linha amarela traçada, é possível ver os bairros e ruas próximos do metrô. Através dos

verbos no imperativo, o dispositivo pede a participação do internauta: “Navegue pelo

mapa e veja onde ficarão as estações da primeira fase do metrô da Capital”.

Além do metrô, outra obra que fazia sonhar com uma capital gaúcha renovada foi a

reforma do estádio Beira-Rio. O site do jornal ZH publicou infográfico11 que mostra as

obras (FIG 2).

10COMO será o metrô de Porto Alegre. Site de Zero Hora. Sem data de publicação. Disponível em:

<http://www.clicrbs.com.br/zerohora/swf/especial_metropoa>. Acesso em: 11 mar. 2015. 11BEIRA-RIO, antes e depois da armação da cobertura. Publicado no site de Zero Hora em 15 de outubro de

2013. Disponível em: < http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/infografico/beirario-antes-e-depois-da-armacao-da-cobertura-56681.html>. Acesso em 02 nov 2013.

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Figura 2 - Infográfico no site de ZH (15 de outubro de 2013).

O internauta é mais uma vez convidado a interagir: “confira como mudou a

fachada do estádio após a instalação das folhas metálicas que sustentarão a membrana que

cobrirá o Gigante”. Para isso, há um dispositivo de experimentação no estilo “antes e

depois”. Trata-se de uma foto da armação da cobertura do estádio. O lado esquerdo da

imagem representa o “antes”: o estado “real” do estádio. Já a parte direita da foto revela o

“depois” da obra, com a armação já colocada. Em um clique, o internauta experimenta a

mágica de ir do presente para o futuro, entra numa espécie de “máquina do tempo”, rumo

direção ao futuro - viagem proporcionada pela ferramenta midiática.

A renovação da região do Guaíba também foi sonhada em tempos de Mundial. Em

fevereiro de 2014, Zero Hora anunciou em uma reportagem12 que a primeira fase de

demolições do Cais terminaria em duas semanas e previa conclusão para dali a três anos.

Segundo o texto, “há quase três meses, a revitalização de cerca de dois quilômetros do

Cais Mauá, em Porto Alegre, começou a sair do papel”. A reportagem destaca ainda a

demolição de construções erguidas entre os armazéns históricos para abrigar

estabelecimentos comerciais, como lojas e restaurantes. Na mesma matéria, destaca-se a

foto do cais e um infográfico com detalhes da revitalização que “por mais de duas

décadas, foi um sonho não concretizado”, segundo o texto (FIG 3).

12PRIMEIRA fase de demolições do Cais Mauá, em Porto Alegre, deve terminar em duas semanas.

Publicado no site de Zero Hora em 05 fev 2014. Disponível em:

<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/02/primeira-fase-de-demolicoes-do-cais-maua-em-porto-

alegre-deve-terminar-em-duas-semanas-4410294.html>. Acesso em: 16 mar. 2015.

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Figura 3 – Infográfico no site do jornal ZH (05 de fevereiro de 2014).

Repare nas duas expressões utilizadas ao longo da matéria: “sair do papel” e

“sonho não concretizado”. O infográfico cria essa possibilidade de desengessar a obra,

transformando-a em um local imaginado e interativo. Através das legendas, é possível

inventar um lugar completamente diferente. Permite ao internauta que conheça cada região

e se localize espacialmente para, a partir daí, escolher os pontos nos quais irá se locomover

(com o auxílio do mouse) e buscar informações. É desta forma que o “sonho não

concretizado” ganha vida em cada um dos oito pontos destacados no infográfico. Ao

clique do mouse, textos propõem uma nova visão sobre o cais Mauá. Uma das legendas

promete que “o prédio onde funciona a superintendência de portos e hidrovias dará espaço

a um ‘hotel luxuoso, ao estilo butique’”. O leitor ainda fica com a sensação de que muitos

espaços verdes vão ser criados no local. As legendas falam sobre a construção de um

jardim vertical no muro que separa o cais da Avenida Mauá: “Na região, uma praça

escondida vai ser revitalizada. E mais árvores devem ser plantadas no local”.

Um ano depois dessa reportagem de ZH, o assunto seguia ganhando destaque em

outros veículos locais. O jornal Correio do Povo publicou em março de 2015 uma matéria

no site13 sobre as propostas de empresas para revitalizar orla, que seriam recebidas naquele

dia pela prefeitura. O texto dava prazo para conclusão da reforma: “Depois de conhecida a

empresa vencedora, a previsão é de que a obra esteja concluída entre 12 e 18 meses”. A

13PRIMEIRA fase de demolições do Cais Mauá, em Porto Alegre, deve terminar em duas semanas.

Publicado no site do Correio do Povo em 03 mar 2015. Disponível em: < http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/550340/Propostas-de-empresas-para-revitalizar-orla-do-Guaiba-

serao-recebidas-nesta-terca>. Acesso em 16 mar 2015.

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foto do projeto arquitetônico, que acompanha a reportagem, mostra um local totalmente

diferente, idealizado e projetado no futuro.

A partir do acompanhamento das matérias sobre o metrô, a reforma do estádio e a

revitalização da orla, esses sonhos seguiam tendo espaço na mídia local. Revelava-se um

imaginário urbano específico, que continha os sonhos de uma cidade idealizada com a

chegada da Copa. Cumprindo com nossa missão de pesquisador do imaginário, podemos

afirmar que a cidade foi coberta por uma espécie de véu de magia e de fascínio que

recobria a realidade. A chegada do metrô e a revitalização da região do Guaíba não se

concretizaram. Mas, ao ler as notícias, emergiu um sentimento de exaltação, de euforia, de

necessidade de que as obras fossem ao menos iniciadas. Os projetos, pela descrição da

mídia, foram experimentados e incorporados no cotidiano de Porto Alegre. Essa é uma

criação da mídia, possibilitada através do acionamento de diferentes ferramentas

discursivas. Ficou a sensação de que foi só um sonho – mas um sonho coletivo, sonhado

através das narrativas midiáticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DA COSTA, Lamartine. Legados de megaeventos esportivos. Brasília: Ministério dos

Esportes, 2008.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança

cultural. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2006.

HORNE, John. Sport in consumer culture. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2006.

SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.

________. O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da

ABNT e da CAPES. Porto Alegre: Sulina, 2010.

TAVARES, Otávio; DA COSTA, Lamartine P. Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro:

Editora Gama Filho, 1999.

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A reambientação do jornalismo popular

no digital

Karen Sica14

Resumo:

O jornalismo popular é formado por elementos que o diferencia de publicações

tradicionais. No ambiente digital, estas características não permanecem em sua totalidade

quando as publicações se apresentam em sites e apps. Este trabalho objetiva trazer

subsídios que constatem esta informação, promovendo a possibilidade de uma integração

entre o popular e o tradicional quando os mesmos estão presentes no ambiente digital.

Palavras-chave: jornalismo popular, nova classe média brasileira, jornalismo digital,

convergência midiática.

1. Introdução

As transformações tecnológicas que ocorreram a partir de 1994, com o crescimento

expressivo da internet, alteraram a forma pela qual os jornais impressos eram planejados,

desenvolvidos e distribuídos. O aparecimento da mídia digital reorganizou os formatos de

comunicação e favoreceu novas articulações sociais, bem como maneiras inovadoras de

disseminação da informação.

A consolidação da comunicação no ambiente digital incorporou elementos

inovadores para o jornalismo, entre eles a multimidialidade, a interatividade e a

hipertextualidade (SALAVERRIA, 2005; CANAVILHAS, 2012). A efervescência do

jornalismo, a partir do surgimento da internet, comprova a apropriação do meio com a

finalidade de informação, o que aponta para uma necessidade social da comunidade. Os

jornais tradicionais foram os primeiros a garantirem espaço no ambiente digital e, aos

poucos, os jornais populares também passaram a estar presentes neste contexto.

As características das publicações populares, traçadas por Amaral (2006), como o apelo

visual, a linguagem acessível, as matérias idealizadas para o público-leitor de classes “C”,

“D” e “E”, com apelo dramático, proximidade geográfica e retrato do cotidiano,

continuam presentes apenas no impresso, não no digital, onde estas informações poderiam

14 Professora no Curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. (PUCRS). E-mail: [email protected].

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estar alinhadas com as possibilidades existentes. O contato direto com o público e a

sensação de pertencimento, bem como os itens anteriores destacados, é o que traz um

diferencial para este gênero popular, que está em pleno crescimento devido ao avanço da

classe média brasileira nos últimos dez anos (IBOPE, 2014).

Percebe-se, entretanto, que os jornais populares brasileiros ainda buscam um espaço no

ambiente digital e muitas publicações estão aquém das possibilidades de usos da

tecnologia. Este trabalho, portanto, objetiva trazer subsídios que constatem esta

informação, promovendo a possibilidade de uma integração entre o popular e o tradicional

quando os mesmos estão presentes no ambiente digital.

2. O jornalismo popular e a Classe “C”

Os meios de comunicação sofreram alterações nos últimos anos devido aos

avanços tecnológicos, ao acesso de informação renovado e cada vez mais ágil, às

mudanças nos hábitos de leitura dos indivíduos, entre outros fatores que influenciaram

este processo. Veículos de comunicação surgiram, bem como novos públicos apareceram

para suprir a demanda do mercado. Na última década do século XX, os jornais populares

chegaram ao Brasil com o intuito de alcançar e manter informados os indivíduos de

classes “C”, “D” e “E”, que eram ‘menosprezados’ pelos grandes veículos de

comunicação. Isto foi possível devido ao processo de industrialização, ocorrido no

período de Getúlio Vargas, e às transformações urbanas e econômicas do país, que

possibilitaram um aumento de empregos formais (AMARAL, 2006).

No contexto de uma considerável potencialidade econômica brasileira, iniciado

em meados de 1994 com o Plano Real e alinhado ao acesso a novas fontes de informações

como a internet, o aumento do poder aquisitivo é um dos aspectos que se evidencia

nitidamente, possibilitando as transformações no perfil distributivo de renda e,

consequentemente, a estratificação social no país. Embora este processo multifacetado

seja recente, a ascensão de uma nova classe média brasileira, denominada também de

classe “C"15, tem sido um tema de debates e destaque nos meios de comunicação, bem

como nos segmentos acadêmicos vinculados à área da comunicação visto que esta

significação gerou um redesenho na pirâmide social brasileira nos últimos anos. Prahalad

(2010) aponta que a pirâmide social do Brasil se transformou em um losango, no qual a

nova classe média ganha destaque na sociedade. Em consequência, houve a necessidade

de mudanças organizacionais a fim de que as empresas, bem como a mídia, sofressem

adaptações à diversidade existente.

15 Nesta pesquisa, trata-se classe “C" e nova classe média como termos equivalentes.

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Embora o termo nova classe média esteja sendo bastante utilizado pela mídia

brasileira nos últimos dez anos, existem diferentes definições para o mesmo, o que gera

diferenças significativas na mensuração dessa camada popular e no valor atribuído a ela.

Os institutos de pesquisa que analisam estes indivíduos costumam considerar a renda

familiar como a principal variável para a identificação dos indivíduos que fazem parte da

classe média. Marcelo Neri (2011) e Márcio Pochmann (2012) também classificam a

sociedade brasileira tendo como base, principalmente, a renda dos indivíduos. Márcio

Pochmann (2012), por sua vez, garante que as transformações financeiras e sociais

sofridas pela base da pirâmide social podem ter mudado a situação econômica dessa fatia

enorme da população, porém o autor acredita que esta mudança não foi suficientemente

forte para retirar estas pessoas da condição de pobreza.

Já o pesquisador Jessé Souza (2012) compreende que as classes deveriam ser

definidas por seu estilo de vida e visão de mundo, não apenas pela renda familiar dos

indivíduos, embora e renda também seja um fator a ser considerado. O autor acredita que

os indivíduos emergentes não formariam uma nova classe média, mas sim uma nova

classe trabalhadora, composta por batalhadores brasileiros, e que estes estão indo em

busca de novos bens materiais, melhores condições de vida, qualidade de vida e

informação.

O fato de haver uma discrepância no que diz respeito ao termo nova classe média

brasileira apenas instiga ainda mais a discussão e justifica a abordagem do tema deste

artigo. Principalmente quando há uma relação intrínseca com a área da comunicação,

visto que os jornais populares no Brasil ainda seguem com alto índice de circulação. De

acordo com pesquisas realizadas mensalmente pelo Instituto Verificador de Comunicação

(IVC)16, cinco de dez jornais de maior circulação no país são publicações essencialmente

populares, são eles: Super Notícia, de Belo Horizonte/MG; Daqui, de Goiânia/GO; Extra,

do Rio de Janeiro/RJ; Diário Gaúcho, de Porto Alegre/RS e Meia Hora, do Rio de

Janeiro/RS. Muitos deles possuem jornais co-irmãos que podem ser categorizados como

tradicionais e standards, como é o caso do Extra e do jornal O Globo, e o Diário Gaúcho e

o jornal Zero Hora. Estes são impressos nascidos no mesmo grupo de comunicação, sendo

os populares destinados às classes “C”, “D” e “E”, e os tradicionais para as classes “A” e

“B”.

Isso apenas reforça o fato de que os indivíduos componentes desta parcela da

população brasileira passaram a buscar informação de uma forma contínua a fim de se

manterem presentes e serem membros interagentes dentro da sociedade, o que favoreceu

16 Disponível em: http://ivcbrasil.org.br/iMediaPlanner.asp?T=W

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ainda mais o crescimento dos jornais populares. Além de manter as pessoas informadas

com, principalmente, assuntos locais e regionais, os jornais populares criaram um vínculo

forte com seu público-alvo justamente devido suas características, de acordo com Amaral

(2006) e Giner (2003): a) apelo visual: fotos vibrantes e coloridas, diagramação com

títulos instigantes, muitas vezes curiosos; b) linguagem acessível para estas pessoas que

estão criando o hábito da leitura de um jornal diário e os assuntos relevantes para que

tenham como foco os públicos de classes “C”, “D” e “E”; c) matérias idealizadas para

este público-leitor, com apelo dramático, proximidade geográfica, retrato do cotidiano do

público-leitor e cultural criada com o leitor; d) matérias que evidenciam as sensações que

o repórter presenciou no local da reportagem/fato e textos que expõem detalhes de cenário

e do ambiente no qual a notícia ocorreu; e) habilidade na promoção do entretenimento

com o público, principalmente com o uso de “promoções agregadas”, explicadas

anteriormente; f) baixo custo de compra do produto, normalmente com uma média de

preço que varia de R$ 0,75 a R$ 1,50 por edição.

Giner (2003) identifica, ainda, objetivos essenciais de uma publicação popular a

fim de que ela seja diferenciada de um jornal tradicional. São eles: entretenimento e

informação, serviço, educação. De acordo com o autor, o leitor da nova classe média

brasileira não tinha o hábito da leitura, mas adquiriu este hábito ao comprar o jornal

popular diariamente e perceber nele um valor-notícia. Isto é, o dinheiro que ali estava

sendo empregado, gerava conhecimento, informação e era, portanto, relevante para este

indivíduo. Assim, as publicações cumprem uma das suas principais funções: a utilidade.

Estes elementos fundamentais do jornalismo popular são o que o diferencia do jornalismo

tradicional. O contato direto com o público, a relação de amizade e a sensação de

pertencimento que existe a partir do leitor para com a publicação, bem como os itens

destacados anteriormente, é o que traz um diferencial para este gênero jornalístico

popular.

3. Desafios das novas linguagens no ambiente digital

O crescimento expressivo da internet e as possibilidades de utilização de novas

tecnologias, principalmente a partir de 1994, alteraram a forma pela qual os jornais

impressos eram planejados, desenvolvidos e distribuídos para os seus públicos. Ao tratar

sobre novas tecnologias, surgem novas interações entre informação e cultura, bem como

uma realidade completamente diferente para o jornalista de redação, e jornalista e leitor.

O aprimoramento do jornalismo digital redefine funções presentes no jornalismo

impresso. Os profissionais da comunicação sofreram intensas alterações no que diz

respeito ao desenvolvimento tecnológico e os processos de convergência desencadeados

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nas redações. A partir deste contexto digital, ocorrem mudanças de equipes e são

redefinidas rotinas jornalísticas na redação, que alteram o cotidiano dos profissionais da

comunicação (SALAVERRÍA, 2007).

A configuração de uma nova linguagem para o meio de comunicação no

ambiente digital incorporou três questões inovadoras para o jornalismo: a

multimidialidade, a interatividade e a hipertextualidade. A utilização de um suporte digital

com o objetivo de conectar os jornalistas com o público mediante as redes possibilitou

que a interatividade se tornasse eficaz. Através desta, o sujeito promove os fluxos

informativos, o que implica a quebra a linearidade, que separam os interagentes em

emissor e receptor. Além disso, proporciona condições à colaboração, sendo que o

indivíduo ganha destaque no fazer jornalístico. A notícia em um meio online tem a

capacidade de fazer com que o leitor sinta-se parte do processo de fabricação através da

troca de e-mails; da disponibilização da opinião em comentários, fóruns, entre outros

(BARDOEL; DEUZE; 2001).

Já a hipertextualidade possibilita a interconexão de textos através de links onde

um mesmo assunto pode ser remetido a diversos textos, de acordo com a vontade do

leitor. Um texto pode conter conteúdos multimídia, além de outros sites relacionados ao

assunto, material de arquivo dos jornais, textos jornalísticos que possam gerar polêmica

em torno do assunto noticiado. O indivíduo determina o caminho de leitura que deseja

seguir. Esta é a capacidade que a rede possui para organizar estruturas discursivas lineares

e não-lineares mediante unidades de conteúdos multimidiáticos, sendo que quem define o

trajeto é o indivíduo que está em frente à tela.

Os meios de comunicação que não buscam as possibilidades tecnológicas, bem

como não compreendem esta nova realidade, na qual o indivíduo não é um mero

espectador dos fatos, mas sim um consumidor e um produtor de conteúdo, tendem a

perder seus futuros públicos, formados por jovens, acostumados à linguagem audiovisual

e a conteúdos lúdicos e interativos. Estas características são aplicadas para todos os

leitores, independente de classes sociais, visto que jovens que integram a classe “C”, de

acordo com pesquisa realizada pelo Data Popular (2012)17, são os novos formadores de

opinião, interagem na internet e buscam cultura e aperfeiçoamento.

As novas linguagens que surgiram através da internet são importantes para que se

possa compreender o ambiente digital no qual se configura os conteúdos jornalísticos. A

17 Pesquisa “Geração C”, produzida pelo Instituto Data Popular. Matéria no site da Secretaria de Assuntos

Estratégicos, publicada em 11 de fevereiro de 2012. Disponível em: <

http://www.sae.gov.br/site/?p=10589>. Acesso em 25 de outubro de 2014.

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multimidialidade, por sua vez, refere-se à convergência dos formatos das mídias

tradicionais, independentemente de quantas forem, representadas por imagem, texto e som

na narração do fato jornalístico. A convergência torna-se possível em função do processo

de digitalização da informação e a sua posterior circulação e/ou disponibilização em

múltiplas plataformas e suportes, numa situação de agregação e complementaridade

(PALACIOS, 2003).

Outro desafio à comunicação e ao jornalismo, no contexto digital, é a

mobilidade. Nas últimas décadas, os avanços tecnológicos permitiram que as notícias

cheguem mais rápido a um público muito mais amplo. A democratização do acesso à

informação gera uma busca por um meio de linguagem eficaz e um conjunto de temas de

interesse público, o que possibilita a falta de especificidade do jornalismo impresso. Por

outro lado, há os meios de comunicação que buscam os nichos de mercado e trabalham

notícias especializadas, criando assim um outro extremo: a especialização em excesso

(CANAVILHAS, 2012).

Concebido como um dispositivo de telecomunicação destinado apenas à elite, o

celular evoluiu até o aparelho multifuncional, que está constantemente ligado e tem um

caráter pessoal, informativo, totalmente voltado à comunicação. O smartphone ganhou um

espaço central na vida pessoal e profissional dos indivíduos pelo fato de gerar interação

em qualquer momento do dia e local. De acordo com a pesquisa18 do Instituto Brasileiro

de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), divulgada em setembro de 2014, o número de

usuários ativos e com acesso à rede vem aumentando significativamente no Brasil. A

estimativa aponta a existência de 120,3 milhões de pessoas com acesso à internet no país,

o que significa um aumento de 18% em relação a estimativa divulgada no primeiro

trimestre de 2013, que era de 102,3 milhões, e 14% maior que a última divulgação, que

tinha sido de 105,1 milhões, referente ao segundo trimestre de 2013.

Além disso, a venda de dispositivos móveis cresce consideravelmente no país,

fator que indica mais uma vez o poder de consumo de bens duráveis por parte desta nova

classe média. De acordo com a pesquisa realizada pelo IDC19, divulgada em março de

2015, o mercado brasileiro de tablets finalizou o ano de 2014 com alta de 13% em volume

de vendas, totalizando cerca de 9,5 milhões de aparelhos comercializados. Deste volume,

96% das vendas foram para o consumidor final. Estes dados apontam, mais uma vez, que

18 Matéria intitulada “Número de pessoas com acesso à internet no Brasil supera 120 milhões”. Disponível

em: <http://www.nielsen.com/br/pt/press-room/2014/Numero-de-pessoas-com-acesso-a-internet-no-Brasil-

supera-120-milhoes.html>. Acesso em: 22 de outubro de 2015. 19 Informações publicadas no site do IDC. Disponível em:

<http://www.idclatin.com/releases/news.aspx?id=1786>. Acesso em: 22 de abril de 2015.

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a rapidez com que os aparelhos evoluíram e se enraizaram na sociedade é uma

consequência da forma como a tecnologia e o uso dado pelo indivíduo sofrem influência

de forma mútua. A existência destes dispositivos móveis possibilitou uma necessidade

nova, que por ser cada vez mais exigente, obrigou a tecnologia a responder com novas

valências.

4. Considerações finais

Após uma análise das características do jornalismo popular impresso e uma

comparação com os mesmos no ambiente digital, tendo como base um estudo de caso

amplo dos jornais Extra/RJ e Diário Gaúcho/RS, pode-se afirmar que o ambiente digital

proporciona funcionalidades marcantes, como é o caso da interatividade,

hipertextualidade e multimidialidade, e os jornais populares podem e devem se apropriar

desses elementos a fim de proporcionar um conteúdo de qualidade a seus leitores em

diferentes aparatos tecnológicos. Para tanto, torna-se necessário que haja uma equipe de

jornalistas treinados para trabalhar com diferentes linguagens e formatos. Para estar

presente no ambiente digital, não bastar apenas ter um site ou um app, mas, sim, exibir

um material jornalístico coeso, de qualidade, com informação relevante para o público,

que esteja presente onde o público está, seja por acesso em dispositivos móveis ou

desktop. O jornalismo desenvolvido para o impresso deve ser diferente do trabalho

apresentado no ambiente digital, mas, ao mesmo tempo, torna-se importante compreender

que o impresso e o digital não andam mais separados. Afinal, a cultura da redação deveria

ter sido modificada no momento em que a forma de consumo de informação sofreu

alterações significativas devido ao acesso a tecnologias e ao surgimento de novos hábitos

por parte dos leitores.

Percebe-se, também, que as mensagens produzidas para o ambiente digital não

estão apenas traçadas no jornalismo popular ou no tradicional, mas, sim, em uma junção

dos dois gêneros, que abrange tanto elementos do popular, como as cores, o layout e as

chamadas instigantes, assim como também oferece uma linguagem direta, como a

utilizada no jornalismo tradicional, e assuntos que não necessariamente são relevantes

para um público de classe "C". Isto ocorre devido à proximidade de redações dos dois

gêneros em um mesmo veículo de comunicação, à crise do jornalismo em sua totalidade,

à falta de uma equipe de profissionais que trabalhe exclusivamente conteúdos digitais

dentro das redações de jornais populares, a questões econômicas dos grandes meios de

comunicação e a fatores já evidenciados nesta pesquisa anteriormente. Observa-se,

também, que a linguagem de um jornal tradicional passa a ser utilizada em um jornal

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popular no ambiente digital, quando se trata de jornais coirmãos. Isto é, os gêneros que

havia antes do surgimento da internet nem sempre se apresentam da mesma forma quando

aplicados a esse novo ambiente. Sendo assim, pode-se afirmar que há uma reambientação

do jornalismo popular quando o mesmo está presente no meio digital, no momento em

que há uma união de elementos do gênero popular com características do jornalismo

tradicional, criando uma linguagem-padrão, a qual pode ser identificada tanto no Diário

Gaúcho quanto no Extra.

Além disso, afirma-se que não há uma definição de classes sociais no ambiente

digital. Todos os indivíduos estão ali presentes com o objetivo de busca de informação,

independentemente do ambiente no qual eles estão inseridos social e economicamente. De

acordo com os editores entrevistados para esta pesquisa, percebe-se que os leitores dessas

publicações no ambiente digital não são apenas os leitores com as mesmas características

dos consumidores de jornais impressos diários, pois o ambiente digital proporciona

inúmeras informações para qualquer internauta, independentemente de classes. Então,

assim como leitores de classe “C" interagem e buscam conteúdos em sites de jornais

tradicionais, há leitores de classe “A" e “B" que, em determinado momento, acessam

notícias de jornais populares, havendo um desvio de audiência que faz parte do processo

de busca de informação e também de busca por pertencimento.

Referencial bibliográfico

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BARDOEL, Jo & DEUZE, Mark. Network Journalism: converging competences of

old and new media professionals. Disponível em:

<http://jclass.umd.edu/classes/jour698m/BardoelDeuze+NetworkJournalism+2001.pdf>.

Acesso em: 30 de abril de 2015.

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______. Webjornalismo: 7 características que marcam a diferença. Livros LabCom,

Covilhã, UBI, Portugal, 2014. Disponível em: <

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GINER, Juan Antonio. Los Nuevos Periódicos Populares de Calidad. Revista IDEAS,

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JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

PALACIOS, Marcos. Ruptura, Continuidade e Potencialização no Jornalismo

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SALAVERRIA, Ramón. Convergencia de medios. Revista Latinoamericana de

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Mesa 2 - MOBILIDADE E INTERNET DAS COISAS

Coordenação: Sandra Henriques

Etnografia móvel: uma proposta de estudo do Paradigma das Mobilidades

Sandra Mara Garcia Henriques20

Resumo: Este trabalho propõe um novo olhar para a observação dos dispositivos móveis e

sua influência no processo comunicacional. A partir do Paradigma das Mobilidades

(URRY, 2007) busca-se ressaltar a importância das conexões sociais e suas relações com o

movimento. Para a compreensão do Paradigma no contexto atual, sugere-se uma

abordagem denominada Etnografia Móvel, uma metodologia que possui como proposta

compreender as experiências de mobilidade vivida pelos grupos em territórios e os

reflexos destes fenômenos na comunicação e interação social.

Palavras-chave: Comunicação; Mobilidade; Dispositivos móveis; Paradigma das

Mobilidades; Etnografia móvel.

O uso de dispositivos móveis e a amplitude das possibilidades de mobilidade veem

gerando novas perspectivas perante os processos informacionais e comunicacionais e,

consequentemente, ao cotidiano dos indivíduos. Estas perspectivas passam a ser

observadas a partir do momento em que os indivíduos estão conectados todo o tempo e

têm a possibilidade de produzir e compartilhar informações de forma imediata em sites,

aplicativos de redes sociais, e, também, para outros dispositivos.

Diante disto, a necessidade de outro olhar se faz necessária, propõe-se uma

observação a partir do viés de um Paradigma das Mobilidades desenvolvido pelo

sociólogo John Urry (2007) que parte do princípio da existência de uma nova ideologia

que ressalta o movimento como fator importante para a compreensão da sociedade, e

potencializa elementos presentes no cotidiano que merecem ser estudados enquanto

mobilidades e suas relações na vida social. Um dos principais desafios nos estudos das

20 Doutoranda do PPGCOM-PUCRS - Bolsista CAPES/FAPERGS. Mestre em

Comunicação Social pelo PPGCOM-PUCRS. E-mail:[email protected]

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mobilidades refere-se à metodologia de pesquisa que deve ser apropriada para a

observação dos fenômenos móveis.

Assim, este trabalho busca contribuir com o estudo das mobilidades a partir da

ótica da Etnografia móvel, um método que possui a peculiaridade de estudar a mobilidade

dos indivíduos e suas conexões em territórios móveis. Apoiada ao Paradigma, ela trata das

mobilidades de uma justaposição de fatores locais e globais, que utiliza as tecnologias

móveis para mapear, acompanhar, registrar e descrever o processo ampliando as práticas

de observação das dinâmicas comunicacionais entre os indivíduos. O fundamental desta

metodologia é compreender as experiências de mobilidade vivida pelos grupos e qual os

reflexos destas na comunicação e interação social.

O Paradigma das Mobilidades

Com o século XX, novos sistemas que movem ideias, informações e pessoas

passam a fazer parte da sociedade de forma rápida e eficaz permitindo que as estruturas

sociais sejam ampliadas. Estudiosos atuais de processos que envolvem a capacidade cada

vez mais avançada e pouco explorada, da potencialidade de movimento nos dias atuais,

perceberam a necessidade de um olhar voltado para os estudos relacionados à mobilidade.

Esse novo viés surge com a constatação de que os estudos relacionados à mobilidade nas

ciências sociais, através dos tempos, estavam voltados aos efeitos do movimento na

sociedade, e não relacionados a ele enquanto um processo. Algo que dedicasse à

mobilidade o foco principal e não complementar a outros estudos.

É diante desta perspectiva que John Urry (2007) desenvolve o chamado

Paradigma das Mobilidades apontando a existência de uma nova ideologia que ressalta o

movimento como fator importante para a compreensão da sociedade.

Urry (2007) fundamenta o paradigma a partir da observação de que as ciências

sociais (aplicadas ou não) pouco tratam das questões voltadas à mobilidade, ignoram o

movimento como um ponto a ser estudado para compreender as estruturas sociais. Ele

apoia o paradigma no fato de que o tempo, as redes, a comunicação e a informação, e os

demais aspectos são elementos presentes na vida da sociedade atual e, portanto, merecem

ser estudados enquanto mobilidades e suas relações na vida social. A pluralidade do termo

é proposital, pois segundo o autor não há apenas um tipo de mobilidade, o movimento faz

parte de algo bem mais amplo, como as dimensões que envolvem o indivíduo de forma

cultural, imaginária, afetiva e espacial. Segundo ele vive-se vários tipos de movimentos,

paralelos, consecutivos, distantes um do outro, mas todos eles constantes no mundo social.

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Atualmente, ideias, pessoas, objetos, informações transitam em ambientes devido à

velocidade do desenvolvimento tecnológico em função de um novo fenômeno cultural

móvel, permeado de fluidez e efemeridade, tornando inconstantes espaço, tempo e

significado. Para ele, as mobilidades estão associadas às mudanças que as cidades veem

sofrendo ao longo dos séculos, principalmente nos séculos XX e XXI e compara o tempo

como algo que mexe profundamente com a capacidade de movimento. O exemplo que o

autor dá para justificar esse processo é o relógio. Há um século atrás ele era tão simbólico

do moderno como o telefone celular é ubíquo e representa a modernidade dos dias atuais.

O Paradigma das Mobilidades vai além de querer suprir uma deficiência nos

estudos das ciências sociais, é um método que implica no estudo de como as mobilidades

influenciam o meio social. Ele passa a questionar a imposição da noção de presença,

relacionada aos ambientes físicos como pressuposto fundamental no estudo das interações

sociais em relação à proximidade e distância.

Esta questão se insere no paradigma a partir do contexto de que o movimento

sempre foi muito observado em relação ao corpo que se move, sua performance,

apontando que as pessoas dão sentindo ao mundo se movimentando por ele. Pela

sensibilidade física, o corpo sente a experiência dos espaços pela experimentação do

movimento. Os telefones celulares, hoje em dia, ampliam esta experiência, para Urry

(2011, p. 6), “vários objetos e tecnologias cotidianas sensualmente estendem as

capacidades dos laços humanos em todo o mundo” produzindo, assim, movimento durável

e estável.

Com o aumento da mobilidade, proporcionado pelo crescente desenvolvimento de

dispositivos que ampliam a comunicação entre as pessoas, há uma mudança perceptível

nas relações de presença nos ambientes urbanos das cidades, o desenvolvimento de

coordenação temporal ajudou resolver o problema da "distância" na cidade e na

comunicação. Desta forma, torna-se necessário um outro olhar, outra perspectiva

metodológica de pesquisa para que a compreensão deste processo se construa de forma a

acompanhar a atual conjuntura social na qual a mobilidade perpassa todos os campos,

principalmente da comunicação e interação entre as pessoas.

A mobilidade tecnológica é um fenômeno cultural na atualidade; as relações entre

as pessoas e os espaços que ela proporciona alteram os territórios que passam a carregar

informações como uma dupla camada que permeia o ciberespaço e o espaço urbano ao

mesmo tempo. Este espaço, dito espaço híbrido, é local utilizado cotidianamente para o

indivíduo se informar e comunicar com o mundo. As conexões always on (PELLANDA,

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2005) por meio do uso de dispositivos móveis unem os espaços sociais - ciberespaço e

espaço urbano - em um único território informacional (LEMOS, 2007).

As tecnologias tornaram móvel a relação dos indivíduos com a informação e com

os territórios, o que se vê nas cidades são pessoas conectadas em rede e em territórios

móveis. O uso do GPS fomentou a criação deste novo território permeado de fluxos

informacionais (LEMOS 2007). Estes fluxos estão associados tanto ao virtual do

ciberespaço quanto ao físico dos espaços urbanos, por isso vive-se atualmente novos

espaços híbridos nos quais a informação está associada e cada vez mais fomentada pelas

pessoas que por eles circulam. Lemos pontua “o território informacional não é o

ciberespaço, mas o espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço

eletrônico e o espaço físico” (2007, p. 221). Pode-se dizer que os dispositivos móveis se

tornaram mais conscientes de localização e com eles os indivíduos passaram a deixar

rastros nos espaços ao se movimentar e agregar informações a eles.

É a partir desse aspecto que se propõe um método que acompanhe os estudos e as

características do Paradigma das Mobilidades neste crescente fenômeno móvel, que

representa outra perspectiva cultural em relação á comunicação entre as pessoas e as

formas como a informação é disponibilizada, produzida e compartilhada. É o que Lemos

(2009) denomina de cultura da mobilidade na qual as pessoas, as cidades e as dimensões

interacionais sofrem uma reconfiguração devido ao constante movimento que perpassa as

estruturas sociais.

Etnografia móvel como proposta de estudo

Os estudos que abordam as questões relacionadas à mobilidade tecnológica

possuem desafios que vão além da busca de referenciais teóricos e observações de como

se pode estudar o movimento realizado por pessoas, ideias e/ou objetos. Um dos principais

desafios encontrados está em uma metodologia adequada que dê conta de compreender o

processo. Ao propor uma etnografia móvel para a compreensão da mobilidade nos

estudos comunicacionais, partimos de um ponto principal da relação entre as tecnologias

móveis, seu uso pelas pessoas e a fluidez de territórios conectados. A geografia das redes

de conexão entre as pessoas é alterada por um acesso contínuo, o que altera

constantemente o território informacional que liga os grupos. Em um Paradigma mas

mobilidades, o território no qual a pesquisa é realizada não é estático, está sempre em

movimento.

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Os agrupamentos da sociedade atual se diferenciam daqueles estudados no final

dos séculos XIX e XX pelos etnógrafos da época. Neste tempo estudavam-se as

comunidades únicas, contínuas que poderiam ser descritas pelos seus hábitos e costumes

locais. Hoje, a comunidade está centrada em agrupamentos que possuem como

característica a efemeridade e fluidez das relações e dos territórios habitados. A

comunidade e o território passam a ser móveis.

Com o ciberespaço, as comunidades adquiriram maior mobilidade, o que

possibilitou aos grupos transitarem em um espaço virtual. A etnografia virtual possibilita

os estudos destas mobilidades em redes digitais. No entanto, há uma reorganização atual

que une as conexões virtuais e o espaço físico das cidades como pontos de encontro e

formação de grupos. A mobilidade tecnológica difundida no cotidiano pelas tecnologias

móveis, e utilizada pelas pessoas em uma conexão em tempo real passa a causar um

impacto significativo no processo comunicacional e informacional entre os indivíduos e os

espaços sociais, não focando apenas no movimento dos grupos no ciberespaço.

As consequências deste imbricamento espacial são percebidas principalmente nas

estruturas sociais. Sutko e Souza e Silva (2011) apontam que um espaço permeado de

aplicativos móveis de localização consciente, como o GPS, que permite a geolocalização

de qualquer indivíduo implica em um aumento da comunicação e da coordenação entre os

indivíduos - formando grupos - em espaços públicos e aumenta a consciência e imersão da

experiência no fenômeno móvel. Pode-se pensar no flâneur descrito por Benjamin (1994)

que experienciava a cidade em seu caminhar pelas ruas. O flâneur contemporâneo agora

munido de possibilidades que vão além de sua própria experiência, pode registrar e

compartilhar instantaneamente com outros a cidade a partir de seu ponto de vista.

Esse processo gera uma camada paralela de conexão e informação entre os espaços

virtual e físico, deixando rastros digitais por toda parte. Estes rastros são móveis, se

alteram, e quanto mais se espalham, mais se conectam uns com os outros. Este fenômeno

apenas pode ser visto e vivido em uma cultura da mobilidade. Em nenhum outro momento

cultural, a possibilidade de encontros de grupos desta forma seria possível, pois havia uma

divisão entre os espaços de interação. A partir deste contexto novos sentidos e

experiências são realizados alterando a percepção dos indivíduos em suas relações com

outros e com os territórios culminando na formação de novas formas de agrupamento

social. Parte-se, assim, para uma proposta de compreensão destes fenômenos por meio de

um estudo etnográfico que compreende a mobilidade como um processo que influencia a

cultura e o cotidiano social.

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A etnografia móvel parte então para o estudo destes fenômenos móveis, das

experiências de mobilidade dos indivíduos em um contexto no qual o próprio território de

conexão está em plena mobilidade. Desde os estudos da Escola de Chicago (início do

século XX) as cidades passam a serem ambientes de pesquisas etnográficas em busca da

compreensão de grupos diferenciados, como guetos, bairros e outros agrupamentos Estes

estudos se tornaram fundamentais compreender os contrastes que refletem a vida na

cidade nos dias atuais. No início do século, a cultura da grande metrópole passou a ser o

ponto de estudo de sociólogos e antropólogos que observaram a necessidade de novas

formas de pesquisa etnográfica para entender contextos diferenciados.

É por compreender que atualmente também se vive em um contexto cultural

diferenciado que se propõe um outro viés dos estudos etnográficos, focado nas conexões

comunicacionais geradas pela mobilidade das tecnologias em novos e amplos territórios

informacionais. Os agrupamentos desenvolvidos em uma cultura móvel se constroem com

a rapidez na qual se desconstroem ocupando os territórios das cidades e agregando a eles

significados. Ao propor esta metodologia como estudo quer se dizer que é necessário

compreender este novo fenômeno cultural por meio das experiências das pessoas em

mobilidade.

O que se destaca neste artigo é que o Paradigma das Mobilidades é a base para se

compreender as características da comunicação móvel. Por meio de estudos de grupos

efêmeros que aliam conexões virtuais e físicas, é possível compreender que redes sociais

móveis se desenvolvem a partir dos interesses em assuntos e territórios em comum que

rapidamente se desfazem na fluidez permitida por este fenômeno móvel. As tecnologias

parecem desaparecer na conexão, são cada vez mais imperceptíveis, pois estão totalmente

inseridas no ambiente natural do ser humano (WEISER, 1991). A etnografia móvel,

apropriada para os estudos da comunicação, deve partir do estudo das conexões entre o

tripé formado pelos indivíduos, os territórios e os dispositivos e como eles se entrelaçam

para que os estudos do movimento se tornem possíveis. Novoa (2015) complementa que

esta perspectiva etnográfica apoia-se numa dimensão teórica e prática da mobilidade,

realizadas de forma simultânea. Ela estuda o imediatismo dos fenômenos, a importância

do “estar lá”.

A mobilidade proporcionada pelas tecnologias móveis possibilita novas formas de

nomadismos que podem se referir aos espaços e às relações sociais dos indivíduos, e com

isso permite que os mesmos deem novos sentidos aos locais e às suas relações com outros

indivíduos na formação dos grupos. Estes grupos – as redes sociais móveis - é que são o

foco desta perspectiva etnográfica. As diversas manifestações sociais que ocorreram no

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mundo (Tunísia, Islândia, Madrid, Brasil, Hong Kong, entre outros), se deram em países

diferentes, mas foram unidas pelo contexto da mobilidade de comunicação e informação

formando territórios informacionais que se conectaram entre si. Uma reação, quase que em

cadeia, se firmou entre indivíduos que tinham em comum não apenas a possibilidade de

participar de um momento político importante em seus países, mas possuíam também a

ferramenta para que uma ampla mobilização acontecesse. O empoderamento na

propagação de conteúdo que as tecnologias móveis trouxeram aos indivíduos formou um

grande grupo com um interesse em comum. Casos como as smart mobs (RHEINGOLD,

2002) e flash mobs - encontros de grupos em função de um propósito comum que se

dispersam rapidamente depois do objetivo almejado são importantes exemplos de grupos

que fazem parte deste fenômeno móvel e que merecem um estudo de suas práticas dentro

da cultura da mobilidade.

Como forma de pesquisa, os dispositivos utilizados na etnografia móvel são

telefones celulares, tablets, GPS e redes wi-fi. Muskat et al (2013) apontam a evolução nos

estudos com o auxilio destas tecnologias, “enquanto os etnógrafos clássicos viajavam para

locais distantes para participar do destino da sociedade e da vida cotidiana para coletar

dados, etnógrafos modernos usam a tecnologia moderna para ficar ‘sob a pele’ do grupo-

alvo” (2013, p.59). O pesquisador na etnografia móvel passa a fazer parte do processo de

pesquisa por meio de uma co-presença, uma “sombra” (JIRON, 2011) se movendo junto

ao objeto ou grupo pesquisado.

Considerações

O principal objetivo deste artigo não foi apresentar técnicas de pesquisa para a

realização de uma etnografia móvel. A proposta foi demonstrar que se vive atualmente em

um contexto diferenciado das relações entre as pessoas e os territórios, mediados pelas

tecnologias móveis, o que culminou em um novo processo social em que o cotidiano dos

indivíduos está envolvido diretamente com as questões da mobilidade. Esse contexto

carece de um Paradigma que permitisse um outro olhar, uma outra perspectiva que aponte

para a compreensão dos fenômenos móveis. O Paradigma das mobilidades serve de

referencial e traz consigo diversas observações sobre a importância do estudo do

movimento na sociedade atual. O que, para tal, merece uma metodologia que acompanhe

tais pesquisas. A etnografia móvel se propõe pela necessidade que o objeto de estudo, em

constante movimento, possui em mostrar os aspectos que envolvem as interações dos

indivíduos entre si e os locais estudados por meio da mobilidade tecnológica. Ela propõe

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uma descrição densa destes processos para que as particularidades deste novo fenômeno

móvel sejam compreendidas.

Referências

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:

Brasiliense, 1994.

BÜSCHER et al. Mobile Methods. New York: Routledge, 2011.

BÜSCHER, M., URRY, J. Mobile Methods and the empirical. European Journal of

Social Theory. v. 12, n.1, p. 99-116, Fev. 2009.

JIRÓN, Paola. On becoming ‘la sombra/the shadow’. In BÜSCHER et al. (Orgs) Mobile

Methods. New York: Routledge, 2011.

LEMOS, André. Cidade e Mobilidade. Telefones Celulares, funções pós-massivas e

territórios informacionais., In: Matrizes, Revista do Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Comunicação., USP, ano 1, n.1, São Paulo, 2007, pp.121-137.

MUSKAT, Matthias et al. Generation Y: evaluating servicesexperiences through mobile

ethnography. In: Emerald Group Publishing Limited - TOURISM REVIEW, 2013.

Disponível em:

http://www.academia.edu/5058534/Generation_Y_evaluating_services_experiences_throu

gh_mobile_ethnography

PELLANDA. Eduardo C. Internet móvel: Novas relações na cibercultura derivadas da

Mobilidade na comunicação. Tese de doutorado. PUCRS, 2005.

RHEINGOLD, Howard. Smart Mobs. The next social revolution, Cambridge: Basic

Books, 2002.

SUTKO, D. M.; SOUZA E SILVA, A. de. Location aware mobile media and urban

sociability. New Media & Society, 13 (5), 807-823, 2011.

URRY, John. Mobilities, Cambridge: Polity Press, 2007.

WEISER, Mark. The Computer for th 21st Century. Scientific American, pp 94-100, set

1991. Disponível em: http://www.ubiq.com/hypertext/weiser/SciAmDraft3.html.

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Hello! I am here – A noção de presença social no contexto da Internet

das Coisas

Erika Oikawa

Doutoranda do PPGCOM/PUCRS. Bolsista CAPES/FAPERGS

[email protected]

Resumo

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a noção de presença social, basilar aos estudos de

realidade virtual, a partir de contextos não imersivos da nossa vida cotidiana,

especificamente, no âmbito da Internet das Coisas (Internet of Things – IoT). Partimos do

pressuposto de que a atual configuração da ecologia midiática nos impele a pensar a noção

de presença social para além dos ambientes de simulação, problematizando o contexto da

IoT, que vem transformando não apenas a forma como nos relacionamos com os objetos

do nosso dia a dia, mas também conosco e com os outros. Exemplo sintomático desse

cenário são as profusões de objetos “inteligentes” que passam a habitar o nosso cotidiano e

os “assistentes virtuais”, como Siri, da Apple, que, a cada nova atualização, melhoram a

capacidade de compreender os contextos em que as pessoas estão inseridas.

Palavras-chave: Presença social; hiperpresença, internet das coisas; assistentes virtuais.

1. Introdução

A noção de “presença” tem sido um dos conceitos-chave para os estudos sobre

comunicação mediada ganhando um importante impulso a partir de 2002, com a fundação

da Sociedade Internacional para a Pesquisa da Presença (International Society for

Presence Research - ISPR)21, organização sem fins lucrativos dedicada a apoiar pesquisas

acadêmicas relacionadas ao tema. Nesse contexto específico22, a noção de “presença” está

frequentemente relacionada a dois tipos de fenômenos interligados (BIOCCA, 1997;

BIOCCA; HARMS; BURGOON, 2003):

1) Telepresença, que corresponde à sensação perceptual de estar em um lugar

diferente daquele em que o corpo físico se encontra, sendo muitas vezes descrita

como a sensação de “estar lá” (being there) em um ambiente virtual.

21 http://ispr.info/ 22 Neste trabalho, trataremos especificamente das noções de presença que compõem o eixo de

interesse da ISPR – basicamente voltado para o ambiente virtual –, não problematizando, portanto,

outras noções de presença como a de Hans Ulrich Gumbrecht ou de Jean Luc-Nancy.

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2) Presença social, que corresponde à sensação de “estar junto de um outro” (being

with another), ou seja, está ligada à percepção de outras formas de agência, seja ela

humana ou não (objetos, máquinas, sistemas operacionais, avatares, etc).

Vários estudos vêm se dedicando ao longo dos anos para a investigação desses dois

âmbitos da presença, em especial em ambientes de realidade virtual (Biocca, 1997;

Biocca, Harms & Burgoon, 2003). Atualmente, essas questões têm ganhado novos

contornos com os avanços tecnológicos, em especial com o desenvolvimento de projetos

como Óculus Rift23 e Morpheus24 e suas diversas aplicações para a área de jogos

eletrônicos, treinamento em ambientes simulados (VILLAGRASA, 2014; CHITTARO;

BUTTUSSI, 2015) e até mesmo no tratamento da dor (HOFFMAN et al, 2014) e em

reabilitação médica (FERCHE et al, 2015). O argumento é que um elevado grau de

presença é capaz de proporcionar maior envolvimento e melhor desempenho em

ambientes de simulação, o que explica a grande concentração dos estudos sobre a presença

em torno das pesquisas sobre realidade virtual25.

No entanto, se está clara a necessidades de se pensar as questões da presença em

ambientes de realidade virtual, como deslocá-las para os ambientes não imersivos do

nosso cotidiano, em suas dimensões mais banais? É sobre isso que este trabalho objetiva

refletir, focando especificamente na noção de presença social (being with another).

Partimos da premissa de que, no atual contexto de internet das coisas, a presença social

torna-se conceito-chave para pensamos também as demais interações da vida cotidiana.

2. Internet das coisas e novas perspectivas sobre presença social

Em estudo sobre sistema de realidade virtual, Frank Biocca (1997) afirma que o grau

mínimo de presença social ocorre quando os usuários sentem a forma, o comportamento

ou a experiência sensória que indica a presença de uma outra inteligência, seja ela outro

humano, um não-humano ou a forma de uma inteligência artificial. Muito embora existam

questões importantes que devem ser consideradas ao se propor o deslocamento da noção

de presença social de um ambiente imersivo de realidade virtual (Ex.: interações no

Second Life, jogos no Óculos Rift etc.) para um não imersivo (Ex: interações no

Facebook26 ou Skype, etc.), acreditamos que a definição de presença social apresentada

23 https://www.oculus.com/en-us/rift/ 24 https://www.playstation.com/en-gb/explore/ps4/features/project-morpheus/ 25 Soares (2013) atenta para o fato de que, embora a presença seja objeto de estudo de diversas

áreas, há uma primazia em torno dos contextos de realidade imersiva.

26 Sobre a noção de presença social no Facebook, ver trabalho de Soares (2013).

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por Biocca nos ajuda a refletir a interação com os nossos aparelhos digitais, especialmente

a partir do contexto da internet das coisas.

O filme Electric Dreams (Steve Barron, 1984) apresenta um cenário interessante

para iniciarmos essa discussão. A história gira em torno de um triângulo amoroso formado

pelo arquiteto Miles, sua vizinha Madeline e o seu temperamental computador pessoal

Edgar, uma espécie de ancestral de Samantha, o sistema operacional do filme Her (Spike

Jonze, 2014) e, como ela, um tipo de inteligência artificial que, por ora, só existe na ficção

científica: consegue expressar pensamentos e emoções de forma autônoma e até se

apaixona pelos humanos.

Se o vislumbre de um computador apaixonado por um humano parece coisa de

cinema, o mesmo estranhamento não causa a cena em que Edgar afirma a Miles I can

controll ALL your home appliances, ao mesmo tempo em que prepara uma xícara de café

enviando apenas um comando à cafeteira elétrica. Além dos eletrodomésticos, Edgar

também controla os sistemas de segurança e de iluminação e a rede de telefone de Miles,

sendo um verdadeiro precursor da chamada “casa inteligente” (smart home), sistema que

permite a integração de dispositivos domésticos diversos com a internet, possibilitando

que funções como termostato, fechaduras, iluminação e segurança sejam controladas por

meio de um smartphone.

As casas inteligentes são apenas um dos diversos ramos da IoT, que podem ser

compreendidas como

[...] a novel paradigm that is rapidly gaining ground in the scenario

of modern wireless telecommunications. The basic idea of this

concept is the pervasive presence around us of a variety of things

or objects – such as Radio-Frequency IDentification (RFID) tags,

sensors, actuators, mobile phones, etc. – which, through unique

addressing schemes, are able to interact with each other and

cooperate with their neighbors to reach common goals (ATZORI et

al, 2010, p. 1).

Na IoT, a agência dos objetos se torna cada vez mais explícita, seja por meio da

troca de informações entre objetos – a chamada M2M (Machine to Machine), que põe em

xeque a exclusividade antropocêntrica nos processos interacionais e comunicacionais –,

seja a partir das nossas próprias relações com esses objetos, na medida em que, cada vez

mais, passamos a delegar-lhes27 funções.

O caso da aplicação de código RFID28 nos uniformes dos alunos de uma escola na

Bahia é um exemplo de como a comunicação entre objetos pode afetar também as relações

humanas. Como explica André Lemos (2013), as etiquetas de RFID, que possuem códigos

27 Por delegação, compreendemos a noção proposta por Latour, que diz respeito ao processo de

distribuição da cognição entre agentes humanos e técnicos (Bruno, 2003). 28 Sigla para “Radio-Frequency Identification”, ou seja, identificação por radiofrequência.

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universais únicos, foram cadastradas no sistema da escola, vinculando os dados de cada

aluno com o número de telefone celular dos pais ou responsáveis. A ideia é que cada vez

que o aluno uniformizado passe pela portaria da escola, que conta com um leitor dessas

etiquetas, informações acerca da entrada e saída do estudante sejam enviadas diretamente

aos seus responsáveis por meio de SMS.

Para Lemos (p. 264), ações como essa tensionam a relação entre as dimensões

legais, políticas, educacionais e tecnológicas da IoT, na medida em que um artefato

técnico passa a atuar como mediador das relações entre alunos, pais e professores: “O

escudo na camisa, no qual a etiqueta RFID foi implantada, é aqui objeto mediador da

relação entre os diversos actantes, cuja delegação (ao chip e ao sistema) institui formas

morais e éticas no script do sistema (BIJKER e LAW, 1994)”. Dessa forma, sugerimos

que os efeitos da mediação das etiquetas de RFID – profundamente ancorados nos

processos de vigilância atualmente em curso em nossas sociedades – podem ser

compreendidos também como efeitos de presença social dos objetos, já que determinadas

ações, sejam de alunos, professores ou pais, passam a ser tomadas – ou ao menos

consideradas – a partir da percepção de se estar na companhia, ou melhor, na presença

dessas etiquetas.

Outro exemplo de como IoT começa a se proliferar nos utensílios mais banais do

nosso dia a dia é o Vessyl, o chamado “copo inteligente”. De acordo com seus

desenvolvedores, o copo reconhece de forma automática qualquer líquido que nele seja

servido e, por meio de um aplicativo para celular, informa a quantidade de açúcar, cafeína

e calorias da bebida. A partir do monitoramento da ingestão de líquidos, ele também emite

notificações para que o usuário não esqueça de beber água quando o nível de hidratação

estiver baixo ou durante a realização de atividades físicas e auxilia no controle dos

horários para a ingestão de bebidas a fim de que o usuário tenha mais qualidade no sono29.

A principal justificativa da empresa que desenvolveu o produto centra-se no

argumento de que hidratação não se resume à “ingestão de oito copos de água por dia”30,

mas a uma série de elementos que varia de pessoa para pessoa, que contempla desde

informações sobre idade e sexo a questões sobre atividades físicas e de sono, além de

fatores geográficos (temperatura, altitude, umidade). A partir dessas métricas

personalizadas, o copo “aprende” os hábitos do usuário, tornando-se capaz de dar

informações extremamente precisas acerca da hidratação de uma pessoa.

29 Informações obtidas no site do produto. Disponível em <https://www.myvessyl.com/vessyl/>.

Acesso em 20 nov. 2015. 30 O lema do produto é: HYDRATE INTELLIGENTLY. It’s not about drinking 8 glasses. Your

hydration needs are dynamic and unique to you.

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É precisamente esse nível de personalização que abre a possibilidade de pensarmos

a presença social desses objetos em nossa vida diária, já que esse copo não se trata mais de

um simples suporte para bebidas, mas de um objeto que “ajuda a cuidar da saúde”31 e

“promete ajudar a emagrecer”32. Nesse sentido, torna-se central pensar também sobre

como esses dispositivos trazem implícitos em suas materialidades os discursos da

biomedicina contemporânea, nos quais o “eu” passa a ser traduzido em indicadores e

reverberando a ideia de que o pode ser medido e quantificado, pode ser aperfeiçoado

(NASCIMENTO; BRUNO, 2013).

3. A hiperpresença para além dos filmes de ficção científica

O rápido desenvolvimento da chamada inteligência artificial também se apresenta como

um importante eixo para pensarmos a presença social dos objetos. Nesse contexto, talvez o

software Siri, o assistente virtual da Apple, seja um dos exemplos mais icônicos desse

atual cenário. O software é um tipo de aplicação de inteligência artificial que utiliza

processamento de linguagem natural para responder perguntas dos usuários e executar

ações. O recurso foi lançado em 2011 e logo se tornou um sucesso por auxiliar, por meio

de um simples comando de voz, os mais variados tipos de tarefas, desde a simples leitura

de um e-mail a atividades mais complexas como reservas em restaurantes, compra de

bilhetes para shows, além do fornecimento dos mais diversos tipos de informações, de

previsão do tempo à cotação da bolsa de valores. Tudo isso graças à integração do

programa com outros aplicativos e sites, tais como Wikipedia, Yelp e Shazam, o que

potencializa suas capacidades como assistente virtual. What movies are playing today,

Find a table for four tonight in Chicago, Hey Siri, what song is this?, Compare AAPL and

the NASDAQ são apenas algumas das perguntas que Siri é capaz de responder, conforme o

site de apresentação da Apple, que ainda incentiva os usuários a interagirem com o

software como se fosse um amigo: Talk to Siri as you would to a friend and it can help

you get things done33.

Embora Siri esteja longe de ser uma inteligência artificial na potência de Samantha

ou de Edgar, é inegável a presença social que o assistente da Apple tem perante aos seus

usuários, que invocam o sistema, delegam-lhe funções e passam longos minutos

“provocando-o” com perguntas capciosas. Na internet há diversos vídeos sobre a evolução

31 Disponível em <http://www.tecmundo.com.br/saude/57878-vessyl-conheca-copo-inteligente-

ajuda-voce-cuidar-saude.htm>. Acesso em 10 nov. 2015. 32 Disponível em <http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/vessyl-o-copo-que-promete-ajudar-

a-emagrecer/>. Acesso em 10 nov. 2015. 33 https://www.apple.com/ios/siri/

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de Siri na capacidade de responder as perguntas feitas pelos usuários34, sendo notável o

crescente nível de humor e de ironia nas respostas da assistente virtual ao longo dos anos

(Fig. 1).

Figura 1 – Print screen da conversa entre o programa Siri e um usuário35

Podemos compreender essa crescente tentativa de “humanização” dos softwares –

seja por meio do humor ou da aproximação da “voz” maquínica com a humana36– como o

aprimoramento da presença social por meio dos afetos, da mesma forma que os emoticons

e emojis são considerados elementos que contribuem para uma melhor percepção da

presença social nas interações textuais em ambientes on-line37 (chats, comunidades

virtuais, fóruns etc.)

Além disso, a cada nova atualização, o software é aperfeiçoado, aumentando a

capacidade de compreensão de contextos em que o usuário está inserido. A ideia é que nas

próximas versões do sistema operacional, Siri se apresente de forma mais proativa –

graças à combinação de inteligência artificial, mineração de dados contidos em aplicativos

diversos e as informações que os próprios usuários produzem e consomem por meios dos

dispositivos digitais –, sendo capaz de antecipar suas necessidades: “our phones will just

34 Disponível em <http://www.buzzfeed.com/caitlincowie/most-hilarious-questions-to-ask-

siri#.dtzQp1vA7>. Acesso em 02 ago. 2015.

35 Disponível em <http://www.buzzfeed.com/jordanzakarin/if-you-ask-siri-about-her-she-throws-

some-serious-shade#.fjLalXjY4>. Acesso em 20 nov. 2015. 36 Disponível em <http://corporate.canaltech.com.br/noticia/apple/apple-compra-startup-para-

deixar-voz-da-siri-mais-natural-50285/>. Acesso em 20 nov. 2015. 37 Vide trabalhos de Macedo (2011); Lowenthal (2005); Rourke et al (1999).

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know what we’re looking for. The idea is to get us what we want when we want it”

(GEAR, 2015, on-line).

Assim, a evolução de sistemas como Siri abre a possibilidade de pensarmos não

apenas a presença social desses objetos em nosso cotidiano, mas também a possibilidade

de uma hiperpresença para além dos filmes de ficção cientifica. Segundo Biocca, o termo

hiperpresença (hyperpresence) se refere à possiblidade de acesso à inteligência, intenção, e

impressões sensórias de um outro, que é, de certo modo, as capacidades que as novas

versões dos programas de assistentes virtuais buscam constantemente alcançar. Embora

Biocca esteja se referindo ao ambiente de realidade virtual ao tratar de hiperpresença, os

atuais avanços tecnológicos nos levam a refletir sobre essa noção em nossas vivências

cotidianas por meio da interação com sistemas de inteligência artificial que, cada vez mais,

integram os nossos dispositivos de comunicação.

4. Considerações finais

Hello I am here é a primeira frase que o sistema operacional Samantha, do filme Her,

pronuncia ao ser ativada e ilustra bem o quão pervasivos os objetos têm se tornando em

nossas vidas, especialmente neste momento em que a inteligência artificial parece ganhar

dimensões extraordinárias no contexto da chamada internet das coisas.

Nesse cenário em que a agência dos objetos se torna cada vez mais explícita, seja

por meio da chamada M2M (Machine to Machine), seja a partir das nossas próprias

relações com esses objetos, torna-se urgente problematizarmos a noção de presença social

– conceito chave para os estudos de realidade virtual –, a partir de experiências não

imersivas do nosso dia a dia.

Assim, se presença social está ligada com a capacidade de percebermos a

companhia de uma outra inteligência, seja ela humana ou não, nossos dispositivos, mais

do que presença social, caminham em direção a uma hiperpresença, à medida que, cada

vez mais, são capazes de processar dados contextuais e de se mostrar mais proativos diante

das necessidades dos usuários.

Dessa forma, ratificamos nossos argumentos de que a noção de presença social e

suas diversas nuances, tão importantes para os estudos de realidade virtual e ambientes

imersivos, tornam-se também cruciais para a compreensão das demais interações da vida

cotidiana.

Referências

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Governo móvel: perspectivas e desafios para a cidadania no Brasil

Autor: Cíntia Caldas Barcelar de Lima

Mestranda em Políticas de Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Graduada

em jornalismo e em publicidade pela UnB. Auditora Federal de Controle Externo

(orientação comunicação social) no Tribunal de Contas da União (TCU).

Email: [email protected]

Resumo

O crescimento no uso de smartphones causou grandes mudanças na comunicação,

incluindo novas formas de interação entre governos e cidadãos. Informações e serviços

públicos que antes estavam atrás de um balcão, tornaram-se disponíveis na tela desses

dispositivos. Frente a essa tendência, propõe-se uma reflexão sobre a efetividade dos

aplicativos móveis e sua contribuição para o exercício da cidadania.

Palavras-chave: governo móvel, comunicação móvel, aplicativos móveis,

cidadania, participação.

A expansão no uso da internet ocorre ao mesmo tempo em que se

desenvolvem mudanças sociais, econômicas e culturais na sociedade. Nesse novo cenário,

o uso dos smartphones ganha cada vez mais espaço na vida das pessoas, ao ponto de já

representarem mais do que um mero dispositivo tecnológico. Criam uma nova forma

expressão e acesso à realidade. “Os telefones móveis, em geral, são considerados como

uma posse pessoal, uma <extensão do corpo>, e seu significado não é somente utilitário,

mas também emocional e estético”.38 (ARDÈVOL, M. et. al., 2011, p. 28, tradução nossa).

A telefonia móvel foi a tecnologia que mais rapidamente se difundiu na

história das comunicações (CASTELLS, 2009, p. 98). De acordo com a União

Internacional de Telecomunicações (UIT), em 2000 havia 738 milhões de assinantes de

telefonia móvel. Em 2015 esse número já chega aos 7 bilhões de assinaturas. Os números

do crescimento da banda larga móvel também são impressionantes, com penetração de

47% até o final de 2015, 12 vezes mais que o registrado em 2007. A estimativa da UIT é

de até o final de 2015, 69% da população mundial esteja coberta por redes 3G. Em 2011, a

penetração era de 45%. 39

38 “Los telefonos móviles, em general, se consideran como uma posesión personal, una <extension del

cuerpo> , y su significado no es solamente utilitário, sino también emocional y estético.” (ARDÈVOL, M.

et. al., 2011, p. 28). 39 UIT. ICT Facts and Figures – The World in 2015.

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Em relação aos tipos de aparelhos, estima-se que já estejam em uso hoje no

mundo, cerca de 1,7 bilhões de smartphones40. A previsão é que em 2016 esse número já

supere os 2 bilhões de aparelhos, o que já equivaleria a quase metade do número total de

telefones móveis ativos no mundo. Mesmo nos países em desenvolvimento, apesar do alto

custo dos aparelhos e dos planos de acesso à internet móvel, o ritmo de crescimento no uso

desses dispositivos é alto.

O Brasil, por exemplo, já ocupa a sexta posição mundial, com 38,8 milhões de

unidades, ficando atrás de China, Estados Unidos, Índia, Japão e Rússia. O México ocupa

a décima primeira posição, com 28,7 milhões de aparelhos, a Colômbia a 22ª, com 14,4

milhões e a Argentina a 25ª, com 10,8 milhões.41 Calcula-se que em 2020 a América

Latina já seja a segunda maior em uso de smartphones, atrás apenas da Ásia-Pacifico.42

A ubiquidade e a conectividade permanente proporcionadas pela disseminação

dos smartphones criam novas formas de interação entre as pessoas e entre as pessoas e as

instituições. Escolas aplicam novas tecnologias ao ensino, empresas apostam na internet

para aumentar o consumo e governos redefinem as maneiras de interagir com o cidadão,

que agora contam com novos canais e possibilidades para a promoção da cidadania e da

participação na vida política.

Essa nova forma de relacionamento com os governos é reflexo não apenas das

possibilidades tecnológicas características da sociedade da informação, mas também do

advento de uma nova cultura em que os indivíduos buscam nos meios digitais, soluções

mais rápidas e econômicas para seus problemas diários.

"Foram-se os dias em que um governo podia ignorar os seus cidadãos e

esconder suas atividades. Até mesmo os governos mais autoritários não estão

imunes a partir dessas mudanças fundamentais na sociedade. Embora as

interações entre o Estado e os cidadãos tenham sido motivo de preocupação

tanto para teóricos quanto para praticantes de poder e de governo desde os

tempos antigos, as mudanças acontecendo hoje com a capacidade de acessar

informações, organizar e dar voz a opiniões são inéditas. As teorias existentes

têm de ser reexaminadas e modificadas para abordar esta mudança fundamental

na informação”43

. (EDWARDS & SANTOS, 2015, p. xv, tradução nossa)

Diante desse potencial, no início da década de 90 surgiram as primeiras

iniciativas de governo eletrônico, e-government, ou simplesmente e-gov, definido por

Ruediguer (2002) como a utilização das novas tecnologias da informação e comunicação

40 EMARKETER. 2 Billion Consumers Worldwide to Get Smart(phones) by 2016. 41 EMARKETER. 2 Billion Consumers Worldwide to Get Smart(phones) by 2016. 42 GSMA. The Mobile Economy. Latin America 2014. 43 “Gone are the days when a government could ignore its citizens and hide its activities. Even the most

autocratic governments are not imune from these fundamental changes in society. Although the interactions

between the state and citizens have been of concern to both theorists and practioners of power and

government since ancient times, the changes happening today with the ability to access information,

organize, and voice opinions is unprecedent. Existing theories have to be reexamined and changed to address

this fundamental shift in information”. (EDWARDS & SANTOS, 2015, p. xv)

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(TIC) tanto para a melhoria de processos internos dos governos quanto na sua relação com

fornecedores e cidadãos.

Em termos práticos, o governo eletrônico pode ser realizado pelo uso de

portais de governo, mensagens eletrônicas, aplicativos móveis e outras plataformas que

permitam a interação e a prestação de serviços públicos por meio da tecnologias digitais.

A utilização de tecnologias e dispositivos móveis para a execução de ações de

governo eletrônico são caracterizadas como governo móvel, m-government, ou m-gov.

Assim, enquanto o governo eletrônico abrange o uso de todas as tecnologias de

comunicação digital, o governo móvel restringe-se às plataformas móveis como tablets e

smartphones.

Kushchu (2007) define o governo móvel como uma estratégia envolvendo a

utilização de todos os tipos de tecnologias móveis e sem fio, serviços, aplicações e

dispositivos para melhorar os benefícios para as partes envolvidas no governo eletrônico,

incluindo cidadãos, empresas e todas as unidades de governo.

A Organização das Nações Unidas reforça esse entendimento ao defender que

apesar de estar em uma plataforma diferenciada, o m-gov deve ser compreendido como

uma modalidade integrante do governo eletrônico, que se diferencia das demais pelo uso

do canal móvel.

“Ele não deve ser visto como uma substituição ou um mero estágio progressivo

do e-governo. Na maioria dos casos de implementação de governo móvel, a

retaguarda ainda corre através do espectro da infraestrutura do governo

eletrônico para interoperabilidade e efetividade do custo. Ainda que as entradas

para os canais móveis apareçam em diferentes formas e funções, os

formuladores das políticas não devem considerar o governo móvel em meios

separados ou adicionais, mas sim, como um componente integral do governo

eletrônico”.44

(ONU, 2014, p.100-101, tradução nossa)

Estudo realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE) em conjunto com a União Internacional de Telecomunicações

(UIT)45 aponta a comunicação móvel como uma tecnologia capaz de oferecer aos

governos oportunidades significativas de promover a economicidade, aprimorar a

comunicação com a sociedade, aumentar a troca de informações, expandir a entrega de

serviços públicos e ainda combater a desigualdade digital.

“Com as tecnologias móveis, informação e ações podem ser coordenadas em

qualquer local e entre agências, melhorando a colaboração e a coordenação entre

autoridades públicas de diferentes níveis de governo. (...) Além disso, a

penetração dos telefones móveis aumenta o acesso a grupos que eram

44 “It should not be viewed as a replacement or a mere progressive stage of e-government. In most cases of

mobile government implementation, the back office still runs through the spectrum of e-government

infraestructure for interoperability and cost effectiveness. Even though the frontends of the mobile channel

takes on diferent forms and functions, policymakers should not consider m-government as separate or

additional means, but rather, as an integral componente of e-government”. (ONU, 2014, p.100-101) 45 OECD/ITU. M-Government: Mobile Technologies for responsive govenments and connected societies.

OECD Publishing, 2011.

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dificilmente difíceis de serem alcançados, por exemplo, cidadãos em áreas

rurais, e expande a accountability e a transparência governamental para um alto

número de cidadãos”.46

(OECD/ITU, 2011, p.13, tradução nossa)

Para Kushchu & Kuscu (2007) o governo móvel é um destino inevitável para

ferramentas de governo eletrônico.

“o número de pessoas tendo acesso a telefones móveis e conexões de internet

móvel está crescendo rapidamente. O acesso móvel – de qualquer lugar a

qualquer tempo – está se tornando parte da vida diária, e os governos terão que

transformar suas atividades de acordo com essa demanda de conveniência e

eficiência da interação para todas as partes”47

.(KUSHCHU & KUSCU, 2007,

p.1, 2, tradução nossa)

As ações de governo móvel tiveram início na década de 90, quando países

como Japão e Estados Unidos começaram a utilizar SMS48 para enviar alertas em massa

para a população. O recurso ainda é utilizado em muitos países para enviar notificações e

orientações para os cidadãos. No Brasil, por exemplo, campanhas educativas relacionadas

ao combate à dengue utilizam esse tipo de mensagem de texto para atingir o público alvo.

Com a disseminação dos smartphones as ferramentas de governo móvel

tornaram-se mais elaboradas, com a possibilidade de oferta de aplicativos móveis49 de

utilidade pública para smartphones. Esses aplicativos passaram a ser oferecidos aos

cidadãos em um número crescente de países. Em 2012, 29% dos 193 países integrantes da

ONU disponibilizavam aplicativos móveis como ferramentas de governo eletrônico. Em

2014 esse número aumentou para 49%50.

Em geral, essas aplicações buscam facilitar o acesso a serviços eletrônicos,

disponibilizar informações e orientações de interesse público. Também podem ser

oferecidas ferramentas para que o cidadão busque seus direitos e faça denúncias a

autoridades e órgãos de controle.

É comum que esses aplicativos fiquem concentrados em um endereço

eletrônico específico mantido pelo governo, para facilitar a localização pelos usuários que

poderão adquirir o software sem custos.

46 “With mobile technologies, information and actions can be co-ordinated in any location and among

agecies, improving collaboration and co-ordination between public authorities across levels of govenment.

(...) Furthermore, mobile phone penetration extends outreach and access to groups which are often difficult

to reach, e.g. citizens in rural areas, and expands government’s accountability and transparency to a higher

number of citizens”. (OECD/ITU, 2011, p.13) 47 “The number of people having access to mobile phones and mobile internet connection is increasing

rapidly. The mobile access – anywhere any time – is becoming a natural part of daily life, and the

governments will have to transform their activities according to this demand of convenience and efficiency

of interactions for all parties”. (KUSHCHU & KUSCU, 2007, p.1,2) 48 Sigla do inglês “Short Messaging Service” – serviço que permite o envio de mensagens de texto por meio

da rede telefônica móvel. 49 Também conhecidos como apps, são softwares desenvolvidos para executar tarefas específicas em um

dispositivo móvel 50 United Nations e-government survey 2014

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Nos Estados Unidos, o site oficial do governo americano51 reúne mais de uma

centena de aplicativos destinados aos cidadãos, que podem, entre outras formas, utilizá-los

para consultar leis, documentos públicos e o orçamento do governo, procurar empregos,

buscar informações e serviços de saúde e educação.

Na União Europeia, sites oficiais de países como França52 e Alemanha 53

disponibilizam centenas de aplicativos móveis aos cidadãos europeus para facilitar a

prestação de serviços públicos e disponibilizar informações nas mais diversas áreas.

Na América Latina, o portal do governo chileno54 oferece uma série de

aplicativos voltados à prestação de serviços jurídicos, de saúde, transportes e segurança

pública, além do acesso a informações de utilidade pública.

No Brasil, o Guia de Aplicativos do Governo Federal55 disponibiliza dezenas

de aplicativos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário voltados ao acesso a

informações e à prestação de serviços. Lá estão, por exemplo, o aplicativo Câmbio Legal,

do Banco Central, que permite ao usuário identificar o local mais próximo para comprar e

vender moeda estrangeira, o aplicativo Brasil Banda Larga, que permite ao usuário testar a

qualidade de sua banda larga móvel e o Vacinação em Dia, do Ministério da Saúde, que

gerencia cadernetas de vacinação cadastradas pelo usuário.

Entende-se que, apesar de ainda estar no estágio inicial na maior parte dos

países, as ações de governo móvel mostram potencial para promover a participação e o

engajamento dos cidadãos, tornando-se uma ferramenta importante para o exercício da

cidadania.

Garcia e Lukes definem a cidadania como a conjunção de três elementos:

“1) a garantia de certos direitos, assim como a obrigação de cumprir certos

deveres para com uma sociedade específica; (2) pertencer a uma comunidade

política determinada (normalmente um Estado); e (3) a oportunidade de

contribuir na vida pública desta comunidade através da participação.” (GARCIA

Y LUKES, apud GORCZEVSKI, C.; MARTIN, N., 2011, p. 29)

Gorczevski e Martin (2011) defendem a participação política como

instrumento para a consolidação de um novo modelo de cidadania, calcado na democracia

e exercida por indivíduos ativos. “Na verdade é ela, a participação política, que transforma

o indivíduo em cidadão, que lhe dá a possibilidade de determinar sua própria sorte, de

participar do poder, de fazer as leis e de obedecer unicamente a estas.” (GORCZEVSKI,

C.; MARTIN, N., 2011, p. 126)

51 http://www.usa.gov/mobileapps 52 www.proximamobile.fr 53 https://www.govdata.de/ 54 http://apps.gob.cl/ 55 http://www.aplicativos.gov.br

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Assim, a cidadania não pode ser considerada como o mero exercício de

direitos e deveres, mas sim como o uso desses direitos e deveres para a participação na

vida pública. Dessa forma, a cidadania ocorre quando o indivíduo tem a oportunidade não

apenas de expor suas demandas e opiniões, mas de ter suas ideias e anseios considerados

na construção de soluções e melhorias das políticas públicas.

No Brasil, a cidadania é postulada como a prioridade do governo eletrônico.56

As diretrizes elaboradas pelo governo estabelecem ainda a participação como elemento

essencial nesse processo.

“A política de governo eletrônico do governo brasileiro abandona a visão que

vinha sendo adotada, que apresentava o cidadão-usuário antes de mais nada

como ‘cliente’ dos serviços públicos, em uma perspectiva de provisão de

inspiração neoliberal. O deslocamento não é somente semântico. Significa que o

governo eletrônico tem como referência os direitos coletivos e uma visão de

cidadania que não se restringe à somatória dos direitos dos indivíduos. Assim,

forçosamente incorpora a promoção da participação e do controle social e a

indissociabilidade entre a prestação de serviços e sua afirmação como direito

dos indivíduos e da sociedade”.57

O texto ainda adiciona que essa visão “evidentemente, não abandona a

preocupação em atender as necessidades e demandas dos cidadãos individualmente, mas a

vincula aos princípios da universalidade, da igualdade perante a lei e da equidade na oferta

de serviços e informações”.

A internet móvel tem o potencial de acentuar as possibilidades de participação,

à medida que adiciona a ubiquidade e a conectividade constante às possibilidades de

interação com o Estado. Assim, os aplicativos de interesse público podem ser utilizados

para promover o acesso a informações e serviços públicos eletrônicos e aumentar a

interação entre governos e cidadãos, que ganham um novo canal para enviar opiniões,

demandas e denúncias.

Entretanto, Carpentier (2012) defende que o acesso e a interação representam

condições importantes para possibilitar a participação, mas não podem ser igualadas a ela.

“O conceito de acesso é baseado na presença, em várias diferentes formas: por

exemplo, a presença de uma estrutura organizacional ou uma comunidade, ou a

presença ao alcance operacional de tecnologias de produção de mídia. Interação

é uma segunda condição de possibilidade, o que enfatiza a relação sócio-

comunicativa que é estabelecida, com outros seres humanos ou objetos. Embora

estas relações tenham uma dimensão de poder, esta dimensão não se traduz em

um processo de tomada de decisão”.58 (CARPENTIER, 2012, p.174, tradução

nossa)

56 Disponíveis em http://www.governoeletronico.gov.br/o-gov.br/principios 57 Diretrizes para o governo eletrônico brasileiro, disponíveis em www.governoeletronico.gov.br/o-

gov.br/principios 58 The concept of access is based on presence, in many different forms: for instance, presence in an

organizational structure or a community, or presence within the operational reach of media production

technologies. Interaction is a second condition of possibility, which emphasizes the social-communicative

relationship that is established, with other humans or objects. Although these relationships have a power

dimension, this dimension is not translated into a decision-making process. (CARPENTIER, 2012, p.174)

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O autor define a participação como um processo político em que os atores

envolvidos nos processos de tomada de decisão estão posicionados em direção ao outro

por meio de relações de poder que são, em certo sentido, igualitárias.

A partir desse conceito, entende-se que o uso dos aplicativos, bem como de

outras ferramentas de governo móvel, tornam-se efetivos à participação à medida que em

seu conjunto - por meio de políticas e diretrizes sólidas - ou isoladamente - por meio de

aplicações específicas - permitam que o cidadão tenha suas demandas percebidas e

consideradas.

Mas algumas barreiras precisam ser superadas para que esse modelo de

governo móvel torne-se real. Desafios que vão desde a garantia de acesso da população às

redes e aos dispositivos móveis até a legitimação dos aplicativos como forma válida de

participação. Além disso, é necessário considerar a necessidade de que sejam estabelecidas

políticas e diretrizes para o governo móvel, que orientem as ações ao interesse público e

garantam a efetividade e a usabilidade dos aplicativos para a prestação de serviços

públicos eletrônicos e para a interação com o cidadão.

Vale ressaltar que a ênfase dessa estratégia de aproximação e promoção da

cidadania não pode estar apenas na mobilidade, mas sim no interesse social. "O foco deve

ser de fato sobre as necessidades do setor público e para os usuários finais, sejam estes

cidadãos ou empresas, para garantir que a tecnologia seja explorada para reorganizar a

forma como os servidores públicos trabalham e para atender às necessidades dos cidadãos

através de uma melhor prestação de serviços”.59 (OECD/ITU, 2011, p.12, tradução nossa)

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Mesa 3 - REDES SOCIAIS E COLABORAÇÃO

Coordenação: André Pase

A comunicação de moda na era do Instagram:

dos it-bloggers às it-marcas

Daniela Aline Hinerasky60

ESPM-Sul

[email protected]

Resumo

O texto discute práticas comunicacionais recentes a partir do uso das mídias sociais, em

particular o Instagram, uma plataforma que tem se destacado na área da moda. Na esteira

do fenômeno dos blogs de moda e da celebrização dos seus autores, parte-se da figura

performática dos “it-bloggers” para estudar os digital influencers. Através de um

mapeamento inicial de iniciativas das grifes de moda neste aplicativo, busca-se conhecer

estratégias de comunicação de moda atreladas aos dispositivos móveis e a esse perfil

recente de celebridades.

Palavras-chave: comunicação; moda; dispositivos móveis; Instagram; celebridades

Introdução

Para além da banalização do ato fotográfico, a união da fotografia digital com

telefones celulares insere as imagens nas relações interpessoais, como nova maneira de

comunicação “scripto-visual”. Por interrogar o lugar da imagem no seu viés imaginário,

como expressão e representação, as tecnologias móveis elevam-na a eixo de laço social

(RIVIÈRE, 2006, p. 120-122).

Nesse viés, os dispositivos móveis, que reordenaram dinâmicas socioculturais e

comunicativas, alteraram também o mercado e os fundamentos da moda, tanto a maneira

como as roupas são desenhadas qunato os formatos de apresentação ao público. “Da forma

pela qual gravamos os desfiles à forma pela qual desenhamos e fazemos as roupas,

passando pela maneira com que as exibimos, tudo mudou”, argumenta o designer

Alexander Wang (Folha SP, 2014). As tecnologias digitais e as mídias sociais também

mudaram as formas pelas quais a moda é consumida e compartilhada.

Foi com a consolidação do fenômeno dos blogs de moda61 e street-style, em

meados dos anos 2000 (HINERASKY, 2010; 2012), que dinâmicas comunicacionais

60 Jornalista e pesquisadora nas áreas da moda e comunicação, é doutora em Comunicação pela PUC/RS, com estágio e

bolsa CAPES/PDEE, na Sorbonne/Paris V. Professora no Curso de Jornalismo da ESPM/RS, possui mestrado em

Comunicação e Informação pela UFRGS. E-mail: [email protected] 61 A despeito das suas fronteiras porosas e estreitas, Rocamora & Bartlett (2009) distinguem dois tipos de blogs de moda:

aqueles mais próximos à forma de “jornal íntimo” (proposta original do formato), isto é, aqueles que publicam notícias e

fotos de moda ou de seus autores com textos mais ou menos longos; e os blogs street-style (moda de rua), em que

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sofreram transformações significativas. Os blogs e as redes sociais introduziram formas de

consumir informação de moda atreladas a estratégias de relacionamento, tanto interativas

quanto imediatas, trazendo possibilidades de mercado (e-commerce) e consagrando estas

plataformas no âmbito econômico.

As marcas, ao reconhecer que seus clientes passaram a ocupar tempo na

visualização e leitura dos conteúdos postados pelos blogueiros, começaram a valorizar

esses sites enquanto veículos de comunicação, e seus autores, enquanto formadores de

preferências de grupos sociais significativos e, mais que isso, estrelas. É quando os

blogueiros são legitimados não apenas como indicadores do cool, mas como “star-

bloggers”, um tipo de celebridade cujas atividades e performance os tornaram uma marca,

e junto com seus perfis nas mídias sociais, uma rede de negócios.

A partir desse cenário, o texto aponta avanços das discussões da autora nas

relações entre comunicação digital e moda, propondo uma continuação de pesquisas

anteriores. Tomando a figura performática e central dos “star-bloggers” ou “it-bloggers”,

na esteira do fenômeno dos blogs de moda, o intuito é verificar estratégias de comunicação

de moda nas plataformas móveis e estudar a figura de um novo perfil de celebridades, os

“digital influencers”.

Entre os objetivos, nos propomos a elencar iniciativas de comunicação das grifes

de moda e/ou perfis pessoais no Instagram, no intuito de identificar estratégias de

comunicação atreladas a este modelo recente de influenciadores consagrados. Em sentido

amplo, buscamos verificar os modos como essas redes mobile podem modificar

comportamentos de consumo.

Para discutir as mudanças nas estratégias de comunicação a partir das tecnologias

móveis, voltamo-nos inicialmente para o fenômeno dos blogs de moda e para as dinâmicas

da celebrização dos seus autores.

Dos “It-Bloggers” Às “It-Marcas”

Existem milhares de blogueiros de moda e street-style desde a febre do

fenômeno, em 2006, em cujos sites e redes online são compartilhadas imagens pessoais ou

fotografias de outras pessoas e seus looks nas ruas ou em portas de desfiles e eventos,

mundializando e desterritorializando estilos e, ao mesmo tempo, popularizando

tendências, modismos e grifes.

No segundo semestre de 2011, a repercussão sobre o assunto voltou à tona, com

avanços em dois aspectos: primeiro, quanto à publicidade nos blogs e recorrente

predominam as fotografias (ou até vídeos); mas a pluralidade dos mesmos é ultrapassada pelas temáticas do segmento

(beleza, esmaltes, moda masculina etc), pelos diferentes objetivos (blogs corporativos e promocionais), bem como pela

mistura de abordagens e assuntos no mesmo endereço (blogs mistos).

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celebrização de seus editores; segundo, com respeito à proliferação e diversificação desses

sites, em diferentes formatos e conteúdos. Em 2014, o movimento dos blogs street-style

permanece em alta, mas os debates adquiriram contornos diferenciados. Após

democratizarem a moda e colaborarem para o crescimento de um espaço independente na

indústria e na comunicação, geram controvérsias sobre a divisão gerada no mercado da

publicidade e sobre o valor desse conteúdo.

Ao elencarmos (HINERASKY, 2014) etapas da evolução do fenômeno da

blogagem de moda – Blogging Opening ou Fase Exploratória; Star Blogging ou Fase da

Celebrização; Blogging Business ou Fase da Profissionalização; Blogging Beta ou Fase da

Renovação –, evidenciamos que a profissionalização pode ser relacionada à “era de ouro”

dos blogs, concomitantemente à necessidade da manutenção do gênero, que circunda no

meio-termo entre o blog e um site de revista. “Passaram por uma época transgressora,

sacudiram o então fechado mercado da moda e agora vivem o dilema da maturidade em

meio às redes sociais” (ELLE, 2014, p. 146)

Entre 2006 e 2009, os números de audiência dos blogs levam à sua exploração

econômica, com investimentos publicitários – anúncios estratégicos, integrados às lojas

virtuais, publiposts (nem sempre explícitos, porém) – parcerias e colaborações62 entre

autores e empresas do setor. As atividades variadas abrangem: contratos para participação

em eventos, conferências, palestras e cursos; programas audiovisuais, publicações,

consultorias, além de co-criações de produtos. Também recebem convites para dirigir

campanhas publicitárias ou realizar as sessões de fotos e editoriais para revistas, atuando

ora como modelos, ora como fotógrafos.

Diversos produtos são derivados do blog-mãe, como outros blogs ou sites, alguns

que seguem linha editorial diversa e alguns que são e-commerce, muitos dos quais

combinam conteúdo editorial e loja; vídeos para o blog (canais, Web-séries); filmes e até

livros, num movimento midiático inverso, do digital para o papel.

O gerenciamento de imagem e de credibilidade do produto e dos autores, por

meio da formação de uma equipe, de assessoria especializada ou por auto-gestão

(LOVINK, 2008, PRIMO, 2009) fazem parte desses procedimentos, claramente

reafirmados, na prática, com rotina professional, por meio de posicionamento, publicação

de suas agendas, contatos, regularidade dos postagens, além do uso frequente das redes

sociais online (HINERASKY, 2012b).

O processo de mercantilização da narrativa visual no rastro histórico da

comunicação de moda (MACHADO, 2013), de especificidades de experiências (são

62 Os editores de alguns blogs consagrados começaram a ser chamados para parcerias, campanhas, anúncios publicitários

e trabalhos com diversas marcas, entre as quais: Net-à-Porter, Corello, Massimo Dutti, Coach Rag & Boné, Tiffany.

Alguns também são contratados para co-criações de peças ou coleções, como Garance Doré, Yvan Rodic, Camila

Coutinho, Thassia Naves, Lalá Noneto, Cris Guerra e Ana Clara Garmendia, por exemplo.

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diversos tipos de blogs e redes), de monetização dos blogs e de celebrização dos autores

instituem uma espécie de dinâmica da blogagem que implica “modos de proceder” entre

autores, leitores e anunciantes, uma processualidade profissional e uma performatividade

que consagram os blogueiros e as mídias sociais como rede de negócios (HINERASKY,

2012).

A celebrização dos autores, amadores ou profissionais, distingue a figura

performática e emblemática dos blogueiros (embora não verdadeiramente nova),

produtores de conteúdo que adquiriram status de formadores de opinião ou influenciadores

digitais (“digital influencers”), embasados tanto na produção de fotografias e conteúdo

original, como também na capacidade de produzir um senso de estilo e refletir a estética

urbana.

Em função da sua audiência, mesmo sem experiência ou “cultura de moda”63,

passaram a ter convites disputados para eventos, privilégios, presentes e roupas

emprestadas e uma aura de glamour. Passaram a ir às fashion weeks e aparecem de modo

regular na lista de “pessoas mais influentes” em revistas, jornais e sites. Com frequência,

começaram a ser fotografados por outros blogueiros ou fotógrafos de outros veículos,

tendo seus estilos dissecados, e seus endereços e conselhos de moda ditos aos leitores.

Consideradss “star-bloggers”, “it-bloggers” e até “it-girls”, nos últimos anos,

passaram a assumir o papel de personalidades, personagens ou modelos, tornando-se um

perfil recente de celebridades, cujo lifestyle, autenticidade e performance (GOFFMAN,

1975) são variáveis64 que implicam na sua consagração. Podem ser chamados de

“webcelebridades” ou “microcelebridades” (SENFT, 2008; PRIMO, 2009, 2009b;

BRAGA, 2010) se considerarmos o alcance variável e restrito com relação aos grupos de

interesse ou temáticas (o que justifica o o prefixo ‘micro’). Em processos midiáticos

novos, eles têm conquistado segmentos da audiência mais amplos, em função da atuação

diversificada, atuante e interativa nos diversos sites de redes sociais. É justamente esse

aspecto dialógico e a disponibilidade para a audiência (MARWICK, 2011) que os

diferencia das celebridades olimpianas.

Inicialmente, além da independência65 editorial e da interatividade – essências da

blogagem –, o conteúdo e estilo próximos da realidade dos leitores geravam a

identificação entre ambos e eram principais elementos do patrimônio dos blogueiros, hoje

63 A crítica em torno das blogueiras de moda reapareceu em julho de 2014 na entrevista do editor do jornal Le Figaro

dada ao FFW. Ler mais em: DUARTE, Marcela. “Blogueiros não têm muita cultura de moda”, diz editor de moda do

jornal francês Le Figaro”. FFW, 17/07/2014. Disponível em: http://ffw.com.br/noticias/gente/blogueiros-nao-tem-muita-

cultura-de-moda-diz-editor-de-moda-do-figaro-um-dos-principais-jornais-da-franca/ Acesso em 30 de julho de 2014. 64 Ao exercer um conjunto de interlocuções, representações e atitudes de perspectiva dramatúrgica que envolvem a

aparência, os relacionamentos e a persuasão-sedução, autores de blogs transformma as calçadas e portas dos desfiles em

uma espécie de palco, no qual executam uma mis-en-scène. 65 Somado ao livre acesso ao universo da moda, o bajulamento das marcas e das agências de publicidade aproximaram os

blogs das aparências e silhuetas irreais dos editoriais das revistas, num movimento contrário à independência dos blogs e

à insatisfação ao padrão dominante de representação da moda das últimas décadas.

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substituídos pelo protagonismo visual e por recursos e valores sociais presentes nas redes

que configuram o prestígio social frente aos “outros”, chamado de capital social

(RECUERO, 2009, 2012). O capital social compreende um conjunto de estratégias para

manutenção da popularidade e autoridade e vem a estar cada vez mais ligado ao

investimento66 de cada ator em cada uma dessas insâncias, em particular, as redes sociais

em que atua e, por conseguinte, no retorno e/ou benefício deste investimento, seja

econômico ou humano.

As poucas blogueiras de moda e street-style bem-sucedidas deixaram de publicar

o lado cotidiano, real e humano da moda de não-especialistas que falam para não-

especialistas, e começaram cada vez mais a publicar imagens de sonhos, com fotos de

maior qualidade e editadas, roupas de marcas-desejo, inacessíveis para a maioria, em

cenários de eventos de moda e grandes metrópoles.

Ao tornar-se referência em conceito de moda por meio da representação digital

cotidiana sustentada no estilo pessoal, meninas privilegiadas e personalidades se tornam

conhecidas nesses ambientes, em particular no Instagram. A fama na blogagem torna-se

chancela para a conquista de barganhas e parcerias, jabás, anunciantes e contratos,

transformando seus conteúdos em “publi-editoriais” e esses indivíduos em uma marca

midiática aspiracional.

Assim, enquanto difusores de fotografias instantâneas, conteúdos vestimentares

ou aparências impactantes através de uma plataforma midiática potencializada pelos

dispositivos móveis, o usuário passa a ser ele mesmo uma mídia, demonstrando que

“qualquer aparelho midiático conspira para essa produção narcísica de auto-referência ou

visibilidade” (BOUGNOUX, 1994, p. 61).

Num contexto das plataformas móveis, uma tendência latente são os “digital

influencers” ou formadores de opinião, indivíduos especialistas ou amadores que não

possuem site ou blog, mas que produzem conteúdo e tem popularidade a partir de alguma

rede social, como o Instagram. Inclusive, são conhecidos especialmente por seus perfis

nesses sites (Instagram, Youtube, Facebook, Twitter e/ou Pinterest).

No universo da moda, existem dois grandes grupos na categoria dos “digital

influencers”: de um lado, amadores, especialistas ou fashionistas que se tornam

conhecidos a partir da web, muitos das quais são famosos simplesmente por serem

famosos, por terem estilo, ou em função da percepção dos demais na vida deles. De outro

lado, alguns são celebridades oriundas do show-bizz: atrizes, atores, músicos, cantores,

66 “Como recurso, o capital social é passível de acumulação e transformação em outras formas de capital, como o

econômico (Bourdieu, 1983) e o humano” (RECUERO, 2012, p. 600). Ou seja, as ferramentas passam a ser usada como

uma forma de maximizar o acesso aos valores sociais, influenciando percepção e construção de capital social, cujo

caráter dinâmico dos recursos das redes, na mesma ferramenta, são destacados por Recuero (2012).

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personalidades nacionais ou outros artistas anteriormente legitimadas em algum veículo

das mídias tradicionais, como TV, cinema, revistas etc.

Os “digital influencers” são qualificados pela expressividade das “cotações”,

onde o valor de cada um está associado ao número de ‘outros’ que participam da sua vida

ou ‘comunidade’ e às notas que eles lhe atribuem (BRUNO, 2004, p. 25). Na prática, esse

prestígio é facilmente constatado e tem a ver ao número de “curtidas” atribuídas na página

do Facebook, à quantidade de amigos e ao número de seguidores no Instagram, por

exemplo.

Significa afirmar que os “digital influencers” são indivíduos de capital social

constituído em torno de um ou mais perfis nos sites de redes sociais, nos quais a imagem,

a aparência, a atitude e a representação do restrito circuito da moda, seus eventos e roupas

de luxo são validadores.

O Instagram Na Moda

Criado em outubro de 2010, o Instagram é uma rede social online em formato de

aplicativo para dispositivos móveis que permite aos seus usuários tirar fotos e vídeos

curtos (de até 15 segundos), aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de

serviços (Facebook, Twitter, Tumblr e Flickr). Inicialmente, uma característica distintiva

era o fato de limitar as fotos no formato quadrado (semelhante ao Kodak Instamatic e as

câmeras Polaroid), em contraste com a proporção de tela de 16:9 típica das câmeras de

dispositivos móveis (CAVENDISH, 2013).

Possui mais de 150 milhões de usuários, e quase dois terços destes interagindo e

se engajando ativamente todos os dias com a plataforma. Ou seja, das 150 milhões de

pessoas que têm conta no Instagram, aproximadamente 90 milhões usam a ferramenta

diariamente. Segundo dados da Intelligence Report, grupo da Luxury Lab (L2), da

Universidade de Nova York, publicados pela Fashion Forward (FFW, 2014), o Instagram

é a plataforma social mais poderosa do mundo, com 15 vezes a taxa de engajamento do

Facebook (proprietário do Instagram). Para Galloway (2013), “é melhor ter 150 milhões

de usuários que são 15 vezes mais engajados do que um público de 1,3 bilhões (número de

usuários do Facebook)”.

A plataforma está tão em alta, que para a 52a edição (2014) da premiação mais

importante no mercado da moda, o “CFDA Fashion Awards”67, foi criada a categoria

“Fashion Instagrammer of the Year Award”, com oito perfis na competição. Para os

organizadores do prêmio, a iniciativa é mais uma prova da influência crescente das redes

67 Council of Fashion Designers of America

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sociais no mundo da moda e, em especial, a emergência de personalidades que se tornam

conhecidas a partir desses ambientes.

Por ser a rede social online mais utilizada no mundo para compartilhar imagens

em função da mobilidade e ubiquidade, o Instagram ressignificou o uso das câmeras no

celular e tornou-se estratégica para o mercado da moda. Tem se mostrado eficiente para o

jornalismo e para a publicidade, na criação e configuração da identidade de veículos,

profissionais e empresas.

A Comunicação De Moda Na Era Do Instagram

As publicações e sites especializados, que até a primeira década da Internet eram

os veículos online essenciais na cobertura das coleções, tiveram seu território invadido por

uma diversidade de produtores de imagens e conteúdos, anônimos mas também famosos,

munidos de tecnologias móveis ligadas a redes wifi ou 3G, capazes de publicar em tempo

real os flagrantes das passarelas, bastidores e vitrines da moda.

Significa que universo da moda está ao alcance da mão por alguns “touchs-

screens” (toques de tela), dinâmica que reordenou processos de comunicação e marketing

de produtos, destacados pelo estilista Tom Ford68, em entrevista ao NyMag.com:

Algo novo está acontecendo que eu estou apenas apontando agora - Isso

provavelmente não vai cair bem para a imprensa -, mas os clientes não se

importam mais sobre as análises ou publicações em cópias impressa. Eles estão

interessados na imagem que a Rihanna acabou de 'Instagrammar' enquanto ela

estava nua na cama, os novos sapatos que ela veste, e o que ela está falando sobre

eles (NyMag.com, FORD, 2014).

Já é realidade que milhares de pessoas acessam informações de moda dos seus

smartphones, direto dos perfis das marcas ou de usuários participantes em eventos de

moda. “Vejo os desfiles no Instagram, agora”, afirma. Eva Chen, editora-chefe da revista

“Lucky” (FFW, 2014). Nesse sentido, os dispositivos mobile assinalam um turning-point

na renovação das estratégias de comunicação, pelo alcance que os conteúdos dos usuários

(pessoais ou empresarias) atinge dependendo da popularidade da contas.

Num contexto de mudanças na esfera da produção e do consumo, o jornalismo e a

publicidade têm se adaptado. A imprensa mundial, como Vogue, Elle, Harper’s Bazzar,

FFW, tem experimentado produções a partir do Instagram. A edição brasileira da

Glamour69 realizou o primeiro editorial de moda no aplicativo no dia 02 de abril de 2014,

com sete fotos produzidas especialmente durante o primeiro dia da São Paulo Fashion

68 O designer Tom Ford, que hoje é consciente do papel do Instagram e dos instagrammers célebres, tem um histórico

conflitante em relação às mídias sociais nos últimos anos. Primeiramente, baniu o uso de telefones celulares de seus

desfiles e somente rendendo-se ao status quo temporadas atrás, quando incluiu até mesmo uma camisa temática de Jay-Z

Instagrammada em seu último desfile. 69 Revista faz editorial de moda no Instagram. Meio e Mensagem, 02 de abril de 2014. Disponível em:

http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2014/04/02/Revista-faz-editorial-de-moda-no-Instagram.html

Acesso em 05 de junho de 2014.

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Week (com a modelo Maria Golob e fotos de Rodrigo Bueno). Cada uma das postagens

teve as informações de preços e das marcas apresentadas.

Por seu turno, empresas do setor da moda e da beleza e os estilistas procuram

repensar suas atuações, preocupados não somente em inovar nas apresentações das

coleções, mas em se aproveitar do potencial da Internet e da mobilidade. Vale dizer que o

Instagram permaneceu livre de monetização até última semana de outubro de 2013,

quando se lançou oficialmente como plataforma de publicidade. A estreia mundial da

publicidade no Instagram foi nos Estados Unidos, sendo uma marca de moda a a pioneira:

Michael Kors (@michaelkors).

O primeiro anúncio foi em 1º de novembro daquele ano, com uma foto produzida

da linha de relógios do estilista, num cenário parisiense e a seguinte legenda: “5:15PM

Pampered in Paris #mkt timeless” (“5h15min Mimado em Paris #mktatemporal). O

anúncio começou a aparecer na timelines (linhas do tempo) dos consumidores-usuários do

público-alvo e recebeu comentários variados, de reprovação e aprovação.

Embora houve muitas críticas, conforme reportagens publicadas sobre o tema, o

perfil da grife angariou 16 vezes mais novos seguidores com o anúncio patrocinado do que

com as postagens não pagas e é considerada a marca de luxo top no Instagram, seguida de

Gucci, Louis Vuitton, Burberry, Christian Louboutin, Prada, Marc Jacobs, Ralph Lauren,

Versace e Valentino.

Desde então, Inglaterra, Austrália, Canadá e França adotaram o formato de

publicidade70, o qual pode ser direcionadas por gênero, idade e país. “O Brasil é, agora, o

sexto país a vender mídia na plataforma” (CASTELLON, 2015). Os posts pagos se

aproximam bastante de uma publicação normal na rede em foto ou vídeo, com a diferença

de vir com a palavra “patrocinado” ou “sponsored” acima, no lado direito.

Além dos posts publicitários que aparecem na linha do tempo independentemente

de seguirmos ou não seguirmos a marca que está anunciando, empresas experimentam

outras estratégias a partir das ferramentas disponíveis na rede social mobile, como o uso

de mensagens diretas – caso da Gap – e de vídeos, sendo Burberry e Levi’s as primeiras a

testarem este procedimento.

A grife Calvin Klein possui um planejamento estratégico de comunicação para as

mídias sociais, já que somente no Instagram realiza uma abordagem especializada, em três

frentes: publicação na conta oficial; campanha de produto e campanha fortalecimento da

hashtag, estas últimas com a impulsão por meio de celebridades.

A conta @CalvinKlein publicou conteúdo do diretor criativo Francisco Costa, da

blogueira Hanneli Mustaparta e da modelo Vanessa Axente, rosto da Calvin Klein

70 Regras e tutorial para criar anúncios publicitários no Instagram disponíveis em:

https://www.facebook.com/business/help/976240832426180 Acesso em 15/11/2015

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Collection. A marca também usou pela primeira vez o Instagram Direct, que foi

usado para que Francisco Costa se comunicasse com quem estava assistindo ao

desfile. […] A partir de 17/02, a marca também promoveu a campanha em

homenagem à lingerie com o logotipo “Calvin Klein” no cós, que ficou muito

popular nos anos 1980 e 90, com um teaser do projeto digital “mostre o seu.

#mycalvins”. Mais de cem formadores de opinião de 15 países, com alcance de

mais de 250 milhões de fãs em redes sociais, foram contratados pela marca, como

atores, blogueiros, modelos e músicos. Entre eles estão Fergie, Lara Stone, Cody

Simpson, Poppy Delevingne e Hanneli Mustaparta. A marca também vai promover

a hashtag em todas as suas contas de redes sociais (FFW, DUARTE, 2014).

Segundo dados de 2013 da Interbrand, publicados na Exame, as marcas mais

atuantes no Brasil nesta rede são Schutz, Melissa, Renner, Colcci e Farm, mas algumas

também já realizaram campanha, como a estilista Cris Barros. Ela lançou, em fevereiro de

2014, um projeto de divulgação da grife que envolvia uma microsérie71 com 12 filmes

publicados diariamente no perfil da marca (@crisbarrosbrand).

A partir deste levantamento, é possível elencar os seguintes formatos e

abordagens de comunicação de moda em ambiente mobile: a) anúncios patrocinados; b)

publicação de conteúdo de imagens ou vídeos através da conta oficial ou dos

designer/diretores criativos; c) uso do serviço de mensagens diretas (Direct messaging) do

Instagram; d) produção e publicação de vídeos e/ou webséries; e) parcerias e contratação

de influenciadores (blogueiros, modelos, músicos, atores, personalidades etc) para

divulgação dos lançamentos e produtos; f) promoção de hashtags (#) em todas as suas

contas.

Os designers e marcas têm empregado o Instagram para fazer circular de modo

ainda mais instantâneo as novidades porque já entenderam que é uma ferramenta exitosa

para se aproximar dos consumidores por lidar com imagens, as quais operam com o

imaginário e o desejo das pessoas. “Com o Instagram é possível separar-se dos atributos

físicos do produto e se aproximar mais do marketing de ‘engajamento’ (participação),

onde temos a possibilidade de colocar a uma marca onde quer que esteja, por vinculá-la a

sentimentos e idéias de uma forma muito poderosa”, explica Gonzalez (2011), o criador da

comunidade e blog instagramers.com .

Ademais, as empresas não só aproveitam do senso de estilo desses sujeitos, que

servem como referência, como também aproveitam seu apelo e alcance popular para

desenvolver estratégias criativas com seus consumidores. Um exemplo multi-uso desses

influenciadores celebres no Instagram é a campanha que a marca DKNY realizou em

junho de 2014 em conjunto com Cara Delevigne. Além da modelo assinar 15 peças para a

coleção da grife, inspiradas nela mesma, foi convocada para escalar, através da

71 A microsérie foi produzida pela Wepictures, com roteiro de Camila Fremder e direção de cena de Caroline Oliveira e

do americano Lee Phela. As cenas de “estética noir inspirada nos artistas Egon Schiele e Otto Dix, ambos

expressionistas. O elenco dos episódios é composto por oito mulheres, entre elas a apresentadora Didi Wagner” (FFW,

DUARTE, 2014).

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plataforma, demais modelos para estrelar a campanha da próxima coleção. “Com as

hashtags #CaraWantsYou e #CaraD4DKNY, a top vai escolher duas new faces que serão

clicadas com ela em Nova York”.

As empresas alcançam os consumidores tanto pela identidade visual constituída

nos diferentes perfis oficiais, quanto pela informação espontânea ou contratada de imagens

e comentários sobre lançamentos por parte de influenciadores. Trata-se de uma espécie de

inversão dos fluxos tradicionais de divulgação e planejamento de comunicação e

marketing, tendo em vista que os mesmos dependem também da percepção e avaliação

desses incluenciadores, críticos e/ou clientes.

O reconhecimento das marcas em torno do potencial influenciador de

personalidades e de figuras conhecidas nestas redes tem levado à recorrente busca por

parcerias ou contratação desses intermediários na divulgação. “Nós pensamos que seria

inovador começar uma campanha com os influenciadores postando imagens antes mesmo

da marca”, disse Carfrae (2014), diretor de comunicações da Calvin Klein.

Dessa forma, houve, de um lado, a dinâmica emergente da mercantilização das

pessoas e conteúdos e, de outro, a personalização das marcas. O Instagram, em particular,

tornou-se um dos campos de batalha das grifes, com diferentes experiências. Nesta

perspectiva, o perfil virtual de uma personalidade já é considerado mais influente do que

qualquer análise de moda da imprensa segmentada, tendo em vista o fato de que “pessoas

estão se tornando marcas e tudo o que uma marca quer é ser uma pessoa” (NOBRE, 2014).

Considerações

Em uma pesquisa em andamento, é complexo apontar considerações finais.

Primeiro porque estamos na busca de encontrar os eixos teóricos e empíricos do estudo e,

no mesmo sentido, na fase de realizar a pesquisa documental e a observação exploratória

na plataforma. Parcialmente, constatamos que há uma exploração por parte do mercado de

figuras populares e célebres, que, por serem aspiracionais, tendem a impulsionar o

consumo e, inclusive, transformar clientes em fãs.

De forma eminente, os “digital influencers” são celebridades recentes e, por

vezes efêmeras, sujeitos midiáticos atrelados à sua condição de marca. Embora muitas

dessas pessoas são famosas sem ter alguma especialidade, são profissionais na

manutenção da fama, sendo o sucesso algo a ser trabalhado por meio de planejamento e

rotina profissional.

A pesquisa segue na busca da compreensão das estratégias de comunicação,

reconhecendo que a construção da imagem de “instacelebridades” é algo que depende de

uma série de “modos de proceder” tal qual a blogagem professional. De qualquer modo,

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uma pista é encontrada: no processo de aproveitamento dos influenciadores, “it-people”

tendem a tornar-se “it-marcas”.

.

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Jovens no Instagram e as novas formas de construção de

identidades

Andressa Fantoni72

Resumo: O aplicativo e rede social para compartilhamento de fotografias e vídeos

Instagram é amplamente utilizado pelo público jovem. Este trabalho busca

compreender as possibilidades de construção e apresentação de identidades que a

juventude encontra nessa plataforma, a partir de uma revisão bibliográfica sobre práticas

ciberculturais juvenis. Considera-se que a supremacia da cultura orientada pelo visual no

aplicativo colabora para a valorização de aspectos estéticos dos conteúdos

compartilhados e a projeção de identidades desejáveis sob o olhar do outro.

Palavras-chave: Comunicação social; juventude; identidade; redes sociais;

internet.

Introdução

À medida que se tornam populares e acessíveis, as plataformas avançadas de

comunicação e informação são habilmente incorporadas pelos sujeitos às atividades de

suas rotinas, tornando-se parte constante e necessária de seu dia a dia. Em se

tratando especialmente dos jovens de nosso tempo, que cresceram durante os anos em

que a internet, os celulares e smartphones penetraram no cotidiano das pessoas,

nota-se uma facilidade particular em empregar as novas tecnologias. Como explica

Urresti (2008), essas transformações são naturalizadas gradualmente, deixando de ser

vistas como uma revolução constante para se tornarem hábitos comuns, vividas como

certezas pelos mais jovens.

Na juventude, o processo de subjetivação dos indivíduos é aberto à

temporalidade histórica sem as experiências prévias que se possui na vida adulta.

Como sujeitos em formação, adolescentes e jovens encontram-se em uma etapa crucial

de sua socialização. Em rede, participam de jogos profundos de socialidade, subjetivação

e construção de identidade (URRESTI, 2008). Nesse sentido, Gardner e Davis

(2013) veem nos aplicativos de dispositivos móveis ferramentas para que os jovens

expressem e explorem suas identidades, a exemplo do Instagram, plataforma e rede

72 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS. Bolsista Capes. Email:

[email protected]

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social para o compartilhamento de fotografias e vídeos em que representam a maior

porcentagem da audiência.73

Considerando a identidade uma esfera central na vida dos jovens remodelada

pelas novas tecnologias (TURKLE, 2011), através de uma reflexão teórica a respeito das

práticas ciberculturais juvenis, este texto busca compreender as possibilidades de

composição e projeção de identidades que a juventude experimenta no Instagram.

Partindo do pressuposto de que as redes sociais na internet permitem ao sujeito não só a

afirmação de quem ele é, mas de quem gostaria de ser (TURKLE, 2011), compreende-se

que é possível apresentar identidades “melhoradas” – e, ao mesmo tempo, “pré-

embaladas” – com o auxílio das ferramentas do aplicativo.

O que é, afinal, ser jovem?

Conforme Margulis e Urresti (2008), é fundamental reconhecer a imprecisão do

conceito de juventude; parece mais adequado falar de “juventudes” ou “grupos juvenis”,

rejeitando a concepção de mera categoria etária de características uniformes e

reconhecendo que a condição histórico-cultural de juventude não se oferece de igual

maneira a todos os integrantes da categoria estatística jovem.

Assim, os autores trazem a noção de moratória social para contemplar as

condições desiguais em que se encontram os indivíduos que pertencem à mesma

faixa etária e a diferentes setores sociais. Tal moratória é um período

marcado pela suspensão de obrigações e responsabilidades, reservado a jovens de

classe média e alta, que desfrutam da oportunidade de estudar por um período maior e,

assim, adiar as exigências da vida adulta, compreendidas como o dever de construir uma

carreira profissional e instituir família. Os membros de setores populares não têm a

mesma possibilidade de acessar a moratória social pela qual se define a condição de

juventude, pois, geralmente, necessitam entrar cedo no mercado de trabalho e tendem a

iniciar as obrigações familiares precocemente.

Complementar ao conceito de moratória social é a moratória vital,

compreendida como crédito ou capital temporal – este, sim, associado à idade e comum

a todas as classes; é um excedente de tempo, reduzido para aqueles que não são jovens,

que se reflete em aspectos relacionados à energia, condição física, afastamento da

morte, etc. Em resumo, os autores definem a juventude como

uma condição que está estruturada socialmente e culturalmente em

termos de idade - como crédito de energia e moratória vital, ou

distância da morte - com a geração a que se pertence - enquanto

73 37% dos usuários do Instagram tem entre 16 e 24 anos. Disponível em: <http://goo.gl/rYtgLJ>. Acesso em

12 nov. 2015

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memória social incorporada, experiência de vida diferencial - com a

classe social de origem - como a moratória social e período de atraso -

, com o gênero - segundo as urgências temporais que pesam sobre o

homem ou a mulher-, e com o lugar na família - que é o quadro

institucional em que todas as outras variáveis se articulam.

(MARGULIS E URRESTI, 2008, p. 29)

No presente trabalho, é especialmente relevante pensar nas juventudes em termos

de geração, definida como

[...] a circunstância cultural que advém de ser socializado com códigos

diferentes, de incorporar novas formas de perceber e apreciar, de ser

competente em novos hábitos e habilidades, elementos que separam os

recém-chegados no mundo das gerações mais velhas. (MARGULIS E

URRESTI, 2008, p. 19)

Entre jovens com acesso à internet há a partilha de uma cultura comum, tendo em

vista que reconhecem as mesmas linguagens, habilidades e códigos característicos à

familiaridade com tecnologias digitais. Se “cada geração pode ser considerada, até

certo ponto, como pertencendo a uma cultura diferente, na medida em que incorpora

novos códigos e habilidades de socialização, linguagens e formas de perceber, apreciar,

classificar e distinguir” (MARGULIS e URRESTI, 2008, p 18), entende-se que jovens

inseridos na cultura digital fazem parte da mesma geração.

Práticas ciberculturais juvenis

Gardner e Davis (2013) consideram as tecnologias dominantes decisivas na

definição e duração das gerações, sendo a extensão de uma geração subordinada à

longevidade de determinada inovação tecnológica. Os autores argumentam que a

juventude74 atual constitui o que chamam de “app generation”

4, pois não somente está

imersa em aplicativos para dispositivos móveis, mas percebe o mundo como um

conjunto deles. Um grupo de aplicativos “é a combinação de interesses, hábitos e

conexões sociais que identificam uma pessoa”

(GARDNER E DAVIS, 2013, online).

Um número crescente de jovens utiliza aplicativos em seus smartphones ou

tablets para acessar sites de redes sociais, plataformas de mensagem instantânea, sites de

compartilhamento de vídeos, blogs, vlogs e mundos virtuais. Tais ferramentas de mídia

digital são adotadas pela juventude para expressar e explorar suas identidades. A

interface dos aplicativos torna-se, assim, parte integrante da forma que os jovens

escolhem para expressar a si mesmos online (GARDNER E DAVIS, 2013).

74 É importante ressaltar que, conforme explicam Gardiner e Davis (2013), o retrato de sua pesquisa é

baseado, principalmente, em jovens de classes média e média – alta, vivendo em uma sociedade próspera e

desenvolvida.

*Em tradução livre, “geração aplicativo”

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Os autores acreditam que a formação de identidades através de aplicativos pode

seguir duas direções opostas: transformar o sujeito no avatar de outra pessoa ou permitir

a formação de identidade de forma deliberada, holística, ponderada. Nas palavras de

Gardner e Davis (2013, online), “é possível acabar com uma identidade forte e mais

poderosa, ou sucumbir a uma identidade ‘pré-embalada’ ou à interminável difusão de

papeis”.

Em seus estudos, os autores concluem que as identidades dos jovens estão cada

vez mais "embaladas", isto é: são desenvolvidas e apresentadas de modo que transmitam

uma desejável – e otimista – imagem do sujeito em questão. Ainda que exista

coerência entre o “eu” offline e o “eu” online dessas pessoas, não há, necessariamente,

uma correspondência direta entre ambos. Recursos como assincronia e anonimato

permitem aos jovens elaborar representações estratégicas, decidindo que informações

destacar, minimizar, exagerar ou omitir inteiramente (GARDNER E DAVIS, 2013).

Como explicam Gardner e Davis (2013), os sites de redes sociais enfatizam a

autoapresentação baseando sua organização em torno dos perfis individuais dos

usuários. Elementos básicos de um perfil no Facebook, por exemplo, servem para

“embalar” o “eu” para o consumo do público. Há certa pressão em apresentar-se como

um tipo de pessoa impressionante e desejável, seguindo um caminho valorizado pela

sociedade e certificando-se de que todas as postagens confirmem esse senso de

identidade precocemente cristalizado.

Urresti (2008) afirma que as mudanças trazidas com as novas tecnologias de

informação e comunicação causam impacto decisivo sobre o processo de

articulação da subjetividade que, na adolescência, desempenha papel central. Embora a

subjetividade sempre esteja em processo de definição, a diferença em relação às

gerações jovens é que seu processo de subjetivação está aberto às vivências da época

sem a experiência prévia que se possui na fase adulta, “fazendo desta primeira exposição

à temporalidade social ‘seu’ mundo próprio, algo que não acontece na vida adulta e

menos ainda na velhice” (URRESTI, 2008, p. 41).

A emergência de tecnologias de comunicação ubíqua, dos sites que produzem

redes sociais e dos serviços de mensagem instantânea permite o contato, permanente e

em tempo real, entre jovens conectados em redes de grande extensão e complexidade.

Nessas redes, participam de “[...] jogos de aproximação, afinidade e sedução que,

em sua superfície, ocultam os jogos profundos de socialização, subjetivação e

construção de identidade que atravessam os primeiros inadvertidamente” (URRESTI,

2008, p. 43). Para participar das redes, fazer publicações é quase uma necessidade;

do contrário, fica-se de fora, vive-se em desconexão:

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entre os adolescentes, e também os jovens, ter uma página no Facebook ou

MySpace ou ter um fotolog, faz parte das coisas que os identificam e os

distinguem entre seus pares: ao longo do tempo, torna-se uma obrigação,

exceto para aqueles que querem ficar de fora e perder todos os encantos das

promessas que acompanham a inclusão. (URRESTI, 2008, p. 61)

Boyd (2014) explica que os sites de redes sociais tornaram-se os lugares em que

os jovens socializam com seus pares: “costumava ser o shopping mas, para a juventude

discutida nesse livro, sites de redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram são os

lugares ‘legais’” (BOYD, 2014, p. 5). Na juventude, a socialização nos espaços que cada

grupo de adolescentes determina ser “legal” é fundamental para a aceitação social dos

sujeitos. O uso de cada site de rede social não se baseia em características técnicas das

plataformas, mas na forma como são apropriadas por determinado grupo de jovens:

eles se conectam com as pessoas que conhecem, observam como as pessoas

estão usando o site, e em seguida, reforçam ou combatem essas normas

através de suas próprias práticas. Como resultado, as normas de mídia social

são moldadas por efeitos de rede; os pares influenciam uns aos outros

sobre como usar um determinado site e, em seguida, ajudam coletivamente

a criar as normas desse site. (BOYD, 2014, p. 39)

A adoção de práticas distintas em cada plataforma, entretanto, não indica

que os jovens estão criando múltiplas identidades no sentido psicológico. Na verdade,

são escolhas de se representar de modos diferentes em sites diversos, cujos públicos e

normas variam. É nesse sentido que surge uma miscelânea de identidades online

(BOYD, 2014).

Nos anos 1990, Turkle (1995) sugeriu um futuro em que as fronteiras entre

máquina e ser humano são cada vez mais imprecisas. Diante da popularidade das salas

de bate-papo virtuais e jogos de computador para multijogadores, a autora identifica a

possibilidade de escape às limitações das identidades dos ambientes offline para

experimentar vidas e identidades paralelas: “[...] um eu descentrado que existe em

muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo tempo” (TURKLE, 1995, p. 18).

Boyd (2014) e Gardner e Davis (2013), no entanto, não percebem a confirmação

desse fenômeno nos sites de redes sociais. Ao contrário, consideram que, em tais

espaços, as pessoas são mais facilmente identificáveis. Gardner e Davis (2013)

acreditam que as vidas offline e online das juventudes estão mais entrelaçadas, raramente

distinguidas pelos jovens. Para Boyd, os sites de mídia social encorajam uma atmosfera

não ficcional:

hoje, muitos adolescentes estão online para socializar com amigos que

conhecem de cenários físicos e para se retratar em contextos online que são

mais fortemente ligados a comunidades sociais não mediadas. Essas práticas,

que incentivam uma maior continuidade entre os mundos online e offline dos

adolescentes, eram muito menos comuns quando eu estava crescendo.

(BOYD, 2014, p. 38)

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De fato, pode não ser adequado atribuir o multi-lifing sugerido por Turkle

(2011) ao uso dos sites de redes sociais pelos mais jovens. Entretanto, como

comenta a autora, a característica comum entre jogos, mundos virtuais e redes sociais

na internet é a necessidade de compor e projetar uma identidade através de um avatar,

“uma afirmação não apenas sobre quem você é, mas sobre quem quer ser” (TURKLE,

2011, p. 180); em sites como o Facebook, em que pensamos apresentar a nós mesmos,

nossos perfis acabam se tornando outra pessoa – normalmente, a fantasia de quem

gostaríamos de ser. Nesse sentido, é possível reconhecer o esforço, empenhado por

muitos jovens, em apresentar uma identidade desejável sob o olhar do outro, como

propuseram Gardner e Davis (2013).

Identidades construídas e projetadas no Instagram: algumas possibilidades

Instagram é um site de rede social e aplicativo para dispositivos móveis que

permite a captura e o compartilhamento de fotografias e vídeos. Seu funcionamento

consiste, resumidamente, em carregar imagens, manipulá-las através de filtros,

compartilhá-las com outros usuários e comentar ou “curtir” as publicações de outras

pessoas.

Hochman e Manovich (2013) afirmam que, incialmente, o Instagram não

parecia oferecer nenhuma inovação se comparado a outros serviços similares, como

ferramentas para manipulação de imagens, registro de localização de fotografias e

compartilhamento instantâneo. Contudo, é justamente a operação congruente desses

elementos em um único aplicativo móvel e a forma como permite a seus usuários criar,

partilhar e organizar informações que podem explicar a adoção generalizada do

Instagram e seu entrelaçamento com as atuais tendências culturais.

Como bem comentam Lee et al (2015), ao contrário de redes como

Twitter e Facebook, no Instagram é impossível publicar apenas conteúdo em forma de

texto; cria-se, assim, uma forte cultura orientada pelo visual no aplicativo, sobretudo

considerando seus avançados recursos de edição de fotografia. Em relação à projeção de

identidades, referidos autores afirmam que

[...] os usuários do Instagram utilizam imagens de todos os tipos de coisas

para apresentar suas personalidades, estilos de vida e gostos. Fotografias

são muito melhores do que os textos para a autoexpressão e gerenciamento

de impressão, uma vez que o mito da verdade fotográfica empresta à

fotografia uma credibilidade que ao texto pode faltar. As conclusões atuais

sugerem que o Instagram tornou-se um novo e empoderador meio de

autoapresentação, especialmente entre os jovens. (LEE et al, 2015, p. 4)

O Instagram conquistou as camadas juvenis da sociedade, que se apropriaram do

aplicativo como mais um espaço de sociabilidade. Assim, é necessário pensar no site

como ambiente em que os jovens se interconectam e, em seus processos de socialização,

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articulam sua subjetividade e encontram novas formas para construir e projetar

identidades. As dinâmicas estabelecidas nessa plataforma voltam-se, sobretudo, à

supracitada cultura orientada pelo visual.

“A imagem é a moeda de troca do Instagram”, como bem comentam Gardner e

Davis (2013, online). A valoração superior da imagem em relação ao texto é uma

característica proeminente do aplicativo que sua interface torna evidente; basta observar

a forma como se organizam os perfis dos usuários: são centrados em suas imagens.

Além da fotografia de perfil, visualiza-se um mosaico com todas as fotografias e vídeos

que o indivíduo já publicou. Assim, os perfis do site constituem “vitrines” de imagens,

em que o único resquício textual é composto pelo nome do usuário e a facultativa

descrição de si mesmo.

A autoexpressão do sujeito através do Instagram, então, é elaborada a

partir das imagens que compartilha com sua rede de conexões, as quais são “tipicamente

selecionadas e editadas com cuidado, esparsamente publicadas e nem sempre

compartilhadas imediatamente” (HOCHMAN E MANOVICH, online). Percebe-se um

uso do aplicativo que não necessariamente obedece à possibilidade de publicação

instantânea, mas que é apropriado para a construção ponderada da apresentação de si

através de imagens selecionadas com cautela.

Dessa curadoria fazem parte os filtros disponíveis para transformar a aparência

das imagens, que são uma das principais e mais populares ferramentas do aplicativo.

Conforme Hochman e Manovich (2013, online), “ao adicionar matizes, grãos, contraste,

etc., cada filtro evoca uma ‘sensação diferente’ mudando a mensagem comunicada por

uma imagem”. As diferentes tonalidades disponíveis lembram a estética

lomográfica, e a escolha por determinado filtro corresponde à tentativa de melhorar

a qualidade visual da imagem e personalizar o conteúdo a ser publicado. Ainda, em se

tratando de fotos de pessoas, é comum utilizar os filtros para melhorar sua aparência. A

apresentação de fotografias que receberam o tratamento dos filtros é uma forma de

expor uma versão mais desejável do “eu” que, obedecendo às operações automáticas e

restrições do aplicativo, representa uma forma de identidade “pré-embalada”.

Considerando, porém, o Instagram como espaço de socialização dos jovens com

seus pares de convívio offline, as versões que apresentam de si mesmos, embora

melhoradas, não se afastam significativamente da vida que levam à parte do site de rede

social. Haja vista que os jovens trazem seus círculos de relações para o aplicativo, a

audiência que os acompanha no Instagram é, ainda que minimamente, capaz de

legitimar (ou não) a forma como se apresentam no Instagram. Além disso, como

espaço para compartilhar narrativas do cotidiano, “fotos do Instagram ressoam como

experiências mais pessoais, ‘autênticas’ que constituem uma crônica do mundo (...)”

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(HOCHMAN E MANOVICH, 2013, online) e, assim, tendem a configurar publicações

mais fiéis à realidade.

Por fim, a linguagem fundamentalmente visual do Instagram implica em um

processo de composição e projeção de identidade diferente do que ocorre em outros sites

de redes sociais. Se o sujeito deseja compartilhar com seus amigos o gosto por

determinada obra literária, por exemplo, poderia fazê-lo em formato de texto, de modo

breve ou detalhado, através do Twitter ou Facebook. No Instagram, uma alternativa

possível seria fotografar a capa do livro em questão e lhe atribuir uma legenda que

corrobore a preferência por aquela leitura. A mesma estratégia valeria para outros vários

gostos e atividades. Assim, a apresentação de si mesmo através do Instagram se baseia

em valorizar os aspectos estéticos das experiências, atividades e gostos a serem

compartilhados, tornando-os atraentes para o olhar do público.

Considerações finais

Como fase destituída de experiências que se acumulam na vida adulta, a

juventude abarca processos de subjetivação abertos à temporalidade social da época. Os

jovens de nosso tempo são sensíveis às novas tecnologias e facilmente incorporam e

naturalizam as transformações provocadas por plataformas avançadas de comunicação e

os sites de redes sociais por elas suportados. Assim, os processos de elaboração e

projeção de identidades manifestam-se também no ambiente virtual e, em face do caráter

always on da comunicação, em relação contígua às vivências que experimentam em

contextos físicos.

O Instagram é um espaço de sociabilidade ocupado ostensivamente pelo

público jovem. Como outros sites de redes sociais, configura um ambiente em que os

jovens articulam composições e projeções de identidades; entretanto, diferencia-se de

exemplos como Twitter e Facebook em razão de funcionar sob uma cultura orientada

pelo visual. Sendo a partilha de imagens condição fundamental às publicações do

aplicativo, entende-se que aqueles que

participam da rede social estão dispostos a projetar suas identidades através da

postagem de fotografias e/ou vídeos.

Embora a dinâmica de funcionamento do Instagram sugira imediatismo nas

postagens, não é o que necessariamente ocorre. As imagens compartilhadas

frequentemente sofrem curadoria cautelosa, sugerindo que os usuários preocupam-se

com as impressões que podem transmitir na rede social hospedada no aplicativo. As

fotografias editadas com o uso de filtros e outras ferramentas de manipulação

demonstram que os sujeitos desejam alterar a estética das imagens que compartilham,

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personalizando e melhorando o conteúdo compartilhado – logo, criando a imagem de um

“eu” mais otimista e desejável.

Tendo em vista, porém, que as conexões das juventudes se mantêm no

ambiente online, as identidades dos indivíduos estão sujeitas à legitimação de seus pares.

Assim, é possível explorar vários modos de se apresentar em diferentes ambientes, mas

permanece necessário projetar identidades que correspondam às reais vivências dos

sujeitos, ainda que em versão “melhorada”. A obrigação de expressar atividades, gostos,

estilos de vida, etc., sempre através de imagens, demonstra a exacerbação da cultura

visual característica ao Instagram e a necessidade de trabalhar esteticamente esses

conteúdos. Compreende-se que as ferramentas oferecidas pelo aplicativo auxiliam na

projeção de identidades mais desejáveis e, ao mesmo tempo, pré-embaladas.

Referências

BOYD, danah. It's complicated: the social lives of networked teens. New Haven e

Londres: Yale University Press, 2014.

GARDNER, Howard; DAVIS, Katie. The app generation: how today's youth navigate

identity, intimacy, and imagination in a digital world. New Haven e London: Yale

University Press, 2013. HOCHMAN, Nadav; MANOVICH, Lev. Zooming Into an Instagram City: Reading the

Local Through Social Media. First Monday, [S.l], jun. 2013. ISSN 13960466.

Disponível em: < http://goo.gl/GVC0YD>. Acesso em: 27 out. 2015. LEE, Eunji et al. Pictures speak louder than words: motivations for using Instagram.

In: Revista Cyberpsychology, behavior, and social networking, v. 18. n. 9, 2015.

Disponível em: < http://goo.gl/408Yh7>. Acesso em: 15 nov. 2015.

MARGULIS, Mario; URRESTI, Marcelo. La juventud es más que una palabra. In:

MARGULIS, Mario (org.). La juventud es más que una palabra: ensayos sobre

cultura y juventud. Buenos Aires: Biblos, 2008. TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less

from each other. Nova Iorque: Basic Books, 2011.

. A vida no ecrã: a identidade na era da internet. Lisboa: Relógio D’Água

Editores,

1995. URRESTI, Marcelo. Ciberculturas juveniles. Los jóvenes, sus prácticas

y sus representaciones en la era de internet. Buenos Aires: La Crujía

Ediciones, 2008.

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Wikis: plataformas que estimulam a colaboração

Liana Gross Furini

Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS)

Professora Famecos/PUCRS

[email protected]

Resumo:

A internet é uma mídia bastante democrática, na qual os usuários têm poder para criar

conteúdo. Nesse contexto, multiplicam-se pela rede os espaços criados colaborativamente

– chamados de wiki. Essas plataformas possibilitam que qualquer usuário escreva ou edite

seu conteúdo. Nesses espaços, os usuários trabalham em cooperação, compartilhando seus

conhecimentos com os outros, situação que acontece em função dessa nova dinâmica

social.

Palavras-chave: Wiki. Internet. Ciberespaço. Colaboração.

Introdução

Na internet, os usuários, tradicionais receptores, participam ativamente da

produção de conteúdo. Em função disso, existem cada vez mais espaços que estimulam a

colaboração dos usuários na elaboração de algo com um objetivo único. A cooperação,

segundo Recuero (2009, p. 81) “é o processo formador das estruturas sociais”. Nessa

mesma linha, conforme apontado por Lessig (2008), as pessoas contribuem com esses

ambientes porque querem sentir que estão ajudando outros, que fazem parte de algo, como

em uma sociedade em rede, como apresentado por Castells (2007).

Lessig (2008) aponta ainda que, além da economia comercial, nesses ambientes

impera a sharing economy, uma economia baseada em compartilhamento e, como

acrescenta John (2012), seu objetivo não é fazer com que seus membros enriqueçam. Isso

significa que o acesso a esses materiais é regulado não por preço, mas por relações sociais.

Ao falar sobre essas práticas de produção de processos, repositórios e interfaces a

partir do ciberespaço, Sérgio Amadeu pontua que “a digitalização, a hipertextualidade e a

rede mundial de computadores, baseada na comunicação distribuída e anônima e no

trânsito livre de pacotes de bits, constituem um ambiente propício para as práticas

colaborativas dos internautas” (SILVEIRA, 2008, p. 86). Sobre isso, Lessig (2008, p. 28,

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tradução nossa) acrescenta que “a cultura nesse mundo é plana; ela é compartilhada de

pessoa para pessoa”75.

Nesse contexto, em que a troca de informações é mais democrática e horizontal do

que jamais fora, surgem as wikis, plataformas que, segundo Lessig (2008, p. 156, tradução

nossa), “permitem que qualquer pessoa escreva ou edite em um espaço comum”76, de

forma colaborativa. “No seu conceito original, uma wiki expressa a visão de uma

comunidade com algum interesse em comum e une as pessoas em um espaço

compartilhado para discutirem ideias e criarem recursos”77 (AYERS, MATTHEWS,

YATES, 2008, p. 42, tradução nossa). Nesses espaços, “qualquer pessoa pode contribuir

significativamente para a estrutura do site, simplesmente criando novos links e

adicionando novas páginas. Essa abertura é o aspecto mais inovador e fantástico das

wikis”78 (EBERSBACH, GLASER, HEIGL e WARTA, 2001, p. 11, tradução nossa).

Em função da possibilidade de serem criadas por qualquer usuário, as informações

contidas nas wikis se proliferam com muita rapidez. Para Collins (2014), os espaços

colaborativos das wikis são mais inteligentes e mais rápidos do que as hierarquias top-

down. Isso é diretamente ligado com o fato de os conteúdos serem construídos em

conjunto pelos usuários, não apenas coletivamente, mas colaborativamente.

As wikis possibilitam a existência de bancos de dados sobre qualquer assunto,

documentado por pessoas que se dedicam a publicar, editar e organizar esse conteúdo,

através de uma colaboração sem precedentes (LESSIG, 2006). Ao criar uma wiki sobre

algum assunto, o usuário não fica mais limitado ao seu conhecimento, ao passo que ela é

construída por qualquer usuário que tem conhecimento sobre algum assunto e queira

compartilhá-lo.

Wikipedia e mais

O termo wiki já existe no dicionário americano Oxford79, e é definida como “um

site que permite edição colaborativa de seu conteúdo e estrutura pelos seus usuários”80

(tradução nossa). As plataformas wiki são comumente classificadas como social softwares

(softwares sociais, em uma tradução livre), termo definido por Benkler (2006) como

“software cuja característica de design é que ele ameaça os fenômenos sociais genuínos,

75 Do original, “Culture in this world is flat; it is shared person to person”. 76 Do original, “lets anyone write or edit in a common space”. 77 Do original, “In its original concept, a wiki expresses the views of a community with some common

interest and brings people together in a shared space for discussing ideas and building resources”. 78 Do original, “anyone can contribute significantly to the structure of the site, simply by creating new links

and adding new pages. This openness is the innovative and amazing aspect of wikis”. 79 Disponível em <http://www.oxforddictionaries.com/us/definition/american_english/wiki>, acesso em: 24

out 2015. 80 Do original, “A website that allows collaborative editing of its content and structure by its users”.

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sendo diferente das comunicações um-para-um ou um-para-muitos”81 (s/p, tradução

nossa). Klobas (2006) defende que “software social é um software que facilita interações

sociais, colaboração e troca de informações, e pode até fomentar comunidades, baseado

nas atividades de grupos de usuários”82 (p. 1, tradução nossa).

O primeiro social software de que se tem notícia, chamado WikiWikiWeb83, foi

desenvolvido em 1995 e se denomina “a primeira ‘wiki’, onde o conteúdo pode ser editado

por qualquer pessoa”84 (tradução nossa). O objetivo do seu criador, Ward Cunningham,

era “um software relativamente simples, que permitiria o trabalho coletivo em códigos de

software que poderiam ser publicados imediatamente”85 (EBERSBACH, GLASER,

HEIGL e WARTA, 2001, p. 12, tradução nossa), que é a principal ideia das wikis até hoje.

A Wikipedia86 é um dos mais conhecidos e mais prósperos sites nesse formato. O

site tem mais de 35 milhões de verbetes87, criados exclusivamente por pessoas que,

voluntariamente, quiseram dividir seu conhecimento com os outros e publicá-lo de forma

livre na internet. Lytras, Tennyson e Pablos (2009, p. 30, tradução nossa) afirmam que a

Wikipedia “serve como uma ótima ilustração de uma wiki bem executada”88, seguidos por

Lessig (2006), que diz que ela é um fenômeno colaborativo sem precedentes. O autor a

compara com a ciência, dizendo que da mesma forma, a Wikipedia também conta com

“pessoas do mundo todo trabalhando para convergir em uma verdade sobre uma ampla

gama de tópicos”89 (p. 244, tradução nossa).

Segundo Anderson (2006), a Wikipedia não se baseia em uma única pessoa ou

grupo com grande conhecimento sobre algum assunto específico. Ao invés disso, ela

“explora os conhecimentos de milhares de pessoas de todos os tipos – desde verdadeiros

especialistas até observadores interessados” (p. 63), e esse é um de seus maiores trunfos.

Utilizar o conhecimento e o esforço dos usuários pode ser bastante arriscado, em função

da falta de controle que se tem sobre o que é publicado. Ainda assim, segundo Lessig

(2006), “o projeto da Wikipedia (...) construiu – para o espanto da maioria – uma

81 Do original, “software whose design characteristic is that it threats genuine social phenomena as different

from one-to-one or one-to-many communications”. 82 Do original, “social software is software that facilitates social interaction, collaboration and informations

exchange, and may even foster communities, based on the activities of groups of users”. 83 Disponível em <http://c2.com/cgi/wiki?WikiWikiWeb>, acesso em: 24 out 2015. 84 Do original, “the first ever ‘wiki’, where content can be edited by any person”. 85 Do original, “a relatively simple software that would enable collective work on software codes that could

be published immediately”. 86 Disponível em <https://www.wikipedia.org/>, acesso em: 24 out 2015. 87 Informação disponível em <https://wikimediafoundation.org/wiki/FAQ/en>, acesso em: 20 ago 2015. 88 Do original, “serves as an excellent illustration of a well-executed wiki”. 89 Do original, “people from around the world working to converge upon truth across a wide range of

topics”.

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enciclopédia online extraordinária, apenas através do esforço voluntário de milhares,

contribuindo com ensaios e edições em uma wiki pública”90 (p. 199, tradução nossa).

Ambientes colaborativos (e não apenas coletivos)

As plataformas wiki originalmente foram criadas com o objetivo de “permitir que

um time trabalhe em um projeto colaborativamente”91 (LESSIG, 2008, p. 156, tradução

nossa). “Os membros de uma comunidade wiki usam o espaço compartilhado para

escrever, discutir, comentar, editar, refletir e avaliar, com o objetivo final de criar um

resultado compartilhado”92 (WEST e WEST, 2009, p. 13, tradução nossa). Isso significa

que as pessoas que fazem parte de uma comunidade wiki são estimuladas a dividirem com

os outros o que sabem. Para Ayers, Matthews and Yates (2008, p. 42, tradução nossa),

uma wiki “não é simplesmente uma tecnologia, mas toda uma abordagem para um grupo

que utiliza um site para colaborar”93. As wikis geram como resultado um material cujo

autor não é apenas um usuário. Ao contrário, defende Benkler (2006), os materiais criados

em wikis têm autoria colaborativa.

Nesse sentido, essas plataformas possibilitam a existência de bancos de dados

potencialmente sobre qualquer coisa, documentados por pessoas que se dedicam a

escrever, editar, corrigir e organizar esses materiais. Se uma pessoa que conhece qualquer

assunto decide criar um blog sobre, ela está limitada ao seu conhecimento. A mesma coisa

acontece com um site, uma página em alguma mídia social ou qualquer outro espaço como

esses, que funcionam através da comunicação um-para-um ou um-para-muitos, como já

mencionamos, baseados no pensamento de Benkler (2006). Esses espaços são interativos e

podem, potencialmente, receber alguma colaboração de leitores, mas não são construídos

com um propósito colaborativo. Todavia, se a mesma pessoa cria um verbete em alguma

wiki, não fica mais limitada ao seu conhecimento, ao passo que o conteúdo pode ser

construído por todo e qualquer usuário que tenha conhecimento sobre o assunto e interesse

em compartilhá-lo. Colaborativamente, não apenas coletivamente. Isso significa que, além

de terem a possibilidade de criar e contribuir com os verbetes já criados, os membros da

comunidade, mais do que isso, são estimulados a fazê-lo, com o objetivo de melhorar o

conteúdo, gerando um resultado colaborativo e mais próximo da verdade.

Esse estímulo gera uma explosão de conteúdo. Lessig (2008, p. 30, tradução nossa)

aponta que isso gera “um extraordinário acesso a uma vasta gama de cultura. Nunca antes

90 Do original, “The Wikipedia project (...) has built – to the astonishment of most – an extraordinary online

encyclopedia solely through the volunteer efforts of thousands, contributing essays and edits in a public

wiki”. 91 Do original, “enable a team to work on a project collaboratively". 92 Do original, “Wiki community members use the shared space to write, discuss, comment, edit, reflect and

evaluate, with the ultimate goal to complete a shared outcome”. 93 Do original, “is not simply a technology but a whole approach for a group using a website to collaborate”.

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houve tanto disponível para tantos”94. Hoje, as plataformas colaborativas permitem acesso

a conteúdos criados pelos próprios usuários, disponível a qualquer pessoa com acesso à

internet, instantaneamente, sem restrições geográficas.

Considerações finais

Para Ebersbach, Glaser, Heigl e Warta (2008), o conceito de wiki marca um novo

nível do uso de Internet. Entendemos que a qualidade do material resultante do trabalho

em conjunto feito pelos usuários nessas plataformas colaborativas deve-se ao fato de que,

além de publicar conteúdo, os usuários são estimulados a corrigir o que estiver errado ou

incompleto, o que aumenta a chance de gerar um resultado final de qualidade.

Reagle (2010) se refere à Wikipedia como uma “comunidade de conteúdo

aberto”95 (p. 14, tradução nossa), e defende que ela aumentou o acesso à informação e ao

conhecimento. Por serem escritas por qualquer usuário, as wikis aumentam a rapidez com

que a informação evolui e é disponibilizada na internet. Informações que podem estar em

lugares de difícil acesso, hoje estão à mão de todo mundo que tem acesso à internet, com

muita facilidade e rapidez.

Ebersbach, Glaser, Heigl e Warta (2008) defendem que o trabalho colaborativo

pressupõe abertura e respeito mútuo entre os participantes. Nesse sentido, relembramos

que as plataformas wiki não funcionam através de trocas monetárias de nenhum tipo, mas

sim através de uma economia baseada em compartilhamento, como proposto por Lessig

(2008). As pessoas participam desses ambientes porque têm um compromisso (que, vale

lembrar, é voluntário) com uma comunidade.

Ainda, Benkler (2006) acrescenta que esse tipo de software “oferece um vislumbre

de um desafio mais básico e radical. Ele sugere que o ambiente em rede torna possível

uma nova modalidade de produção de organização: radicalmente descentralizada,

colaborativa e sem donos”96 (s/p, tradução nossa), ou seja, de autoria coletiva, como já

havíamos mencionado. As plataformas colaborativas de criação de conteúdo têm um papel

importante no aumento do poder do público e na queda dos gatekeepers, ao passo que

aumenta o acesso dos indivíduos à informação e ao conhecimento.

Referências:

94 Do original, “extraordinary access to a wide range of culture. Never before had so much been available to

so many”. 95 Do original, “open content community”. 96 Do original, “offers a glimpse at a more basic and radical challenge. It suggests that the networked

environment makes possible a new modality of organizing production: radically decentralized, collaborative,

and nonproprietary”.

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ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho.

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AYERS, Phoebe; MATTHEWS, Charles; YATES, Ben. How Wikipedia Works: and

how you can be a part of it. San Francisco: No Starch Press, 2008.

BENKLER, Yochai. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms

Markets and Freedom. New Haven e London: Yale University Press, 2006.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

COLLINS, Rod. Wiki Management: a revolutionary new model for a rapidly changing

and collaborative world. New York: AMACOM, 2014.

EBERSBACH, Anja; GLASER, Markus; HEIGL, Richard; WARTA, Alexander. Wiki:

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KLOBAS, Jane. Wikis: tools for information work and collaboration. Oxford: Chandos

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LESSIG, Lawrence. Remix: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy.

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REAGLE, Joseph Michael. Good Faith Collaboration: the culture of Wikipedia.

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SILVEIRA, Sergio Amadeu da. Cibercultura, commons e feudalismo informacional. In:

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O boato na era das mídias digitais: WhatsApp e saúde pública

Danton José Boatini Junior Mestrando - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [email protected] Resumo: O surgimento dos dispositivos móveis provocou uma transformação na forma

como nos relacionamos com a informação. O boato, gênero comunicacional “tão antigo

quanto a palavra humana”, segundo Renard, permanece vivo na pós-modernidade,

adaptado às novas ferramentas de comunicação. Este trabalho tem como objetivo

estudar a manifestação de boatos por meio do aplicativo WhatsApp. Com base em

três narrativas de grande repercussão, procura-se entender quais elementos contidos

nessas mensagens contribuíram para torná-las verossímeis aos olhos dos receptores. A

análise será feita com base em casos ocorridos recentemente no Brasil e relacionados a

um dos assuntos que mais desperta interesse nas redes sociais, a saúde pública.

Palavra – chave: Whatsapp; boato; cibercultura

1. Introdução

O surgimento dos dispositivos móveis provocou uma transformação na maneira

como nos comunicamos. Fenômeno “tão antigo quanto a palavra humana”, nas

palavras de Renard (2007, p.

97), o boato se mantém vivo na pós-modernidade. Tendo em vista as novas formas de

comunicação possibilitadas pela Internet e a maneira como o imaginário se configura em

meio a este cenário, este trabalho pretende desenvolver uma reflexão acerca da

participação do aplicativo WhatsApp na manifestação de boatos. O objetivo é

compreender quais os elementos utilizados na manifestação destas mensagens são

determinantes para tornar verossímil um relato inverídico. Para fazer a análise,

selecionamos três casos ocorridos recentemente no Brasil e que e estão

relacionados à saúde pública.

Se por um lado a internet possibilitou uma facilidade de acesso aos meios de

comunicação, uma vez que hoje qualquer indivíduo pode disponibilizar conteúdo na

rede, por outro, a quantidade de informação inverídica é crescente. Cabe ressaltar que

esse processo se dá em um cenário onde “as novas tecnologias deram-nos um mundo

em que quase toda a gente pode publicar uma página de aspecto credível na internet”

(GILLMOR, 2005, p. 174). Foi neste contexto que o WhatsApp consolidou-se como

uma das principais ferramentas de comunicação mediada pelo computador na

atualidade. Lançado em 2009, o serviço já ultrapassou a marca de 900 milhões de

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usuários97. Trata-se de um aplicativo para smartphones que possibilita o envio de

mensagens instantâneas de texto e chamadas de voz, pelo qual os usuários podem

encaminhar fotos, vídeos e mensagens de áudio. Uma vez que não é necessário pagar

para mandar uma mensagem, bastando estar conectado à internet, o aplicativo

rapidamente ocupou o lugar das mensagens de SMS, enviadas de celular para celular.

A proliferação de boatos por meio das redes sociais tem sido objeto de estudo

de vários pesquisadores. Como um dos fenômenos mais recentes da comunicação

digital, o WhatsApp, por sua vez, ainda não foi suficientemente estudado, o que o torna

um tema com grande potencial de pesquisa.

Com a possibilidade de interação um-para-um e muitos-para-muitos, o

WhatsApp proporciona uma nova roupagem às antigas conversações que marcaram o

início da internet. Diferente dessas plataformas, no entanto, o WhatsApp proporciona ao

usuário a possibilidade de estar permanentemente online, bastando para isso ter um

aparelho de telefone celular conectado à Internet e com o aplicativo em uso. Da mesma

forma, é possível estabelecer uma comunicação entre dois indivíduos que não

necessariamente estejam conectados ao mesmo tempo, de modo que podemos

observar a existência tanto da comunicação síncrona (em tempo real) quanto assíncrona

(quando não há uma unidade temporal). Outra característica que difere o WhatsApp de

outras redes sociais digitais é que, ao contrário do Facebook e do Twitter, mensagens

repassadas por usuários não contam com uma identificação de origem – o que

impossibilita fazer um juízo crítico sobre a confiabilidade da fonte.

No WhatsApp, a interação não é apenas textual, já que o aplicativo conta com

uma ferramenta de gravação e envio de arquivos de voz. O mecanismo foi introduzido

no aplicativo em agosto de 201398. Trata-se, portando, de uma conversação multimodal,

que faz uso de várias interfaces (RECUERO, 2012, P. 60). Ainda assim, na troca de

mensagens textuais, transparece a característica da escrita oralizada, com a utilização

de uma linguagem coloquial, do dia a dia. Quanto ao círculo social, o WhatsApp

também conta com particularidades em relação a outras redes sociais digitais. Para se

comunicar com outro usuário, é necessário ter o número do seu telefone celular. Isso

indica uma certa proximidade que não se repete em outras redes - o que poderá ser

decisivo para nossa ação de acreditar ou não em uma mensagem.

Recuero (2012) aponta a necessidade de compreender os rituais estabelecidos

pelas redes, “muitas vezes através de comportamentos coletivos e meméticos, para que

se compreenda como o sentido é construído nos espaços da mediação do computador e

sua influência nas redes sociais na

97 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/09/whatsapp-chega-900-milhoes-de-usuarios.html. 98 http://blog.whatsapp.com.

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Internet” (p. 93). A autora defende que a conversação em rede é uma apropriação das

ferramentas digitais, “onde limitações são criativamente suplantadas, e novos usos

emergem da coletividade” (p.

216). Ao abordar a interação mediada pelo computador, Primo (2011) observa uma

característica básica das mensagens textuais na Internet, que é a possibilidade de

inclusão de citações diretas de mensagens anteriores, o que “facilita a interconexão das

ideias em discussão” (p. 220).

2. Boato na pós-modernidade

Embora tenham adquirido uma nova dimensão a partir do advento da internet, o

boato é um fenômeno antigo. Renard (2008, p. 97) observa que, quando um amigo nos

conta alguma novidade, nosso primeiro impulso é acreditar na informação, não apenas

porque confiamos na fonte, mas também porque é “materialmente impossível, na vida

cotidiana, checar todas as informações que recebemos”.

Um boato ou uma lenda urbana é um enunciado ou uma narrativa breve, de

criação anônima, que apresenta múltiplas variantes, de conteúdo

surpreendente, contada como sendo verdadeira e recente em um meio social

que exprime, simbolicamente, medos e aspirações. (RENARD, 2008, p. 98)

Já na era das redes sociais, Jenkins irá afirmar que a “qualidade final que faz

com que o conteúdo de propague é também a qualidade com o maior potencial de

causar danos” (2014, p.

267). O autor acrescenta que os textos que são particularmente producentes e engajantes

frequentemente conduzem a um engajamento profundo e têm grande tendência a se

espalhar (2014, p. 270).

Mesmo em uma era em que dispomos de farta oferta de meios para comprovar as

informações, o inverossímil ainda encontra formas de demonstrar coerência aos olhos do

receptor. Tacussel (2006) ressalta que um ponto interessante na questão do imaginário

pós-moderno é que “a distinção entre o verdadeiro e o falso não é tão forte quanto nós

poderíamos imaginar, apesar dos meios de comunicação e de verificação que nós temos”

(p. 9).

Quanto ao imaginário, eu diria que as pessoas têm uma necessidade de

acreditar em coisas excepcionais, inverossímeis, têm necessidade de sonhar

e de sentir medo. E os meios tecnológicos dos quais nós dispomos, ao invés

de controlar essa situação, amplificam-na. (TACUSSEL, 2006, p. 9).

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3. Estudos de caso

Para analisar como os boatos se desenvolvem por meio do WhatsApp, vamos

estudar três casos recentes que obtiveram grande repercussão no Brasil. A coleta dos

boatos foi feita com base em notícias de dois veículos de grande audiência no país, os

sites G1 e Extra Online. A análise será feita levando em conta os seis itens que, segundo

Legros et al (2011, p. 196), integram a grade de análise dos boatos e das lendas

contemporâneas: a coleta da narrativa e suas variantes, o estudo do contexto da difusão, a

medida do grau de veracidade, o estudo do paratexto, a análise da estrutura narrativa e a

interpretação dos boatos e lendas contemporâneas.

Como forma de delimitar o objeto de estudo, os casos em análise estão

relacionados à preocupação da sociedade contemporânea com a saúde, um dos temas

mais difundidos pelas redes sociais. Sfez (1996) identifica a grande saúde, ou saúde

perfeita, como a utopia dos anos 2000. Por meio da tecnologia, o corpo humano é

submetido a um controle rigoroso, tendo como produto final o homem perfeito. Desta

forma, conforme o autor, a ideologia da comunicação parece, por meio do corpo e das

questões que ele suscita, tomar a forma de uma utopia.

Na era da comunicação todo-poderosa, a informação sobre os problemas de

saúde circula, de fato, entre as diferentes culturas, tendendo a homogenizar as

práticas particulares, e o vírus da “saúde tende a tornar-se universal. Pois a

comunicação que parecia alimentar-se de si mesma e engendrar uma visão “pós-

modernista”, sem ponto de ancoragem na realidade, está paradoxalmente

fornecendo seu próprio antídoto com as novas teorias biomoleculares que ela

ajudou a constituir. (SFEZ, 1996, p. 42)

Para o autor, embora a saúde do corpo não seja uma preocupação recente, o que

antes era caracterizado como uma “arte”, agora se vê dotada de meios tecnológicos que

provocam uma transformação na relação do médico com seu paciente, bem como a

relação do indivíduo com seu corpo (p. 42).

3.1 O vírus Ebola

O primeiro caso ocorreu em 2014 e obrigou até o Ministério da Saúde a lançar

um comunicado com esclarecimentos à população. Conforme o boato, um nigeriano

teria sido internado no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão

(HUUFMA), em São Luís, com sintomas da doença. Posteriormente, teria morrido99. O

texto compartilhado acrescenta outros personagens que já estariam com os mesmos

99 http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/08/ministerio-da-saude-desmente-boato-sobre-caso-de-

ebola-no-brasil.html.

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sintomas, além de destacar o suposto interesse das autoridades em acobertar o caso. O

rumor causou grande apreensão na população, tendo em vista o potencial altamente

destrutivo da doença e o surto que, à época, acometia países da África Ocidental.

Um nigeriano chegou a São Luís - Ma, na terça feira, começou a passar mal, foi

internado no hospital Universitário HUUFMA. Ele faleceu no sábado à noite

com diagnóstico do vírus"EBOLA". O governo do Estado do Maranhão e o

Ministério da Saúde ordenaram que fosse mantido em sigilo. No entanto, o

ministro da saúde, Arthur Chioro, confirmou ao sec. ricardo Murad que já tem

5 pessoas internadas com os mesmos sintomas em estado grave! A Polícia

Federal iniciou hoje a operação "fronteiras fechadas", onde qualquer pessoa

que tenha estado no continente africano nos últimos 10 meses não podem entrar

no país. Repassem!!!! (EXTRA ONLINE,

http://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/ministerio-da-saude-desmente-

boato-sobre-nigeriano-morto-por-ebola-no-brasil-13614390.html)

Em texto publicado em seu site, no dia 18 de agosto de 2014, o ministério afirma

que “com relação aos boatos que estão circulando nas redes sociais e por meio do

aplicativo Whatsapp sobre Ebola, o Ministério da Saúde esclarece que não ha caso

suspeito ou confirmado da doença no Brasil”100. A nota explicava ainda que, de acordo

com os dados oficiais divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os países

acometidos pelo surto eram Guiné, Libéria e Serra Leoa – enquanto o boato tinha como

personagem um cidadão de origem nigeriana.

Quanto à estrutura do texto, observamos que a narrativa utiliza-se da linguagem

jornalística, inclusive citando fontes oficiais, como forma de garantir verossimilhança –

de tal forma que o relato assemelha-se a um lead.

3.2. Transmissão de HIV

O segundo caso que iremos analisar é o de um boato conhecido e antigo, mas

ressurgiu na internet. Trata-se do caso de um falso enfermeiro ou enfermeira que, ao

oferecer testes de glicose para pedestres em locais públicos, estaria na verdade

transmitindo o vírus HIV. O caso ocorreu em Salvador (BA), porém já foi observado em

diversas regiões do país e por meio de diferentes redes sociais. Em geral, apresenta as

mesmas características.

Registrada em agosto de 2014, a falsa informação compartilhada pelo WhatsApp

vinha acompanhada da fotografia de uma mulher de 28 anos. Ela foi alertada por

pessoas que receberam as mensagens, já que o texto continha o número de seu telefone.

Alguns usuários dirigiram-se a ela com ameaças. Na ocasião, a vítima do boato

100 http://www.brasil.gov.br/saude/2014/08/ministerio-desmente-boatos-sobre-casos-de-ebola-no-brasil.

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registrou queixa na Polícia Civil 101. Histórias semelhantes já foram compartilhadas

com a fotografia de homens.

Repasse p geral em todos os grupos… essa mulher está c vírus do hiv… soro

positivo ela… cuidado ...se ela te add … ou se Vc vêla pela rua n se

aproxime pois ela está c agulha furando os outros …se um desses números te

add querendo te conhecer (…) caia fora pois é dela… ela mora em 7 de abril…

repassando geral aos grupos. (G1,

http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/08/mulher-presta-queixa-apos-sua-foto-

rodar-em-

Embora, neste caso, o texto tenha utilizado uma escrita oralizada – ou netspeak –

, a narrativa acima utiliza-se de outro artifício para criar verossimilhança. Trata-se da

imagem anexa ao texto escrito. Para Debord (1997), o espetáculo, definido como

“relação social entre pessoas, mediada por imagens” (p. 14), como tendência a fazer ver

o mundo que já não se pode tocar diretamente, “serve- se da visão como o sentido

privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato” (p.

18). A fotografia, portanto, dá credibilidade a um relato inverossímil.

3.3. Refrigerante contaminado

O terceiro caso também já foi visto por diversas vezes na internet, com

variações, ainda antes do advento das redes sociais. Trata-se da falsa informação de que

os refrigerantes Fanta e Coca-Cola teriam causado insuficiência renal e tumores em

consumidores. Este texto já foi apresentado tendo como alvo produtos de outras marcas.

O texto, porém, manteve-se o mesmo. O texto que iremos analisar foi divulgado em

maio de 2015, no Rio de Janeiro.

Não beba FANTA UVA, FANTA LARANJA E COCA COLA. A propaganda

parou… Por quê? Reparem… A propaganda quase não se vê mais na mídia…

Porque será??? Estamos repassando o e-mail abaixo para conhecimento e

prevenção, principalmente para aqueles que bebem estes refrigerantes. Este e-

mail está sendo repassado dentro do Hospital que trabalha pessoa amiga. Fato já

está confirmado: Vinte e três pessoas já passaram pelo Hospital das Clínicas

com um mesmo sintoma: falta de atividade renal e o aparecimento de tumores

no reto. Todos os internados relatam o começo das fores e a consequente

internação após ingerirem altas doses desses refrigerantes. (EXTRA,

http://extra.globo.com/noticias/brasil/eboato-que-consumo-de-fanta-uva-tenha-

levado-casos- de-cancer-15947777.html)

O texto, assinado por uma funcionária fictícia da Sociedade Brasileira de

Cardiologia, cita um suposto Dr. Paulo José Teixeira, “formado pela USP e

especialista em Toxicologia”, que recomenda aos consumidores não consumir mais os

101 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/08/mulher-presta-queixa-apos-sua-foto-rodar-em-app-como-

portadora-de-hiv.html.

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referidos refrigerantes. A mensagem finaliza afirmando que a Coca-Cola reconheceu a

culpa e irá indenizar os pacientes. Tanto a Coca-Colaquanto a Sociedade Brasileira de

Cardiologia e o Instituto Fleury, também citado na mensagem, divulgaram notas

informando que a mensagem era inverídica. A Sociedade Brasileira de

Cardiologia informou, inclusive, que a mensagem tem sido compartilhada na internet

pelo menos desde 2006, ano em que publicou uma nota oficial em seu site

informando não ser a autora do

texto102

No terceiro caso, o elemento utilizado para dar verossimilhança ao relato é a

citação de instituições reconhecidas como idôneas. A credibilidade destas instituições

têm o efeito de provocar, no receptor, o entendimento de que a informação pode ser

verídica.

Algumas características são comuns aos três boatos. O tom alarmista está

presente em todos eles, assim como os erros gramaticais e de ortografia (mantido na

descrição acima). Outro traço comum é o fato de terem sido encontradas variações a

todos eles em diferentes cidades e em outras plataformas de comunicação. A esse

respeito, Renard (2008) afirma que “a coleta das variantes de uma narrativa já é

suspeita de uma lenda, porque as diferentes versões de um mesmo acontecimento não

podem ser todas verdadeiras” (p. 99). Por fim, nos três casos, as instituições ou vítimas

citadas tiveram de ir a público para desmentir as informações, o que demonstra o grande

alcance potencial da comunicação via WhatsApp.

4. Conclusão

Considerando que o WhatsApp é apenas uma das ferramentas de comunicação

possibilitada pelas novas tecnologias, pode-se afirmar que sua relação com a

disseminação de boatos está longe de ser exclusiva, mas integra um fenômeno

observado em toda a Internet. Se a informação que circula na rede é ágil, por outro lado

ela também é menos apurada, uma vez que qualquer cidadão pode publicar conteúdo,

sem a necessidade de seguir alguns padrões.

Embora algumas características do aplicativo possam ser vistas como uma forma

de facilitar a manifestação de boatos, entendemos que o fator preponderante para que o

receptor acredite na mensagem está em artifícios criados pelo emissor para dar

verossimilhança ao relato, o que Barthes chama de “efeito de real”. Como vimos, em

102 http://extra.globo.com/noticias/brasil/eboato-que-consumo-de-fanta-uva-tenha-levado-casos-de-cancer-

15947777.html

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cada um dos boatos analisados, há um fator responsável por criar esse efeito: a

linguagem jornalística, no primeiro caso; a imagem, no segundo; e a utilização de

fontes idôneas, no terceiro.

Em artigo sobre o efeito de real, Barthes recorre à literatura de Flaubert e à

história de Michelet para referir-se aos detalhes “supérfluos”, deixados de lado pela

análise estrutural, mas que como elementos da narrativa possuem um papel importante

para simular o real. Entre as técnicas, obras e instituições fundadas na necessidade

incessante de autenticar o “real”, da qual o realismo literário é um precursor, o autor

cita a fotografia (testemunha bruta “do que foi lá”), a reportagem, as exposições de

objetos antigos, o turismo dos monumentos e lugares históricos.

A facilidade de acesso à produção de conteúdo online, hoje universalizada, exige

do usuário atenção redobrada com relação à informação que circula na rede. Esses

elementos, somados à análise dos casos estudados, reforçam a mudança que as redes

sociais proporcionaram na nossa relação com o boato. Esses elementos, somados à

análise dos casos estudados, reforçam a mudança que as redes sociais proporcionaram

na nossa relação com o boato.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Efeito de real. In: Literatura e semiologia: pesquisas semiológicas.

Petrópolis: Editora Vozes, 1972.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Volume 1. São Paulo: Paz e

Terra, 1999. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997. GILLMOR, Dan. Nós, os media. Lisboa: Editorial

Presença, 2005.

LEGROS, Patrick et al. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2014.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São

Paulo: Editora Cultrix, 1971.

PRIMO, Alex. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura,

cognição. Porto Alegre: Sulina, 2011.

RECUERO, Raquel. A conversação em rede: comunicação mediada pelo

computador e redes sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.

RENARD, JeanBruno. Um gênero comunicacional: os boatos e as lendas

urbanas. Revista

Famecos. Porto Alegre: FAMECOSPUCRS. n. 32, abril de 2007.

SFEZ, Lucien. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo: Edições Loyola,

1996. TACUSSEL, Patrick. Imagem e contemporaneidade: entrevista com Patrick

Tacussel. Revista Famecos. Porto Alegre: FAMECOS PUCRS.n. 31, dezembro de 2006.

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“TRIBUNAL” DAS REDES SOCIAIS: O DISCURSO

DE ÓDIO NO CASO PATRÍCIA MOREIRA X ARANHA

Bibiana Hegele Bolson 1

[email protected]

Resumo: O presente artigo visa refletir sobre como as redes sociais contribuiram para

fortalecer o sentimento coletivo de ódio à Patrícia Moreira, em especial, o conteúdo do

Twitter. Em agosto de 2014, flagrada por uma câmera de televisão durante um jogo de

futebol gritando “macaco”, a imagem da torcedora gremista circulou no mundo, o caso

foi amplamente abordado na mídia, Patrícia saiu do anonimato para se tornar um

símbolo conhecido e negativo. O Grêmio, clube envolvido, foi punido com a eliminação

da competição que disputava e a jovem, antes mesmo de ser julgada pela Justiça, foi

transformada na personificação de um problema social centenário: a questão racial. Na

Internet, ela teve a privacidade invadida com a publicação de dados pessoais e recebeu

uma série de ameaças, entre elas a que culminou com um crime, um torcedor revoltado

com o acontecido ateou fogo na casa da família de Patrícia. Com base em referências

teóricas como Michel Maffesoli (1987; 2006), Pierre Bourdieu (1989) e Raquel Recuero

(2009)), o trabalho busca compreender a propagação da violência simbólica no

ambiente online e as consequências no caso.

Palavras-chaves: Racismo no futebol. Redes Sociais. Discurso de ódio. Violência

Simbólica.

1.Introdução

“O que você espera para sua vida? ”, pergunta o apresentador Celso Portioli em

entrevista exclusiva no canal SBT. “Eu espero voltar para minha vida normal”, responde

Patrícia Moreira, a torcedora do Grêmio flagrada por uma câmera de televisão gritando

“macaco” para o jogador Aranha. A questão é que Patrícia Moreira não vai ter o que

considera uma “vida normal” tão cedo, não será esquecida pela opinião pública e

provavelmente não recupere a rotina de desconhecida que levava até o dia 28 agosto de

2014.

Quase um ano depois daquela noite em que passou a ser internacionalmente

conhecida como a torcedora racista, a jovem vive escondida, fala com poucos amigos e

familiares, não trabalha e evita acessar a Internet. Na mesma entrevista ao Domingo

Legal em que confessou o desejo de voltar a ser uma desconhecida, alguns meses depois

1 Mestranda em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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do ocorrido na Arena em Porto Alegre, Patrícia revelou ter sido sofrido ameaças de

estupro e de morte nas redes sociais. Contou que rapidamente foi localizada, que todas

as contas (Instagram, Facebook e Twitter) foram invadidas e que as ameaças eram

estendidas também à família.

CP: “O que você fez com seus perfis na Internet? ”

P: “Eu deletei. Não queria ver xingando minha família”.

CP: “Você teme também pela sua família? ”

P: “Lógico”.

CP: “Você tem receio de ficar marcada para sempre? ”

P: “Tenho.

CP: “Por que você está sendo a personagem principal

desse caso de racismo? ”

P: “Por a câmera ter pegado em mim e ficou marcado. ”

Esse capítulo envolvendo Patrícia Moreira entra para a história recente como

um evento marco no que diz respeito ao racismo no futebol brasileiro, narrativa que

ainda está fresca, em mutação, entretanto de tamanho impacto que justifica o interesse

de análise. A representatividade do caso suscita uma infinidade de questionamentos em

diferentes campos e principalmente no das Ciências Humanas, que mais interessa a esse

trabalho.

Na verdade, é válido dizer que com outros episódios relevantes e de repercussão

mundial, o ano inteiro de 2014 é emblemático quanto a temática do preconceito racial no

futebol. A partir dos inúmeros acontecimentos registrados e amplamente repercutidos na

mídia e nas redes sociais o tema impactou em diversas esferas sociais. Pode se afirmar

com segurança que houve um rompimento significativo no imaginário popular

motivados por punições inéditas no âmbito esportivo e uma nova interpretação diante

dos comportamentos preconceituosos dentro dos estádios, esses que até então

atravessaram o tempo como culturalmente aceitáveis, debatidos de forma massificada.

Se os tempos mudaram, o imaginário construído por muitos anos no futebol também,

destaca Juremir Machado da Silva:

Há sempre um ponto de virada. O imaginário é uma infiltração que

produz um novo acúmulo até resultar num transbordamento. Foi o que

aconteceu. Se um dia foi “tolerado” usar a palavra macaco, se os torcedores

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do Internacional com humor incorporaram o termo, hoje não dá mais. Outras

expressões, como “negro fedido”, jamais deixaram de ser o que são: racismo.

O episódio com o goleiro santistas Aranha foi a famosa gota de água.

(CORREIO DO POVO, 2014)

Por outro lado, o que aconteceu fez vir à tona outras reflexões importantes sobre

as relações sociais dos usuários nas redes, tema que vem ganhando força nas pesquisas

de cibercultura no Brasil. É neste contexto que o presente artigo é desenvolvido, com a

avaliação dos desdobramentos negativos produzidos no ambiente online, quando os

debates relevantes quanto ao racismo caminharam ao lado dos discursos de ódio, das

manifestações de discriminação, preconceito e machismo. Patrícia Moreira é

personagem de uma conduta equivocada, em que crime de injúria racial obviamente não

de ser desconsiderado ou justificado, porém foi “sentenciada” onde não há poder prático

de jurisdição, mas local em que há força suficiente de condenação no âmbito pessoal/ na

vida: nas redes sociais. A Internet foi o referencial para a propagação de uma violência

sistêmico-simbólica (Bourdieu, 1989; Zizek, 2009), um tipo de violência imbricada nas

relações de poder entre grupos sociais.

Nos discursos mediados pelo computador, há também “punição” que passa a ser

real. Duas semanas depois do flagrante nas arquibancadas, o ódio disseminado nas redes

sociais, incentivou um torcedor do Grêmio a fazer justiça com as próprias mãos.

2. Racismo no futebol

Antes de ingressar no objetivo central deste trabalho, é necessário elaborar

algumas considerações sobre o tema que foi mote para desencadear o caso Patrícia

Moreira x Aranha, o preconceito racial.

Qual a razão dos comportamentos preconceituosos nos estádios de futebol? Por

que gritar “macaco”? Essas não são questões que podem ser respondidas com

facilidade, mas um dos aspectos essenciais para a explicação do comportamento está na

origem do próprio esporte no Brasil e no contexto histórico-social do país.

No século XX, football, termo original usado para o esporte nos seus primeiros

anos, era na época a modalidade da elite. De origem britânica, foi muito praticado por

ingleses imigrantes no país e pela alta sociedade brasileira, mantendo a pomba de uma

prática esportiva europeia inclusive com o uso integral de palavras em inglês para

denominar as posições e momentos do jogo. Descreve Fernandes (2010, p.10):

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É a de um esporte praticado quase que exclusivamente por clubes de

engenheiros e técnicos ingleses e suas famílias no início do Século XX. Do

fascínio pelo novo esporte por jovens da elite metropolitana que conviviam

com os ingleses e seus clubes. Da organização de clubes para a prática do

futebol nos bairros da elite social da Capital, que se tornaram, igualmente,

importantes centros de convivência das “famílias de bem”.

Esse modelo elitista foi mantido nas duas primeiras décadas do esporte,

entretanto, de forma clandestina, o futebol conquistou também aqueles que eram

excluídos de praticá-lo: negros e mulatos. Não aceitos nos clubes e nas ligas, a

segregação era feita na arquibancada, só tinham direito a esse local os brancos,

enquanto a geral, quase sempre as encostas dos morros, ficava disponível para os

negros. Assim, obviamente, o termo “macaco” passou a fazer referência a questão

racial. Consequência também dos discursos que eram sustentados na visão europeia

sobre progresso, nesse período, imergiram teorias que “comprovavam” a inferioridade

racial do país formado por parte de negros e mestiços, acreditava-se que o futuro estaria

comprometido e a nação fadada ao atraso. O futebol, novidade da Europa, reproduzia o

pensamento dos intelectuais. Por isso, praticado exclusivamente por jogadores brancos

para passar a imagem de uma nação.

A segregação em campo, não impediu o futebol de ser convertido na prática

esportiva número um no Brasil como destaca Gilberto Freyre (2014, p.25):

O desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros,

mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de

vários daqueles elementos irracionais da nossa formação social e de cultura.

O futebol legitimava o samba, o candomblé, a malandragem, e tantas outras

formas de expressão cultural.

Nos anos 30, com a profissionalização do esporte, o negro passou a ser aceito no

futebol, além disso, a conquista do então histórico terceiro lugar na Copa do Mundo de

1938 fortaleceu a relação da população com a prática esportiva. Entre os destaques do

mundial estava Lêonidas, um dos primeiros jogadores negros a ter a imagem

comercialmente explorada.

As conquistas da Seleção Brasileira e dos times do eixo Rio-São Paulo

intensificavam a relação nacional com o esporte, a presença do negro nos times de

futebol foi aumentando, que de inaceitável passou a ser insubstituível. Mudou o perfil

dos times, mas também o apelo social quando elite e classes mais baixas assumiram o

gosto pelo mesmo: um negro poderia ser ídolo e símbolo internacional. E o ápice na

década de 50: o início da carreira de Pelé. Personagem de três Copas do Mundo, ao lado

de outros negros, o jogador marcou todo um período. De excluídos muitos atletas

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negros passaram a ser tratados como heróis nacionais e celebridades. Estava criado o

rótulo internacional: Brasil, a pátria das chuteiras.

Conforme Helal (1999), o futebol pode ser visto no Brasil como um poderoso

elemento de integração cultural, capaz de proporcionar um sentido singular de

totalidade e unidade, com uma universalidade que mobiliza e gera paixões em milhões

de pessoas. Para o autor, o esporte faz ainda mais, transforma os indivíduos de classes

sociais diversas em “iguais”. Entretanto, essa possível “democracia racial” que o

futebol provocaria na sociedade, não se confirma quanto as frequentes manifestações

preconceituosas relacionadas aos gramados. Se o tempo consolidou a imagem que hoje

é difundida globalmente do jogador negro brasileiro bem-sucedido, com jogadores

negros assumindo um status oposto daquele dos primórdios da modalidade, agora em

posição de astros, idolatrados e divinizados, respinga nessa relação traços da herança

colonialista e escravista do país, em que negros não deixaram de protagonizar capítulos

de preconceito. Se tornaram figuras centrais de casos de racismo dentro de campo, alvos

de manifestações racistas nas arquibancadas e manchetes de um tema que parece não ter

fim.

3. Redes sociais

O artigo vai analisar algumas das manifestações postadas no Twitter, ferramenta

de micromensagens lançada em 2006, obtendo um crescimento no mundo e no Brasil.

Nela os usuários são convidados a responder “o que você está fazendo?” (Recuro e

Zago, 2009). É uma rede social em que a interação pode ser feita com desconhecidos,

todos usuários podem enviar mensagens a pessoas que não tem relação.

A título de definição, pontua Recuero (2009), as redes sociais na Internet são

constituídas de representações dos atores sociais e de suas conexões. Essas

representações são, geralmente, individualizadas e personalizadas. Ainda Recuero

(2009, p.3):

“As redes sociais devem ser diferenciadas dos sites que as suportam.

Enquanto a rede social é uma metáfora utilizada para o estudo do grupo que

se apropria de um determinado sistema, o sistema, em si, não é uma rede

social, embora possa compreender várias delas”.

O termo que surgiu da sociologia, Barnes (1987) foi pioneiro nos estudos que

conceitualizavam o que é rede social como visão das relações sociais entre sujeitos a

partir de nós e laços. O termo foi cunhado em 1954, quando o pesquisador estudou os

vínculos sociais em uma vila de pescadores e concluiu que o conjunto da vida social

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poderia ser analisado a partir de um conjunto de pontos, às vezes, unidos por linhas,

formando uma rede inteira de relações.

Sendo assim, no contexto da Internet, os atores, portanto, são os primeiros

elementos da rede social, e equivalem aos nós da rede (Recuero, 2009), no caso, cada

ponto da cidade na teoria de Barnes. Os atores são, na verdade, representações sociais

de cada um, como que espaços construídos por cada ator, nos quais cada um vai decidir

como interagir com o restante da rede. E essas conexões promovidas pelos sites de redes

sociais, em muitos casos, potencializam a disseminação de discursos como o que

interessa este artigo: o discurso de ódio, que propaga a violência e a agressividade,

danosas a que sofre, levando em determinadas circunstâncias o silenciamento, a perda

de capita social2

e até ao rompimento das conexões com a rede, com a exclusão de um

perfil, por exemplo.

No caso aqui abordado, Patrícia Moreira excluiu todas as páginas que tinha na

Internet. Foi também pela Internet que a torcedora foi identificada após a divulgação das

imagens da televisão ESPN que a flagravam na arquibancada gritando “macaco”. Os

compartilhamentos nas Internets tiveram ainda outras repercussões a serem analisadas a

seguir.

4. Entendendo o caso Patrícia Moreira x Aranha

No dia 28 de agosto, durante uma partida entre Grêmio e Santos, minutos antes

do final do confronto em Porto Alegre, o goleiro Aranha relatou ao árbitro Wilton

Pereira Sampaio que havia sido vítima de xingamentos por parte da torcida. O juiz

determinou que a partida seguisse, mas assim que terminou Aranha em entrevista as

emissoras de televisão e rádio disse que havia sido ofendido com palavras racistas e que

no momento das ofensas pediu para que os cinegrafistas que estavam próximos ao local

registrassem o rosto de quem estava gritando.

As declarações foram suficientes para que o assunto voltasse às principais

manchetes da mídia nacional e internacional. As manchetes passaram a vir então

acompanhadas então do flagrante: o cinegrafista da Espn Brasil gravou o momento

exato em que uma torcedora gritava “macaco”. Pela multiplicação da imagem em sites,

canais de televisão e redes sociais, rapidamente ela foi identificada como Patrícia

Moreira.

2 Para Pierre Bourdieu (1983), o capital social é constituído dos valores negociados e embebidos na

estrutura dos grupos sociais, aqueles associados a “fazer” parte destes grupos. As impressões, o suporte e

o apoio social diante de um grupo seriam considerados capital social.

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No dia seguinte, Patrícia foi transformada na personagem central do ato racista,

uma espécie de símbolo do preconceito, perdeu o emprego e sua imagem foi publicada

inúmeras vezes. Teve informações confidenciais divulgadas, passou a sofrer ameaças,

foi obrigada por razões de segurança a ficar na casa de parentes. Tamanha exposição,

fez com que um torcedor do Grêmio, inconformado com os atos racistas e com as

sequentes punições ao Grêmio, que foi excluído da Copa do Brasil, ateasse fogo contra

a casa da família da Patrícia.

5. Discurso de ódio

Conforme dados da Ong Safernet, as mensagens violentas ganharam espaço na

Internet nos últimos anos no Brasil. Sendo que nos últimos três, o número de páginas

com conteúdo de intolerância racial, religiosa e sexual e com material que faz apologia

a violência e ao ódio, cresceu 200%. Esses números indicam que as redes sociais foram

transformadas no ambiente ideal para as manifestações presentes na sociedade, mas que

em caráter físico, frente a frente, são contidas pelo temor das punições, são crimes e

passíveis de julgamento. A mesma pesquisa destaca que 61% dos usuários entre 9 e 23

anos, entre 2012 e 2013, costumam se comportar na Internet de forma diferente, sendo

que 34% se sentem mais livres e 10% acham normal “xingar” e fazer “piadas” com as

situações.

O francês Bourdieu (1989), em seu livro Poder Simbólico, trata do poder que se

vê em toda parte, mas que nem sempre é percebido. Seriam os sistemas que estruturam

as sociedades, como a religião, a arte e mesmo a língua. Esses símbolos seriam

instrumentos de integração social. Os indivíduos se subdividem, estabelecendo grupos

de dominados e de dominadores. Ou seja, uma classe ou característica específica

constrói um poder imposto de forma simbólica, que vai fazer com que seja gerada uma

violência pela prevalência, essa, a violência simbólica.

Nesse artigo, interessa explicar que as ideias defendidas por Bourdieu podem ser

interpretadas na abordagem dos conteúdos da Internet. Os discursos de ódio integram a

violência simbólica propagada em variadas conexões. Essa violência é simbólica porque

não está presente fisicamente, mas permeia as relações sociais. Uma violência

estabelecida principalmente pelo uso da linguagem.

Se a violência simbólica se apresenta pela força de uma classe ou um

grupo social possui perante os outros, a linguagem é o meio transmissor pela

qual essa violência é repassada. Ao se falar em violência nos sites de redes

sociais, sabe-se que não se trata da violência física, imposta pela presença do

corpo propriamente dito, e sim de algo marcado na linguagem. Mas a

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percepção da violência nesses sites vai além do que está explícito, vai até a

replicação de algo que não parece ser violento. (SOARES, 2013, p.76)

No mesmo caminho, Zizek (2009) afirma que a linguagem constitui um universo

emblemático no os seres humanos atribuem valores simbólicos à linguagem, as palavras

acabam definindo um tipo de performance de algum grupo, que pode ser violenta, com

estigmas impostos, como o racismo, por exemplo. As palavras legitimam a crença de

quem as pronuncia.

Na Internet, Dery (1994) a separação do corpo da palavra gera a aceleração da

hostilidade de um conflito, o espaço acaba sendo propício para a propagação de

discursos de ódio, ofensivos e agressivos. Se o “anonimato” inibe a punição, não há

eminente necessidade de “polidez”. Dessa forma, pela capacidade da rede reunir

pessoas com históricos e backgrounds diferentes, com grandes diferenças, mais

facilmente surgem os conflitos.

Para Lebrun (2008), estudioso francês que trata sobre o fenômeno do ódio, o

ódio é um sentimento e as intolerâncias das pessoas, como a intolerância de raça,

religião ou política são materializações destes sentimentos. Através da violência

expressa nas palavras, o indivíduo pode atingir os demais presentes no círculo social,

com a agressão verbal, afirma:

O ódio, mais do que um sentimento ou uma manifestação de

explosão violenta, é um fato de estrutura, temos ódio pelo fato de falarmos,

assim pode ser enunciada a afirmação freudiana de que o indivíduo é inimigo

da civilização. A civilização nos impõe sempre um gozo a menos, uma falta,

uma restrição, e a isso respondemos com ódio. A questão decisiva, então, é o

que fazemos com esse ódio que nos habita pelo fato de estarmos inseridos na

linguagem? (LEBRUN, 2008, p.9)

O gozo do ódio é precisamente o fato de deixar o ódio realizar-se,

cumprir-se como se esquecêssemos que ele é apenas a nossa resposta ao fato

de que não colocamos mais a mão sobre o que a língua já nos subtraiu.

(LEBRUN, 2008, p. 32)

Recuero(2012) reforça a ideia que as palavras que não seriam utilizadas numa

conversação cotidiana são escritas online, porque não há a presença do outro marcada

explicitamente, não reciprocidade imediata, se houver, há um computador como

mediador.

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6. O Twitter como tribunal para Patrícia Moreira

Para demonstrar o conteúdo propagado no Twitter relacionado à Patrícia

Moreira, foram coletadas 42 mensagens publicadas posteriormente ao acontecimento do

caso de racismo na Arena Grêmio e durante os desdobramentos do caso (a partir de final

agosto de 2014). A seleção foi aleatória, usando apenas o filtro de busca “Patricia

Moreira” ou com a variação acentuada “Patrícia Moreira”. A intenção foi reunir um

número de terminados tweets para brevemente analisar quais são os discursos mais

recorrentes.

A Análise de Conteúdo foi o método escolhido para demonstrar a ideia central

deste trabalho. Conforme Bardin (1977, p.38), ela aparece como um conjunto de

técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e

objetivos de descrição de conteúdo das mensagens. A técnica permite compreender o

sentido da comunicação, como também descobrir uma segunda significação. Além

disso, a categorização irá guiar a apreciação, ainda conforme Bardin (1977, p.117):

A categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos

de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento

segundo o gênero (analogia), com os critérios previamente definidos. As

categorias são rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos

(unidades de registro, no caso da análise de conteúdo) sob um título genérico,

agrupamento esse efetuado em razão dos caracteres comuns destes

elementos.

Assim, as mensagens podem ser categorizadas da seguinte forma:

A) As ofensas (“puta”, “vadia”, “nojenta”, “piranha”), aparecem 18 vezes;

B) Fotos que expõe Patrícia Moreira são compartilhadas em 6 momentos;

C) Os discursos que condenam a torcedora e que pedem que ela seja presa

aparecem 16 vezes

D) Há 3 referências a fisionomia de Patrícia Moreira, a considerando “gostosa”

e sugerindo que pose nua.

É importante destacar que essa foi uma amostragem pequena diante da dimensão

que o assunto exigiria, mas o artigo não se propunha a detalhar a análise de conteúdo,

mas por meio da coleta auxiliar na construção das reflexões sobre os discursos de ódio

nas redes sociais, como objetivo principal relacionar os conceitos ainda recentes com o

caso de Patrícia Moreira. Ainda que superficial, a coleta já exemplifica os conceitos que

foram abordados até aqui.

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As repercussões nas redes sociais podem ser analisadas ainda sob o olhar do

tribalismo. Maffesoli fala que a anemia existencial suscitada por um social demasiado

racionalizado, faz com que as tribos urbanas acentuem a urgência de uma socialidade

empática, que seria a partilha das emoções e partilha dos afetos, neste caso, o próprio

ódio pode demonstrar identificação. As milhares de manifestações demonstram que

diante da popularidade da temática, participar daquele contexto representava também

reproduzir o que a maioria estava fazendo. A indignação do coletivo manifestada pelo

apoio a um indivíduo (no caso, o goleiro Aranha) e ao repúdio ao vilão (Patrícia

Moreira). Assim sendo, além do sentimento de ódio já mencionado como forma de

externalização violência simbólica na Internet, ocorreu a propagação da coletividade do

pensamento antirracista. Ou seja, mesmos torcedores que vão aos estádios e gritam

“macaco”, “negro” ou “macacada”, no momento auge do compartilhamento de emoções

ingressam também na onda de “defesa” da causa. E a figura de Patrícia simbolizava

tudo aquilo de preconceituoso, de errado e por isso repugnado.

A dimensão do caso é também movida pelo tema: o futebol suscitaria os mais

primitivos dos sentimentos. A paixão pelo clube liga pessoas de classes distintas,

constituindo um forte vínculo emocional e o conceito de tribalismo também está ligado

a afetividade. Para Durkheim (), a “força de atração” faz com que alguma coisa tome

corpo e assim se expressaria sentimento como a paixão. As crenças comuns são

elaboradas, ou, simplesmente que se procura a companhia “daqueles que pensando e

que sentem como nós”. É a troca de sentimentos, discussões de botequim, crenças

populares, visões do mundo. Sensação de contágio pelo sentimento.

7. Considerações finais

O objetivo neste artigo não foi apresentar conclusões definitivas sobre o tema,

mas estimular uma reflexão sobre o comportamento nas redes sociais e interpretações

dadas para o caso racismo no futebol. Neste trabalho, a ideia foi demonstrar como

características próprias das conexões onlines possibilitam que a ferramenta seja usada

para propagar discursos de ódio.

Do ponto de vista da Pós-Modernidade, a busca do “eu” que se transforma em

“nós”; quando, passionalmente, qualquer crença individual é suprimida pelo fato de

querer compartilhar, mas também de externalizar discursos odiosos. Na reflexão de

Maffesoli (1987, p.197), esse “tribalismo” é a experiência de um grupo fundamentado

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num forte sentimento de pertencimento necessita, para a sobrevivência de cada um, que

outros grupos se criem a partir de uma exigência da mesma natureza. Condenar Patrícia

Moreira é a manifestação do poder simbólico, antes mesmo que a torcedora seja de fato

julgada pela Justiça. Se tratando de um assunto que envolve futebol, os desdobramentos

fazem parte também de um universo em que o próprio ambiente, torcer em estádios já

estimula as mais passionais das manifestações.

A repercussão do caso rendeu as mais variadas discussões no meio esportivo e

na sociedade. Porém, deve ser principalmente analisada também não apenas na

amplitude, mas em contextos particularizados. Patrícia Moreira, de fato, foi

preconceituosa ao chamar Aranha de Macaco, mas independente das motivações, das

circunstâncias e da própria ação, a torcedora foi transformada na personificação dos

piores sentimentos. Ficou marcada, teve os direitos (de privacidade e dignidade)

violados por um coletivo, sofreu ameaças e quase um ano depois segue com medo de

viver uma rotina normal. As redes sociais condenaram previamente Patrícia Moreira

antes da defesa da envolvida perante a Justiça, o debate, que deveria servir para avanços

da temática como sociedade, foram em alguns momentos desviados. As ferramentas

tecnológicas acabaram sendo usadas para disseminar o ódio e mesmo fortalecer o

próprio preconceito. O tribunal das redes sociais condenou Patrícia Moreira, assim

como já condenou outros personagens em momentos diferentes. Afinal, que civilização

é essa que utiliza de ferramentas importantes para reproduzir o mal? A quem compete

julgar ou rotular Patrícia Moreira? Como controlar a violência simbólica nas redes? São

apenas algumas das reflexões que podem ser feitas do tema, que pode ser explorado

incansavelmente pela academia.

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O Tempo das Redes e o surgimento do novo receptor/emissor no

Brasil

Manuel Petrik*

Ao se desdobrar a raiz etimológica (latina) da palavra comunicação surgem três

núcleos: commune - hic - actione (ato de tornar comum aqui). Tornar uma informação de

domínio comum traduz-se em um ato que transcorre em um determinado local, num

determinado período de tempo. A temporalidade (atualidade do fato) é, como se sabe,

fundamental no critério de noticiabilidade no jornalismo.

Em 2005, completam-se 20 anos do início da difusão da internet em lares

brasileiros. A rede mundial de computadores e, mais recentemente, as redes sociais

alteraram as formas de conexão entre as pessoas e os meios de acesso à informação no

espaço e, principalmente, no tempo.

As redes vêm ganhando atenção dos meios acadêmicos, na área da Comunicação,

muito em função da nova aura que envolve o receptor, cada vez mais investido como

emissor. Ainda que vistas com certo desdém, as redes são, como todas as tecnologias,

reveladoras de comportamentos e de tendências sociais. Para este artigo, foram

escolhidas duas postagens no Facebook, diferentes em conteúdo, mas complementares

no sentido, como se verá. A primeira delas, publicada no perfil do jornal El País, no

Brasil, trata, exatamente, de uma matéria em que a questão central é a própria rede social

e o algoritmo que funciona como filtro de seleção ao que será visto no feeed de notícias

de cada usuário (figura 1).103 A segunda repercute uma entrevista com o sociólogo

espanhol e teórico das redes Manuel Castells, publicada na página do jornal Folha de

São Paulo (figura 2).

O tópico sobre a ordenação de conteúdos pelo Facebook foi um dos que mais

recebeu comentários, naquela semana, no perfil do periódico espanhol. O texto analisa e

contrapõe os resultados de um artigo de cientistas sociais do próprio Facebook,

publicado na revista Science, que tenta abrandar os efeitos do algoritmo na exposição de

posts que apenas corroboram a visão político-ideológica de cada pessoa, valorizando

*Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS). 103 Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/06/tecnologia/1430934202_446201.html>.

Acesso em: maio de 2015.

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aqueles aos quais o usuário se alinha em detrimento aos que se opõe104. O artigo é,

portanto, uma resposta aos críticos das chamadas bolhas ideológicas, que seriam

causadas pela rede social, em que se enfatizam pontos de vista em comum, reforçando

sectarismos e posicionamentos radicais.

Independente da influência (ou não) da estrutura tecnológica de funcionamento

da rede social, o que se vê, atualmente, é um aturdimento por parte do público, ao

mesmo tempo em que se encontra cada vez mais entusiasta dos novos aparatos. “Um

monopólio [da técnica] que acentua a disseminação mais rápida [da informação] causa

uma profunda perturbação na sociedade”, diagnosticou Harold Innis (1951/2011, p.282).

A aceleração causada pela circulação on-line de informações vem provocando uma

mudança significativa no comportamento e a nova configuração social do tempo tem

uma parcela importante nisso.

1.1 Novo tempo no ciberespaço

“Nós matamos o tempo e o tempo nos enterra”. A citação do personagem

principal de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, bem interpreta a

relação do homem com a dimensão temporal no seu transcurso existencial. Dominar o

tempo (ganhar em produção) e o espaço (encurtar distâncias) tornou-se o mote de

sociedades ao longo da História. O ser humano está, não só física, mas culturalmente

condenado a orientar-se por essas duas dimensões. É sabido e desnecessário citar todos

os autores que ressaltam a ruptura provocada pelo virtual e, especialmente, pelas redes

sociais, nesses dois elementos. Mais interessante e esclarecedor seja, talvez, retomar

aqueles teóricos que não conviveram com essas tecnologias, mas ocuparam-se da

essência da técnica.

No campo específico da comunicação, a relação entre tempo e espaço foi

abordada por Harold Innis:

Um meio de comunicação tem uma importante influência na disseminação

do conhecimento através do espaço e do tempo e se torna necessário estudar

suas características a fim de avaliar sua influência sobre o quadro cultural.

De acordo com suas características, um meio pode ser mais apropriado para a

disseminação do conhecimento através do tempo em detrimento ao espaço

(...) A relativa ênfase no tempo ou no espaço irá implicar um viés [bias] de

significação para a cultura na qual está inserido (1951/2011; p. 103). 105

104 Disponível em: <http://www.sciencemag.org/content/early/2015/05/08/science.aaa1160>. Acesso em:

maio de 2015. 105 À primeira vista, o texto pode sugerir um certo determinismo tecnológico. Na verdade, remete a uma

interconexão entre suportes materiais, tempos históricos e inclinações culturais. Como nota Luiz C.

Martino, no prefácio à obra citada, a leitura atenta de Innis tratará de “estabelecer pontes e

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Se no século XX o público se viu numa condição de anomia, definido como

massa e visto como sujeito apático (basta lembrar que, pela perspectiva das Teorias da

Comunicação, essa noção só começa a mudar com as pesquisas de campo empíricas de

duplo fluxo e, mesmo assim, de forma tímida, na década de 1930), na segunda década do

século XXI a configuração é outra. Há, ao contrário, a emersão de um enunciador

opiniático, que sobre tudo se posiciona, não raro esquecendo argumentos e enveredando

pela virulência verbal do ódio ao diferente ou a quem não se encontra no seu campo

(bolha) de posicionamento.

É importante retomar, também, a concepção de tempo proposto por Agnes Heller

(1993). Talvez aquele que mais se aplique à situação atual seja o do presente “agora

mesmo”. Conforme a autora, “‘Agora mesmo’ denota ação. (...) Passo de uma ação a

outra e nada muda. Para ser mais, mais exata, se algo muda, a mudança não é causada

pela minha passagem de uma ação a outra” (1993/p.51-52). Para Heller, a distinção do

que passou para o que está por vir chama-se “pessoalidade”, o espaço para encarar a

transição temporal a partir de si, da trajetória de cada um. Ante a repetição de presentes

contínuos (carentes de “tempos idos”, como o recém-nascido) e, aparentemente inócuos,

as redes surgem como novo espaço para expressão do eu sufocado pelo tempo da

contemporaneidade. São dispositivos para a busca de um ser pessoal que fica subsumido

a um contínuo de atos e ações. A nova configuração da disposição temporal, portanto,

gera a angústia necessária para a assunção de um reformulado indivíduo receptor,

sempre pronto a interagir opinando.

1.2 Opiniões e bolhas ideológicas no Facebook

O artigo proposto pelos funcionários do Facebook coloca, no centro da discussão,

a autonomia do sujeito receptor. O comportamento nas redes reflete uma predisposição

ao sectarismo inato e talvez reforçado pelas angústias de perdas de parâmetro

características da contemporaneidade, ou, por outro lado, é resultado de novas formas de

disposição das informações, ordenadas de acordo com a lógica maquinística do

algoritmo? A manchete do El País vai na mesma direção da primeira hipótese:

“Usuários transformam seus murais no Facebook em bolhas ideológicas – Algoritmo na

rede reduz a diversidade ideológica, mas não é o maior culpado, aponta estudo”.

correspondências entre as propriedades materiais dos meios e as configurações do poder e da cultura” (;

p. 14). Um meio, com as características de seu suporte e de acordo com a orientação da cultura em que

surgiu, irá tender mais ao espaço ou ao tempo, também aí ambos definidos segundo a linguagem e,

portanto, a partir de um significado social preestabelecido

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No corpo do texto, a discussão é mais ampla. Começa reafirmando a

impossibilidade da neutralidade da técnica: “Embora ainda muita gente não saiba,

o Facebook seleciona o que os usuários veem em seu mural”, para, em seguida, explicar

como funciona o algoritmo e introduzir opiniões de especialistas (críticas) ao artigo

publicado na Science.

Na postagem do El País, o comentário que mais gerou curtidas (52 no total) foi

do usuário L.S.S., que trouxe a discussão para a política brasileira: “O Facebook está

pautando o pensamento das pessoas. Isso é horrível. Eles escolhem o que a gente deve

ver.(...) Petistas parecem idiotas defendendo seus ídolos corruptos. Odiadores do PT

falam m. o tempo todo defendendo ideias ultrapassadas”. As respostas, na maioria,

complementavam essa proposição inicial. A quantidade de comentários originados a

partir da opinião desse enunciador o transforma, praticamente, em um líder de opinião,

como aquele previsto pelas pesquisas norte-americanas da década de 1930, mas que, não

fosse a rede social, despontaria para o anonimato. “Um dos maiores efeitos de ruptura da

internet é combinar publicação e comunicação (interpessoal) em um único meio”, notam

Anderson, Bell e Shirky (2012; p.15) em ensaio sobre o jornalismo pós-industrial, mas

que traduz de forma ampla a lógica das novas tecnologias.

A discussão, a partir daí, oscila entre as duas bolhas ideológico-partidárias

brasileiras (PT-PSDB), e o tema em si, da tecnologia afetando o modo de pensar.

“Depende somente do indivíduo escolher entre se submeter a uma auto-lavagem

cerebral, ou buscar informação de várias fontes”, disse B.P., gerando 50 curtidas. Os

demais comentários não renderam tantas apreciações. Mesmo assim, há uma grande

variedade de posicionamentos, destacando a intolerância de alguns: “Acho um absurdo!

Tirem essa matéria daqui! Audácia!”, disse L.M.. “Dessa eu ri!”, escreveu G.R.. E

transparece a abundância de termos de baixo calão em outros, como o vociferado por

M.A.: “Não fode PORRA... Algum dia foi diferente seus merdas! (SIC)”. Inúmeros

simplesmente marcavam seus amigos, indicando a leitura, com comentários do tipo

“olha o que falávamos”, ou “vale a leitura”, como se servissem de alerta para um engodo

perpetrado pela rede social.

A questão apontada por críticos é se, antes, o emissor poderia escolher entre o

canal de TV, a emissora de rádio ou o jornal A, B ou C, agora o Facebook escolhe o que

disponibilizar ao receptor, de acordo com um filtro que, supostamente, reflete as

preferências do usuário. A lógica de combinação do filtro, porém, é sempre a mesma, ou

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seja, não varia de acordo com escolhas individuais (se a preferência do internauta é por

postagens de amigos, familiares, colegas de trabalho ou por notícias de veículos de

imprensa, blogs ou páginas institucionais). Haveria, portanto, nessa coordenação pelo

filtro eletrônico, um motivo a mais para rebeldia/expressão do eu nos textos de

comentários na rede social, proporcionando um novo local de fala, mais amplo e sempre

tecnicamente mediado para o angustiado receptor/emissor.

1.4 O brasileiro pouco cordial e as redes

As alterações de comportamento do brasileiro nas redes ultrapassaram as

fronteiras nacionais e foram objeto de análise de Manuel Castells, em visita ao Brasil, no

último mês maio, para um ciclo de palestras. Na abordagem ao tema, o autor deixa clara

uma dissidência com autores clássicos na formação do país, como Sérgio Buarque de

Holanda e Gilberto Freyre. “Simpatia do brasileiro é um mito, diz sociólogo Manuel

Castells”106, é o título da postagem, e também da matéria, para em seguida completar:

“A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as

pessoas, sempre foi violento.(...) Esse é o Brasil que vemos hoje na internet. Essa

agressividade sempre existiu”. Na entrevista ping-pong, o sociólogo discorria sobre o

que considera uma “crise mundial dos sistemas tradicionais de democracia

representativa”, decorrente da transparência e da agilidade proporcionadas pela internet,

dizendo que, no Brasil atual, a crise se agrava por problemas econômicos. Castells é

perguntado por que o brasileiro tem a sensação de que, na internet, há demasiada

violência no debate. Ele responde dizendo que não crê na hipótese, lembra a injustiça

social brasileira, em si agressiva, e a violência perpetrada pelo Estado com a tortura

durante a ditadura militar. “A única coisa que a internet faz é expressar abertamente o

que a sociedade é em sua diversidade. Trata-se de um espelho”, sintetiza.

O post da Folha teve mais de 24.563 curtidas e mais de 6 mil compartilhamentos,

números muito elevados, inclusive para um periódico já tradicional em termos nacionais.

“Basta ler os cometários no Facebook”, disse a leitora T.M., como complemento ao

título, reafirmando sua condição de receptora/emissora, e recebendo elogios de

concordância de outros internautas, além de 1.252 curtidas. Em seguida, tal qual no post

sobre o algoritmo, os primeiros comentários remetem à dualidade política brasileira:

“Até por que eu não sou obrigado a concordar com esquerdistas... A única corja que

odeio!”, afirmou D.S.S. “Brasileiro é tão bonzinho que votou na Dilma”, afirmou A.T.,

106 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1630173-internet-so-evidencia-violencia-

social-brasileira-afirma-sociologo-espanhol.shtml , acessado em maio e junho de 2015.

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no que foi reprimida de forma agressiva por A.M.: “Só lixo comentou aqui”. Três

comentários, intercalados e de usuários diferentes, lembram que a questão não é política,

mas cultural e de educação. Tais ponderações remetem, então, a discussão para o caráter

do brasileiro. “Quando um caminhão carregado de qualquer coisa tomba, os bons

brasileiros aparecem imediatamente, para socorrer o motorista?...Não....Pra saquear a

carrada...”, escreveu D.J.C, com 831 curtidas e desencadeando o novo debate sobre a

ética e a moral do país.

De forma geral, os comentários dão vazão a uma enxurrada de críticas à nação e

“ao brasileiro”, quase sempre referido na terceira pessoa. Mas um grande número

também se opõe à observação de Castells, com argumentos que vão desde o fato de ser

ele estrangeiro, ter pouco contato com brasileiros (“É um idiota estrangeiro que se acha

com propriedade para falar dos brasileiros”, agrediu L.H.), ser sociólogo (?!), ou por

motivos prosaicos, como o de que “provavelmente o Dr. não deve conhecer o Nordeste e

o seu povo”, como disse L.G. O debate também passa pelo papel do meio tecnológico

em ativar o ódio: “O ‘brasileiro cordial’ do Sérgio Buarque não tem computador!”, disse

T.S..

1.5 Considerações

A tecnologia mais difundida e o predomínio de um meio são sempre reveladores

de uma identidade em uma civilização. Como mostrou Innis, o desenvolvimento de uma

técnica, em determinada cultura, é essencialmente ligado ao ciclo econômico dominante

naquela sociedade. E a economia é, como ressaltaram os Estudos Culturais e também

Manuel Castells, uma prática cultural. Sob essa perspectiva e, em última instância, a

tecnologia é a projeção materializada de uma identidade cultural, a partir de uma base

econômica, e com um fim utilitário, que transcende socialmente essa sua designação

pragmática precípua. Aparatos tecnológicos, tomados em conjunto com a cultura que os

gera, são, portanto, reveladores.

Neste artigo, procurou-se enfatizar as alterações temporais como motivadoras de

mudanças comportamentais por parte do público receptor/emissor, talvez manifestadas

de forma mais acentuada em uma cultura como a brasileira. “Cada tecnologia cria o seu

imaginário, sua mitologia, sua necessidade e seus defensores. A característica principal

das tecnologias mais revolucionárias é se imprimir no imaginário social como

incontornáveis”, nota Juremir Machado da Silva (2013/ p.54), ao abordar o trabalho de

Innis. Sob o auspício da conexão absoluta, em qualquer lugar e a qualquer hora, o

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emissor vê, na rede social, a ilusão de um espaço libertário onde pode dar expressão à

perda de sentido causada por uma aceleração temporal na circulação de informações

(públicas ou do grupo que o cerca na rede). Quanto haverá de liberdade em um campo

onde quem faz a lei é um monopólio (Facebook) e quem a fiscaliza, um algoritmo? Sob

o viés do tempo e parafraseando Castells, as redes sociais, hoje, são mais de indignação

do que de esperança.

Para este trabalho, foram selecionadas duas postagens, uma que analisa e

questiona o funcionamento técnico de uma rede e os posicionamentos ideológicos de

seus usuários, e outra em que o foco recai sobre a matriz do brasileiro (cordial ou

agressivo), mas em que o componente da rede e, portanto, da comunicação, está

implicado. Em ambos os casos, há manifestações de agressividade e violência verbal.

Apesar da discordância de Castells, essa beligerância linguística e comunicacional não

se apresentava nesse nível no Brasil, por exemplo, em discussões e rodas de conversas

entre estranhos, ou mesmo nas cartas de leitores de jornal impresso. Há, portanto e

também aí, um componente de viés estabelecido pelo meio tecnológico, embora que não

somente por esse. Tal meio, a rede social em suporte virtual, é uma inovação no país,

que só nas últimas décadas deixou de conviver com a ausência de um letramento

alfabético e, rapidamente, é impelido ao letramento digital. Novamente, parecemos estar

diante de um m movimento semelhante àquele bem identificado por Wainberg em

relação ao momento de expansão da comunicação massiva entre as décadas de 1920 e

1950 no país: "na verdade, no novo contexto de redes sofisticadas que se interligam, os

brasileiros tem o que partilhar. O objeto do Brasil tornou-se o Brasil." (2001; p.14)

Cabe ressaltar que a introdução das novas tecnologias coincide com um momento

histórico também inédito do Brasil, se considerarmos que, entre 1994 e 2014 (a internet

domiciliar é de 1995), completaram-se 20 anos de democracia em que todos os

presidentes concluíram seus mandatos. É o maior período institucionalmente

democrático na história do país, desconsiderando a República Velha, onde grassavam as

fraudes eleitorais. De súbito, o brasileiro viu-se podendo votar, expressar-se, consumir

produtos culturais mais complexos em um ambiente de relativa estabilidade

macroeconômica e ainda contar com um aparato absolutamente novo para usufruir de

tudo isso.

Com a brevidade possível, procurou-se fazer aqui uma leitura da comunicação a

partir de seus meios, sem escorregar em determinações a partir de seus suportes.

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Anteviram-se nesses, isto sim, chaves para explicar fenômenos comunicacionais mais

amplos. Procura-se demonstrar, nas duas postagens emblemáticas, que a temporalidade e

a conectividade propostas pelo Facebook vêm gerando uma transformação no

comportamento do receptor/emissor, provocando também, a partir disso, um debate

sobre fundamentos da identidade nacional. Embora a rede social congregue de forma

equânime características de espaço e de tempo, a forma como ela introduz tais alterações

de dimensões é demasiado acelerada, ainda mais em uma sociedade pouco apta no

letramento do alfabeto.

A tensão presente nos diálogos das redes parece bem sintetizada por McLuhan,

ao recorrer à literatura para explicar as perturbações ocorridas entre os séculos XV a

XVII:

Shakespeare explica minuciosamente que o próprio princípio de ação

consiste no parcelamento das operações sociais e da vida sensorial individual

em segmentos especializados, daí resultando uma busca frenética por uma

nova interação global das forças operantes, a qual, por sua vez, leva a furiosa

ativação de todos os elementos e pessoas afetadas pela tensão. (McLUHAN ,

1972, p.39)

Toda a explicação entre a transição na configuração social do medievo para a

modernidade é explicada por McLuhan citando trechos de Rei Lear, de Shakespeare.

Para o teórico canadense, os personagens Kent, Edgar e Cordélia são caracterizados

como feudais, “fora do tempo” para reforçar que a peça “é a perfeita ilustração do

processo de despojamento sofrido pelos homens ao passarem de um mundo de papéis ou

funções para um mundo de ocupações ou tarefas” (Idem, p. 35).

Sem ter vivido plenamente esse mundo lógico e linear que acompanha as

mudanças cognitivas coincidentes com a tipografia, o Brasil depara-se, rapidamente,

com a complexidade espraiada e difusa das redes virtuais. Nessa perspectiva, o brasileiro

não sofreria de um Complexo de Vira-Latas, como queria Nelson Rodrigues, mas sim da

mesma angústia complexa das personagens de Rei Lear.

Bibliografia

ANDERSON, C.W.; BELL, Emily; SHIRKY, Clay. Post-Industrial

Journalism: Adapting to the present. Nova York: Tow Center for Digital Journalism,

Columbia University, 2012. (Disponível em: <http://towcenter.org/wp-

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115

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de junho de 2015.)

CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais

na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar: 2013.

HELLER, Agnes. Uma Teoria da História. Tradução de Dílson Bento de Faria

Ferreira Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

INNIS, Harold. O Viés da Comunicação. Tradução de Luiz C. Martino.

Petrópolis: Vozes, 2011.

MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem

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WAINBERG, Jacques. Casa Grande e Senzala com Antena Parabólica:

telecomunicação e o Brasil. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.

Figura 1

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116

Figura 2

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117

Mesa 4 - PLATAFORMAS EMERGENTES

Coordenação: Paulo Pinheiro

As tecnologias e a relação com a dimensão

da memória: um olhar sobre o Evernote.

Mariana Wichrowski

GAUTERIO107.

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. 108

Resumo: O presente artigo pretende realizar uma reflexão sobre o conceito de

memória e sua relação com a tecnologia da informação e os dispositivos móveis. Para

tanto lançamos um olhar sobre o sistema Evernote, refletindo sobre o seu

funcionamento e a relação com a nossa capacidade mnemónica de guardar

informações que recebemos em nosso cotidiano.

Palavras-chave: Comunicação Social, Memória, Tecnologia, Dispositivos móveis,

Sistema Evernote.

As tecnologias e a relação com a dimensão da memória:

Pensar a dimensão de memória é entender que ela não é passado, ela é uma armação

do presente, ela é processual. Ou seja, a memória está intimamente ligada ao que

entende-se por lembrança versus esquecimento. Diferente da história, que é sobretudo

um lugar de fala de reconhecimento científico que pressupõe ações, atitudes e

transformações, a memória não é um campo disciplinar e sim um conceito.

107 Doutoranda do curso de Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/

PUCRS, e-mail: [email protected].

108 Trabalho apresentado no XIII SEICOM 2015 (Seminário Internacional da Comunicação) organizado

pelo PPGCOM da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS no GT Tecnologias do

Imaginário e Cibercultura.

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Eric Havelock (1996) reflete como a invenção da escrita interferiu na perda das

capacidades da arte da memória. A escrita significou uma certa liberdade para a

memória, onde seria permitido deixar espaços em branco para serem ocupados por

outras memórias. Se houve uma libertação da memória, houve também perda das

capacidades mnemônicas que não foram recuperadas. Segundo o autor, na Grécia sem

escrita as condições de preservação eram mnemônicas pois cada pronunciamento

tinha de ser lembrado e repetido. O alfabeto tornou disponível um registro visual

completo abolindo a necessidade de memorização. Se antes a necessidade de recordar

gastava uma cota de capacidade cerebral, a partir da escrita o pronunciamento já não

precisava ser memorizado.

Em Nota sobre o “Bloco Mágico” (1925), Sigmund Freud coloca em cena esta

questão tecnológica. O autor fala sobre a metáfora do esquecimento e a questão da

escrita libertando para o esquecimento.

Quando desconfio de minha memória — sabe-se que o neurótico faz isso

consideravelmente, mas também a pessoa normal tem todo motivo para fazê-lo —,

posso completar e garantir sua função tomando notas. A superfície que conserva a

anotação, a caderneta ou folha de papel, torna-se como que uma porção materializada

do aparelho mnemônico que carrego em mim, ordinariamente invisível. Se tenho

presente o lugar em que foi acomodada a ‘recordação’ assim fixada, posso

‘reproduzi-la’ à vontade, a qualquer momento, e estou seguro de que ela permaneceu

inalterada, ou seja, de que escapou às deformações que talvez sofresse em minha

memória (FREUD, 2011, p. 242).

Freud (2011) utiliza a metáfora do “Bloco Mágico” 109 para refletir sobre o

nosso aparelho psíquico. O “Bloco Mágico” consistia em um pequeno invento que

prometia fazer, segundo seus inventores, mais do que a folha de papel e a lousa.

Para Freud (2011), esta tecnologia poderia oferecer na sua estrutura uma maneira

imperfeita de auxiliar na memória. As formas de aparelhos auxiliares, como óculos e

câmeras fotográficas por exemplo, para o autor, auxiliam a memória de maneira

imperfeita pois “nosso aparelho psíquico realiza justamente o que não podem fazer:

109 Bloco Mágico é uma prancha de resina ou cera castanha-escura, com uma borda de papel, sobre a prancha está

colocada uma folha fina e transparente, da qual a extremidade superior se encontra firmemente presa à prancha e a

inferior repousa sobre ela sem estar nela fixada. Ela consiste em duas camadas, capazes de ser desligadas uma da outra

salvo suas extremidades. A camada superior é um pedaço transparente de celuloide. A inferior é feita de papel

encerado fino e transparente. Para utilizar o Bloco Mágico, escreve-se sobre a parte de celuloide da folha de cobertura

que repousa sobre a prancha de cera. Querendo destruir o que foi escrito é necessário levantar a folha de cobertura

dupla da prancha de cera com um puxão leve pela parte inferior livre.

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tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e cria duradouros — mas não

imutáveis — traços mnemônicos delas” (p. 243).

Se eu quiser utilizar amplamente essa técnica para melhorar minha função

mnemônica, notarei que disponho de dois procedimentos diversos. Primeiro, posso

escolher uma superfície que preserve intacta por tempo indefinido a nota que lhe é

confiada, ou seja, uma folha de papel em que escrevo com tinta. Obtenho, assim, um

‘traço mnemônico duradouro’. A desvantagem desse procedimento é que a

capacidade da superfície receptora logo se exaure. A folha fica inteiramente escrita, já

não tem espaço para novas anotações, e sou obrigado a servir-me de outra ainda em

branco. Além disso, a vantagem desse procedimento, o fato de permitir um ‘traço

duradouro’, pode perder seu valor quando meu interesse na anotação se acabar após

algum tempo e eu não quiser mais ‘conservá-la na memória’. O outro procedimento

não exibe esses dois defeitos. Quando escrevo com giz numa lousa, tenho uma

superfície que mantém a capacidade receptora por tempo ilimitado e cujas anotações

posso apagar no momento em que deixam me interessar, sem ter de jogar fora a

superfície mesma em que escrevi. A desvantagem, nesse caso, é que não posso ter um

traço duradouro. Querendo acrescentar anotações ao quadro, tenho de eliminar

aquelas que já o cobrem. Portanto, irrestrita capacidade receptora e conservação de

traços duradouros parecem excluir-se mutuamente nos dispositivos que substituem

nossa memória; ou a superfície de recepção tem de ser renovada ou as anotações têm

de ser eliminadas. (FREUD, 2011, pp. 242-243).

Mas o que a chamadas novas tecnologias representadas pelos dispositivos móveis

podem oferecem além da tecnologia da escrita no papel ou do dispositivo do “Bloco

Mágico” estudado por Freud?

Parte-se do pressuposto que todo avanço tecnológico determina uma mudança no

campo das mentalidades. Ou seja, a forma influencia o conteúdo, tema atual quando

se discute, por exemplo, as consequências da Internet sobre a linguagem, ou ainda dos

dispositivos móveis sobre a memória e o comportamento humano. Deve-se pensar

então nas possibilidades tecnológicas e sua relação com a memória na medida em que

as novas tecnologias vão se acoplando ao corpo humano. Isso muda a nossa relação

com a memória enquanto parte das possibilidades cognitivas do corpo humano.

As tecnologias da memória: um olhar sobre o sistema Evernote

Com popularização da internet e por consequência, de várias ferramentas online

trouxeram facilidades para a vida das pessoas. Na revista online de Pequenas

Empresas Grandes Negócios, encontramos dicas de ferramentas que são muito úteis

para o cotidiano dos microempreendedores individuais (MEI), pessoas que precisam

efetuar uma série de tarefas e não possuem muita gente para ajudar nos afazeres.

Dentre as ferramentas citadas na matéria de 16 serviços grátis essenciais para

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microempreendedores4 destaca-se o sistema Evernote5, uma ferramenta que segundo

a revista serve para que as pessoas "não se esqueçam de nada".

Figura 1: Captura de tela da página inicial em português do sistema Evernote. Disponível em

https://evernote.com/intl/pt-br/. Acesso em 31 de maio de 2015.

O logotipo sugestivo da face de um elefante, como visualizamos no canto superior

esquerdo da Figura 1, revela, neste contexto, um signo de memória, já que os

elefantes são conhecidos como animais que possuem grande capacidade mnemônica,

a famosa “memória de elefante”. Acostumados a percorrer grandes áreas, os elefantes

desenvolvem uma precisa memória espacial que permite recordar exatamente onde

encontrar água e comida, mesmo depois de andar centenas de quilômetros.

O Evernote é um sistema que pode ser instalado no computador ou em dispositivos

móveis como smartphones e tablets, ou em um tecnologias wearables - termo que

significa tecnologias para vestir- , que promete facilitar a captura e armazenamento de

informação, como notas, listas, ideias, esboços, imagens ou outros arquivos

multimídia, como vídeo ou áudio. Antes, o sistema Evernote era centrado em uma

4

Disponível em <http://revistapegn.globo.com/Noticias/noticia/2014/08/16-servicos-gratis-essenciais-para-

microempreendedores.html> . Acesso em 27 de maio de 2015.

5 https://evernote.com/intl/pt-br/

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121

Figura 2: Captura de tela do sistema Evernote em 20 de junho de 2015.

aplicação desktop tradicional e de armazenamento local mas foi estendido para uso

em diferentes dispositivos móveis em combinação com a sincronização em nuvem6 e

de uma interface na web. Agora, não só pode ser usado para manter notas privadas,

mas também para compartilhar as notas com um grupo de colaboradores através de

um serviço em nuvem. As notas no Evernote são estruturadas utilizando uma

combinação de cadernos (pastas), tags7 e uma timeline8. O Evernote oferece ainda,

funcionalidade de pesquisa e filtragem para recuperar notas com base em seu

conteúdo, através de metadados e tags, conforme Figura 2.

6 O armazenamento de dados por nuvem não implica na utilização de computadores interligados. Tendo acesso a

esse servidor online (ou plataforma online ou ainda site de armazenamento de arquivos) você consegue ter acesso

a todos os seus arquivos salvos, de qualquer computador, tablet ou smartphone que tenha acesso à internet. É uma

espécie de e-mail com capacidade de espaço gigantesca, onde você envia seus arquivos para backup ou

compartilhamento, no entanto sem troca de mensagens ou similares. Disponível em

<http://www.techtube.com.br/o-que-e-armazenamento-em-nuvem/> . Acesso em 29 de maio de 2015.

7 Existe outra forma de organização e classificação de informações extremamente comum na internet e na Web

2.0, que utiliza palavras-chave para relacionar informações semelhantes. Essas palavras-chave são conhecidas

como Tags ou metadados. Metadados são dados usados para classificar e organizar arquivos, páginas e outros

conteúdos. Disponível em < http://www.tecmundo.com.br/navegador/2051-o-que-e-tag-.html> . Acesso em 28 de

maio de 2015.

8

Timeline é uma palavra em inglês que significa "linha do tempo", na língua portuguesa. Trata-se da ordem das

publicações feitas nas plataformas sociais online, ajudando o internauta a se orientar, exibindo as últimas

atualizações feitas pelos seus amigos. No entanto, o principal objetivo da timeline é a organização cronológica das

informações publicadas no perfil de um usuário em uma rede social. Disponível em <

http://www.significados.com.br/timeline/> . Acesso em 28 de maio de 2015.

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Para além da memória pessoal, ou seja, dados que não compartilhamos e que nos

servem no dia-a-dia, o Evernote abre a possibilidade de uma memória compartilhada,

coletiva. Neste sentido, para Lévy (2006), o discurso sobre a memória coletiva ganha

uma importância face ao desenvolvimento das redes, as impressões registadas e suas

estratégias de acesso – a memória em si – são fundamentais, em um contexto de

inteligência coletiva e sua interconexão permanente. As redes facilitam este processo

de difusão e compartilhamento da memória. A memória passa a possuir uma função

social.

Para Halbwachs (2003) o indivíduo participaria de dois tipos de memória: uma

memória individual, interna ou pessoal, onde as lembranças se agrupam em torno de

uma determinada pessoa que as vê de seu ponto de vista, ou como na memória

coletiva, externa ou social, onde as lembranças se distribuem dentro da sociedade

grande ou pequena da qual são imagens parciais. Para o autor, essas duas memórias se

interpelam com frequência, especialmente se “a memória individual, para confirmar

algumas de suas lembranças [...] pode se apoiar na memória coletiva, nela se deslocar

e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixará de seguir seu

próprio caminho” (p.71).

Importantes, são portanto, segundo Casalegno (2006), “essas ideias da memória como

um sistema de inter-reações de memória individuais e essa sinergia de recordações

pessoais articuladas com as dos outros em um movimento perpétuo.” (p.30). Sistemas

como o Evernote possibilitam uma interconexão entre as memórias individuais e

coletivas através dos recurso disponíveis que classificamos como “próteses da

memória” ou ainda “meta-memória” organizadora de metadados que podemos acessar

a qualquer momento no ciberespaço.

Todo este impulso que a comunicação móvel está recebendo tem reflexo direto nas

práticas sociais. A implantação tecnológica é alimentada pelo uso e vice-versa. A

aplicação intensa por diferentes camadas da população está alterando hábitos e

conceitos sobre o uso do ciberespaço. (PELLANDA, 2008, p.2)

Neste sistema as mesmas memórias podem ser acessadas de qualquer dispositivo

(computador, notebook, tablet, smartphone, smartwhatch) através do acesso pelo log

in do usuário, conforme Figura 3.

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Figura 3: Captura de tela da página inicial em português do sistema Evernote. Disponível em

https://evernote.com/intl/pt-br/. Acesso em 20 de junho de 2015.

Algumas “próteses de memória” estão avançando e levando sistemas como o

Evernote para dar suporte ao seu funcionamento. É o caso dos smartwatchs por

exemplo. Usado como uma segunda tela do smartphone, o smartwatch usa a internet e

é capaz de receber aplicativos utilizados para mostrar informações e operar recursos

do telefone.

Esses tipos de tecnologias wearables podem ser considerados o computador mais

pessoal que possuímos e são mais um avanço no sentido de caminharmos para essa

simbiose entre homem e máquina. As novas tecnologias wearables procuram

potencializar as atividades humanas como extensões dos nossos membros e do nosso

cérebro, da nossa memória.

Considerações finais:

Todos os dispositivos móveis que carregamos pressupõe um modo muito antigo de

carregar as perceptivas de comunicação junto ao corpo. Quando os escravos no século

XIX carregavam os papéis na algibeira por exemplo, permite pensarmos o quanto os

meios de comunicação estão desde muito tempo acoplados junto ao corpo.

Com a advento da internet no século XX e a expansão dos dispositivos móveis no

século XXI, a comunicação contemporânea passa a lançar mão da sensação de dispor

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de todas as informações do mundo ao alcance do “toque dos dedos”, o que nos faz

pensar sobre a metáfora de Jorge Luís Borges presente em sua obra A Biblioteca de

Babel escrita em 1941.

A ilusão de que se pode ter acesso a todas as informações e conhecimentos do mundo

torna plausível a maravilhosa imaginação de Jorge Luís Borges (1899-1986) quando

descreveu a sua Biblioteca de Babel (1941). Borges imaginou um mundo perturbador:

a sua biblioteca não tinha apenas capacidade ilimitada para armazenamento, podendo

conter todas os livros que existissem, mas também os que se pudesse imaginar para o

futuro. A certeza de que em Babel existia essa biblioteca universal provocou nos

bibliotecários, inicialmente, um sentimento de alegria, também porque poderiam ali

achar um livro- ou melhor-, o livro que reunisse a complexidade de todos os outros,

sendo a ‘chave e compêndio’, assemelhando-se a uma divindade. Mas esse ‘livro

total’ nunca foi encontrado. Instaurou-se, então, a decepção e a depressão e alguns

bibliotecários enlouqueceram. (WEINRICH, 2001 apud BARBOSA, 2013, pp. 343-

344).

Agora temos um lugar onde podemos guardar um número infinito de informações a

qualquer hora do dia ou da noite em um dispositivo móvel que levamos junto ao

corpo e preservando estas informações em nuvem, lugar acessível para todos.

Entre o fluxo das relações humanas e as trajetórias em rede do ciberespaço abre-se a

lista das várias expressões emergentes das cibersocialidades, que ilustram o novo

paradigma social da sinergia entre comunidade, a memória e a comunicação. As

‘novas tecnologias’ são velhas criações que existem desde que surgiu o homem. Hoje,

são os usos e as experiências que lhe dão valor ao fornecerem-lhes o sentido: cabe

aos humanos as utilizar para concretizar essa visão poética (CASALEGNO,

2006,p.33).

Estamos caminhando para uma era “cyborg” onde homens e máquinas são cada vez

mais “simbióticos”. Para Warwick (2006) não há duvidas das possibilidades para

além da interação homem e máquina através de dispositivos móveis. Essa relação

entre homem e máquina vai além, havendo oportunidades reais de afirmação dessas

formas de simbiose, iniciando pelos smartphones e tablets e se afirmando com a

tecnologia dos wearables e nos próprios chips implantados ao nosso corpo.

A questão neste artigo é lançarmos um olhar não somente sobre o funcionamento do

sistema Evernote mas sobre o que ele representa. As novas tecnologias fazem refletir

sobre uma possível “terceirização da memória”, ou uma “meta-memória” composta

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por bits9 que possibilita deixarmos espaços livres em nossa memória para ser utilizado

com outras informações. Sistemas como o Evernote facilitam esta dinâmica entre

memória e tecnologia.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Marialva. História da comunicação no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes,

2013.

CASALEGNO, Federico. Memória cotidiana. Comunidades e comunicação na era

das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.

FREUD, Sigmund. Nota sobre o “Bloco Mágico” (1925) In: FREUD, Sigmund. O

Eu e o Id, "Autobiografia" e outros textos (1923-1925). (Sigmund Freud. Obras

completas vol. 16), São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

HAVELOCK, Eric A. A revolução da escrita na Grécia: e suas consequências

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LÉVY, Pierre. Diálogo com Pierre Lévy: A memória como processo no tempo

presente In: CASALEGNO, Federico. Memória cotidiana. Comunidades e

comunicação na era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.

PELLANDA, Eduardo Campos. Comunicação móvel: das potencialidades aos usos

e aplicações. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. INTERCOM,

Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008. Disponível em

<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-1727-1.pdf>. Acesso

em 3 de junho de 2015.

WARWICK, Kevin. Diálogo com Kevin Warwick: Memória cibernética e cérebro

em rede. In: CASALEGNO, Federico. Memória cotidiana. Comunidades e

comunicação na era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.

9

Bit significa dígito binário em português, é a menor unidade de informação que pode ser armazenada ou

transmitida na comunicação de dados, e um bit pode assumir somente 2 valores, como 0 ou 1. Os computadores

possuem comandos que testam e manipulam bits, essas instruções são múltiplos de bits, que por sua vez são

chamados de bytes. Volume de tráfego em redes de computadores são geralmente descritos em termos de bits por

segundo. Disponível em < http://www.significados.com.br/bits/>. Acesso em 01 de julho de 2015.

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126

O campo de Ficção Científica na plataforma de autopublicação

Wattpad

Luiza Carolina dos Santos

Mestre – PUCRS

[email protected]

RESUMO

A partir da plataforma de autopublicação para leitores e autores Wattpad, este trabalho

se propõe a analisar o campo que se forma a partir do perfil oficial Wattpad Sci-Fi e de

que forma este se constitui. O referencial teórico se baseia principalmente em Pierre

Bourdieu e o aporte metodológico para a realização desta pesquisa é a netnografia. A

análise resultante aponta para a formação de um campo específico, com instâncias

próprias de consagração, preservação e reprodução.

Palavras-chave: cibercultura; leitura; autopublicação; Wattpad;

Introdução

Este trabalho se propõe a realizar uma análise do campo constituído na

comunidade de ficção científica do Wattpad a partir dos conceitos de instâncias de

consagração, preservação e reprodução propostos por Bourdieu (1974; 2006) ao pensar

a produção artística no âmbito da arte erudita e da indústria cultural. A metodologia

para a coleta e análise de dados utilizada foi a netnografia, fundamentada a partir de

Hine (2000) e Kozinets (2010), com a delimitação do campo marcada a partir do perfil

oficial Wattpad Sci-Fi, voltado apenas para a produção e divulgação de ficção científica.

O Wattpad pode ser caracterizado como uma plataforma de leitura e

autopublicação com viés social, ou seja, disponibiliza sem custo e sem curadoria um

sistema no qual qualquer escritor pode tornar seu trabalho público dentro daquela

comunidade de leitura e escrita, que permite a interação entre os participantes, pública e

privada. O conteúdo está acessível para qualquer um que possua uma conta na

plataforma, também sem nenhum custo, não sendo possível tornar as obras rentáveis

dentro desse espaço.

Ao criar um perfil com informações básicas, o usuário pode tanto explorar a

escrita quanto a leitura. Como leitor, é possível encontrar histórias através das tags e

dos rankings da plataforma, assim como votar e comentar nas histórias que você está

lendo. De acordo com dados apurados durante o ano de 2014, atualmente são 40

milhões de usuários, dos quais cerca de 90% são apenas leitores (WATTPAD, 2014). O

serviço, já consolidado na América do Norte, vem crescendo em países como Itália,

Turquia, Espanha e Inglaterra (CHAPMAN, 2014).

O Mercado dos bens simbólicos

Segundo aponta Bourdieu (1974), a vida intelectual e artística permanece,

durante todo o período da Idade Média e parte do Renascimento, sob a tutela da

aristocracia e da igreja. Na relação de patrocínio, algum tipo de “recompensa” era uma

prática usual do período, muitas vezes em forma de dedicatória ou uma cópia artística

da obra (CHARTIER, 1998) – esse tipo de reconhecimento, em algum nível, ou ainda a

própria recompensa pelo investimento, retornam atualmente na prática conhecida como

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127

crowdsourcing, que utiliza um modelo de financiamento coletivo para obras artísticas e

produtos, potencializado pela internet.

O processo de autonomização desse campo só irá ocorrer com o surgimento de

uma categoria socialmente distinta de produtores de cultura profissionalizados que

esteja disposta a liberar a área desse domínio e deseje tornar autônomo o sistema de

relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos (BOURDIEU, 1974).

A legitimidade artística alcançada pelo grupo – em Florença no século XV –, a

partir do direito do artista de legislar com exclusividade em sua própria área, no que diz

respeito à forma e ao estilo, é que vai possibilitar a formação do campo cultural. Com a

Revolução Industrial, essa autonomização do campo artístico se acelera, deixando

evidentes as características mercantis e culturais da obra, que subsistem de forma

separada no campo (BOURDIEU, 1974). No momento em que passa a existir um

mercado da obra de arte, passa também a ser possível fazer a distinção entre a arte

mercadoria e a arte pura e, a partir daí, também é quebrada a submissão anterior com o

mecenas ou patrão por uma liberdade ilusória do mercado.

Após a Revolução Industrial, passa a ser possível identificar com clareza a

dissociação de dois campos distintos: o campo da arte erudita e o campo da indústria

cultural. A diferença primordial entre os dois é a quem se destina aquela produção

artística, ou seja, o campo erudito produz para produtores enquanto o campo da

indústria cultural produz para os não iniciados nas artes – o público em geral. Cada um

desses campos irá se consolidar e constituir características próprias de consagração e

reprodução (BOURDIEU, 1974).

O campo de produção erudito, por ter uma circularidade quase perfeita de

produção e consumo, não obedece às leis de concorrência do mercado, visando produzir

ele próprio as suas normas de produção e critérios de avaliação das obras. Nesse caso,

ocorre a concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural, que é concedido

pelos pares – esse tipo de consagração é muito visível atualmente no campo da

produção intelectual, por exemplo. Dessa forma, uma vez que ocorre o encontro entre

produtores diferentes, nesse encontro se dá o embate pela pretensão à ortodoxia, ou,

também, ao monopólio de uma determinada classe de bens simbólicos:

Afora os artistas e os intelectuais, poucos agentes sociais dependem tanto, no

que são e no que fazem, da imagem que têm de si próprios e da imagem que

os outros e, em particular, os outros escritores e artistas, têm deles e do que

eles fazem. [...] qualidade que parece tão difícil de definir porque só existe na

e pela relação circular de reconhecimento recíproco entre os artistas, os

escritores e os eruditos. Todo ato de produção cultural implica na afirmação

de sua pretensão à legitimidade cultural (BOURDIEU, 1974, p. 108).

As obras produzidas no campo erudito são acessíveis apenas a um número

reduzido, exigindo o domínio de um código específico e dependendo do nível de

instrução dos receptores. Por essas características, se torna necessária uma relação entre

as instâncias de preservação do capital de bens simbólicos – como, por exemplo,

museus – e as instâncias de reprodução – como a escola – , uma vez que é preciso criar

consumidores aptos ao consumo das produções artísticas do campo, assim como novos

produtores capazes de renovar a produção (BOURDIEU, 1974).

Já no campo da indústria cultural, a submissão ocorre em relação a uma

demanda externa representada pelos detentores dos instrumentos de produção e de

difusão das obras artísticas, obedecendo, assim, aos imperativos da concorrência pela

conquista de mercado. A procura é pela rentabilidade máxima, representada

essencialmente pela conquista de um máximo de público. Essa cultura, considerada

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128

como cultura média, só pode definir-se, tanto no âmbito da produção quanto da

recepção, em relação à cultura erudita (ou legítima), estando impossibilitado de obter

sua autonomia.

O que percebemos na cultura digital é justamente a possibilidade de inverter a

lógica da indústria cultural, uma vez que se torna possível chegar à consagração de

público primeiro, para, somente depois, passar a integrar uma instância que detém hoje

não mais os meios de produção ou difusão – uma vez que estes estão acessíveis a uma

parcela considerável da população incluída digitalmente –, mas sim que detém um

determinado capital cultural dentro do campo, ou seja, uma posição de influência e

destaque.

Quando anteriormente a passagem por uma grande gravadora ou editora era

imprescindível para que o artista pudesse não apenas chegar ao mercado, mas também

produzir sua obra, hoje a produção e a circulação podem ser feitas de forma

independente – ainda que demande, obviamente, uma boa parcela de dedicação por

parte do artista. Casos como esse não são raros na indústria da música, da literatura e do

jornalismo, em que o sucesso na web pode levar à contratação do artista por uma

gravadora ou editora de grande porte. Alguns artistas, ainda, optam por manter sua

produção no âmbito digital, buscando caminhos alternativos para o retorno financeiro.

Essa alteração do campo da cultura aponta não apenas para uma modificação na forma

de circulação dos bens culturais, mas também para uma modificação na própria forma

de produção de cultura.

Instâncias de consagração, de preservação e de reprodução no Wattpad SciFi

O perfil Wattpad SciFi publicou quatro obras e nele há um total de treze listas de

leitura. Além disso, mantém uma comunicação constante com seus seguidores, postando

mensagens em seu perfil, e envolve os membros constantemente, com desafios de curta

duração. O perfil se posiciona, conforme definição própria na categoria “sobre”, como

um ponto de referência dos leitores do gênero no que diz respeito a notícias, novidades e

histórias disponíveis no Wattpad.

Figura 38 – Perfil Wattpad SciFi detalhe

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129

110

Fonte: <http://www.wattpad.com/user/ScienceFiction>. (Acesso em 13 de outubro de 2014).

Ao posicionar-se como referencial no meio de ficção científica, o Wattpad SciFi

propõe-se a dar indicações de leitura aos fãs ou iniciantes do gênero, elaborando listas

de leitura, que são devidamente selecionadas. Os usuários da plataforma são livres para

enviar suas histórias como sugestão de inclusão em uma lista de leitura existente

específica. Isso é feito com o envio do link para uma publicação específica, por meio de

mensagens privadas. Entretanto, nem todas as histórias são aceitas, o que nos faz

lembrar, quase que imediatamente, do processo de publicação tradicional através de

editores.

Como nos esclarece a descrição no próprio perfil, existe sim um processo de

curadoria cuidadosamente realizado para cada uma das listas de leitura: não basta

apenas se encaixar no gênero, é preciso que a história apresente qualidade literária para

que receba o selo de indicação. São considerados como requisitos para julgamento da

obra pela equipe a capacidade de expressar sentimentos e emoções de forma profunda e

detalhada; a apresentação de uma escrita cuidadosa e gramaticalmente correta e a

capacidade de fornecer informações básicas de forma correta (como resumo e tags que

possam nortear o leitor sobre o conteúdo da obra) e conteúdo adequado de acordo com

as regras da plataforma.

Figura 39 – Detalhe perfil Wattpad SciFi (submissões)

110 “O perfil oficial do Wattpad para a comunidade de ficção científica no Wattpad. Siga este perfil para

atualizações sobre fandoms populares e escritores de ficção científica. Deixe um comentário e nos conte o

que você gostaria de ver neste perfil. As listas a seguir são listas de leitura de histórias do Wattpad criadas

para você. Se você gostaria de ver alguma história adicionada na lista, por favor poste sua lista de leitura e

ideias nos comentários abaixo. Nós adoraríamos ouvir sobre qualquer lista de leitura de ficção científica

que você tenha montado, mas por favor não anuncie seu próprio trabalho neste perfil”.

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130

111

Fonte: <http://www.wattpad.com/user/ScienceFiction>. (Acesso em 13 de outubro de 2014).

Bourdieu (1974) aponta que o campo da indústria cultural e o campo da cultura

erudita possuem suas próprias instâncias de consagração, distintas uma da outra. Se, na

indústria cultural, a consagração é o mercado, na cultura erudita isso fica por conta do

reconhecimento dos pares. No campo da cibercultura, no contexto específico da

comunidade de ficção científica do Wattpad, podemos dizer que as listas de leitura do

Wattpad SciFi adquirem um caráter das instância de consagração, uma vez que a

história passa a ter um determinado valor por estar incluída dentro daquele grupo.

Não é apenas através das listas de leitura que o Wattpad SciFi se engaja em um

processo de curadoria dos bens simbólicos gerados pela comunidade, o mesmo pode ser

observado através das obras publicadas e dos concursos elaborados. A obra composta de

pequenos contos criados pelos usuários e intitulada Nano Bytes – A Collections of Short

SciFi Stories é formada, em sua maioria, por contos premiados por edições de concurso

do perfil.

Figura 40 – Capa da obra Nano Bytes – A Collection os Short SciFi Stories

111 “Submissões. Se você gostaria de ver uma de suas histórias em nossas listas de leitura, considere os

seguintes pontos: preste atenção à gramática para ter certeza que a sua história é compreensível e

acessível; tente passar sentimentos e emoções com profundidade e de forma detalhada; mantenha seu

conteúdo apropriado para todas as idades; forneça informações completas sobre as suas histórias, pois

gostamos de mostrar histórias com descrições claras, tags relevantes e capas inspiradoras; seja positivo e

gentil, pois respeitamos os escritores que respeitam a comunidade Wattpad. Se você está contente que a

sua história satisfaz todos os itens acima, envie uma mensagem privada para nós incluindo os seguintes

detalhes: título da história e link; descrição da história e explique porque você acha que sua história

deveria ser adicionada em uma lista de leitura e em qual delas.

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131

Fonte: <http://www.wattpad.com/ story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>.

(Acesso em 13 de outubro de 2014).

A partir dessa coletânea, por exemplo, não ocorre apenas a consagração do autor

de determinada história, que teve seu valor reconhecido pela comunidade, mas também

a criação e a preservação de uma memória literária. Ora, se as obras passam por um

processo de seleção no qual apenas uma delas é escolhida, isso pressupõe que existe

uma série de outras histórias que foram descartadas, ou, para usar Carrière e Eco (2010),

que foram esquecidas. Apenas através do esquecimento podemos construir e preservar

uma memória – e esse é o mesmo princípio do qual nos fala Bourdieu (1974) quando

menciona as instâncias de preservação da cultura erudita, como é o caso dos museus.

Uma coletânea como a Nano Bytes, que está sempre em construção, uma vez que

novas histórias vão sendo adicionadas à medida em que novos concursos vão sendo

realizados, procura também preservar para os leitores seguintes o que foi julgado de

melhor naquele período de tempo naquela comunidade específica. É possível perceber,

pelas interações feitas entre os leitores, que tal obra possui sim um status de qualidade,

que só foi possível alcançar devido ao criterioso método de seleção das histórias. Assim,

o Wattpad SciFi se torna um ponto aglutinador de leitores que esperam indicações de

leitura com um caráter específico de qualidade.

Figura 41 – Comentário sobre a qualidade da coletânea de contos de ficção científica

112

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>. (Acesso

em 15 de dezembro de 2014).

112 Comentário: “Obrigado por montar esta coletânea aqui. Contos de ficção científica são a coisa que eu

mais gosto de ler, mas difícil de localizar.” Resposta: “Sim, eu concordo, boa ficção científica é um

achado raro no Wattpad. Eu gosto especialmente de histórias com uma pitada de ficção científica dura

para tornar plausível. Eu gosto que a história destrua a minha visão da realidade”.

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O comentário evidencia que o trabalho de curadoria executado pelo perfil é de

qualidade e que, portanto, se espera no futuro que esse padrão se mantenha. Da mesma

forma, que se passe a conceder o status de boa literatura de ficção científica aos contos

adicionados na coletânea. Entretanto, não apenas os leitores manifestam sua aprovação

quanto ao conteúdo disponibilizado, mas, para os escritores, fazer parte de tal coletânea

também significa uma grande dimensão simbólica, como observamos nos dois

comentários a seguir.

Figura 42 – Comentário sobre a honra de participar da coletânea de contos

113

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>. (Acesso

em 23 de dezembro de 2014).

Figura 43 – Comentário “Obrigado por incluir minha história”

114

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23550178-nano-bytes-a-collection-of-short-scifi-stories>. (Acesso

em 6 de janeiro de 2015).

Se é, em geral, por meio dos concursos realizados pelo perfil que surgem muitos

dos contos organizados na coletânea, esses concursos transcendem o caráter de instância

de consagração, como foi possível observar na análise da obra SciFi Competitions. Com

início em novembro de 2014, o perfil lança em média três competições por mês no

formato de capítulos do livro, ordenados por data – o resultado de cada um é o capítulo

seguinte de cada desafio.

Figura 44 – Competição criada pelo perfil Wattpad SciFi

113 Comentário: “Uau! Eu finalmente posso votar na minha própria história (nunca conseguir me animar a

fazer isto no meu próprio perfil). Eu agradeço por este feito, e pela chance da minha história fazer parte

desta grande coleção!” Resposta: “Não se preocupe. Nós iremos fazer a parte de votar em seu nome. Amo

suas histórias!” 114 Comentário: “Espero que todos gostem desta história. Obrigada por incluir ela!” Resposta: “O prazer é

nosso”.

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133

115

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 13 de janeiro de

2015).

De acordo com o resumo da obra, a ideia é de que os desafios possam ser

utilizados não apenas como uma forma de competir com outros escritores, mas também

como desafios pessoais, como forma de treinar e fomentar a própria escrita e como um

bom lugar para descobrir novas histórias. Os novos desafios também eram divulgados

na página do Wattpad SciFi, no formato de mensagens para todos os seguidores,

chegando a estes, também, por e-mail.

Figura 45 – Mensagem enviada aos seguidores do perfil Wattpad SciFi

116

Fonte: <http://www.wattpad.com/home>. (Acesso em 27 de janeiro de 2015).

115 “Competições SciFi. O ganhador do primeiro desafio do perfil de Ficção Científica, a história de uma

página com o tema fuga, foi o escritor do Wattpad com sua história chamada Infusão. Dentre mais de 520

entradas, esta história foi selecionada por muitos dos juízes como uma de suas favoritas. Parabéns ao

autor, a história será a primeira adicionada ao NanoBytes – Coletânea de Contos aqui no perfil de Ficção

Científica.” 116 “ScienceFiction enviou a seguinte mensagem aos seus seguidores: É #SciFriday outra vez, e nesta

semana nós temos um desafio rápido para você. Nós estamos procurando por uma história do tamanho de

um tweet com um tema de distopia ou pós-apocalipse. Detalhes completos do concurso podem ser

acessados no link a seguir. Divirtam-se, o time SciFi.

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134

Podemos perceber que os concursos não visam apenas premiar os melhores

escritores, mas desafiam todos os participantes a exercitar o talento da escrita – ou seja,

funcionam como uma forma de treinamento para os iniciantes. Essa característica nos

remete novamente a Bourdieu (1974), que explica que é necessária a manutenção de um

público para uma arte específica, é necessário que um grupo de pessoas domine aquele

código para que faça sentido a existência daquela arte – e isso ocorre essencialmente

através da educação artística. Caso não ocorra a manutenção de uma arte, esta está

fadada à extinção.

Percebemos que esse é um caráter forte dos concursos: aumentar o número de

pessoas que dominam o código da literatura de ficção científica a partir do processo de

educação que pode ser realizado com esses concursos. Essa dimensão simbólica de

educação e incentivo pode ser observada no comentário de um participante que recebeu

menção honrosa em seu primeiro concurso. Figura 45 – Comentário “É uma sensação maravilhosa receber uma menção honrosa”

117

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 20 de janeiro de

2015).

Outros dois comentários de participantes de um concurso também percebem um

caráter educacional em suas participações, sentindo-se motivados a seguir

experimentando seus talentos para a escrita de ficção científica, como observamos nas

figuras abaixo.

Figura 46 – Comentário “Muito obrigado pela menção honrosa”

118

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 17 de janeiro de

2015).

Figura 47 – Comentário “Parabéns a todos os participantes”

117 “Meu Deus! É uma sensação maravilhosa receber uma menção honrosa. Este é o primeiro concurso de

ficção científica que eu participei e eu sinto que me sai bem. Obrigada @ScienceFiction por me escolher,

foi divertido participar.” 118 “Muito obrigada pela menção honrosa. Isto me faz sentir que estou no caminho certo. Esperando

ansiosa pela próxima competição.”

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135

119

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23570386-scifi-competitions>. (Acesso em 21 de janeiro de

2015).

O mesmo viés educativo, voltado à reprodução do gênero, também pode ser

percebido em outras duas obras publicadas pelo Wattpad SciFi: Greats of SciFi,

compilação de pequenos perfis contando a história de vida de grandes autores, e How to

Write Science Fiction, guia de auxílio para iniciantes.

Este último procura dar dicas e servir de auxílio para escritores, ou, ainda, “se

nada mais, espero que inspire vocês a tentarem a escrita no gênero ficção cientifica, se

ainda não tentaram”120, como diz o próprio resumo. Com mais de 13 mil leituras, a obra

aborda tópicos que envolvem o processo criativo – desde a anotação de ideias para

desenvolvimento posterior até planejamento, criação de universos alternativos, detalhes

envolvendo viagens no tempo e, ainda, um cuidadoso trabalho de categorização de

subgêneros de ficção científica.

Analisando os comentários presentes em cada capítulo do livro, podemos

perceber o valor educativo concedido à obra pelos próprios usuários, que procuram tirar

dúvidas sobre questões específicas – como os subgêneros – ou ainda procuram apenas

apoio como impulso para iniciar seu percurso na escrita. Os fragmentos abaixo mostram

algumas dessas interações, mas o tópico será trabalhado de forma detalhada adiante, no

intuito de compreender a discussão sobre o próprio processo literário que ocorre entre

os membros da comunidade.

Figura 48 – Comentário “Começar é metade da batalha”

121

119 Comentário: “É uma grande honra estar naquela lista de menções honrosas! Eu vou chorar... XD

Parabéns a todos os participantes também. Não foi um concurso fácil. Eu vi muitas outras histórias

maravilhosas que infelizmente não foram citadas aqui, mas estas coisas sempre acontecem em todos os

concursos. Então, lembrem de não desistir dos seus sonhos. É por isso que nós escrevemos e nós não

deveríamos esquecer isto. Tudo de melhor para vocês e obrigada por ler.” Resposta: “Obrigado por

participar do concurso e por nos dar algo legal para ler.” 120 http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction. 121 Comentário: “Começar é metade da batalha. Obrigado.” Resposta: “Com certeza. Passar da página em

branco é sempre um bom começo.”

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136

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction>. (Acesso em 16 de

dezembro de 2014).

Figura 49 – Comentário “Obrigado pelos exemplos”

122

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction>. (Acesso em 16 de

dezembro de 2014).

Figura 50 – Comentário sobre subgêneros de ficção científica

123

Fonte: <http://www.wattpad.com/story/23513631-how-to-write-science-fiction>. (Acesso em 17 de

dezembro de 2014).

Já a história Greats of Sci Fi é uma construção coletiva na comunidade:

inicialmente o grupo responsável pelo perfil Wattpad SciFi elaborou três pequenos

textos contando a história de três grandes autores do gênero, seus preferidos.

Posteriormente, uma vez que a obra estava no ar, qualquer um estava convocado a

escrever sobre um dos seus autores preferidos e enviar, através de uma mensagem

privada, sua história para avaliação e possível publicação.

Se o How to Write Science Fiction se voltava para a educação e o domínio de

um código característico da ficção científica enquanto escrita, percebe-se que o Greats

of SciFi se volta para a formação e a educação de um público de leitores. Ou seja, o

primeiro se preocupa com a manutenção de uma classe que seja capaz de produzir

determinada expressão artística, enquanto o segundo dedica-se a instruir leitores que

sejam capazes de compreender esse código com maior profundidade, preocupando-se

com a formação de um público consumidor. Esse caráter de formação de leitores pode

ser observado, por exemplo, no comentário abaixo, extraído da obra mencionada.

Figura 51 – Comentário sobre o livro “The City and the Stars”

124

122 “Obrigado pelos exemplos. Meu livro é definitivamente ficção científica leve, então. É sobre um

conflito com humanos mutantes.” 123 Tradução do autor: “Se eu tenho uma história de ficção científica sobre uma guerra: humanos X

alienígenas, isto é ficção cientifica leva ou ficção científica pesada?"

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Fonte: <http://www.wattpad.com/story/17708914-greats-of-science-fiction>. (Acesso em 28 de dezembro

de 2014).

Aos poucos, vamos percebendo as particularidades desse campo de produção e

consumo de literatura de ficção científica on-line, que não se configura nem dentro do

modo específico da indústria cultura nem da cultura erudita, como nos propôs Bourdieu

(1974). Vai se mostrando uma composição nova, híbrida, com aspectos marcantes

como instâncias de consagração, preservação e reprodução, as duas últimas bastante

tradicionais de um campo de arte erudita. Entretanto, é um campo para não iniciados

também, que busca discutir, delimitar, compreender e formar.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Editora

Perspectiva, 1974.

BOURDIEU, Pierre. A Produção da crença: contribuição para uma economia dos bens

simbólicos. Porto Alegre: Editora Zouk, 2006.

CARRIÉRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de

Janeiro: Record, 2010.

CHAPMAN, Glen. Writers and readers go mobile and social at Wattpad. GMA News

Online, 2014. Disponível em:

http://www.gmanetwork.com/news/story/381220/lifestyle/

HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: Sage, 2000.

KOZINETS, Robert V. Netnography: Doing Ethnographic Research Online. London:

Sage, 2010.

WATTPAD. How we're helping Wattpad writers. Blog do Wattpad, 2014. Disponível

em: http://blog.wattpad.com/how-were-helping-wattpad-writers/. Acesso em 8 de

dezembro de 2014.

124 Comentário: “Eu acabei de terminar de ler o livro ‘A cidade e as estrelas’. Demorou muito tempo para

que eu terminasse de ler, mas valeu a pena. É muito bom.” Resposta: “O livro ‘A cidade e as estrelas’

pode ser difícil (a sequência principalmente), mas é um livro magnífico e a forma como ele descreve a

ascensão para as estrelas é de tirar o fôlego.”

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Remediação, transmídia e realidade aumentada em “Japan Pop

Show”, de Curumin, no Noize Record Club Belisa Zoehler Giorgis

Resumo

Em 2015 foi lançado no Noize Record Club, clube de vinil vinculado à revista Noize,

do segmento de música, o LP de “Japan Pop Show”, do artista Curumin. Mediante

assinatura, os integrantes do clube recebem discos de vinil de álbuns já lançados

anteriormente, junto com uma revista, que traz conteúdos exclusivos relacionados à

obra e ao artista ou banda, e outros itens, que nesse caso específico são dois adesivos do

clube e do artista, sendo que no verso de um deles está um QR Code que remete a uma

playlist em site de serviço de streaming de música. Este trabalho se propõe a verificar

como se articulam na produção da experiência estética os elementos de remediação,

transmídia e realidade aumentada nesse caso. Concluiu-se que, no contexto

contemporâneo da cibercultura, tais elementos são de grande relevância para a

experiência do usuário ou assinante, relacionando as materialidades e o interpretativo

que resultam na produção de sentido.

Palavras-chave: Cibercultura; Cognição e Percepção; Realidade Aumentada;

Materialidades da Comunicação; Vinil.

Introdução

O presente trabalho busca analisar, no lançamento de “Japan Pop Show”, de

Curumin, realizado no Noize Record Club, elementos de remediação, transmídia e

realidade aumentada e seu impacto na experiência. O produto consiste em um LP, com a

capa e o encarte, uma revista com conteúdos do artista e dois adesivos, sendo que um

deles traz no verso um QR Code que remete a uma playlist em site de serviço de

streaming de música.

No contexto pós-moderno em que a tecnologia permeia todos os âmbitos da

vida e o acesso aos diferentes conteúdos é facilitado por essa circunstância, ao mesmo

tempo em que ressurgem em nichos o consumo de produtos em formatos como o disco

de vinil, coloca-se o problema de pesquisa: de que forma os elementos de remediação,

transmídia e realidade aumentada relacionam-se à experiência no LP “Japan Pop

Show”, de Curumin, lançado pelo Noize Record Club? O objetivo principal é

compreender a experiência, a partir de elementos de remediação, transmídia e realidade

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aumentada em “Japan Pop Show”. Os objetivos específicos são: descrever teorias

relacionadas cibercultura, remediação, transmídia, retromania, materialidades, cognição

e realidade aumentada; identificar os diferentes elementos do objeto a serem analisados

para produzir apontamentos que possibilitem a compreensão de sua importância para a

experiência; e analisar os elementos identificados com base no referencial teórico

descrito.

A metodologia a ser utilizada será baseada em revisão bibliográfica e pesquisa

documental. Para a análise, será utilizado referencial teórico relacionado a cibercultura e

e remediação, com André Lemos, transmídia, com Henry Jenkins, retromania, com

Simon Reynolds, cultura do vinil, com Simone Pereira de Sá, materialidades e

experiência estética, com Hans Ulrich Gumbrecht, cognição, com Maria Cristina

Strocchi, tecnopsicologia, com Derrick de Kerckhove, e realidade aumentada, com

Claudio Kirner e Romero Tori.

“Japan Pop Show”, de Curumin, no Noize Record Club

O Noize Record Club iniciou em 2014 e é um clube de discos de vinil, no qual

entusiastas do formato podem realizar assinaturas válidas por três edições. Com ele, os

assinantes recebem em LP álbuns já previamente lançados em outros formatos, com a

revista Noize trazendo conteúdos exclusivos relacionados ao disco e ao artista. O clube

iniciou com o envio a seus assinantes do LP de “Antes que tu conte outra”, da banda

Apanhador Só, e a segunda edição foi o álbum da Banda do Mar, homônimo.

O álbum “Japan Pop Show”, de Curumin, foi lançado originalmente em 2008.

No Noize Record Club, foi a terceira edição a ser enviada aos assinantes do clube, em

2015. Ela trazia o LP com a capa e o encarte adaptados para o formato e a revista Noize

em que, além de outros conteúdos variados sobre música, traz na seção “Como fazer”

um tutorial de Curumin para a produção musical com samples, cujo vídeo está

disponível no site da revista, mostrando a criação da música “Kyoto”, e textos

produzidos pelo artista para as seções Páginas Negras, onde fala sobre suas memórias

afetivas relacionadas à cultura japonesa, “Pra ver”, indicando filmes, “Pra ler”,

recomendando livros, e os itens da Discoteca Básica do rap nacional, além da entrevista

central com o artista, em que ele comenta cada uma das faixas do disco. Em termos de

projeto gráfico, a revista tem metade de seu conteúdo de cabeça para baixo, em alusão

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aos dois lados de um disco de vinil e o ato de virá-lo ao fim de cada um deles. O

produto traz também adesivos do clube e do álbum e um cartão com um QR code para

acesso à playlist “Estação Curumin”, em site de serviço de streaming de música.

Figura 1: O LP “Japan Pop Show”, com a capa, o encarte e a revista

Ao realizar a assinatura, as pessoas recebem um comunicado por e-mail

confirmando a ação e são adicionados a um grupo secreto do clube no site de rede social

Facebook. Nele, o clube realiza suas comunicações oficiais aos assinantes e estes

compartilham diferentes conteúdos. O que é postado pelos assinantes se divide em:

informações relacionadas ao recebimento dos produtos, por vezes com fotos, e opiniões

a respeito; e conteúdos sobre a cultura do vinil, como fotos de álbuns que estão

escutando ou troca de informações sobre discos, aquisição e manutenção de toca-discos

e outras questões relacionadas.

Cibercultura, vinil, materialidades e cognição

A cultura contemporânea, em sua forma técnica, de acordo com Lemos (2013),

se produz a partir de uma sinergia entre o tecnológico e social. Essa relação entre a

técnica e a vida social, considerando a cultura contemporânea associada às tecnologias

digitais, cria o que o autor chama de cibercultura. O autor pontua, ainda, que novas

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formas de agregação social têm por vetores as tecnologias, resultando a cibercultura de

uma convergência. Ela inicia em 1950, com a informática e a cibernética, passando a se

popularizar na década de 1970 e tendo um estabelecimento completo nas décadas de

1980, com a informática de massa, e 1990, com a Internet.

Conforme Lemos (2013), por meio do devir micro, tornando-se invisível, e do

devir estético, tornando-se belo, as tecnologias se desdobram em um processo de

onipresença, permeando de forma intensa e quase imperceptível o ambiente cultural.

Elas passam a ser vetores de experiências estéticas e de compartilhamento social de

emoções.

A cibercultura é regida por um conjunto de práticas sociais e comunicacionais

baseadas no princípio da re-mixagem, a partir das tecnologias digitais, de acordo com

Lemos (2002). Ela é caracterizada pelo que o autor chama de "três leis fundadoras:

liberação do polo da emissão, princípio de conexão em rede e a reconfiguração de

formatos midiáticos e práticas sociais" (LEMOS, 2002, p. 1).

A primeira delas, segundo Lemos (2002), se relaciona com o espaço propiciado

pelas tecnologias para vozes e discursos que antes não encontravam canais para sua

disseminação nos outros meios massivos existentes. Na segunda, a lógica se baseia em

que tudo está em rede, sendo que tudo comunica, sejam pessoas ou objetos.

De forma relacionada a isso, no contexto da cultura da convergência, de acordo

com Jenkins (2008) a interação de poder entre produtor e consumidor acontece de

maneiras imprevisíveis, ao mesmo tempo que mídias corporativas e alternativas se

cruzam. Nesse processo, mídias de diferentes épocas colidem de formas cada vez mais

complexas, principalmente a partir da ação de comunidades de fãs. Estabelece-se uma

cultura de participação, com a interação de produtores e consumidores conforme um

novo conjunto de regras, que se articula nas interações sociais dos consumidores. Esse

novo processo coletivo de consumo se desdobra no que se pode compreender como

inteligência coletiva.

Considerando a terceira das leis fundadoras da cibercultura, conforme proposto

por Lemos (2002), a reconfiguração, a partir da lógica de que tudo muda, porém não

completamente, evitando a ótica de substituição, passa pela modificação das formas de

articulação de práticas e espaços, assim como de modalidades midiáticas. Isso

transcende, segundo o autor, a "ideia de remediação (remediation) de Bolter e Grusin"

considerando-se tanto a "remediação de um meio sobre o outro" (BOLTER; GRUSIN,

2002, apud LEMOS, 2002, p.3), como também a reconfiguração como uma alteração

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nas práticas comunicacionais e nas estruturas sociais. A recombinação, no entanto, não

é o que de mais inovador é trazido pela cibercultura, de acordo com o autor, mas sim o

alcance possível dos processos, principalmente devido à cultura da participação.

A primeira década do século XXI é chamada por Reynolds (2011) de “década

Re”, por haver sido ela “dominada pelo prefixo -re: revivals, relançamentos, remakes,

reencenações” (REYNOLDS, 2011, p. xi). Essa tendência, de acordo com o autor, é a

intersecção entre a cultura de massa e a memória pessoal, relacionada com o passado

relativamente imediato. Ela envolve documentação exata (fotografias, vídeos, gravações

musicais, a Internet), inclui artefatos da cultura pop e busca um encantamento,

brincando com referências por meio de reciclagem e recombinação. Essas questões

podem ser verificadas de forma clara nos diferentes elementos de “Japan Pop Show” no

Noize Record Club.

Considerando-se o processo atual de reconfiguração, verifica-se nesse contexto,

conforme Sá (2009), o surgimento de um nicho de consumo musical relacionado a

discos de vinil e toca-discos. Esse contexto propicia iniciativas como é o caso do Noize

Record Club. Considera-se que essa revitalização do vinil diante do hoje oportunizado

pela tecnologia - mobilidade, acesso a diversos conteúdos pela Internet, dentre outros

potenciais - reflete o que a autora descreve como apropriação cultural cujas razões a

indústria fonográfica desconhece, remetendo à noção de remediação (BOLTER;

GRUSIN, 2000, apud SÁ, 2009). Isso sugere, conforme a autora, a dupla lógica de

conservação e ruptura que articula a atuação de um meio sempre em relação aos

anteriores. As características materiais do disco e do toca-discos são os elementos

centrais nessa articulação, como artefatos culturais a produzir um conjunto de relações

sociais e materiais específico (STERNE, 2006, apud SÁ, 2009).

Desse modo, se poderia considerar que a atmosfera de clube, como espaço de

socialização em rede relacionado a interesse específico, junto com as questões materiais

envolvidas, a partir dos diferentes elementos do produtos e suas articulações, estariam

vinculadas ao que se potencializa no ambiente contemporâneo e se desdobra na

experiência. Gumbrecht (2010) conceitua a experiência estética “como uma oscilação

(às vezes, uma interferência)” entre “efeitos de presença” e “efeitos de sentido”

(GUMBRECHT, 2010, p. 22). Conforme o autor, as materialidades são “todos os

fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido sem serem, eles

mesmos, sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 28), considerando a produção de presença

“todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto

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dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos” (GUMBRECHT, 2010, p.13). Isso

produz a epifania que, junto ao interpretativo, gera a produção de sentido.

Conforme Strocchi (2007), a partir da percepção, a aquisição de conhecimento

acontece por meio de um conjunto de processos mentais a que chamamos de cognição,

que representa a produção de significado a partir da interpretação de experiências

sensoriais somadas a memória, gostos e vivências. Pode-se afirmar, portanto, que a

cognição é o resultado do interpretativo. Dentre os diferentes elementos que conduzem

a esse processo, cabe salientar os conteúdos da revista, principalmente a entrevista, em

que o artista contextualiza cada uma das faixas do álbum, e o tutorial relacionado ao

vídeo em que apresenta parte de seu processo criativo e de trabalho. Nisso se articula

também o grupo no Facebook. A inter-relação desses conteúdos no contexto é de

transmídia e de remediação. Pode-se dizer que, junto à epifania a partir da produção de

presença no âmbito das materialidades, se produz de forma efetiva o sentido em caráter

amplo na experiência estética.

Nesse contexto, traz-se o olhar de Sá (2009) de que as características materiais

do disco de vinil e do toca-discos dão concretude à experiência musical, no ambiente

atual de desmaterialização, e são parte do prazer e das limitações do processo. No

universo de tendências homogeneizantes, de acordo com Sá (2009), os discos de vinil

são elementos de distinção, dentro do circuito de produção, circulação e consumo

musical no contexto contemporâneo.

A atmosfera de exclusividade do produto do Noize Record Club, junto com os

elementos de transmídia, representados pelo QR Code e o grupo exclusivo para

assinantes do clube no Facebook, aliados ao conteúdo da revista, dialoga com o que

Jenkins (2014) menciona como o potencial de um conteúdo ser compartilhado por seus

públicos por motivos próprios, o que ele chama de propagabilidade. Relaciona-se a isso

a criação de um conteúdo que envolva a audiência após atrair sua atenção e uma

“centralização da presença da audiência num local online específico” (JENKINS, 2014,

p. 27). A propagabilidade, ainda segundo o autor, reconhece a importância das conexões

sociais entre os indivíduos.

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144

Figura 2: Os dois adesivos que vêm com o produto, sendo que um deles traz no verso o QR Code

A realidade aumentada, de acordo com Kirner e Tori (2006) leva o ambiente

virtual para o espaço do usuário, que é mantido em seu ambiente físico, sendo que este é

complementado com objetos virtuais em diferentes tipos de plataformas, por meio de

distintos dispositivos, como, por exemplo, smartphones. Assim, é possível visualizar

dados digitais no contexto real, ampliando a percepção da realidade em que o usuário

está inserido.

Um exemplo é o uso de QR Code, como no caso de “Japan Pop Show”. Numa

ação para estender a experiência, é possível, com um smartphone, realizar a leitura do

QR Code que está disponível no verso de um dos adesivos que vêm com o produto.

Com isso, é acessada uma playlist no serviço de streaming de música Rdio chamada

“Estação Curumin”, na qual estão canções do próprio artista e de outros semelhantes,

que compõem o que é chamado de seu “universo musical”, conforme informações

presentes junto ao QR Code.

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Figura 3: O conteúdo que é acessado após a leitura do QR Code

Verifica-se nisso uma ação de transmídia, na forma de acesso, e de remediação,

ao passar-se de uma forma de disponibilização de conteúdo musical para outra, num

processo também de reconfiguração. Ao acessar o link por meio do QR Code, aparece

uma página com a informação clicável da playlist. Se o usuário ainda não possui o

aplicativo instalado, é direcionado à loja de aplicativos correspondente ao sistema

operacional utilizado no smartphone. Caso o usuário já tenha o aplicativo instalado, é

aberta a playlist no aplicativo.

As questões de transmídia e remediação também estão presentes no grupo no

Facebook e nos conteúdos da revista. No que tange à tecnologia, salientamos a seção

“Como fazer”, em que o artista dá o passo a passo de como criar uma música com

samples, cujo conteúdo se desdobra em um vídeo disponível no site da revista Noize e

em seu canal no YouTube. Nele, o artista mostra como se articula o processo,

demonstrando como utiliza o MPC – Music Programmer Controler para produzir a

música “Kyoto” a partir de elementos sonoros, o que também consistiria em um

processo de remediação, sobre o qual especificamente se opta por não abordar de forma

mais aprofundada neste trabalho.

Verificam-se nisso as questões descritas por Kerckhove (1995) no que tange à

tecnopsicologia, considerando que novas características psicológicas são desenvolvidas

pelos sujeitos em sua relação com os ambientes psicológicos, em um processo que se

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transforma constantemente. O autor refere que os dispositivos e ambientes estabelecem

uma nova condição da existência, deixando de ser somente ferramentas que orientam

ações. No contexto atual, por exemplo, a busca por desdobramentos de informações e

conteúdos relacionados ao álbum utilizando a Internet aconteceria de forma que se

poderia caracterizar como natural.

Desse modo, poderia-se afirmar que a experiência dos assinantes ou usuários do

Noize Record Club, mesmo sendo entusiastas do disco de vinil, seria bastante diferente

sem os demais elementos que a compõem. Estes colaboram, no âmbito das

materialidades e também do interpretativo, na construção de sentido que vem a tornar a

fruição estética do álbum, dentro dessas articulações, uma experiência única e especial

para aqueles que a vivenciam. Isso ocorre para além da simples aquisição de um LP ou

da audição por meio de realização do download pela Internet ou por serviço de

streaming de música, independentemente de questões outras relacionadas à qualidade de

som, mobilidade e demais aspectos a serem possivelmente considerados no contexto.

Considerações finais

No ambiente contemporâneo da cibercultura, se disseminam produtos que

relacionam elementos diferenciados e que possibilitam inter-relações no que se

caracteriza por transmídia e remediação, também a partir do desdobramento de

realidade aumentada. A popularização do acesso à tecnologia possibilitou a expressão

de vozes que apontam potenciais nichos a serem contemplados no desenvolvimento de

diferentes produtos, como é o caso do retorno dos discos de vinil ao mercado. Assim, no

contexto atual, se poderia considerar que iniciativas desenvolvidas sem um

planejamento que contemple um olhar prévio e amplo acerca das possibilidades, inter-

relações e desdobramentos estariam definitivamente abrindo mão de fazer uso de uma

série de elementos que as potencializariam.

Partindo do proposto para a realização deste trabalho, a verificação e análise dos

elementos de transmídia, remediação e realidade aumentada em “Japan Pop Show” no

Noize Record Club, é possível considerar que foi desenvolvida uma abordagem que

contemplou os objetivos delineados, respondendo ao problema de pesquisa. Assim, se

pôde compreender como se articula, nesse caso, a conjunção dos diferentes elementos,

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considerando as materialidades, por meio da produção de presença, e o interpretativo, a

partir da cognição, resultando na produção de sentido que resulta na experiência.

Cabe colocar que o estudo poderia vir a contemplar uma expansão, a partir da

análise mais aprofundada de todos os itens que compõem, de forma detalhada, cada um

dos elementos expostos neste trabalho, que constituem o produto. Nesse processo,

poderia também ser analisado o Noize Record Club e seus itens como parte de um

processo de reconfiguração não somente do mercado fonográfico, em que propostas

diferenciadas, com elementos agregados e formas de apresentação inovadoras

potencializam o produto música no contexto contemporâneo, mas também da

reconfiguração do mercado editorial de veículos de comunicação, segmentados ou não.

Isso a partir de uma ressignificação da revista Noize como produto, também na relação

de seu site e demais canais agregados, como dos sites de redes sociais Facebook,

Twitter, Google+, YouTube, Instagram e Rdio, a partir da criação do Noize Record

Club. Verifica-se, no entanto, que para o delimitado no problema de pesquisa, este

trabalho alcançou os objetivos delineados para sua realização.

REFERÊNCIAS

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: O que o sentido não consegue

transmitir. Rio de Janeiro: Editora Contraponto/Editora PUC-Rio, 2010.

JENKINS, Henry. Cultura da Conexão. São Paulo: Aleph, 2014.

_____________. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

KERCKHOVE, Derrick de. A Pele da Cultura. Lisboa: Editora Relógio D’Água,

1995.

KIRNER, Claudio e TORI, Romero. Fundamentos de Realidade Aumentada. In:

TORI, Romero, KIRNER, Claudio e SISCOUTTO, Robson. Fundamentos e tecnologia

de realidade virtual e aumentada. Porto Alegre: Editora SBC - Sociedade Brasileira de

Computação, 2006.

LEMOS, A., Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto

Alegre: Sulina, 2002, 6ª ed, 2013.

LEMOS, André. Ciber-Cultura-Remix. 2005. Disponível em:

<http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/remix.pdf>. Acesso em: 30 julho

2015.

NOIZE. Site da revista Noize. Disponível em: <http://www.noize.com.br>. Acesso em:

30 julho 2015.

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NOIZE #67 Japan Pop Show. Revista Noize. Porto Alegre: Noize Comunicação, 2015.

NOIZE Record Club. Grupo no Facebook. Disponível em

<https://www.facebook.com/groups/731831806878129/>. Acesso em: 30 julho 2015.

NRC | Como fazer música com sample, por Curumin. Canal da revista Noize no

YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VumUl0m_bz4>.

Acesso em: 30 julho 2015.

REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop culture’s addiction to its own past. New York:

Faber and Faber, Inc, 2011.

SÁ, Simone Pereira de . O CD morreu? Viva o vinil!. In: Perpétuo, I.F.; Silveira, S.A.

(Org.). O futuro da música após a morte do CD. São Paulo: Momento Editorial, 2009, p.

49-74.

STROCCHI, Maria Cristina. Psicologia da Comunicação: manual para estudo da

linguagem publicitária e das técnicas de venda. São Paulo: Editora Paulus, 2007.

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O livro digital em diferentes formatos

Francielle Franco dos Santos125

Karen Sica126

Resumo: O livro tem registrado em sua história a adoção de diferentes suportes que

permitiram a sua materialização: do pergaminho ao papel, chegando, hoje, à tela como

suporte de leitura digital. Modificam-se não apenas os suportes de escrita e leitura, mas

as apropriações e os contextos de leitura. Dessa forma, torna-se necessário entender, no

cenário editorial gaúcho, os principais suportes (hardware e software) de leitura digital,

bem como os principais formatos e a percepção do leitor neste contexto.

Palavras-chave: livro digital; formatos de livro digital; plataformas de leitura digital.

1. Introdução

De acordo com Chartier (1999a), um texto agrega uma significação que

pode ser alterada quando os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem a leitura

também mudam. Diferentes suportes de escrita foram utilizados pelo homem e “com

efeito, cada forma, cada suporte, cada estrutura da transmissão e da recepção da escrita

afeta profundamente os seus possíveis usos e interpretações” (CHARTIER, 1999a, p.

105).

Dessa forma, “do mesmo modo que o contexto semiótico do código escrito

foi historicamente modificando-se, mesclando-se com outros processos de signos, com

outros suportes e circunstâncias distintas do livro, o ato de ler foi também se

expandindo para outras situações” (SANTAELLA, 2004, p. 17). Assim, o leitor

contemplativo, habituado com objetos e signos duráveis e estáticos, como o livro

impresso e a tela do desktop, passa a conviver com o leitor imersivo, que conecta os nós

125 Graduanda do Curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista do Laboratório de Pesquisa em Mobilidade e Convergência Midiática (UBILAB – Famecos – PUCRS). E-mail: [email protected].

126 Professora no Curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. (PUCRS). E-mail: [email protected].

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entre as palavras, as imagens, os vídeos e outras linguagens, como na tela do

smartphone (SANTAELLA, 2004).

Além dos tablets e dos e-readers, os smartphones já são considerados

dispositivos de leitura digital visto que, segundo o Instituto de Pesquisa Nielsen, no

primeiro trimestre de 2015, 54% dos leitores de e-books realizaram seus downloads

através destes dispositivos móveis (MALONEY, 2015). Tendo em vista a importância

do tema, este artigo tem por objetivo compreender, no cenário editorial universitário

gaúcho universitário, quais são os principais suportes (hardware e software) de leitura

digital, assim como os principais formatos e a percepção do leitor neste contexto.

2. O histórico do livro: dos suportes primitivos ao livro digital

O desenvolvimento da escrita ocorreu através de diferentes suportes ao longo da

história. Chartier (1999b) afirma que não há texto fora do suporte onde possa ser lido ou

ouvido e a compreensão do texto depende das formas através das quais ele atinge o seu

leitor. Portanto, o texto não existe em si mesmo, isolado da materialidade

(SANTAELLA, 2004).

A cronologia dos suportes utilizados na produção do livro organiza-se a partir de dois

formatos fundamentais: o rolo e o códice; o que vale dizer, três materias-primas

essenciais: o papiro, o pergaminho e o papel (PINHEIRO, 1999). O papiro é o mais

popular de todos os produtos vegetais empregados na escrita de tanta importância

histórica em si mesmo e pelos textos que conteve. O momento em que o papiro virou

suporte de escrita não pode ser mencionado com precisão, contudo, o Museu Louvre

possui um papiro que data de 273 anos a.C., o que nos leva a concluir que se trata de

uma época muito longínqua (MARTINS, 2002).

As dificuldades de importação do papiro, em função das guerras, somadas à escassez

natural, forçaram o homem a utilizar outra matéria-prima como suporte para a escrita: o

pergaminho. Extraído de pele de animais, o pergaminho tem a sua primeira menção na

história data do ano de 301 a.C. Os altos custos do pergaminho evidenciaram a

necessidade de substituição deste suporte por outro que tivesse preços mais acessíveis.

Sendo assim, o papel é inventado na China, aproximadamente no ano de 140 a.C.

Febvre e Martin (2000) reiteram que a invenção da imprensa teria sido inoperante se um

novo suporte do pensamento, o papel, não tivesse feito a sua aparição na Europa, dois

séculos antes, para ser utilizado generalizado e corrente até o final do século XIV.

O pergaminho foi escrito, como o papiro, em apenas um lado, até que se descobriu ser

perfeitamente possível fazê-lo nas duas faces. Enquanto a escrita era realizada apenas

no sentido vertical do rolo, o pergaminho era enrolado, como o papiro, para constituir o

volumen. A escrita no reto e no verso vai dar nascimento ao códex, isto é, ao

antepassado imediato do livro (MARTINS, 2002). Com a utilização dos dois lados do

suporte o custo de fabricação do livro diminiu consideravelmente. Além disso, o códex

permite a reunião de grande número de textos em um volume muito menor se

comparado aos antigos rolos de papiro ou pergaminho (CHARTIER, 1999b). O códex

pode ser definido, nas palavras Rouveyre, citado por Martins (2000), como “os

manuscritos cujas folhas eram reunidas entre si pelo dorso e recobertas de uma capa

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semelhante a das encadernações modernas”, ou seja, o livro no formato impresso como

conhecemos hoje.

O livro impresso foi, até hoje, o herdeiro do manuscrito: por sua organização em

cadernos e pela hierarquia dos formatos (CHARTIER, 1999b). Martins (2002) afirma

que o incunábulo, livro impresso até o ano de 1500, embora fosse um livro impresso,

prolongou, de maneira artificial, o uso do manuscrito, ou pelo menos a sua aparência já

que transpunha elementos daquele formato para o livro impresso. Então, a disposição

das folhas de papel em cadernos agrupados é mais do que um simples formato, mas sim

uma revolução dos suportes e formas que transmitem o escrito (CHARTIER, 1999b, p.

101).

Sendo assim, entra em cena um novo suporte de leitura: a tela (de diferentes

dispositivos eletrônicos). O uso de diferentes suportes se modifica de acordo com a

evolução tecnológica, industrial e cultural, isto porque “[...] não existe nada mais

efêmero do que os suportes duráveis” (CARRIÈRE e ECO, 2010 p. 24). A efemeridade

dos suportes tem ameaçado a hegemonia do papel enquanto suporte principal do livro.

Contudo, a ideia de que o livro digital suprimirá a existência do impresso é equivocada

visto que essa ameaça “[...] se encontra por tantas invenções fundadas em princípios

diferentes” (FEBVRE e MARTIN, 2000, p. 6).

Dessa forma, os formatos podem, e devem, co-existir, pois têm princípios e objetivos

diferentes. Somente com o surgimento do livro digital é que se quebra o paradigma do

livro objeto enquanto um conjunto de folhas agrupadas e cobertas por uma capa dura.

Apesar de terem sido mantidos os elementos fundamentais do livro (sumário, cabeçalho,

numeração de página, entre outros), o fato de a leitura ocorrer intermediada por uma

tela, e não mais por uma página, gerou uma barreira que dificulta que os agentes da

cadeia produtiva do livro, e até mesmo alguns leitores, não percebam o novo objeto

como um livro tal qual o impresso. A resistência de perceber a tela como a nova

interface do livro pode ser justificada pelo fato de que “as interfaces são em seu cerne

metaformas, informação sobre informação” (JOHNSON, 2001, p. 4), sendo assim, o

leitor não sente a mesma apropriação material referente ao papel quanto lê um livro em

tela.

3. Transformam-se os leitores e as práticas de leitura

Assim como o livro evoluiu, através dos suportes e plataformas, os leitores e as

maneiras de leitura transformaram-se igualmente. Conforme descreve Chartier (1999a),

o leitor retratado antes do século XVIII aparentava estar estático em ambientes fechados

como gabinetes e espaços reservados. É a partir deste período que o leitor começa a ser

retratado com maior liberdade, lendo em movimento em ambientes públicos. A

evolução dos suportes conferiu ao livro uma mobilidade nunca experimentada,

permitindo com que o leitor pudesse transitar com o objeto em diferentes ambientes.

Para ser desenrolado e lido, um rolo tinha de ser segurado com as duas mãos:

logo, como mostram afrescos e baixos-relevos, era impossível para o leitor

escrever ao mesmo tempo em que lia, daí a importância do ditado em voz

alta. É com o códex que o leitor conquista a liberdade: pousado sobre uma

mesa ou escrivaninha, o livro em cadernos não exige mais a total mobilização

do corpo (CHARTIER, 1999b, p. 101).

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Modificaram-se também os leitores, passíveis de classificação. Santaella (2004)

categoriza os leitores em contemplativo e movente, definições semelhantes às realizadas

por Chartier (1999b) que define os leitores como intesivos ou extensivos. Entretanto a

autora acrescenta, ainda, um outro perfil: o leitor imersivo. O leitor contemplativo “é

aquele que tem diante de si objetos e signos duráveis, imóveis, localizáveis,

manuseáveis: livros, pinturas, gravuras, mapas, partituras” (SANTAELLA, 2004, p. 24).

Isto é, o leitor do livro impresso ou o leitor intensivo mencionado por Chartier (1999b).

O leitor movente é aquele “que foi se ajustando a novos ritmos de atenção, ritmos que

passam com igual velocidade de um estado fixo para um móvel. [...] É, enfim, o leitor

apressado de linguagens efêmeras, híbridas, misturadas” (SANTAELLA, 2004, p. 29),

bem como o leitor extensivo, descrito por Chartier (1999b), que lê um grande volume

de textos com maior velocidade. O terceiro tipo de leitor mencionado por Santaella

(2004), e dificilmente imaginado por Chartier, é o leitor imersivo, que lê no

ciberespaço. Diferentemente dos dois tipos de leitores que o precedem, o leitor o

imersivo está em constante “estado de prontidão, concentrando-se entre nós nexos, num

roteiro multilinear, multissequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao

interagir com os nós entre as palavras, imagens, documentação, músicas, vídeo, etc.”

(SANTAELLA, 2004, p. 33).

Somos levados a imaginar que com a evolução dos suportes, dos tipos de leitores e das

práticas de leitura, os perfis de leitores devem, gradativamente, se sobrepor ao tipo

antecedente. Porém, “embora haja uma sequencialidade histórica no aparecimento de

cada um desses leitores, isto não significa que um exclui o outro, que o aparecimento de

cada um desses tipos de leitores leva ao desaparecimento do tipo anterior”

(SANTAELLA, 2004, p. 19). Sendo assim, temos ainda hoje, dividindo práticas de

leitura e suportes de leitura, o leitor contemplativo (intensivo), o leitor movente

(extensivo) e o leitor imersivo. Ainda segundo a autora, as diferentes formas do livro

também funcionam como índices de práticas distintas de leitura. A partir do conceito de

que “a leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significado” (CHARTIER,

1999a, p. 77), logo conclui-se que o mesmo texto pode ter diferentes interpretações de

acordo com apropriação feita por cada leitor.

4. Principais suportes de leitura digital e formatos de livros digitais utilizados pelo

público universitário gaúcho

Para que fossem definidos os histórico do livro e as transformações sofridas no

comportamento de leitura, bem como nas práticas de leitura, foi realizado um

levantamento bibliográfico e documental. Contudo, para que se pudesse definir os

suportes de leitura digital e os formatos de livros digitais mais utilizados pelos

estudantes universitários gaúchos foi realizada uma pesquisa quantitativa. O

questiontário foi disponibilizado em grupos de estudantes universitários no Facebook,

no período entre 25 de setembro de 2015 até o dia 13 de outubro de 2015.

Após a análise dos resultados, o público respondente do questionário pode ser

caracterizado como jovens gaúchos; com faixa etária média entre 20 e 23 anos de idade;

com formação superior em andamento ou completa; principalmente estudantes das

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Unisinos; com graduação principalmente nas áreas de

Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas e Ciências Exatas e da Terra. Afim de

delimitar o público, foi questionado se os respondentes já haviam lido livros no formato

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digital. Assim, dos 328 indíviduos que acessaram o questionário, 260 (80%) afirmaram

já ter lido livros no formato digital. Definidas as questões de caracterização do público,

questinou-se quais eram os principais dispositivos de leitura digital utilizados.

Gráfico 1 – Principal dispositivo de leitura digital

Fonte: As autoras (2015).

Observa-se, no Gráfico 1, que o principal dispositivo de leitura digital apontando pelos

260 respondentes da pesquisa é o computador, com 27% das respostas; em segundo

lugar está o notebook, com 24% das respostas; e em seguida estão o smartphone e iPad.

Assim, pode-se caracterizar o público como um leitor contemplativo, visto que lê

principalmente em dispositivos estáticos. Considera-se, aqui, que o notebook seja

estático porque ele não apresenta a mesma mobilidade que tablets e smartphones. Dessa

forma, ele tem caracaterísticas mais próximas do computador em relação aos

dispositivos móveis.

Gráfico 2 – Dispositivo secundário de leitura digital

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Fonte: As autoras (2015).

No Gráfico 2, observa-se que o principal dispositivo secundário de leitura digital é o

smartphone, com 32% dos total de 167 indivíduos que afirmam ler em mais de um

dispositivo. Este resultado vai ao encontro da fala de Santaella (2004), ao afirmar que os

tipos de leitores co-existem e não se excluem. Assim, o leitor contemplativo, que lê na

tela do computador, também lê na tela do smartphone. Este resultado aponta para uma

tendência de leitura móvel, que deve ser considerada pelo mercado editorial. Após a

definição dos dispositivos de leitura digital, questionou-se quais eram os principais

formatos de livro digital utilizados.

Gráfico 3 – Principais formatos de livro digital

Fonte: As autoras (2015).

No Gráfico 3, nota-se que o PDF é o principal formato utilizado (57%), seguido pelo

formato Epub (14%) e pelo formato iBooks (12%). Acredita-se que o formato iBooks

tenha sido apontado em função deste também ser o nome do software para leitura digital

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nos smartphones com sistema iOS. Como a grande parte dos respondentes afirmou que

lê no smartphone, pode ter acontecido uma confusão entre o formato de livro digital

iBooks e o software de leitura do sistema iOS. Portanto, considera-se que o terceiro

formato de livro digital mais utilizado seja o formato HTML (web) com 8% das

respostas.

Com os formatos definidos, pode-se elaborar um quadro com características próprias de

cada formato. Assim, foi solicitado que os respondentes relacionassem cada

característica com o formato mais adequado a fim de, dessa forma, definir qual a

opinião do público diante aos três principais formatos de livro digital.

Quadro 1 – Características relacionadas aos formatos de livro digital.

Formato Característica atribuída

PDF o É mais fácil de usar.

o Mais parecido com o impresso.

o Mantém a paginação.

o Estático.

o Adapta-se a diferentes telas.

o Não permite a inserção de recursos interativos.

o Fica diferente dependendo do dispositivo em que é aberto.

o Pode ser lido no navegador de internet.

Epub o É o menos estático.

o Adapta-se a diferentes telas.

HTML o Pode ser lido no navegador de internet.

o É mais interativo.

o Menos fácil de usar.

o Menos parecido com o impresso.

Não se aplica o Não se adapta a diferentes telas.

o Não mantém a paginação.

o Permite a inserção de recursos interativos.

o Pode ser transformado em aplicativo.

A partir da análise do Quadro 1, pode-se afirmar que o PDF é o formato de livro digital

mais consumido e aceito pelo público universitário gaúcho. Pelo número de

características atribuídas a este formato, ele, sem dúvida, é o mais conhecido entre os

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respondentes. As características de adaptar-se a diferentes telas e ter o layout

modificado conforme a tela em que é visualizado foram atribuídas ao formato PDF.

Entretanto, se considerarmos o layout do livro digital, nota-se que ele se mantêm o

mesmo, ou seja, não é responsivo, não se modifica de acordo com a tela em que é

visualizado. Conclui-se que as questões de layout responsivo e conteúdo interativo não

estão claras para o público universitário gaúcho.

Sobre o formato HTML, pode-se afirmar que o público respondente reconhece as

características básicas (como interatividade e a leitura através o navegador), porém não

mencionou a adaptação a diferentes telas e nem a possibilidade deste formato ser

distribuído por meio de um aplicativo. Então, pode-se afirmar que este público não tem

uma opinião suficientemente clara quanto ao formato HTML.

O formato Epub teve pouquíssimas características atribuídas. Conforme os resultados

apresentados, pode-se afirmar que o público em questão não reconhece a maioria das

características do formato Epub. Apesar dos inúmeros esforços por parte de consórcios

como o IDPF, o formato Epub não tem a mesma aceitação e penetração que o formato

PDF tem entre os universitários gaúchos. Sendo assim, o PDF é o formato mais aceito,

com o maior número correto de características atribuídas.

5. Considerações Finais

Para o público universitário gaúcho, o PDF é o principal formato de livro digital.

Questiona-se, aqui, se este formato é predominante em função da demanda gerada pelo

público ou se o público, por não ter outro formato satisfatório, acaba por utilizar o PDF

como livro digital tendo em vista as dificuldades de produção e acesso a outros

formatos. O formato Epub não atende às expectativas do público leitor ou o mercado

editorial não consegue desenvolver com qualidade livros no formato Epub? Acerca dos

dispositivos de acesso e leitura digital, destaca-se o uso do computador como principal

aparelho de leitura digital. Contudo, nota-se o uso do smartphone coo dispositivo

secundário de leitura digital.

Define-se, então, como satisfatório o livro digital produzido pelas editoras universitárias

gaúchas, tendo em vista a opinião do público universitário definida a partir do

questionário quantitativo. Pondera-se, apenas, que as potencialidades do meio digital

não estão sendo exploradas. O grande desafio, não só do mercado editorial gaúcho, mas

de todo o mercado brasileiro, é conseguir utilizar as possibilidades interativas do meio

digital sem tornar a interatividade desnecessária, além de conseguir produzir livros

digitais com qualidade em um formato que consiga ter o mesmo alcance do formato

PDF.

Como indicação para propostas futuras, sugere-se explorar as características de cada

formato através de questionários mais detalhados, como pesquisas experimentais e de

usabilidade a fim de definir quais as características mais importantes em cada formato e

dispositivo de leitura digital. Posteriormente, poderiam ser definidas diretrizes para boas

práticas de acordo com cada formato e dispositivo de leitura digital. Ainda torna-se

importante questionar os diferentes níveis de interatividade para cada tipo de

publicação, poderiam ser investigadas livros digitais de acordo com a área do

conhecimento, ou o tipo de leitura e questionar até que ponto os diferentes tipos de

interação atrapalham a leitura ou agregam valor ao conteúdo.

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157

Bibliografia

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XIV e XVIII. Tradução: Mary Del Priori. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

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São Paulo: Paulus, 2004.

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Telltale Games The Walking Dead: observando modos de comunicação

no videogame

Victor Felipe Barbosa PESSOA127

Faculdade de Informação e Comunicação

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO

Resumo: Levantando autores e teorias sobre comunicação, apresenta-se a ideia de

comunicação como a capacidade de se fazer entender. Partindo desse pressuposto,

também são levantados teorias e estudos sobre o videogame para identificar quais

recursos o mesmo possui para atingir tal feito, focando em dois recursos observados, o

do tempo e o do espaço, os analisando dentro do game The Walking Dead.

PALAVRAS-CHAVE: videogame; comunicação; tempo; espaço; the walking dead.

1- Introdução

Dentro da grande área de pesquisa do campo da comunicação, diferentes aportes

para variados tipos de tema são aceitos e discutidos. Dentre os vários aportes, o que

relaciona a comunicação e as tecnologias, que podemos forçosamente chamar do

paradigma tecnológico da comunicação, possui uma grande aceitação, e seu debate

sempre se mantém fervoroso devido ao surgimento de novas tecnologias e as mudanças

que as mesmas trazem consigo.

Uma tecnologia em especial, a do videogame, surgida recentemente, por volta da

década de 70, foi se aprimorando e ganhando popularidade ao longo dos anos.

Inicialmente com mero foco de entretenimento, um brinquedo deveras, o videogame foi

se complexando por um anseio tanto dos desenvolvedores de games, quanto do público

em geral, e poderíamos dizer da própria tecnologia, para contar mais histórias,

implementar novos desafios, proporcionar mais envolvimento.

127 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás

(FIC/UFG) E-mail: [email protected]

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Todos os recursos que a mídia do videogame foi agregando e criando para

alcançar esses anseios e se transformar na mídia que podemos observar hoje em dia,

possuem suas peculiaridades que, ao serem observadas, revelam como o videogame

particularmente trabalha com a questão comunicacional, que, por sua vez, leva a mídia a

poder discutir também questões culturais, educacionais, entre outros de aspecto

semelhante.

O papel e as possibilidades que o videogame passou a desempenhar despertaram

a atenção da mídia não só do grande público, mas de grandes empresas, agências de

publicidade, do governo, da medicina, e claro, da academia. Com uma demanda cada

vez maior de se entender os videogames, suas pesquisas vêm ganhando força, tanto as

que se aventuram no estudo próprio da mídia como aquelas que estudam a mídia como

pano de fundo de outra disciplina ou aplicabilidade.

Esse trabalho, como já mencionado, procura relacionar o estudo dos videogames

com a grande área da comunicação, procurando contribuir para a fomentação dos dois

temas. Não se possui aqui, porém, a pretensão de estipular verdades ou marcos nesse

tipo de estudo, compreende-se que o campo ainda está em desenvolvimento, certas

ideias chaves ainda estão se maturando, e variadas observações e discussões, que é ao

que esse trabalho se propõe, são de extremo valor nesse momento.

Aqui, especificamente, é observado o game The Walking Dead, lançado pela

produtora de games Telltale Games, cujo tema do game se relaciona com os quadrinhos

e a série de tv de mesmo nome. Levantando algumas ideias sobre o conceito de

comunicação aqui trabalhado e algumas características da mídia levantada por

pesquisadores da área, como Aarseth, Frasca, entre outros, observa-se como essas

características são utilizadas para que o game se comunique com o público. Com essa

comparação e observação em mãos, discute-se e reflete-se sobre o caminho

comunicacional da mídia, tudo de acordo ao espaço oportuno desse trabalho.

2- Metodologia

Tratando-se de um trabalho de observação e análise, é importante definirmos

como base os conceitos, ideias e autores que aqui são trabalhados, afim de estipularmos

um limite perceptível para os leitores e pares, para que um diálogo mais conciso e

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focado possa emergir. Procura-se apontar uma noção de comunicação ligada a

tecnologia e observar características da tecnologia do videogame.

2.1- A comunicação

Como primeiro passo, abordamos o conceito de comunicação. Devemos fazer a

ressalva, porém, de que existem outros conceitos que podem ser abordados, e que não é

do objetivo deste trabalho estipular o trabalhado aqui como ponto único de discussão. A

comunicação aqui é colocada como a capacidade do indivíduo de se fazer entender por

um outro. Tal ideia pode ser percebida ao observarmos sua noção sendo empregada no

debate que certos autores estabelecem com a tecnologia e o ato comunicacional.

Marshall McLuhan, um famoso teórico da comunicação, busca em suas obras

enfatizar o elemento do meio. Não ignorando outros elementos da comunicação, o que o

autor propõe é que os meios, que para os fins apenas deste trabalho entenderemos como

mídia/tecnologia, desempenham um fator ímpar na compreensão daquilo que se deseja

comunicar. McLuhan compreende que cada tecnologia, como a tv, o rádio, a escrita e a

fotografia, transformam a mensagem para o receptor, uma vez que a comunicação está

atrelada a percepção sensorial dos indivíduos e que cada meio fornece percepções ou

estímulos sensoriais diferentes. Não apenas isso, cada meio fornece ao indivíduo uma

nova forma de pensar, uma nova forma de expressão, que age no próprio cerne da

elaboração da comunicação, em outras palavras, o indivíduo não pensa no que quer

dizer e em como dizer de formas separadas. Uma das famosas frases do autor, “o meio é

a mensagem”, sintetizam essa compreensão do papel dos meios.

A mesma concepção defendida por McLuhan pode ser encontrada também nos

trabalhos do pesquisador e professor Pierre Lévy. Já trazendo as pesquisas e os debates

para uma era moderna e digital, a qual McLuhan não pertenceu plenamente, o autor

continua a defesa da importância das tecnologias e dos meios. Lévy faz, como no título

de sua obra “As tecnologias da inteligência”, aproximação do pensamento e do ato

comunicacional com os aparatos tecnológicos. Fugindo um pouco, porém, do

generalismo de McLuhan, Lévy compreende que as tecnologias desempenham sim um

papel no pensamento humano, assim como também na cultura, sociedade e na

economia, todavia, mas devemos focar apenas nas tecnologias diretamente ligadas a

ação comunicacional, para evitarmos um estudo raso, tendo esse pensamento sempre ao

fundo. O autor mantém a ideia de que a relação entre o sensorial humano e a

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comunicação encontra seu elo na tecnologia, e que eles não podem ser pensados de

forma distinta, relação essa que o autor coloca como sendo nossa ecologia cognitiva.

“Separar o conhecimento das máquinas da competência cognitiva e social é o

mesmo que fabricar artificialmente um cego (o informata “puro”) e um

paralítico (o especialista “puro” em ciências humanas), que se tentará

associar em seguida; mas será tarde demais, pois os danos já terão sido

feitos.” (LÉVY, Pierre – 2010, p.55)

Essa relação que a comunicação desenvolve com a tecnologia pode ser

observada através da história, cada nova tecnologia, em especial cada novo meio de

comunicação, afetava e moldava as relações dos indivíduos. Como destacado na obra do

autor John B. Thompson, “A mídia e a modernidade: Uma teoria social da mídia”, a

comunicação se coloca como uma atividade social distinta das demais (p.25), pois ela

não acaba em si mesma, ela muda e afeta, assim como é afetada, por outros variados

fatores, em especial, a tecnologia. Trabalhando com o exemplo do rádio, a tecnologia

permitiu que indivíduos que moravam longe da cidade pudessem receber notícias e

informações mais rápido, todavia, não se trata apenas de uma expansão territorial

permitida pela tecnologia, mas da integração de toda uma parcela da sociedade, de

novos hábitos de ouvir rádio, do estabelecimento de uma forma de entretenimento, entre

outras opções.

2.2- O videogame

Como segundo passo, devemos destacar e esclarecer quais características do

videogame serão analisadas. Como sabemos e podemos facilmente perceber, existem

inúmeros gêneros e estilos de games diferentes, que se utilizam de variadas

características e recursos para atingirem seus objetivos próprios. Não nos é permitido,

em questão de tempo e espaço deste trabalho, percorrer os diferentes gêneros de games

assim como todas as características empregadas. Como o game em questão analsiado é

o The Walking Dead, partindo de um conhecimento da dinâmica do mesmo, foca-se nos

recursos de tempo, espaço e ação performática do jogador como características

observáveis.

Essas características não são escolhidas ou mesmo definidas (em termo de

nomenclatura) aleatoriamente. Toma-se de empréstimo a divisão proposta por Aarseth

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sobre as dimensões dos games, ais quais ele estipula sendo as dimensões do gameworld,

do game play e do game structure. Essas dimensões existem sempre em conjunto, mas

possuem dentro de si características e recursos da mídia que podem, de forma teórica e

didática, serem agrupadas, pois refletem um objetivo e uma utilização em comum. As

três características em destaque nesse trabalho se encontram dentro das dimensões do

gameworld e do game play que estão ligadas, respectivamente, ao conteúdo ficcional do

game e a atuação do jogador ou jogabilidade.

A dimensão do gameworld possui não só as características do tempo e espaço do

game, mas trabalha também com toda a referência simbólica gráfica, como texturas,

lugares e objetos, assim como toda o conteúdo ficcional, como as personagens, a

história e a narrativa. O game play, por sua vez, possui as características e recursos de

jogabilidade, como regras, motivação, objetivos e ações possíveis. O importante a ser

compreendido, é que não se utiliza dessa divisão para debater quais são ou não recursos

próprios do videogame, mas aceita-la, mesmo sabendo que existe um debatene

emergente sobre esse tema, e procurar observar como esses elementos não só como

esses elementos compõe os games, como propõe Aarseth, mas observar como eles são

usados retoricamente, segundo as perspectivas de Frasca.

O tempo aqui é analisado, pois como Juul alerta, o tempo de uma narrativa é

colocado sempre no passado, é sempre uma história contada, e quando analisamos um

game, que ocorre no presente, ou seja, onde o jogador age, joga, ocorre um paradoxo.

Nesse sentido, os games, em especifico o The Walking Dead, devem trabalhar com a

característica do tempo para conciliar o tempo de jogo com o tempo da narrativa. Do

mesmo modo, a história apresenta determinados estilos como terror ou drama se

utilizando de recursos narrativos específicos, como suspense, omissão, reviravoltas,

entre outros. Quando, no caso dos games, o jogador se encontra no momento de jogo,

no presente, onde não há essa narração, outros recursos e características atuam como

permeadores desses estilos, sendo eles o espaço, que situa o jogador tanto no ambiente

de jogo, ou seja, no ambiente de ações, como no ambiente ficcional, com sentidos e

significados.

A performance do jogador é colocada em questão como uma característica da

mídia, pois os games são sempre duais, são sempre objetos/artefatos e atividades, onde

podemos observar, por exemplo, o jogo de xadrez, com suas peças e tabuleiro, e pessoas

o jogando (Juul, 2005, posição 481). Quando aplicados a um contexto comunicacional,

os componentes, as características, virtuais ou não, podem ser empregadas

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retoricamente, mas a posição dos jogadores em relação aos mesmos e a proposta

narrativa possui sua relevância significativa.

3- O game

The Walking Dead é um game lançado pelo estúdio Telltale Games, para

diversas plataformas, em abril de 2012. Ele possui o mesmo nome da série de TV e dos

quadrinhos que deram origem a ambos, onde a ideia por trás dessa relação é justamente

a de colocar o game e sua história narrada como pertencente ao universo ficcional da

franquia. O game é classificado como um game de terror e aventura, além de outros

subgêneros, e são essas características, assim como a temática do universo ficcional,

zumbis e o fim do mundo, que os recursos do videogame devem ser capazes de

comunicar.

O game foi sendo lançado em partes, totalizando cinco partes no total. Cada uma

dessas partes só pode ser jogada em sequência, e cada uma conta determinados eventos

da história geral do game. A história é focada na personagem Lee Everett, que é

mostrada no começo do game sendo presa pelo crime de assassinar sua mulher. A

viatura que o estava conduzindo sofre um acidente, e Lee logo se vê perdido em meio a

vários zumbis, sem saber o que está acontecendo.

Fugindo à procura de ajuda e abrigo, Lee acaba invadindo uma casa onde

conhece Clementine, uma pequena garota que havia ficado sozinha em casa durante

uma viagem de seus pais. Sem coragem de abandona-la, Lee resolve acompanha-la e

protege-la, e grande parte da história gira em torno da amizade dessas duas personagens.

Juntos eles partem em busca de entender o que está acontecendo e, com sorte, encontrar

os pais de Clementine. Durante o caminho, vários outros personagens aparecem e logo

formam um grupo, buscando sobreviver e escapar desse mundo caótico e cheio de

zumbis.

3.1- O estilo do game

Como já dito, The Walking Dead é um game de aventura e de terror, mas essa

classificação está mais ligada ao seu conteúdo ficcional, de modo geral, os games são

dividos e classificados por seus modos de jogo, como games de tiro, games de

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estratégia, games de luta, entre variadas classificações. The Waling Dead é um

classificado como um game point-and-click (apontar e clicar), modo o qual coloca que

todas as ações do jogador estão ligadas a clicar em algo.

Games de point-and-click agrupam todas as ações do game, desde as mais

básicas como andar, até as mais complexas como resolver um quebra cabeças, em um

simples ato de clicar. Isso só é possível pois, nesse tipo de game, em especial no The

Walking Dead, todas as ações são tratadas como escolhas. Ao se deparar com um

machado no game, por exemplo, ao clicar no machado três opções aparecem na tela do

jogador, ele pode olhar o machado, pode pegar o machado, ou pode deixar o machado,

opções essas que devem ser clicadas e a própria inteligência artificial do game executará

as ações da escolha.

Essa mesma lógica que o game utiliza para um objeto também é emprestada para

a relação com as outras personagens. Quando o jogador clica em outra personagem,

uma série de opções diferentes aparecem, e se dessas opções se iniciar um diálogo, da

mesma forma que o jogador escolhe ações ele deverá escolher as falas do protagonista,

no caso Lee, durante a interação. A interação entre essas escolhas e a história é que os

desenvolvedoras da Telltale games procuraram unir, fazendo com que cada escolha

possa ter relevância na trama, seja um personagem tendo ou não um objeto no futuro, ou

personagens brigarem entre si por escolhas de diálogos específicos.

4- O tempo no game

Um aspecto que todo game tem que lidar é com o aspecto de temporalidade.

Todo game, por ser uma ação performativa, um elemento ergótico, possui o seu tempo

de jogo, onde o jogador se sente imerso no game e onde suas ações são permitidas ou

alternadas em relação a outros jogadores ou eventos. Essa imersão, todavia, não é uma

imersão total, e o jogador está sempre em contraposição com a realidade que o cerca,

assim como o tempo dessa realidade, ou seja, o tempo “real”. Quando se aplica uma

narrativa ou um contexto comunicacional a mídia, observa-se o surgimento de outro

tempo, o fictivo, ou seja, o tempo da história que se passa no game. Por fim, destaca-se

que existe o tempo do gameworld, relacionado a ciclos, durações e eventos que nos dão

a ideia de progresso e de que o tempo está passando.

Nesse sentido, conseguimos observar quatro quadros distintos do tempo presente

nos games. Não necessariamente um game apresenta todos esses quadros, e mesmo

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quando o faz, pode mostra-los de forma sequencial, misturada ou de outras variações

possíveis. Cada um, por sua vez, contribui em certos aspectos para a compreensão do

game, e devemos analisar cada um em relação a proposta de terror e apocalipse zumbi

em The Walking Dead.

Começando pelo tempo real, ou o tempo fora do game, observa-se que não há

nenhuma relação direta com o que ocorre fora do game com o que ocorre dentro do

mesmo. Caso o jogador leve uma hora ou cinco minutos do tempo real para realizar uma

ação, não há relação, premiação ou consequência dentro do game. Nesse sentido, não há

um padrão que indique a quantidade de tempo ou duração do game, sendo apenas a

divisão em cinco capítulos do game como pontos de referência ao jogador sobre um

limite temporal. Essa falta de relação não é uma falha ou um problema, pelo contrário,

sua ausência permite ao jogador que as seções de jogo se adaptem ao seu tempo,

tornando-as mais acessíveis.

Seguindo para o tempo de jogo, que podemos chamar de tempo de coordenação

(das ações), já podemos notar momentos diferenciados disponíveis ao jogador. Como já

mencionando, o game começa em uma cutscene, com Lee sendo levado por uma

viatura. Essa cutscene, assim como várias outras que ocorrem durante o game,

estabelece um momento onde o jogador não possui ação de controle sobre as

personagens. Nesse momentos, o próprio game estabelece controle sobre os

acontecimentos como forma de guiar a história, como forma de estabelecer eventos que

devem ocorrer para o desenrolar da trama. Em The Walking Dead especificamente, as

cutscenes não sou totalmente momentos passivos, com o jogador podendo, por meio de

cliques, escolher os diálogos da personagem Lee. Nesses momentos, o jogador possui

um tempo de escolha limitado pela própria duração da cutscene, e suas falas devem ser

escolhidas dentro do tempo estabelecido por uma barra na parte inferior da dela que vai

desaparecendo, recurso esse necessário para coincidir o jogar do jogador com a

narrativa. Além das cutscenes, existe também o tempo de exploração, onde o jogador

pode controlar a personagem e andar pelo cenário a procura de pistas, outras

personagens ou objetos, durante esse período, o tempo do jogador é ilimitado, onde o

jogador pode explorar ou apenas deixar o personagem parado pelo tempo desejado que

nada no mundo se alterará. Há também o tempo de combate no game, quando o jogador

deve enfrentar ou fugir de oponentes, sejam outros humanos ou zumbis. Durante esse

período especifico, o jogador é livre para controlar a personagem, mas deve realizar

uma determinada ação e um período de tempo, como atirar em um zumbi, ou fechar

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uma porta, caso contrário, algo acontece que faz o jogador perder o game, como Lee

morrendo por exemplo. Esses três períodos distintos coordenam todas a jogabilidade do

game, sendo eles alternados por gatilhos ou eventos específicos, por exemplo, durante

um período de exploração, somente após falar com todas as personagens é que o

jogador é transferido para um momento de cutscene, enquanto que durante um diálogo

de uma cutscene, se um evento ocorrer, como o surgimento de zumbis, o jogador é

transferido para um período de combate, e assim o game vai se repetindo e se alterando

em diversos momentos.

Outro tempo, o tempo do gameworld, não é tão explorado em The Walking

Dead. O game deixa claro, principalmente pela parte visual, em que momento os

acontecimentos da história estão ocorrendo, como sendo de dia ou de noite, por

exemplo. Todavia, devido ao tempo de coordenação permitir que o jogador gaste o

tempo que lhe convier na exploração, o tempo do gameworld é dessincronizado da

passagem de tempo, ou seja, ele se torna apenas um componente da história e apoio para

o tempo fictivo, que vemos em seguida.

O tempo fictivo, o tempo da história em The Walking Dead, é o principal

conduíte do game. Para estabelecer tal tempo, o game faz os empréstimos das cutscenes,

mencionadas acima e dos diálogos. Por meio delas, o game faz empréstimo das técnicas

narrativas de passagem de tempo de contar histórias, e a passagem do tempo é percebida

tanto em cenas como mostrar os personagens dormindo e acordando, quando em

diálogos como “nós andamos o dia todo” ou “logo vai escurecer”. O tempo no

gameworld, como o período da noite, só se alterna caso a história do game o diga, e é

justamente o avanço da narrativa que alavanca o surgimento de eventos e que resulta na

percepção do jogador da passagem do tempo no game.

4.1- O espaço no game

Quando entramos na discussão do espaço nos games, temos que levar em

consideração que existem dois tipos de espaço, o espaço matemático e dimensional em

que vivemos, e os espaços criados, sejam espaços sociais, culturais, fantasiados, entre

outros. No caso dos videogames, estamos nos referindo a um objeto virtual, sendo

assim, o espaço nos games, mesmo sendo capaz de emular dimensões, profundidade,

gravidade, entre outras características do espaço matemático, não deixa de ser uma

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simulação, ou seja, o espaço nos games sempre cai no domínio da representação e do

simbólico.

Quando dizemos, todavia, que se trata de um espaço representado, como alerta

Aarseth, temos que compreender que a representação se divide em dois aspectos

distintos, o da representação espacial (emulação/simulação) e o dos espaços

representados (simbólicos/significativos). No caso do The Walking Dead, a

representação espacial é a construção gráfica e com auxílio das regras do espaço

jogável, enquanto que os espaços que o jogador vê construído e do qual absorve

informações e referências está ligado a contextos, o que podemos chamar de espaço

fictivo.

A representação espacial em The Walking Dead, assim como em outros games,

se mostra um fator relevante, pois ela atua não só como espaço de ações, mas também

como um espaço limitador, em outras palavras, um espaço ditatório de regras. Nem

todas as portas podem ser abertas, nem todos os objetos podem ser pegos, nem todas as

direções podem ser seguidas, onde o espaço do game, seja por barreiras invisíveis (no

caso das direções), seja por não fornecer opções de clique (no caso das portas e objeto)

estabelece uma jogabilidade no mundo. O espaço ficcional, por sua vez, advém desse

espaço, mas é reforçado, graficamente principalmente, no que as coisas significam, dá

nome ao lugar e retifica sua existência, seja por nomes, marcas, símbolos, ou outros

tipos de referências. Um exemplo claro que estabelece e distingue esses espaços e é

observável no game é o que há além do espaço jogável. A representação delimita um

espaço jogável no game, todavia, o jogador consegue observar que esse espaço é maior

do que a área a que ele é restringida, onde esse espaço além dialoga justamente com o

espaço fictivo, indicando que a historia do game, mesmo limitada aquele espaço naquele

momento, existe em um mundo maior, o gameworld não se restringe apenas a

jogabilidade aqui, mas ele carrega consigo o espaço da franquia, um mundo como o

nosso, com estradas, prédios, pessoas, as que sofre o apocalipse zumbi.

5- O espaço e o tempo como fatores retóricos

Entendendo as divisões do tempo e a divisão espacial nos games, assim como as

delimitando também em relação ao game The Walking Dead, busca-se observar como

esses elementos são articulados retoricamente, ou seja, como o tempo e o espaço são

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trabalhados para que se atinja o objetivo comunicacional do game, o de contar uma

história de terror e zumbis no universo da franquia de mesmo nome.

Começando pelo aspecto temporal, entende-se logo de início que, por se tratar

de um game com uma história e uma narrativa, é necessário a divisão entre momento de

jogo e ações (tempo de coordenação) e o tempo narrativo (tempo fictivo). Como Juul e

outros pesquisadores destacam, há uma incompatibilidade entre as ações em tempo

presente do jogar do jogador e a narrativa no passado. No caso do The Walking Dead,

que estipula uma forma de jogo nas escolhas do diálogo durante o tempo fictivo, essa

adaptação só é possível limitando o tempo de escolha a um tempo plausível de acordo

com a narrativa/cutscene.

Quando, no game, o jogador passa a ficar livre e controlar a personagem

principal, ele entra no tempo de coordenação. Aqui, por se tratar de um momento de

gameplay performático/ergótico nítido, ou seja, onde o jogador deve atuar e se esforçar

para desenvolver o game e superar os desafios do mesmo, os desenvolvedores optaram

por dar liberdade de tempo as habilidades de cada jogador, podendo levar o tempo que

for necessário para sua exploração. Teoricamente, o jogador poderia levar uma semana,

em tempo real, para sair de um determinado momento do game, o que não condiz em

nada com a narrativa proposta. Para corrigir tal problema, enquanto o tempo de

coordenação é ilimitado, o tempo do gameworld, que dá ambiência a história, é

congelado. Se, na narrativa, no tempo ficcional, um determinado evento acontece a

noite, embora o jogador gaste dias no tempo de coordenação para ativar tal evento, o

tempo de gameworld sempre manterá a ambiência noturna, parada, para manter a

ligação entre os mesmos.

Os tempos vão se conectando e avançando por gatilhos. No tempo de

coordenação, o jogador deve explorar o cenário, coletar objetos e conversar com outras

personagens, quando ele coleta determinado objeto, conversa com um número x de

pessoas ou se posiciona em determinado local, o game aciona um evento, que pode

permanecer no tempo de coordenação ou passar para o tempo fictivo. O tempo fictivo,

pelas cutscenes ou diálogos, desenvolve a história, desenvolve o tempo, progride, e

então retoma para o tempo de coordenação, que fica amarrado e significativo pelo

auxílio do tempo do gameworld. Essa utilização de gatilhos como despertadores de

eventos e de tempos diferentes, cria uma espécie de corrente temporal, e a progressão

temporal, além de ser indicada nas falas ou narrativa, é compreendida e percebida na

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superposição de eventos um após o outro. O tempo não é apenas informado ao jogador,

ele é emulado pela sequência de eventos.

O tempo também é utilizado como recurso para criar suspense e adrenalina na

história, de acordo com a temática apocalíptica. Durante os diálogos clicáveis nas

cutscnes, por exemplo, o tempo é variável de acordo com o que se está sendo dito, em

uma conversa calma e amigável, o jogador tem um período de escolha de ações maior,

enquanto que se estiver um uma conversa mais agressiva ou que esteja começando uma

briga, esse tempo vai se tornando mais reduzido, e o jogador deve tomar decisões

rápidas, normalmente não sendo as desejadas. Da mesma forma, quando o jogador está

enfrentando um oponente, como um zumbi, quanto mais próximo o inimigo estiver ou

mais machucado o personagem estiver, menor o tempo de sua ação.

O espaço, por sua vez, não só é capaz de produzir sensações como o tempo, mas

sua carga simbólica e significativa é muito maior, pelo fato de ele ser um elemento

visual no game. Os elementos visuais do game, sendo eles texturas, objetos, iluminação

e afins, estão ligados a noção de espaço representado, e atuam como criadores de

cenários e lugares, ou seja, espaços específicos. Esse tipo de espaço é utilizado em The

Walking Dead para dar o tom pós apocalíptico ao game, com destroços por todos os

lados, corpos esparramados, sangue em roupas e objetos, iluminação baixa, tudo

contribuindo para uma visão mórbida dos lugares. Esse espaço também é construído

com o auxílio de outros elementos que não apenas os objetos de cena, digamos assim,

como a aparição de personagens famosos da série de Tv e quadrinhos que indicam que o

cenário do game coincide com o da franquia, assim como nas falas das personagens a

citação de lugares reais, como Atlanta e Macon, cidades norte americanas, situando

também o jogador no mundo do game, que pretende ser uma cópia do mundo real.

Esse espaço representado, o espaço fictivo, como visto, possui um fator retórico

muito ligado ao simbolismo e aos significados, e ele é um fator determinante para aliar a

história narrada ao espaço de jogo, a representação espacial, amarrando a carga

significativa da história ao mesmo. Mas a representação espacial também possui uma

habilidade retórica própria que, como vimos, está ligado a limitação do jogador. Com o

espaço restringindo os lugares que o jogador pode explorar, ele serve como modo de os

desenvolvedores impedirem que a performance do jogador fuja a narrativa. Não se trata

de uma questão de diminuir as opções do jogador, mas te conte-las um universo

plausível de ação. No game, o jogador poderia, em tese, controlar a personagem para

seguir uma estrada e ver onde ela levaria, mas com essa decisão, todo o plot e a relação

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programada e preparada com as outras personagens e os eventos para o local onde eles

estão seria perdido. Sem que seja necessário informar que o jogador não pode fazer essa

ação, é simplesmente negado o espaço, algumas vezes negado de forma coerente com a

narrativa, como um horda de zumbis bloqueando a estrada, ou destroços no caminho,

outras vezes de forma abrupta, simplesmente com paredes invisíveis, onde é mais

importante negar o espaço e manter o jogador em uma linha coesa com a história, do

que inventar um motivo para ele não poder seguir determinada direção.

Deve-se notar que, mesmo o espaço e o tempo funcionando como esses recursos

retóricos, eles não os produzem independentemente. Como pode ser percebido

repetidamente na fala desse autor, ambos atuam como formas de aliar a narrativa e a sua

história ao game e não, necessariamente, de criar a narrativa. Nesse quesito, o The

Walking Dead trabalha muito com o empréstimo comunicacional de outras mídias,

como os recursos de cena do cinema, roteiros, diálogos, entre outros.

A questão que se relaciona ainda com o espaço e o tempo, nos games, é que eles

são simulados e o jogador é colocado para atuar nos mesmos, ou seja, o jogador é

imerso em ambos. Assim, o tempo e o espaço além de casarem a narrativa com o game,

devem funcionar como recursos abarcadores do jogador e tornar a experiência do game

plausível, não apenas a sua história. A redução do tempo de escolha de clique do

jogador em momentos de tensão não é um recurso apenas para ressaltar que na história

ele teria apenas aquele tempo de pensamento, mas é para que o jogador se sinta também

pressionado. Da mesma forma que o jogador ser impedido de avançar por um lugar

devido a destroços não é apenas uma forma de manter o mesmo no espaço da história,

mas de fazer o jogador se sentir sem saída.

6- Conclusão

A ideia para escrever esse artigo e conduzir essa análise parte da relação e dos

sentimentos que o autor teve ao jogar o game The Walking Dead, procurando entender

os recursos que o mesmo dispôs para provocar tais sensações. Devido às limitações do

formato do artigo para a discussão, focou-se em certos elementos específicos, o tempo e

o espaço, mas deve ser feito a ressalva de que muitos outros recursos atuam ao mesmo

tempo, e que todos possuem sua relevância e utilidade na construção do game, da

mesma forma que mesmo a discussão sobre esses recursos não pode ser levada ao seu

total.

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O game The Walking Dead, assim como a empresa desenvolvedora, Telltale

Games, possuem a característica peculiar de focar o game na narrativa e utilizar o

recurso de escolhas para progressão da mesma. Nesse sentido, nota-se que a própria

questão do gênero do game, ou seja, sua proposta, já possui grande influência em como

certos recursos podem ou não ser utilizados. O foco na narrativa que os desenvolvedores

propõem, sendo assim, é de grande relevância nesse artigo, pois a narrativa por si

trabalha com uma história fixa, algo passado, que, para a transfiguração para o presente

de um game, necessita utilizar de forma coesa tanto o tempo como o espaço para se

justificar e se colocar diante o jogador.

Durante a análise, porém, era perceptível a dificuldade de se referir a esses

recursos e a sua aplicação sem mencionar outros. Embora a utilização de espaços e

tempos reduzidos ou a mudança de tempos em momentos diferentes servem como um

recurso retórico em The Walking Dead, essa observação acabou ficando direcionada a

relação estipulada pela narrativa com os mesmos, compreendendo o tempo e o espaço

como auxiliadores na manutenção da narrativa.

O fato de esses dois recursos terem os papéis de auxiliadores em The Walking

Dead não significa que essa é sua função nata. Como dito, o gênero e o estilo do game

condicionaram o uso desses elementos para isso. Outros tipos de games, com outras

propostas, outras interações, podem acarretar em novas utilizações ou ampliar as

possibilidades de ambos.

Uma observação interessante é que esses dois recursos só se apresentam como

recursos comunicacionais e retóricos pois, na mídia, o jogador é colocado como agente.

O fator performático é que liga os videogames a questão da capacidade de simulação,

que por sua vez, possui características próprias comunicacionais, como a criação de

experiências sensoriais, que despertam o uso desses tipos de recursos. Que leva a

mesma ideia também de imersão, quando se diz que um jogador se sente dentro do

game, é porque certos recursos são construídos e utilizados especificamente com esse

propósito, como o caso dos trabalhados aqui.

No caso do The Walking Dead, fica claro que a comunicação e os usos retóricos

ainda são emprestados e se encontram fortemente ligados a narrativa tradicional assim

como o uso da linguagem cinematográfica e do vídeo. A maioria dos recursos do

videogame, da mesma forma que o tempo e o espaço, são acoplados a esse formato

padrão, criando novas combinações, mas mantendo perceptível uma forma de contar

histórias já comum.

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Quando pesquisando e debatendo o tema do videogame, principalmente com um

foco comunicacional e acadêmico, uma das grandes dificuldades é a existência ou ao

menos uma linguagem comum sobre termos, elementos e recursos da mídia. Esse

trabalho, como já dito e referenciado, usa principalmente termos expressos por Aarseth

e Juul, que possuem também suas referências próprias. Deve se entender que mesmo

que haja variações de termos, esse trabalho procura servir como propagador dessa

linguagem, assim como aceita que haja variações e adaptações em outras pesquisas.

Durante a construção desse artigo, outra ideia que ficou clara em relação ao

tempo e espaço nos videogames é que eles são dois elementos manipuláveis. Diferente

do tempo e espaço de um livro ou filme, que é simplesmente criado e apresentado, nos

videogames, esses dois recursos não só podem se alterar em momentos diversos, como

eles podem ser manipulados tanto pelos desenvolvedores, como na criação dos gatilhos

em The Walking Dead, como pelos jogadores, como no tempo infinito de exploração

dos jogadores ou a capacidade de recomeçar um nível, onde o jogador molda o uso do

tempo de acordo com seu padrão de jogo.

Embora tenha ficado claro o reforço que esses elementos têm para a narrativa,

não ficou claro o seu potencial comunicacional no que diz respeito a mensagem em si.

Apesar do espaço fictivo apresentar uma carga significativa considerável, essa carga

advém mais da representação visual em si do que da noção espacial, da mesma forma

com o tempo, onde a percepção de uma mensagem ou de um conteúdo significativo a

partir dele é ainda menor do que o do espaço. Essa relação talvez aponte para o fato de

que os videogames, ou ao menos os recursos aqui analisados, tendem a atuar e serem

melhor aproveitados como elementos de simulação do que como elementos narrativos

ou de transmissão de mensagens.

A comunicação advenha do tempo e do espaço se coloca em um patamar mais

subliminar e, no caso dos videogames, se assimila muito com o tipo de comunicação

que os mesmos conseguem trabalhar com o uso de regras e objetivos. Não se trata de

uma comunicação direta, em se dizer o que está acontecendo, mas usar esses recursos

para estipular o que pode acontecer e como. Quando se delimita um local no espaço e

um tempo no gameworld, por exemplo, o game indica que tudo aquilo que possui de

relevância na história acontece nesse momento e nesse local, mais do que limitadores,

esses recursos atuam como foco ao jogador.

Por fim, espera-se que, com essa breve análise, esse artigo auxilie no debate da

mídia do videogame e que se torne mais claro quais recursos a mídia possui e de quais

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maneiras eles podem ser trabalhados. O game The Walking Dead faz uma junção

interessante de elementos fortemente narrativos, que normalmente colocam o jogador

em um cenário passivo, e elementos de jogabilidade e simulação, que atuam justamente

na direção oposta, tornando o jogador ativo. São justamente esses novos modos de

articular e trabalhar conteúdos que tanto esse artigo quanto a pesquisa desse autor

pretendem mostrar.

Referências

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Analysis. Disponível em: http://hypertext.rmit.edu.au/dac/papers/Aarseth.pdf Acesso

em 20 de fevereiro de 2015.

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Tese de doutoramento em Filosofia. Copenhague: IT Universty of Copenhagen.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 6º ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

JUUL, Jesper. A clash between game and narrative. 1999 Tese de mestrado em jogos

de computadores e ficção interativa. Copenhague: Universty of Copenhagen.

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ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

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informática. 2º ed. São Paulo: editora34, 2010.

THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade: Uma Teoria Social da Mídia. 9º

ed. Petrópolis: Vozes, 2008