Tempos cruzados. Escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista

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RODRIGO TURIN

Tempos cruzados: escrita etnogrfica e tempo histrico no Brasil oitocentista

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Histria. Orientador: Prof. Dr. Manoel Luiz Lima Salgado Guimares.

RIO DE JANEIRO 2009

RODRIGO TURIN

Tempos cruzados: escrita etnogrfica e tempo histrico no Brasil oitocentista

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Histria. Aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:

Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimares (orientador) Departamento de Histria UFRJ

Prof. Dr. Jos Murilo de Carvalho Departamento de Histria UFRJ

Prof. Dr. Valdei Lopes de Araujo Departamento de Histria UFOP

Prof. Dr. Paulo Knauss de Mendona Departamento de Histria UFF

Prof. Dr. Temstocles Amrico Corra Czar. Departamento de Histria UFRGS

RIO DE JANEIRO 2009

Pretender reconstituir um passado do qual se impotente para atingir a histria, ou querer fazer a histria de um presente sem passado, drama da etnologia num caso, da etnografia no outro, tal , em todo caso, o dilema no qual o desenvolvimento delas, ao longo dos ltimos cinqenta anos, pareceu muito freqentemente coloc-las Claude Lvi-Strauss

O que ns vemos das coisas so as coisas. Por que veramos ns uma coisa se houvesse outra? Por que que ver e ouvir seria iludirmo-nos se ver e ouvir so ver e ouvir? Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

AgradecimentosAgradeo a Manoel Luiz Salgado Guimares, pela orientao e pelo convvio sempre estimulante junto ao PPGHIS. De nossos dilogos, trago uma dvida intelectual (e tica) que transcende em muito os limites desta tese. Um agradecimento especial a Temstocles Czar, orientador de minha dissertao de mestrado junto Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Alm de interlocutor sempre arguto, sem seu incentivo provavelmente no teria me aventurado no Rio de Janeiro para a realizao deste doutorado. Franois Hartog, pela acolhida junto EHESS, em Paris. Agradeo igualmente CAPES, por ter me possibilitado com uma bolsa PDEE passar um perodo de meu doutorado realizando pesquisas na Frana. Agradeo aos professores Jos Murilo de Carvalho, Valdei Lopes de Araujo, Temstocles Czar e Paulo Knauss de Mendona por aceitarem participar de minha banca de defesa. Ao professor Jos Reginaldo, agradeo igualmente pela sua presena em minha qualificao, assim como professora Andra Daher, cujos seminrios muito me ajudaram. Um agradecimento s professoras Norma Crtes e Maria Aparecida, pelo acolhimento quando de minha experincia como professor subtituto junto ao Departamento de Histria da UFRJ. Sandra e Gleidis, pelas inmeras ajudas diante dos labirntos burocrticos. Aos meus colegas e interlocutores junto ao PPGHIS, em especial Naiara Damas e tala Byanca. Tase Quadros e Maria da Glria, cujo rigor acadmico e generosidade intelectual me acompanham desde os tempos de Porto Alegre. Agradeo a Graciela Bonassa Garcia, por todo o apoio e estmulo em boa parte dessa trajetria. Tenho uma dvida especial para com Rafael Benthien, Fernando Nicolazzi, Allan de Paula e Helder Cyrelli, com quem desde minha graduao compartilho experincias e expectativas no mundo acadmico e alm. Suas leituras crticas sempre foram inestimveis. Agradeo aos meus ex-alunos e hoje colegas. Presenciar sua motivao diante da reflexo historiogrfica tornou-se uma das experincias mais gratificantes durante minha estadia no Rio de Janeiro. Parafraseando o professor Roberto da Matta, sou grato aos meus alunos, que me tornaram professor. Renata Cristina Pico, com quem compartilhei as agruras finais da confeco da tese. Seu apoio e companheirismo tornaram mais leves as ansiedades do encerramento dessa etapa, assim como as expectativas daquelas que viro.

Dedico esta tese minha famlia, pelo apoio incondicional, e Renata, cujo encontro fez com que meu olhar se tornasse ntido como um girassol.

ResumoEsta tese apresenta um estudo sobre a formao e os usos do discurso etnogfico no Brasil oitocentista, tendo por foco as relaes estabelecidas entre a escrita etnogrfica e o tempo histrico. Privilegiando alguns momentos chaves deste processo, o estudo centra-se nos textos produzidos no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, entre as dcadas de 1840 e 1870; no Museu Nacional, entre as dcadas de 1870 e 1890; assim como nos escritos de autores da chamada gerao de 1870, como Slvio Romero, Jos Verssimo, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. A partir de uma interrogao acerca da separao moderna dos saberes histrico e etnogrfico, pautada em oposies como escrita/oralidade, identidade/alteridade, conscincia/inconscincia e espao/tempo, procura-se reconstituir as conjunes e distenses entre o etnogrfico e o histrico ocorridas no Brasil durante os regimes monrquico e republicano. A partir do estudo desta relao, percebe-se a elaborao de um tempo histrico moderno em seus distintos espectros epistemolgicos e polticos.

AbstractThe present thesis focuses on origin and utilization of the ethnographic speech in Brazil during the 19th century, emphasizing the relationship between ethnographic writing and historical time. The references were selected by favoring key moments of this process, including texts from the Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, produced between 1840 and 1870; together with texts from the Museu Nacional, written between 1870 and 1890. In addition, writings from the authors representing the named 1870s generation, such as Slvio Romero, Jos Verssimo, Nina Rodrigues and Euclides da Cunha, were also analyzed. I attempted to reconstitute the conjunctions and distensions between the ethnographic and the historical observed in Brazil during the monarchic and republican regimens, by questioning the modern division of historical and ethnographic knowledge that are based on oppositions, such as writing/orality, identity/otherness, conscience/unconsciousness, and space/time. By studying such relationship it was possible to envisage the establishment of a modern historical time and the distinct epistemological and political aspects enrolled on its construction.

SumrioAgradecimentos ....................................................................................................................................... 4 Resumo .................................................................................................................................................... 6 Abstract ................................................................................................................................................... 7 Introduo - Histria e Etnografia: oposio e englobamento ................................................................ 9 Captulo 1: A obscura histria indgena: o discurso etnogrfico no IHGB (1840-1870) .............. 18 1.1 Martius, o olhar estrangeiro e o dilema nacional ................................................................... 24 1.2 A escrita da nao: IHGB e os limites da etnografia ............................................................. 28 1.3 A delimitao de um campo de debate. ................................................................................... 33 1.4 O estado de natureza e a ao pedaggica ........................................................................ 40 1.5 A reabilitao do selvagem: decadncia como possibilidade de futuro ................................. 46 1.6 A restaurao jesutica e o medium da linguagem................................................................. 56 1.7 Os limites da arqueologia e a linguagem como chave da histria ......................................... 64 Captulo 2: Alegorias do selvagem: a escrita do outro e a construo de si...................................... 78 2.1 Varnhagen e a vingana da histria ....................................................................................... 78 2.2 Gonalves Dias e o missionrio da civilizao .................................................................. 92 2.3 O selvagem entre dois tempos: ou o ocaso de uma tradio ............................................ 103 Captulo 3 Dos livros ao laboratrio: modos de operao etnogrfica......................................... 120 no Museu Nacional.......................................................................................................................... 120 3.1 Uma nova presena do invisvel. ........................................................................................... 121 3.2 Uma memria disciplinar ...................................................................................................... 125 3.3 Antropologias do Museu Nacional ........................................................................................ 132 3.4 Saber olhar, saber descrever: o controle dos sentidos ......................................................... 142 3.5 Tipos, primitivos, decadentes: categorias etnogrficas, secularizao e tempo histrico ....................................................................................................................................... 154 Captulo 4 A histria profunda da nao: conjunes e distenses entre o etnogrfico e o histrico (1870-1910) ..................................................................................................................................... 168 4.1 Uma nova tessitura da histria: de qual passado devemos falar?........................................ 168 4.2 Representao social e conhecimento da sociedade:............................................................ 175 4.3 Formas e usos do etnogrfico: a etnografia esclarecendo a histria ................................... 180 4.3.1 A quebra com a tradio ............................................................................................... 180 4.3.2 Lendo a histria atravs do folclore ............................................................................. 187 4.3.3 Ver a histria: o primado da observao ................................................................. 199 4.3.4 O controle filolgico e a etnografia lingstica de Capistrano de Abreu ..................... 206 4.4 Estratos do tempo: entre primitivos e civilizados ................................................................. 213 Consideraes finais ............................................................................................................................ 223 Bibliografia.......................................................................................................................................... 226

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Introduo - Histria e Etnografia: oposio e englobamento

Graas s pesquisas de Justin Stagl e de Han Vermeulen, identificou-se o aparecimento do conceito moderno de Etnografia na dcada de 17701. Este conceito teria sido formulado, em sua acepo moderna, pelos historiadores e lingistas August Ludwig Schlzer e Johan Christoph Gatterer, ambos da universidade de Gttingen. Entre os anos 1771 e 1791, mais de quarenta publicaes, entre jornais e livros, apareceram contendo os termos Ethnographie, Ethnologie, Vlkerkund e Volkskund, todos eles ligados de algum modo quela universidade2. O contexto original no qual esses termos foram formulados era o da Histria e, especialmente, das cincias auxiliares a esta, como a Geografia e a Estatstica. Todas elas eram incorporadas e relacionadas numa super-disciplina, a Histria Universal (Weltgeschichte), cujo objetivo era traar a genealogia e as interrelaes entre os diferentes povos3. Trago esses dados apenas para salientar um ponto que me parece fundamental para a compreenso do carter desse novo saber: seu nascimento deu-se no mesmo espao intelectual e pelos mesmos autores que ajudaram a forjar o conceito moderno de Histria4. Tanto a Etnografia como a Histria, portanto, tm em sua origem uma mesma base epistemolgica. Ambas se enrazam num processo de temporalizao e de secularizao de conceitos fundamentais que caracterizam a experincia histrica moderna. O processo que caracteriza a constituio da disciplina da Histria, ocorrido desde fins do sculo XVIII e consolidando-se no decorrer do XIX, foi marcado por uma srie de deslocamentos e por uma configurao nova no espao dos saberes, que incluiu desde a instituio de lugares de produo at a canonizao de certos procedimentos que garantissem a cientificidade do conhecimento do passado. Certas prticas que se encontravam enrazadas em outras tradies e com significados diversos, como a filologia, a numismtica e a

VERMEULEN, Han F. Origins and institucionalization of ethnography and ethnology in Europe and the USA, 1771-1845, in: Fieldworks and Footnotes. Studies in the history of european anthropology. Edited by Han F. Vermeulen and Arturo Alverez Roldn. London e New York, Routledge, 1995. STAGL, Justin. August Ludwig Shlzer and the study of Mankind according to peoples, in: A History of Curiosity. The theory of travel 1550-1800. London e New York: Routledge, 1995. 2 VERMEULEN, Han F. Op. Cit. 3 STAGL, Justin. Op. Cit., pp. 253-254. 4 KOSELLECK, Reinhart. Le concept dhistoire, in: KOSELLECK, Reinhart. Lxprience de lhistoire. Paris: Seuil/Gallimard, 1997.

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10 cronologia, vieram assumir novas posies em um campo epistemolgico prprio Modernidade, no qual o discurso histrico ganha uma centralidade at ento desconhecida5. Para compreender essa centralidade ocupada pela Histria, que passa a agregar em torno de si uma srie de cincias auxiliares, deve-se inseri-la em uma experincia mais ampla, aquilo que podemos designar como uma cultura histrica oitocentista. Pois, essa histria, como nos diz Hartog, tornada para ns, modernos, a Histria em sua evidncia nunca foi, na Grcia e em Roma, mais que um discurso minoritrio, um dentre os que, cada um a seu modo, se encarregavam da memria e contavam a genealogia e os avatares de uma certa identidade6. Nem mesmo com o advento de uma concepo crist do tempo, desde sua formulao por Santo Agostinho, a experincia histrica veio a ocupar um lugar de destaque como elemento de inteligibilidade do mundo e dos homens7. No havia, muito menos, qualquer instituio que abrigasse a historiografia, codificando-lhe regras e legitimando seu modo de produo. Se a primeira cadeira de histria foi criada em 1504, em Mayence, seu nmero no viria a crescer significativamente seno aps meados do sculo XVIII8. justamente no ltimo tero do sculo XVIII que o historiador Reinhart Koselleck identifica o surgimento do conceito moderno de histria9. No caso alemo, esse surgimento expressou-se lingisticamente. Se antes existiam duas palavras para designar a histria, Historie (entendida como a narrativa dos acontecimentos) e Geschichte (os acontecimentos em si), o que passa ento a prevalecer nos textos o uso de Geschichte no singular, denotando no mais o plural as histrias, mas sim um novo singular coletivo (die Geschichte, aGUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Reinventando a tradio: sobre Antiquariado e escrita da Histria, in: Humanas, Vol. 23, n. 1/ 2, 2000, p. 119. Ver tambm MOMIGLIANO, Arnaldo. L'Histoire Ancienne et l'Antiquaire", In: Problmes d'Historiographie Ancienne et Moderne. Paris, Gallimard, 1983, pp .245-293. Para uma anlise da escrita da histria no perodo que antecede sua disciplinarizao, cf. LEVINNE, Joseph. The Autonomy of History. Truth and Method from Erasmus to Gibbon. Chicago: The University of Chiago Press, 1999; GRAFTON, Anthony. What was History? The art of History in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 6 HARTOG, Franois. A histria de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte, UFMG, 2001, p. 18. 7 ARENDT, Hannah. O conceito de Histria Antigo e Moderno, in: Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2003. Hannah Arendt destaca que a similaridade entre os conceitos moderno e cristo de Histria enganosa. Para Santo Agostinho, base do pensamento cristo de tempo, o problema estava em que jamais um evento puramente secular poderia ou deveria ser de importncia central para o homem, p. 98. Ao contrrio, os poderes seculares ascendem e declinam como no passado e ascendero e declinaro at o fim do mundo, mas nenhuma verdade fundamentalmente nova ser jamais novamente revelada por tais eventos mundanos, e os cristos no devem atribuir importncia particular a eles, p. 99. Ver tambm GNTHER, Hrst. Le temps de lhistoire. Exprience du monde et catgories temporelles en philosophie de lhistoire de saint Augustin Ptrarque, de Dante Rousseau. Paris: ditions de la Maison des sciences de lhomme, 1995. Principalmente captulo 1, p. 66. 8 HARTOG, Franois. A histria de Homero a Santo Agostinho. Op. Cit. p. 20. 9 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. Tambm Hanna Arendt, cujas reflexes so, de certa forma, aprofundadas por Koselleck, apontava para esse sbito aparecimento: Em qualquer considerao do conceito moderno de Histria um dos problemas cruciais explicar seu sbito aparecimento durante o ltimo tero do sculo XVIII e o concomitante declnio de interesse no pensamento puramente poltico. Op. Cit. p.111.5

11 Histria). Esta transformao, mais que um simples neologismo, indica uma mudana conceitual profunda, onde o topos da historia magistra deixa de ser operacional e um novo modo de conceber o tempo se impe. Primeiro, o que era um plural de experincias passadas (limitando um espao de experincias possveis) fica compreendido como um processo nico e englobante. Segundo, uma mesma palavra vem a expressar tanto o processo histrico quanto sua narrativa. Portanto, designando ao mesmo tempo o que acontece, a narrativa e a prpria cincia histrica, o substantivo singular die Geschichte veio a representar a histria em si e para si, a histria em absoluto, ou, como Droysen o resumiu: a histria como um saber de si mesma10. Em trabalhos recentes, Franois Hartog props como instrumento heurstico a noo de regime de historicidade11. Esta noo, formulada em dilogo com as reflexes de Arendt e Koselleck, procura servir como um questionamento acerca das diferentes relaes estabelecidas com a temporalidade, os modos como os homens articularam o passado, o presente e o futuro12. Nesse sentido, aquela passagem para um conceito moderno de histria analisado por Koselleck, onde se abria uma fissura entre o espao de experincia e o horizonte de expectativas, pode ser compreendido como o triunfo de um regime moderno de historicidade, no qual o futuro torna-se a referncia que organiza o passado. Este futuro que esclarece a histria passada, este ponto de vista e este telos que lhe do sentido, adquiriu, sucessivamente, com as vestes da cincia, a imagem da Nao, do Povo, da Repblica ou do Proletariado. Se ainda resta uma lio da histria, ela vem, por assim dizer, do futuro e no mais do passado13. Na medida em que o passado j no mais servia como um campo de experincias que circunscrevia a ao humana e a autoridade da tradio tornava-se corroda pela crtica, deixando de funcionar como um legado ou testamento14, os padres de orientao de sentido e10 11

KOSELLECK, Reinhardt. Op. Cit., pp. 41-60. HARTOG, Franois. O tempo desorientado. Tempo e histria. Como escrever a histria da Frana?, Anos 90, n. 7, Porto Alegre, 1997, pp. 7-28. Do mesmo autor: Rgimes dhistoricit. Prsentisme et expriences du temps. Paris: Seuil, 2003. 12 Um regime de historicidade, com efeito, no uma entidade metafsica, vinda do cu, mas um plano de pensamento de longa durao, uma respirao, uma rtmica, uma ordem do tempo, que permite e probe pensar certas coisas. HARTOG, Franois. O tempo desorientado. Op. Cit. p. 10. Essa perspectiva filia-se diretamente a uma abordagem antropolgica da relao com a historicidade. Nesse sentido, pode-se consultar as anlises desenvolvidas em DETIENNE, Marcel (org). Transcrire les mytologies. Paris: Albin Michel, 1994; assim como o dossi da revista History and Anthropology, vol. 16, n. 3, de 2005, organizado por Eric Hirsch e Charles Stewart. 13 HARTOG, Franois. O tempo desorientado. Tempo e histria. Como escrever a histria da Frana?, Op. Ct., p. 9. 14 E nesse sentido o estranho aforismo de Ren Char (Notre hritage nest prced daucun testament) pode ser entendido como uma expresso que no se restringe apenas gerao da Resistncia, mas envolve uma experincia tipicamente moderna.

12 de legitimidade da organizao social e poltica encontram-se diante de um possvel vcuo: experincia que se manifestou, com bastante freqncia, atravs de um sentimento de perda ou desorientao por parte dos indivduos. Curiosamente, a noo mesma de perda o que possibilitaria a sensao vivenciada por esse indivduo moderno de ser, como se expressou Albertine de Broglie, the first who have understood the past15. a conscincia de um distanciamento o que abre a perspectiva moderna sobre o tempo, tornando-o histrico. Ao mesmo tempo, para que a mente humana no vagasse nas trevas, como o temia Toqueville, o conceito moderno de histria, erguido sobre a noo de processo, tornou-se um referente central para a constituio de identidade daquele indivduo desorientado, como tambm uma base de legitimidade para todo pensamento poltico16. em meio a esse contexto mais amplo que a Histria vem a se constituir como uma disciplina, oferecendo um conhecimento verdadeiro e eficaz sobre o passado da sociedade. O historiador, ao se transformar em um profeta voltado para o passado, segundo expresso de Schlegel, tem como atributo estabelecer o presente como a efetivao do que era praticamente necessrio17. A atitude majoritria que configurar o trabalho desse historiador moderno pode ser representada, como destaca Stephen Bann, atravs do projeto defendido por um autor com Lord Acton, cujo interesse era to trace a clear connection between the immanent movement of history towards a progressively greater measure of liberty and the role of historian, who both contributed to and comprehended this process18. Seria atravs da enunciao criteriosa desse profeta dos tempos modernos que o passado, tornado histrico, poderia ser representado em sua maior veracidade. Caberia ao historiador reconhecer e expor

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BANN, Stephen. Romanticism and the Rise of History. New York: Twayne Publishers, 1997, p. 33. Como destaca Hannah Arendt, o sbito aparecimento do conceito moderno de histria foi concomitante ao declnio de interesse pelo pensamento puramente poltico, tpico dos sculos XVI e XVII. Nesse sentido, pode-se ter em Marx o exemplo clssico e mais bem acabado de uma conjuno, essencialmente moderna, entre um pensamento poltico clssico e a legitimidade ltima da Histria. Marx, diz Arendt, combinava sua noo de Histria com as filosofias polticas teleolgicas das primeiras etapas da epoca moderna, de modo que em seu pensamento os desgnios superiores, que de acordo com os filsofos da Histria [Hegel] se revelavam apenas ao olhar retrospectivo do historiador e do filsofo, poderiam se tornar fins intencionais de ao poltica. ARENDT, Hannah. O conceito de histria Antigo e Moderno, Op. Cit. p. 112. Koselleck tambm expressou essa conjuno: Aprs que lhistoire (Geschichte) est devenue un concept rflexive, servant dintermdiaire entre le futur et le pass et tant capable dexpliquer, de justifier ou de lgitimer, sa misson peut tre peru de diffrentes manires. Les nations, les classes, les partis, les sectes ou tout autres groupes dintrts peuvent, doivent mme, se rfrer lhistoire pour auntant que la gnalogie de leur propre position leur confre des arguments juridiques dans le champ daction politique ou social. KOSELLECK, Reinhardt. Lexprience de lhistoire, Op. Cit., p. 70. 17 Utilizo aqui os fragmentos de Schlegel, presentes no Athenum: O historiador um profeta voltado para o passado e O objeto da histria a efetivao de tudo aquilo que praticamente necessrio. SCHLEGEL, Friederich. Dialeto dos Fragmentos. So Paulo: Iluminuras, 1997, pp. 58 e 60. 18 BANN, Stephen. Op. Cit. p. 13.

13 o sentido dos acontecimentos, e ao faz-lo estaria ele contribuindo tambm para a efetivao de seu prprio enunciado, tornando-o objetivamente verdadeiro19. Para ser criteriosa, no entanto, essa enunciao precisava estar garantida por procedimentos seguros de investigao. no bojo desse processo de formao do discurso histrico que se opera aquele deslocamento referido acima, no qual certas tcnicas, por assim dizer, que antes eram dotadas de significados diversos, vm agora se posicionar como cincias auxiliares dessa Histria triunfante. A filologia, por exemplo, cujo

desenvolvimento esteve ligado ao objetivo de estabelecer a autoridade de textos eclesisticos, passa ento a oferecer disciplina histrica um meio privilegiado para se ter acesso historicidade da experincia humana20. O mesmo vale para a arqueologia. Como bem destaca Alain Schnapp, ao passar por um processo de disciplinarizao, a pesquisa arqueolgica deixa de estar vinculada a um estudo erudito voltado Antigidade clssica, para tornar-se um estudo cientfico sobre os restos materiais deixados por um passado longnquo da humanidade. A teoria das trs idades, a classificao tipolgica e a anlise estratigrfica vo ser os pilares desse novo lugar de saber ocupado pela arqueologia, entendida ento como um estudo sistemtico sobre as camadas do passado 21. Devidamente aparelhada por essas disciplinas auxiliares, a Histria passa a requerer o monoplio de enunciao sobre o passado. Sua instrumentalizao a capacitaria para separar o joio do trigo da verdade, atribuindo aos objetos seu fiel contorno, sua plena historicidade. Para isso, certo, foi necessria uma srie de prticas que visavam consolidar o historiador como uma figura reconhecida, com lugares institudos, com uma rede de sociabilidade e, principalmente, com o apoio dos Estados que buscavam usar esse discurso sobre o passado com o fim de garantir sua legitimidade poltica, como o efetivamente necessrio22. O que interessa destacar aqui, contudo, a centralidade mesma do discurso histrico como um discurso fundador, que d ordem e inteligibilidade vida na mesma medida em que a insere em um tempo histrico.

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Cf. ARENDT, Hannah. Op. Cit. p.123. Pierre Bourdieu define esse movimento como efeito de teoria. Ver BOURDIEU, Pierre. Descrever e prescrever. As condies de possibilidade e os limites da eficcia poltica, in: A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1998, p. 125. 20 Sobre o desenvolvimento da filologia erudita e sua posterior relao com o discurso histrico, cf. KRIEGEL, Blandine. Lhistoire lAge classique. La dfaite de lrudition. Paris: Quadrige/PUF, 1996. 21 SCHNAPP, Alain. La conqute du pass. Aux origines de larchologie. Paris: ditions Carr, 1993, pp. 333334. 22 Para o caso francs, cf. GUIMARES, Manoel L. Salgado. Entre amadorismo e profissionalismo: as tenses da prtica histrica no sculo XIX, Topoi, n. 5, Rio de Janeiro, 2002, pp. 184-200. Ver tambm HARTOG, Franois. O sculo XIX e a Histria. O caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

14 Em um mundo onde a historicidade um elemento fundante, condio inalienvel das coisas e dos homens, como pensar os indgenas, esse povo selvagem que seria, aparentemente, sem histria? Como entend-lo imerso em um tempo histrico se eles no deixaram marcas visveis atravs das quais o historiador moderno pudesse remontar s suas origens? Estariam eles condenados a um eterno presente, submetidos a um estado de natureza do qual no poderiam sair, ou, ao contrrio, seriam restos de uma civilizao antiga, ou mesmo degenerada? Que meios poderiam fornecer caminhos indiretos de acesso a essa temporalidade obscura? Pois, se em parte foram esses mesmos selvagens que motivaram a formulao de uma concepo evolutiva e processual do tempo, eles no deixavam de se apresentar ao homem ocidental moderno como um objeto fugidio, sobre o qual concentrar-seia uma longa luta de representaes, com o interesse no apenas de inclu-los naquele tempo histrico universal, como tambm de designar-lhes uma posio e um valor especficos23. Da os inmeros esforos para acessar esse obscuro passado, seja sob o ponto de vista de uma atitude missionria ou de um humanismo iluminista que procuravam incluir essa alteridade num projeto civilizatrio, seja sob um ponto de vista negativo, que refutava a possibilidade dessas populaes participarem de uma mesma conscincia histrica ocidental24. A curiosidade que o homem selvagem desperta para esse pensamento iluminista tem seus efeitos discursivos. Na mesma medida em que a Histria consolida sua centralidade no espao das cincias humanas devido ao fato de atribuir e ordenar historicidade aos homens e s coisas, dela se destacar uma outra forma de discurso, a qual se deter justamente sobre esse objeto que se furta conscincia histrica. Se a Etnografia tambm pode ser colocada, ao lado de outros saberes, como mais uma cincia auxiliar, preciso ressaltar, contudo, que ela manter uma relao bastante diferenciada com a Histria. Como salienta Michle Duchet, o prprio nascimento de um discurso etnogrfico (somando-se a um discurso etnolgico) se deve a uma recusa por parte de autores como Lafitau, Buffon e Rousseau de la non-histoire comme mode dexistence de groupes humains. Lethnographie, lethnologie, lanthropologie sont nes de ces refus et des limites mmes du discurs historique25. Portanto, na prpria constituio da centralidade da Histria dentro de um regime moderno de historicidade, surge esse discurso outro, como em um espelho, simtrico e inverso, que se ocupar por excelnciaSobre o debate travado em torno dos selvagens pela escola de Salamanca e, posteriormente, por Lafitau, e sua relao com o desenvolvimento de uma concepo de tempo evolutivo (mas no evolucionista), conferir o excelente trabalho de PAGDEN, Anthony. La caida del Hombre Natural. Madrid: Alianza Editorial, 1988. 24 Sobre a relao do discurso etnogrfico com um humanismo iluminista, cf. DUCHET, Michle. Anthropologie et Histoire au sicle des Lumires. Paris: Albin Michel, 1995. Sobre uma viso negativa acerca desses povos sem-histria, conferir, da mesma autora, Hegel ou lhistoricit comme mode de la conscience collective, in: Les Partages des Savoirs. Discours historique, discours ethnologique. Paris: La Dcouvert, 1984. 25 DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Op. Cit. p. 19. Grifo no original.23

15 do selvagem, do primitivo, e mesmo do popular, instituindo-os como objetos. Essa partilha, fundada na consolidao de um mesmo espao de saber, acabaria por se mostrar, todavia, uma partilha ilusria, pois o objetivo primeiro do discurso etnogrfico era, justamente, trazer o outro para o mesmo, enquadr-lo, ainda que por vias indiretas, num mesmo plano de inteligibilidade que o discurso histrico. Como afirma Duchet: Le partage entre lhistoire et lethnologie laissait intact le noyau idologique de lune et de lautre, pour la simple raison que ctait le mme26. Com efeito, ainda que com outros mtodos e outros fins, a etnografia colocava em jogo conceitos herdados da Histria. O modo como a Etnografia vem organizar esses conceitos herdados remete a essa posio de duplo. Como j disse, ela se apresenta como um espelho, refletindo uma imagem simtrica e inversa quela sobre o qual o discurso histrico moderno se assenta. Em seu artigo sobre a oralidade em Jean de Lry (onde se apresentariam alguns aspectos pr ou protoetnogrficos), Michel de Certeau apresenta essa relao de forma magistral27. Em Lry, os elementos que posteriormente qualificariam os discursos etnogrfico e histrico ainda no estavam separados. Apesar disso (ou justamente por isso), Certeau desdobra o texto do calvinista francs com o objetivo de apontar as posies antitticas e ao mesmo tempo complementares que regem a economia desses discursos28. A etnografia se caracterizaria pelas noes de oralidade, espacialidade, alteridade e inconscincia, enquanto que a historiografia moderna se organizaria em torno de quatro noes opostas quelas: a escrita, a temporalidade, a identidade e a conscincia29. A Histria teria sua homogeneidade pautada nos documentos da atividade ocidental, atribuindo-lhe uma conscincia que poderia reconhecer. Ela desenvolve-se na continuidade das marcas deixadas pelos processos escriturrios: contenta-se em organiz-los, quando compe um nico texto atravs dosIdem. p. 20. CERTEAU, Michel. Etno-grafia. A oralidade ou o espao do outro: Lry, in: A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. Sobre a questo de uma escrita pr-etnogrfica, conferir tambm LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et le Sauvage. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1990. Para uma anlise da leitura que Certeau realiza de Lry, cf. Corps mystique, corps sauvage: Michel de Certeau, lecteur de Lry , in : LESTRINGANT, Frank. Jean de Lry ou linvention du sauvage. Essai sur lHistoire dun voyage faict en la terre du Brsil. Paris : Honor Champion, 1999. 28 Como definiria Certeau sua pesquisa a respeito dos relatos de viagem: Through a specific investigation (of the series France/Brazil), it seems to me possible to grasp the slow formation of what will receive in 1836 the name os ethnology in other words, to delineate an archeology of ethnology and to show how a science os man is detached, modified, an specified between the rupture of the Renaissance and the end os the Enligthnment. The sucessive definitions of ethnic difference or of superstition, the progressive elaboration of concepts os fable or of myth, the distinctions between writing and orality will require special attention. These points either involve strategic elements of Western culture or enact classification that refer back to the social divisions that organize knowledge, or conversely, are divisions that have structured the social agency of science. CERTEAU, Michel de. Travel narratives of the French to Brazil: Sixteenth to Eighteenh Centuries, in: GREENBLATT, Stephen (ed.). New World Encounters. Berkley: University os California Press, 1993. 29 CERTEAU, Michel. A escrita da histria. Op. Cit. p. 211.27 26

16 milhares de fragmentos escritos, onde j se exprime o trabalho que constri (faz) o tempo e que lhe d conscincia atravs de um retorno sobre si mesma30. J a Etnografia, exilando a oralidade para fora do campo de trabalho ocidental, a transforma em objeto extico. Enquanto que a escrita capaz de reter as coisas em sua pureza (ela arquivo) e de se estender at o fim do mundo (ela colonizadora), a fala selvagem, por sua vez, articula-se num rumor de palavras diludas to logo enunciadas, e, portanto, perdidas para sempre. A partir dessa ciso (escrita/histria x fala/presente), cria-se a estrutura bsica que motivar a operao escriturria da etnografia: o ici (aqui) e o l-bas (l)31. a partir dessa estrutura que se constri uma hermenutica do outro, uma operao que extrai efeitos de sentido da relao com o outro. Ao trabalhar com essa diferena estrutural, essencialmente binria, a escrita exerce um movimento circular que vai do mesmo ao outro, para ento fazer um trabalho de retorno, ou traduo32. Ao final da operao, onde a realidade selvagem traduzida para a verdade ocidental, autorizando um lugar de saber, o tempo produtivo recosturado, o engendramento da histria continua33. Logo, a relao entre Etnografia e Histria se mostra bastante especfica, como irms siamesas operacionalmente separadas. As noes de escrita e oralidade, conscincia e inconscincia, espao e tempo, alteridade e identidade, as quais vem embasar a suposta dualidade histria e no-histria, operam, dentro do espao de saber moderno, uma disposio que poderamos chamar de hierrquica34. Essas oposies se resolvem na medida em que a idia superior, no caso, histria, contradiz e engloba seu contrrio. Simtricas e inversas, Etnografia e Histria tm sua pretensa partilha fundada em um eixo axial constitudo por um l e por um c, uma estrutura operatria na qual o elemento hierarquizado, o discurso etnogrfico e seu objeto, o selvagem, possam retornar e fazer parte de um todo maior, englobante, que o discurso histrico. Lethnographiable pourtant ntait que lhistorifiable largi aux societs sans archives, nos diz ainda Michle Duchet,

Idem, Ibidem, p. 212. Tambm Clifford Geertz sustentar esta fonte de autoridade da etnografia: A capacidade dos antroplogos de nos fazer levar a srio o que dizem tem menos a ver com uma aparncia factual, ou com um ar de elegncia conceitual, do que com sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida (...)- de realmente haverem, de um modo ou de outro, estado l. GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas. O antroplogo como autor. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002, p. 15. 32 Como afirma Hartog, a retrica da alteridade tende a ser dual. HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto. Ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p. 271. 33 CERTEAU, Michel. A escrita da histria. Op. Cit. p. 215. 34 Para uma formulao do conceito de hierarquia, tal como aqui utilizado, cf. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus, Le systme des castes et ses implications. Paris : Gallimard, 1966. Do mesmo autor: O Individualismo. Uma perspectiva antropolgica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.31

30

17 salientando que o discurso etnogrfico no deixa de ser, em sua prpria autonomia, tambm um discurso histrico35.

35

DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Op. Cit. p. 28.

18

Captulo 1: A obscura histria indgena: o discurso etnogrfico no IHGB (1840-1870)Podamos imaginar-nos como os primeiros homens tomando posse de uma herana maldita, que s seria subjugada custa de grande sofrimento e muito esforo. Joseph Conrad, O corao das trevas

Em sua premiada dissertao acerca do modo como deveria ser escrita a histria do Brasil, Karl Friederich von Martius apontava para os diferentes elementos sobre os quais o historiador brasileiro deveria direcionar seus esforos. Segundo o naturalista bvaro, caberia ao historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condies para o aperfeioamento de trs raas humanas, que nesse pas so colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na histria antiga, e que devem servir-se mutuamente de meio e de fim1. O eixo central de seu projeto historiogrfico pautava-se, portanto, na investigao acerca do modo como cada uma dessas diferentes raas teria desempenhado um papel especfico na formao desse pas novo, constituindo sua especificidade no seio da histria universal. Martius dedica, em sua dissertao, uma seo a cada um desses trs elementos apontados, sugerindo os aspectos a serem destacados assim como o melhor modo de faz-lo. A respeito dos portugueses, a quem caberia um lugar de destaque na investigao histrica, Martius indica como objetos importantes de estudo as relaes comerciais mundiais, o sistema de milcias, as faanhas martimas e guerreiras, o estado das cincias, o direito, a poesia, a Igreja, enfim, uma vasta lista de prticas e instituies que caracterizariam o processo de transferncia e implantao da civilizao nos Trpicos. Em relao s outras duas raas, a indgena e a africana, pode-se dizer que representam os elementos estranhos a esse processo, que teriam alguma influncia na formao histrica brasileira. Cada uma delas, no entanto, recebe um tratamento diferenciado, variando o grau de interesse que apresentam para a investigao histrica. Se, por um lado, o estudo desses dois grupos pode oferecer muitas comparaes sobre a ndole, os costumes e usos entre os Negros e os ndios, que sem dvida contribuiro para o aumento do interesse

1

MARTIUS, Karl Friederich von. Como se deve escrever a histria do Brasil. RIHGB: 6, 1844, p. 392.

19 que nos oferecer a obra2, por outro, um destaque particular dirigido aos indgenas, habitantes primitivos do territrio. A estes dedicada uma ateno especial, instigando o naturalista a perguntar-se acerca de sua historicidade questo no levantada para a populao negra. Como ele sugere, o futuro historiador do Brasil, estendendo as suas investigaes alm do tempo da conquista, perscrutinar a histria dos habitantes primitivos do Brasil, histria que por ora no dividida em pocas distintas, nem oferecendo monumentos visveis, ainda est envolta em obscuridade, mas que por esta mesma razo excita sumamente a nossa curiosidade3. Sem marcas visveis de historicidade, segundo os parmetros da cultura histrica oitocentista, essa populao parecia se encontrar em um eterno presente, impossibilitando que o investigador pudesse, atravs dos mtodos propriamente histricos (como os utilizados para a investigao da influncia portuguesa), esclarecer seu passado. Para von Martius, estes grupos humanos constituam um verdadeiro enigma (Rtsel) a ser decifrado, e, mediante procedimentos especficos de investigao, seria uma tarefa de suma importncia ao historiador brasileiro inseri-los em um tempo histrico, tornando-os, assim, inteligveis a essa Razo iluminista4. Para Martius, em suma, o historiador brasileiro no poderia deixar de ser tambm um etngrafo. Esse topos do enigma ou obscuridade da histria indgena se mostraria uma questo recorrente e importante em diferentes autores no decorrer do sculo XIX, permeando as relaes estabelecidas entres dois campos de saberes em constituio: a Histria e a Etnografia. Concomitante elaborao de um projeto historiogrfico nacional, surgia como um problema a ser resolvido a aparente falta de historicidade dos ndios brasileiros. No relatrio anual dos trabalhos do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, escrito em 1841 pelo Cnego Janurio da Cunha Barbosa, a questo vem colocada logo de incio, quando o Secretrio justifica a coleo de manuscritos que a instituio vinha publicando em sua revista:

Notareis nessa coleo que nos temos particularmente ocupado do que diz respeito aos indgenas; porque sendo muito obscura a histria da Terra de Santa Cruz em sua descoberta, e convida investigar o grau de civilizao a que haviam chegado os povos do novo Mundo antes de aparecerem s vistas de seus descobridores, fora era que nos

Idem. Ibidem. p. 406. Idem. p. 392. 4 GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Histria e Natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nao, in: Manguinhos- Histria, Cincias, Sade. Vol. II, Jul-Out, 2000, p. 404.3

2

20costumes dos ndios procurssemos o fio, que nos deve conduzir a tempos muito anteriores.5

Posicionamento parecido ter Varnhagen. Em artigo publicado na mesma revista, versando sobre a importncia do estudo das lnguas indgenas, ele sugeria a criao por parte do IHGB de uma seo de etnografia, a qual se ocupar dos nomes das naes (com a sinonmia quando a houver), suas lnguas e dialetos, localidades, emigraes, crenas, arqueologia, usos e costumes, os meios de os civilizar, e tudo mais tocante aos indgenas as noes geognsticas, e conjecturas geolgicas que possam esclarecer a obscura histria deste territrio antes de seu chamado descobrimento6. Gonalves Dias, por sua vez, em um texto tambm apresentado ao Instituto, reconhecia que pouco se poder dizer de um povo sem meios nem possibilidade de transmitir os seus atos posteridade, - e cujas recordaes no passam alm da memria de um homem, ou das tradies de uma famlia, - tradies, que de ordinrio reciprocamente se contradizem (...). Todavia, seguia o autor, desvendar o enigma da origem desses povos mostrava-se uma questo essencial: questo que sem dvida do mais alto interesse, mas que poderia levar o investigador a perder-se no labirnto inextricvel das pocas primitivas da histria7. A curiosidade de que falava Martius mostrava-se, portanto, um sentimento compartilhado por diferentes letrados, os quais tinham como interesse principal a construo de uma histria nacional. Com o objetivo de melhor entendermos a natureza dessa curiosidade, podemos levantar como hiptese inicial que sua origem se devia a uma recusa por parte desses autores de conceber as sociedades indgenas fora das referncias histricas. Para esses letrados, envolvidos na elaborao do que denominamos conscincia histrica moderna, os limites da alteridade se manifestavam justamente nessa recusa, pois, no processo mesmo de construo de sua tradio, configuravam as condies de possibilidade para se pensar o outro8. Porm, para transformar esta curiosidade em conhecimentoBARBOSA, Janurio da Cunha. Relatrio dos trabalhos do Instituto durante o terceiro anno social, RIHGB, Tomo III, 1841, p. 431. 6 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Sobre a necessidade do estudo e ensino das linguas indigenas do Brazil, RIHGB, Tomo III, 1841, p. 49. 7 DIAS, Gonalves. O Brasil e a Oceania. RIHGB, Tomo XXX, 1867, pp. 7-9. Texto lido na presena do imperador. 8 O conceito de tradio aqui utilizado liga-se s reflexes de LENCLUD, Grad. Quest ce que la tradition? , in : DETIENNE, Marcel (org). Transcrire les mytologies. Op. Cit.; o qual segue, por sua vez, os horizontes abertos por GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Petrpolis: Vozes, 2001. O conceito de tradio, nessa perspectiva, no se refere nem a uma herana imposta aos seus herdeiros, nem a uma simples e livre inveno. A proclamao da tradio necessria, mas no suficiente. Em parte ela uma opo, as pessoas escolhem suas filiaes e referncias de pertencimento; contudo, deve-se levar em considerao tambm a condio inalienvel de ser-afetado pelo passado. Uma5

21 cientfico, em um saber ordenado e, ao mesmo tempo, ordenador, os estudiosos deveriam recorrer a procedimentos especficos de anlise, que no aqueles utilizados comumente (ou, antes, que estavam em processo de discusso e implantao) na investigao da histria nacional9. A organizao desses procedimentos estaria a cargo de uma cincia etnogrfica, capaz de desvendar o enigma representado pelos primeiros habitantes do Brasil. Esta prtica etnogrfica forneceria as regras de investigao e um quadro interpretativo atravs do qual os selvagens, seu objeto por excelncia, pudessem se tornar inteligveis, numa operao que visava sempre relacion-los e posicion-los frente ao processo histrico da nao brasileira.

***

bem conhecido o papel desempenhado pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro na formao de um discurso historiogrfico nacional. Em meio aos debates ali travados, um conjunto de temas e de regras foi estabelecido como componentes discursivos que permitem identificar a construo de uma determinada retrica da nacionalidade10. Fazendo uso desses elementos retricos, os letrados do Segundo Reinado estabeleciam uma relao com o passado pr-Independncia, cujos traos esforavam-se em resgatar, arquivar e publicar em sua revista. Com essa operao, que visava, em um primeiro momento, tornar possvel a escrita de uma futura e necessria histria do Brasil, esses letrados, como j ressaltamos, tambm estavam estabelecendo uma tradio11. Materializada atravs de textos como os de Anchieta, Nbrega, Vieira, Soares de Souza, Gandavo, entre tantos outros, esta tradio permitia tornar inteligvel um passado que deveria ser entendido agora enquanto nacional. Portanto, atravs da leitura, crtica e publicao desses autores coloniais, os letrados do IHGB podiam selecionar e valorizar certas caractersticas que pr-figuravam o devir do Imprio do Brasil, como uma unidade histrica e poltica que se efetivava enquanto realidade no momento mesmo de sua enunciao.

tradio sempre inventada ou recriada tradicionalmente, por assim dizer. A tradio , em suma, uma resposta, encontrada no passado, a uma questo colocada no presente. 9 Sobre os procedimentos de escrita da histria no IHGB e seus debates, cf. CEZAR, Temstocles A. C. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Essai sur une rhtorique de la nacionalit. Le cas Varnhagen. Paris, HESS, 2002. 10 Uso aqui o termo proposto por CEZAR, Temstocles. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Op. Cit. 11 Essa relao que envolvia um trabalho erudito que culminava na transformao desses textos em fontes, pode ser acompanhado em SILVA, Tase Tatiana Quadros. A Reescrita da Tradio: a inveno historiogrfica do documento na Histria geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857). Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

22 Essa relao entre o estabelecimento de uma tradio e a construo de um sentido para a histria do Brasil pode ser estendida, igualmente, para a formao de um discurso etnogrfico no IHGB. Como a passagem j citada de Janurio da Cunha Barbosa evidencia, a publicao de manuscritos na revista do Instituto privilegiava assuntos que dissessem respeitos populaes indgenas. No movimento que orientava a apropriao dos textos coloniais como

fontes, pode-se perceber como os letrados do Segundo Reinado utilizaram-se desses mesmos textos inserindo-os num debate cujos contornos se desenhavam de maneira homloga construo de uma histria e de um projeto para o Brasil. Portanto, assim como a constituio de uma tradio possibilitava a construo de um sentido para o passado nacional, pode-se dizer que essa mesma tradio ofertava aos letrados do IHGB determinadas referncias que tornavam possvel um investimento discursivo sobre as sociedades indgenas As expectativas que configuravam esse debate tiveram ressonncias diretas no modo como os letrados se relacionavam com o passado, ao mesmo tempo em que esse passado limitava e possibilitava as justificativas de ao no presente12. O objetivo deste captulo analisar o modo como o saber etnogrfico foi construdo dentro do IHGB e qual a relao que manteve com o discurso histrico em formao. O argumento que procurarei apresentar centra-se em dois pontos. Primeiro, que a formao da etnografia como um discurso relativamente autnomo no IHGB, seguindo modelos de investigao e de enunciao especficos, se caracterizou por uma restrio do objeto etnogrfico na figura do selvagem. Esta restrio, longe de ser necessria, foi uma opo ou um constrangimento diante de um projeto de nao no qual a tematizao de um povo brasileiro, homogneo e indiferenciado, como fiador da soberania nacional, no interessava ser colocada. Enquanto que em outros pases europeus, como aponta Anne-Marie Thiesse, o etnogrfico, em sua expresso folclrica, filiou-se desde cedo ao investimento de criao de elementos simblicos da nao moderna, no Brasil Imperial ele no apenas significou um silenciamento quanto aos escravos, como tambm no se estendeu ao popular13. Esta restrio do objeto etnogrfico remete ao prprio projeto historiogrfico do IHGB, cujo interesse maior era estabelecer um elo de continuidade civilizadora entre o Estado Portugus e o Imprio do Brasil. A legitimidade da nao que se procurava construir estaria vinculada antes a esse papel civilizador desempenhado pelo Estado, construtor da ordem, do que pela busca das origens de um povo brasileiro.

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KOSELLECK, Reinhart. Espao de experincias e horizontes de expectativas: duas categorias histricas, Futuro passado, Op. Cit., pp.305-328 . 13 THIESSE, Anne-Marie. Fices criadoras : as identidades nacionais, Anos 90, Porto Alegre, v. 15, 2001.

23 O segundo ponto do argumento diz respeito ao modo de atuao desse saber etnogrfico, onde se apresenta um segundo nvel de relao com o discurso histrico. Como os exemplos acima indicam, o topos do enigma da histria indgena foi um motivo retrico constante para os letrados do IHGB. A formao do discurso etnogrfico constituiu-se justamente como um modo de atribuir historicidade s populaes indgenas. Um investimento que possibilitava tanto a construo de uma inteligibilidade sobre aquele objeto, como a elaborao de argumentos em torno das polticas a serem adotadas. De um lado, o resgate de um passado prprio ao selvagem se situava em uma discusso cujos referentes eram os definidores de uma concepo de humanidade; mais especificamente, de um homem liberal cristo, designado por conceitos como propriedade, religiosidade e liberdade. A alteridade indgena era, desse modo, domesticada atravs da aplicao de conceitos oriundos da tradio formadora daquela sociedade imperial14. De outro lado, a busca do passado indgena tornava-se uma arena de luta na medida em que ofertava argumentos cuja validade estaria pautada na legitimidade social atribuda Histria. A sustentao de um juzo acerca da possibilidade ou no de integrar as populaes indgenas a um projeto de nao e, por conseguinte sua histria, dependia do passado que fosse trazido luz, assim como dos modos de provar a sua veracidade. essa funo que caberia etnografia: fornecer um discurso sbio sobre o passado de sociedades que, aparentemente, seriam desprovidas de histria. Ainda que operacionalmente separados, os discursos etnogrfico e histrico mantiveram desde sua constituio dentro de um espao de saber moderno uma relao bastante prxima e, como vimos, mesmo complementares. No caso brasileiro, como o percebeu Martius, essa relao se mostraria intensificada devido necessidade desses letrados em lidarem com as alteridades internas ao Estado nacional. O historiador brasileiro tambm deveria ser um etngrafo, ainda que por constrangimentos epistemolgicos e polticos prprios ao Segundo Reinado esses saberes tivessem que ocupar espaos distintos. De todo modo, as respostas que a etnografia pudesse dar questo da obscura histria indgena teriam implicaes diretas tanto no processo de construo de uma histria nacional, como nas aes que o Estado deveria realizar em relao a essa alteridade interna. Envolvia, portanto, uma luta de representaes. Para uma mesma questo, houve diferentes respostas.

14

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Op. Cit.

24

1.1 Martius, o olhar estrangeiro e o dilema nacional

Ao analisar as relaes estabelecidas no Brasil oitocentista entre Etnografia e Histria, uma questo surge logo de incio: como pensar a dualidade aqui/l para o caso brasileiro? A formao de um discurso etnogrfico foi, em parte, motivado pelo contato do mundo europeu com a selvageria Americana e Africana15. A operao que resultava em um lucro de signos (Certeau) estava pautada justamente nessa fronteira entre o eu e o outro que possibilitava um trabalho de retorno. O prprio von Martius, como um homem fronteira, estabeleceu sua narrativa sobre essa estrutura16. As experincias de ida e de volta aparecem como momentos importantes de sua escrita. Tout rcit de voyage en recouvre un autre, linfini17. De fato, o olhar do viajante jamais se realiza de forma autnoma e independente. A realidade, como bem observou Halbwachs, que jamais estamos ss18. Fazer a viagem requer sempre uma preparao prvia por parte do viajante, que, ao se colocar na expectativa de ir ao encontro do desconhecido e do longnquo, no deixa de reforar os laos que o ligam ao solo de origem19. Martius e sua comitiva, antes de partirem em direo Amrica, passam por Veneza, cuja viso evoca a involuntria recordao de imortais poetas e artistas da Europa. Naquela clebre cidade, como destaca Guimares, eles resgatam a memria de cones de uma ptria europia, a qual os viajantes naturalistas vo deixando para trs e cujos traos e vestgios buscaro reconhecer a cada nova etapa da viagem: Gibraltar, primeira etapa da viagem, tambm para von Martius a evocao dos limites das realizaes da Antigidade; o sul da

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Para uma anlise do lugar da frica nesse discurso, cf. JACQUES, T. Carlos. From savages and barbarians to primitives: Africa, social typologies, and History in eighteenth-century french philosophy, History and Theory, vol. 36, 1997, pp. 190-215. 16 Hartog define esses homens fronteira, para a experincia grega, como aqueles que delineiam os contornos duma identidade grega, compreendida como esse limite ao qual no corresponde, em realidade, nenhuma experincia. HARTOG, Franois. Memria de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grcia Antiga. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 15. 17 LESTRINGANT, Frank. Jean de Lry ou linvention du sauvage. Op. Cit. p. 14. 18 Mais nos souvenirs demeurent colletifs, et ils nous sont rappels par les autres, alors mme quil sagit dvenements auxquels nous seul avons t ml, et dobjets que nous suls avons vus. Cst quen ralit nous ne sommes jamais seul. HALBWACHS, Maurice. La mmoire collective. Paris : Albin Michel. 1997. p. 52. Convm acrescentar com o autor que nossas memrias s podem ser coletivas na medida em que as categorias de percepo tambm o so, remetendo s referncias prprias tradio ou, nas palavras de Halbwachs, aos quadros sociais a que o sujeito pertence. 19 Acompanharei, aqui, o artigo de GUIMARES, Manoel L. Salgado. Histria e Natureza em von Martius. Op. Cit.

25 Espanha, um prenncio do que os aguardava do outro lado do Atlntico20. O olhar do viajante, na mesma medida em que se desloca do conhecido ao desconhecido (ou ao esperado), vai se filiando a uma tradio, a um lugar de pertencimento21. Enquanto percorre o espao, ele no deixa de remeter a um tempo e a uma memria, que a sua. Chegando Amrica, eles logo se deparam com a alteridade. Por mais que a praa do Rio de Janeiro se assemelhasse em alguns aspectos com as cidades europias, principalmente em sua arquitetura, a presena negra vem denunciar aos olhos do viajante, de imediato e por surpresa, que eles se encontram em um outro mundo: O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha em um estranho continente do mundo, sobretudo a turba variegada de negros e mulatos (...). Esse aspecto foi mais de surpresa do que de agrado. A natureza inferior, bruta, desses homens importunos, seminus, fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e as formas obsequiosas da sua ptria22. Que contrastes no teriam vivenciados esses viajantes ao deixarem Veneza, cidade-smbolo de uma esttica ocidental, para encontrarem em uma cidade colonial aquela profuso de negros e mulatos! Os costumes delicados e as formas obsequiosas de sua ptria, frutos de um longo processo civilizador, tornavam aquele cenrio como algo repulsivo a seus sentidos23. A partir desse primeiro choque inicial, o momento de espanto, segue-se toda uma trajetria, onde o Brasil, de suas cidades litorneas s tribos incrustadas no serto e nas magnficas florestas tropicais, descortina-se, pela escrita, aos olhos treinados desses viajantes. Do choque, passa-se inteligibilidade, sob a mediao do olhar ordenador do naturalista24. A partida, a estada e, no menos importante, a volta. Para que essa economia da viagem produza efeitos, faz-se necessrio o trabalho de retorno25. Em 23 de agosto de 1820, aps trs anos de percurso, Martius avista o porto de Lisboa. Estava novamente em casa. Ao retornar de um mundo onde a natureza reinava soberana, influindo fortemente na constituio daquela sociedade, avistava-se agora com o seu oposto: Vindos de um pas ao20 21

Idem, Ibidem, p. 397. LNCLUD, Grard. Quand voir, cest reconnatre. Les rcits de voyage et le regard anthropologique, in: Enqute, N. 1, Paris, 1995. Como destaca o autor, entre o olho e o objeto sempre se interpe um esquema conceitual antecipativo que organiza a viso. 22 Apud: GUIMARES, Manoel L. S. Histria e Natureza em von Martius. Op. Cit. p. 397. 23 Vale notar que essa mesma experincia de choque foi vivenciada por outro viajante que teria uma importncia fundamental no sculo XIX, Ferdinand Denis. Como destaca Costa Lima, a repugnncia que lhe causaram os costumes da sociedade tropical, provoca uma curiosa seleo: impressiona-lhe apenas a natureza, a ela que dedica seu entusiasmo e nela que encontra o meio para a autonomizao da literatura. LIMA, Luiz Costa Lima. O Controle do Imaginrio. Razo e Imaginao nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989, pp. 133-134. 24 PRATT, Mary Louise. Cincia, conscincia planetria, interiores, in: Os olhos do Imprio. Relatos de viagem e transculturao. Bauru: Edusc, 1999. 25 HARTOG, Franois. Memria de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grcia Antiga. Op. Cit., p. 27.

26 qual falta a histria, vamos-nos transportados por entre monumentos histricos de um povo laborioso; sentamo-nos de novo na Europa... e na manh seguinte, profundamente emocionados, pisamos sobre solo ptrio em sentido lato26. O reencontro com o solo europeu significava um retorno histria, aos marcos de civilizao que formavam sua identidade. A mesma ptria que fora evocada no momento de contato e de choque frente alteridade, agora novamente experimentada. Mas ser que, de fato, seria a mesma ptria? De qualquer forma, o trao que a distingue se torna mais claro: o lugar da histria. L, como destaca o viajante, o passado visvel e, mais do que isso, a base da constituio de uma identidade e de uma memria, que a sua. Do mundo da natureza, onde faltava a histria, ao mundo da cultura: Martius agora testemunha de uma realidade selvagem que pode ser relatada conscincia europia. Seu texto circular, as fronteiras sero reconhecidas, o engendramento da histria continua27. Mas como os brasileiros, esse recm criado sujeito de uma nacionalidade, poderia se apropriar do discurso etnogrfico e, com sua estrutura binria, fazer um trabalho de retorno28? Certamente, no haveria nenhum porto no velho continente para o qual pudessem voltar e se sentir em casa. Como, ento, delimitar as fronteiras? Como estabelecer seu objeto? Seria este concentrado apenas nos selvagens? Mas no seriam estes tambm, na sua condio de primeiros habitantes, brasileiros? O l no seria parte constituinte do c? E se assim fosse, no anularia aquele eixo axial sobre o qual se fundamenta a operao etnogrfica? Dever-se-ia encontrar um meio de diluir as fronteiras, tornando o outro parte do ns, ou, ao contrrio, caberia justamente um investimento de delimitao dessas fronteiras para que as partes no se confundissem? O prprio Martius, em sua dissertao premiada pelo IHGB, reconheceria e proporia algumas solues a esses dilemas, delineando um projeto historiogrfico (e etnogrfico) que

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Apud: GUIMARES, Manoel. Histria e Natureza em von Martius, Op. Cit. p. 403. A respeito dessa experincia da viagem em Martius, cujo investimento em conhecer o outro est voltado tambm para um retorno sobre si, pode-se encontrar sua maior expresso na Viagem de Goethe Itlia, publicada originalmente em 1816. Em seu relato, assim se expressa o clebre viajante quando se encontrava finalmente na cidade desejada: Agora posso confess-lo; ultimamente, eu sequer podia ver um livro em latim ou um desenho de uma regio qualquer da Itlia. O desejo de ver este pas estava mais do que maduro; satisfeito esse desejo, a perspectiva de rever os amigos e a ptria volta agora, do fundo do corao, a me enternecer, e meu retorno faz-se desejvel, tanto mais porque estou certo de que levo comigo tantos tesouros no para uso e proveito prprio, mas para que sirvam de guia para mim e para outros tambm, e pela vida toda. GOETHE, J. W. Viagem Itlia. So Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 148. 28 Como destaca Mattos, somente com os eventos mais prximos emancipao poltica de 1822 que a noo de brasileiro parece se encontrar pela primeira vez com a de Brasil, anunciando a constituio de um corpo poltico. MATTOS, Ilmar R. de. Um Pas Novo: a formao da identidade brasileira e a viso da Argentina, in: Brasil-Argentina. A viso do outro. Braslia: Funag, 2000, pp. 57-95.

27 possibilitasse subsumir as diferenas em uma suposta e almejada unidade-plural29. , em parte, na busca desse princpio unitrio, condio inalienvel do conceito moderno de nao, que os letrados do IHGB concentraro seus esforos. No entanto, o referente maior que garantiria a legitimidade da unidade nacional segundo os parmetros modernos, identificados com a Revoluo Francesa, permaneceria cindido, marcando a especificidade da relao entre histria e etnografia no Brasil imperial. A dificuldade, ou mesmo impossibilidade de delimitar simbolicamente o povo como fiador da soberania nacional30, teria como efeito correlato a restrio do objeto etnogrfico na figura do selvagem, caracterizando seu discurso em torno do humano e seus contornos (entendido em relao a conceitos como propriedade e liberdade). Toda a discusso sobre a questo da catequese e civilizao, mais que sinalizar o interesse do Estado na soluo do problema terra-trabalho, deflagra tambm esses limites31. A malta existiria apenas como objeto dos registros policiais, na tentativa do Estado Imperial de consolidar uma Ordem, ou como personagem esquiva e fragmentada de alguns relatos esparsos32. O negro, por sua vez, objeto comum dos textos etnogrficos produzidos na Europa, seria concebido aqui apenas na sua condio de escravo, ocupando os discursos poltico e administrativo e constituindo um enorme e ruidoso silncio dentro do IHGB33. J o ndio, alm de se tornar emblema do processo de autonomizao da literatura

Refiro-me, aqui, anlise de Benveniste acerca do pronome ns. Segundo o lingista, la personne verbale au pluriel exprime une personne amplifie et diffuse. Le nous annexe au je une globalit indistincte dautres personne. BENVENISTE, mile. Problmes de linguistique gnrale. Paris : Gallimard, 1966, p. 235. 30 Cf. DUSO, Giuseppe. Revoluo e constituio do poder, in: DUSO, Giuseppe (org). O poder. Histria da filosofia poltica moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. Segundo o autor, Igualdade e liberdade, as idias que esto se afirmando, devem determinar um povo homogneo, uma nao, na qual no h mais lugar para privilgios, nem diferenas, seno sociais, ligadas diviso do trabalho, diferenas que so funcionais utilidade comum, p. 210. Sobre as dificuldades da Amrica espanhola, mas tambm portuguesa, em adotar esses critrios diante da pluralidade de grupos sociais, conferir as anlises de Jos Carlos Chiaramonte e de Franois-Xavier Guerra presentes in: JANCS, Istvn (org). Brasil: Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec, 2003; assim como o debate travado por PALTI, Elias. El tiempo de la politica, el siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Silgo Veinituno, 2007 31 Sobre a relao entre discurso etnogrfico e o problema terra-trabalho durante o Imprio, cf. CUNHA, Manoela Carneiro da. Poltica indigenista no sculo XIX, in: Histria dos ndios no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1992, pp. 133-154. 32 Alm de relatos de viajantes, como o caso de Saint-Hilaire, que havia afirmado a existncia do Brasil e a inexistncia do brasileiro, h casos como o de Gonalves de Magalhes, em sua memria sobre a Balaiada, que se referiria ao tipo popular que habitava aquela regio. MAGALHES, Gonalves de. Memrias da Balaiada. Novos Estudos CEBRAP, n. 23, maro, 1989. importante notar, desde j, que foi dessa experincia que Magalhes retira o exemplo, posteriormente analisado, que provaria a convertibilidade imediata do indgena aos cmodos da sociedade brasileira. 33 Como analisarei em outro captulo, o negro como problema etnogrfico s aparecer no final do sculo, na pena de Slvio Romero e Nina Rodrigues. Este, por exemplo, falar do problema o negro no Brasil. RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. Braslia: UNB, 2004, p. 24.

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28 brasileira e de tambm ocupar um lugar nos relatos da administrao do Estado, ocuparia, sozinho, a condio de objeto etnogrfico34. Existindo separados no campo social, esses elementos tambm ocupariam lugares diferenciados de enunciao. Melhor dizendo: atribuindo lugares diferenciados de enunciao a esses elementos, poder-se-ia tambm garantir sua distino e hierarquizao no campo social35. No decorrer do processo de consolidao do Estado Imperial, como destaca Ilmar Mattos, competia construir a Nao, devendo-se entender por tal a preservao da existncia da diferenciao entre pessoas e coisas, por um lado, e da desigualdade entre as pessoas, de outro, de tal forma que se uns eram considerados cidados e sditos, outros deveriam ser apenas sditos36. A preservao dessa diferenciao entre pessoas e coisas, assim como da desigualdade entre pessoas, requeria uma distino homloga no campo discursivo. O que me interessa destacar de tudo isso o fato de que nem histria nem etnografia caberia a construo do povo como elemento simblico, legitimador da soberania nacional. O problema da soberania, tal como colocado no Imprio, estava pautado justamente no governo e no equilbrio das diferenas, cuja instncia absoluta de ao decisria cabia ao monarca, atravs do poder moderador. A relao entre os saberes, nesse momento, ser profundamente marcada por esses limites, desenhados na prpria constituio do Imprio do Brasil e suas diferentes ordens hierrquicas. Enquanto o saber histrico era formado tendo em vista a reconstruo de um processo civilizador, focalizado na consolidao do Estado e na centralizao monrquica, o saber etnogrfico, por sua vez, teria sua formao marcada pela busca de historicidade das populaes indgenas, possibilitando uma chave de leitura com a qual pudessem posicion-las no corpo social em construo.

1.2 A escrita da nao: IHGB e os limites da etnografia

O debate etnogrfico no perodo imperial concentrou-se, basicamente, nos limites do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, fundado em 1838. Se a criao de uma seo dedicada exclusivamente s pesquisas arqueolgica e etnogrfica s ocorreu em 1847, efetivando-se em 1851, a presena de artigos e debates sobre essas temticas remonta s suasSobre a presena dos indgenas nesses relatos e sua relao com o discurso etnogrfico, cf. KODAMA, Kaori. Os filhos da brenhas e o Imprio do Brasil: a etnografia do Instituto Histrico e Geogrfico do Brasil (18401860). Tese apresentada ao Programa de Histria Social da Cultura da PUC-Rio, 2005. 35 BOURDIEU, Pierre. A fora da representao, in: A economia das trocas lingsticas, Op. Cit., pp. 107116. 36 MATTOS, Ilmar R. de. Tempo Saquarema. So Paulo: Hucitec, 2004, p. 165.34

29 primeiras reunies37. Como indicam os textos de autores como Janurio da Cunha Barbosa e Raimundo da Cunha Matos, scios-fundadores do Instituto, a elaborao de um projeto historiogrfico para a nao brasileira estaria diretamente vinculada reflexo sobre a condio do selvagem e qual a posio que ele deveria ocupar nesse empreendimento. O modo como essa reflexo foi configurada diz respeito prpria formao de um discurso etnogrfico no Brasil, delimitando suas caractersticas e restries. A criao do IHGB, proposta por integrantes da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional (SAIN), visava a construo dos referentes simblicos em relao aos quais o Brasil e o brasileiro poderiam e deveriam ser pensados, garantido-lhes tanto um passado quanto um futuro. Aps o processo de emancipao e em meio aos debates entre Exaltados, Moderados e Restauradores, que movimentaram as dcadas de 1820 e 1830, o IHGB veio a se constituir como mais um locus do exguo espao pblico em constituio, onde os projetos polticos procuravam ser legitimados por meio de uma acirrada luta de representaes, envolvendo noes como Estado, sociedade, liberdade, revoluo, representatividade, etc38. Sua consolidao como um lugar de saber, no decorrer das dcadas de 1840 e 1850, convergiu com o processo de centralizao do Estado e o abrandamento das discusses referentes s identidades polticas, tal como ocorrido nos anos ps-Independncia. Nessa transio entre um debate sobre o brasileiro-cidado para a construo de uma nao brasileira, como destaca Ivana Lima, interpe-se a construo de um Estado que parece tomar para si a tarefa de conceber a identidade nacional 39. Essa mudana, que define o papel a ser desempenhado pela instituio, concretizada quando sua sede instalada no pao Imperial, em 1849, tornando-se o Imperador seu patrono e freqentador assduo. A maioria dos scios-fundadores do Instituto ocupava funes no aparelho do Estado, sendo parte significativa nascida ainda em Portugal e vinda para o Brasil durante o processo de interiorizao da metrpole40. Pertenciam, em grande parte, aos quadros polticos moderados, compartilhando, como destaca Marco Morel, um liberalismo muito prximo

A aprovao da criao de uma seo de etnografia foi publicada na Revista do Instituto, em 1847. A seo seria dirigida por Manoel de Arajo Porto-Alegre (como diretor da seo de arqueologia) e composta por Francisco Freire Allemo, Jos Joaquim Machado de Oliveira e Joaquim Caetano da Silva. RIHGB, Tomo 9, 1847, pp. 433-444. 38 MOREL, Marcos. As transformaes dos espaos pblicos. Imprensa, atores polticos e sociabilidades na cidade imperial. (1820-1840). So Paulo Hucitec, 2005. , MATTOS, Ilmar R. de. Op. Cit. , HOLANDA, Srgio Buarque de Holanda. A herana colonial sua desagregao, in: Histria Geral da civilizao brasileira. II. O Brasil Monrquico. O processo de emancipao. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993. 39 LIMA, Ivana S. Cores, Marcas e Falas: Sentidos da mestiagem no Imprio do Brasil. Arquivo nacional, 2004, p. 138. 40 WHELING, Arno. O historicismo e as origens do Instituto Histrico, in: A inveno da Histria: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro, EUGF/EUFF, 1994.

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30 quele defendido por Guizot, no qual era atribudo ao Estado um papel de destaque na consolidao de uma ordem, transformando a poltica em objeto da Razo, e no das paixes41. Essas caractersticas contribuiriam para que a elaborao de uma identidade diferenciada para a nao brasileira no implicasse em uma concepo de ruptura radical com a antiga metrpole. Ao contrrio, ainda que houvesse um investimento em estabelecer 1822 como um marco fundador (dizia-se mesmo desse evento que seria a nossa Revoluo), o projeto historiogrfico que promoviam visava estabelecer a nova nao brasileira enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonizao portuguesa42. Ao mesmo tempo em que se enunciava a nao, mediante a formulao de conceitos e a produo de saberes como a geografia e a histria, implantava-se tambm um modelo de prtica social, vinculada aos eruditos que ali circulariam, com suas regras de comportamento, suas etiquetas, seus ritos, suas trocas e alianas, que em boa parte pode ser compreendido como uma fuso particular de elementos provindos dos eruditos do antigo regime com a figura do philosophe moderno, iluminista, para quem a Razo (impessoal e atemporal) seria o nico critrio de enunciao. Esta condio mista, por assim dizer, foi expressa, em parte, no prprio modelo de instituio adotado: a Academia. Aqui, no a simples capacidade do sujeito que o legitima a fazer parte da associao, como no caso das Universidades europias que ento se estabeleciam sob um modelo meritocrtico. Eram necessrios, antes, qualificativos que remetiam posio do indivduo na sociedade; as relaes sociais nas quais estava inserido; os capitais (financeiro, poltico, simblico) que possua. Integrar a instituio era uma forma de marcar uma distino, consagrar uma diferena concretizada num savoirfaire, distinguir, enfim, aquele grupo como a boa-sociedade. No deixava de ser, igualmente, no caso brasileiro, um meio de conquistar e acumular capital, um modo de acesso nobilitao atravs dos servios prestados Coroa e, por conseguinte, nao43. Alm de simplesmente consagrar um grupo que procurava impor uma dominao, a associao possibilitava tambm uma expanso condio necessria tanto para a efetivao dessa dominao, como para que o regional pudesse se projetar enquanto nacional44. Consagrao e reproduo, portanto, vieram a configurar esse lugar de saber, fornecendo um modelo do cidado-esclarecido atravs do qual a elite imperial poderia se espelhar,41

MOREL, Marco. Op. Cit. Sobre o liberalismo de Guizot, ver o excelente livro de ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985. 42 GUIMARES, Manoel L. S. Nao e Civilizao nos Trpicos, Op. Cit., p. 6. 43 Esse o caso, por exemplo, de Varnhagen e Gonalves de Magalhes, ambos agraciados com ttulos de nobreza como consagrao de seus trabalhos. 44 O artigo 2 de seu estatuto prev: Procurar sustentar correspondencias com sociedades de igual natureza; e se ramificar nas provincias do Imperio para mais facil desempenho dos fins que se prope. RIHGB, Tomo 1, 1839, p. 22.

31 construindo a prpria imagem em contraposio ao vulgo, ao escravo e, igualmente, ao selvagem. No entanto, dizer que o IHGB, enquanto Academia, se pautava por regras de sociabilidade provindas das sociedades de corte no implica em afirmar a inexistncia de cdigos particulares, debates internos, modos de operar intrnsecos. Ainda que as homologias estruturais entre o espao do IHGB e os demais espaos socais (poltico e econmico) tenham sido bastante estreitas (e a prpria presena do Imperador nas reunies atesta essa re-produo de uma ordem social)45, no se deve negligenciar as caractersticas que especificavam aquele locus de atuao e os dispositivos intelectuais e retricos ali acionados, o que implica, tambm, no atribuir s defesas de posies assumidas pelos participantes meros reflexos ou, ainda, simples compensaes de alguma ordem sobre-determinante46. Afinal, toda argumentao tem como condio bsica de persuaso a pressuposio e a projeo de um auditrio, em relao ao qual ela se constri47. No caso em questo, como se tratava da produo de saberes que se queriam orientados por uma Razo universal e a-temporal, nos parmetros iluministas, a enunciao deveria se basear em cdigos que, em teoria, poderiam ser reconhecidos como reais, verdadeiros e objetivos tanto por adversrios polticos como por pares estrangeiros48. Havia, portanto, regras especficas a serem seguidas, critrios pertinentes aos domnios de saberes em construo, e eram estas regras, assim como a crena na sua validade, que tornava tais saberes eficazes, capazes de exercer efeitos. A eficcia desses saberes estava concentrada em seu potencial criador. Era atravs deles que os letrados procuravam delimitar os contornos espaciais e temporais da nao. A coleta e crtica de documentos, seguindo os parmetros da crtica histrica, e a divulgao de um iderio nacional por meio da histria e da geografia seriam os pilares de atuao do Instituto. Atravs dessas aes, tornava-se crucial, como o exprimia Janurio da Cunha Barbosa em seu discurso inaugural, a nacionalizao da histria, o que se faria tanto pela purificao das produes antecedentes, quanto pelo esforo coletivo de coleta e organizao dos documentos que possibilitassem a escrita da histria sob um ponto de vista

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GUIMARES, Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteo de sua Magestade Imperial: o Instituto Histrico e geogrfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, n. 388, 1995. 46 Como tambm destaca Guimares: Os critrios de admisso, ainda que no deixassem de considerar as relaes sociais e pessoais, passaram a se pautar por parmetros mais objetivos, ligados ao trabalho em uma das reas de atuao do instituto. GUIMARES, Manoel. L. S. Nao e civilizao nos Trpicos. Op. Cit. p. 10. 47 PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentao. A nova retrica. So Paulo: Martins Fontes: 2005. 48 Como destaca ainda Perelman, cada cultura, cada indivduo tem sua prpria concepo de auditrio universal, e o estudo dessas variaes seria muito instrutivo, pois nos faria conhecer o que os homens consideraram, no decorrer da histria, real, verdadeiro e objetivo. Idem, Ibidem, p. 37.

32 eminentemente nacional49. O IHGB apresentava-se, assim, como um centro de clculo na terminologia de Bruno Latour , efetivando um processo de triagem desses materiais que ali se tornariam signos, inscries de um determinado saber50. A instituio das fontes, condio fundamental para a nacionalizao do saber histrico, se processaria em torno de registros escritos, como atas oficiais e relatos de viajantes. Com isso, instaurava-se, ou melhor, reproduzia-se a ciso entre a oralidade e a escrita, atribuindo um valor especial a esta ltima como domnio da histria. sobre os traos escritos, resgatados nas diversas provncias assim como em arquivos europeus, que o historiador nacional poderia reconstruir o processo de implantao da civilizao nos trpicos, resgatando os grandes feitos do passado e estabelecendo uma identidade temporal e territorial para o Imprio do Brasil. Este esforo de construir uma identidade histrica para a nao implicava em buscar uma certa homogeneizao da viso de Brasil no interior das elites brasileiras51. Tal homogeneizao, porm, como j nos referimos, se mostraria problemtica. Nesse processo de atribuir um perfil histrico nao, entrava como questo incontornvel a atribuio de um lugar a esses outros que tambm povoavam o territrio nacional: negros e ndios. Como elementos estranhos civilizao, eles representavam um desafio quele projeto historiogrfico. Contudo, em detrimento do enorme contingente da populao escrava, o foco de ateno dos scios do Instituto acabou por centrar-se apenas na figura do indgena: objeto enigmtico que suscitava aquela curiosidade acerca de sua historicidade. Essa seleo pode ser compreendida se pensarmos dois aspectos: primeiro, o papel crucial da populao escrava para a sustentao de uma ordem econmica pautada na agricultura mercantil, importncia que justamente inibia o levantamento de questes acerca de sua condio, tal como as referentes aos indgenas; deve-se considerar, igualmente, o estatuto do negro na sociedade imperial, cujo esquema classificatrio o situava no como sujeito, mas como objeto, j que no deteria nem liberdade, nem propriedade conceitos definidores do cidado e em torno dos quais se daria a disputa pela convertibilidade ou no do selvagem52. Alm desses

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CEZAR, Temistocles. Lio sobre a escrita da histria. Historiografia e nao no Brasil do sculo XIX. Dilogos, Maring, vol. 8, 2004. 50 LATOUR, Bruno. Redes que a razo desconhece: laboratrios, bibliotecas, colees, in: BARATIN, Marc; JACOB, Christian (orgs). O poder das bibliotecas. A memria dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 51 GUIMARES, Manoel L. Salgado. Nao e Civilizao nos Trpicos, Op. Cit. 52 A este respeito, vale citar a passagem do advogado Francisco de Melo Coutinho Vilhena, datada de 1874: o escravo um ente privado dos direitos civis; no tem o de propriedade, o de liberdade individual, o de honra e reputao; todo o seu direito como criatura humana reduz-se ao da conservao da vida e da integridade do seu corpo; e s quando o senhor atenta quanto a este direito que incorre em crime punvel. Esta passagem encontra-se citada no estudo Rafael de Bivar Marquese, onde ele analisa a especificidade d do liberalismo escravista no Brasil e Sul dos Estados Unidos do sculo XIX. MARQUESE, Rafael Bivar de. Governo dos

33 elementos, caberia ressaltar ainda que o escravo tinha no edifcio social uma posio bem definida, o que no acontecia com o indgena. justamente sobre a condio desse indgena e a posio que deveria ocupar no conjunto hierrquico da sociedade imperial que o debate etnogrfico ser concentrado. Como foi dito, as distines que se procuravam manter no campo social requeriam um investimento discursivo similar, o que acabou por produzir, no caso da formao do discurso etnogrfico no Brasil imperial, a restrio do objeto etnogrfico na figura do selvagem.

1.3 A delimitao de um campo de debate.

Logo na quarta sesso do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, realizada em 4 de fevereiro de 1839, o Secretrio Geral, Janurio da Cunha Barboza, leu para os scios presentes seis questes que deveriam orientar as discusses da casa. Dessas seis questes, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito s populaes indgenas e as duas outras versavam sobre o processo de colonizao portuguesa. Os problemas levantados em relao aos primitivos habitantes do Brasil detinham-se nos seguintes pontos: as causas de sua espantosa extino; o que se deveria concluir sobre sua histria, ao momento da descoberta do Brasil; se essa populao era formada somente por grupos nmades, e no primeiro grau da associao, ou se era descendente de alguma das grandes naes do resto da Amrica, guardando traos dessas civilizaes; qual seria o melhor mtodo para se colonizar os ndios (se conviria seguir o sistema dos Jesutas); e, por fim, se a introduo dos africanos teria prejudicado a civilizao dos ndios do Brasil53. Nota-se, a partir dessa seleta lista de indagaes, o grau de importncia dado pelo Instituto para as investigaes que ajudassem a melhor compreender essa populao nativa em sua historicidade, possibilitando, assim, sua correta insero e posicionamento em uma histria nacional em constituio. Dessas questes selecionadas podemos extrair duas preocupaes principais que estaro presentes em diferentes autores que participavam da referida agremiao. Primeiro, uma busca pela especificidade histrica dessas populaes indgenas. Interessava desvendar quais eram suas origens, suas divises, sua constituio, em que estado se encontravam quando da chegada dos portugueses. Para alm da superficialidade do espao, procurava-se

escravos e ordem nacional: Brasil e Estados Unidos, 1820-1860, in: JANCS, Istvn (org). Brasil: Formao do Estado e da Nao. Op. Cit. Cf. tambm MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema, Op. Cit. 53 BARBOZA, Janurio da Cunha. RIHGB: Tomo I, 1839, p. 61.

34 reconstruir a profundidade do tempo. Mas interessava, acima de tudo, estabelecer um juzo definitivo sobre a questo fundamental: se esses grupos que aqui se encontravam tinham sempre permanecido neste estado de natureza ou, ao contrrio, eram formas decadas ou mesmo degeneradas de civilizaes anteriores. Uma segunda preocupao que nortear os trabalhos a possibilidade ou no de se catequizar a populao que ainda habitava o territrio, e qual seria o melhor mtodo a se adotar. Conhecimento do passado e catequizao, portanto, eram questes que, dentro do IHGB, organizariam o debate acerca da populao indgena, constituindo a base de seu projeto etnogrfico. O discurso etnogrfico desenvolvido no Instituto foi marcado, principalmente, como um modo de dar historicidade s populaes indgenas, sendo em torno dessa historicidade que os letrados buscaram construir argumentos legtimos sobre os modelos de ao a serem adotados em relao aos selvagens. Desvelar a obscura histria desses povos apresentava-se como uma etapa necessria tanto para a escrita de uma histria nacional, como tambm para que se pudesse ter algum juzo seguro sobre as aes adequadas a serem tomadas pelo Estado, j que as possibilidades de ao estariam condicionadas ou, pelo menos, justificadas, de acordo com o desenvolvimento histrico que fosse trazido luz. Degeneradas, decadas ou em permanente estado de natureza, cada uma dessas alternativas implicava em diferentes juzos de valor, assim como em distintas tomadas de posio. Como resumiria j na dcada de 1870 Couto de Magalhes, poca s existiriam duas opes, ou o extermnio ou a assimilao: No h meio termo.54 Embora Couto de Magalhes se situe em um momento j avanado desse debate (em uma espcie de momento de transio, que ser posteriormente analisado), sua formulao sintetiza de forma clara os termos nos quais a formulao do saber etnogrfico foi configurado pelos scios do IHGB.

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MAGALHES, Gen. Couto de. O Selvagem. Op. Cit. p. XXXIII. Como destaca Frank Lestringant, a composio dessas duas opes como alternativas nicas de trato com os selvagens tem seu aparecimento com o abade Prvost e o fracasso das utopias americanas. A escolha, diante dos antropfagos da Amrica ou de outros lugares, estar, da por diante, entre a reduo, maneira dos jesutas do Paraguai, e a destruio. No primeiro caso, o selvagem dobrado fora s regras de uma natureza ideal que se supe terem sido por obliteradas nele pela preguia, pela indolncia e pela perda de memria. No segundo, e a soluo que vai triunfar com Robinson Cruso, o medo se alia ao cinismo ou extrema boa conscincia para abolir no outro a insustentvel proximidade da carne e do sangue. Esse duplo sanguinrio que os persegue deve ser eliminado com urgncia de um pesadelo permanente. LESTRINGANT, Frank. O Canibal. Grandeza e decadncia. Braslia: UnB, 1997, p. 197.

35 Kaori Kodama, em sua recente tese, apontou para o fato de que a etnografia teve sua constituio caracterizada, dentro do IHGB, por uma sobreposio das referncias geogrfica e histrica. Segundo a autora:

a temtica indgena nos estudos tratados pelo Instituto ganhava importncia no s por ser parte do que consistia a compreenso da natureza do pas, o que aportava sem dvida na legitimao territorial, e no papel da geografia no Instituto, tal como deveria preconizar Cunha Mattos ao exigir seu conhecimento, como tambm porque este estudo continha parte do que passava a ser apresentado como a histria deste territrio, e que, nas palavras daquele scio-fundador, deveria revelar a marcha sucessora da civilizao da Terra de Santa Cruz. Ao se incluir o estudo dos indgenas na Histria do Brasil, seria possvel lanar luzes sobre um tempo remoto, onde aquela terra estaria fixada a par com as antigas civilizaes do mundo. Seria assim a partir de uma dupla insero do ndio como objeto de investigao: como elemento da paisagem natural brasileira o que o recorta no espao e como parte da histria dos povos antigos o que o recorta no tempo que se veria legitimado dentro do Instituto Histrico o campo da etnografia55.

De fato, o conhecimento das populaes indgenas convergia, em grande parte, com o interesse de esquadrinhar o territrio nacional, tornando-o uma paisagem familiar aos olhos da elite imperial; uma paisagem na qual o ndio seria inserido. A estreita relao entre conhecimento do territrio e descrio das populaes indgenas, que ainda se fazia presente nas preocupaes iniciais do IHGB, tambm manifestava a proximidade entre um modelo setecentista, vinculado Ilustrao Ibrica, e as prticas discursivas adotadas por letrados como Cunha Mattos, principalmente em seus trabalhos corogrficos. A proposta corogrfica apresentada por Cunha Mattos, ainda que possa ser considerada como um primeiro passo para a criao da etnografia do Instituto, como bem analisou Kodama, no tinha no selvagem seu objeto central. Sua escrita se ocupava do levantamento completo de determinada localidade, incluindo fatores como o ano de fundao da cidade ou vila, sua latitude e longitude, nmero de habitantes, praas, escolas, se os ares so saudveis, enfim, uma vasta lista de elementos que configuravam uma descrio ao mesmo tempo pictrica e instrumental da ocupao do territrio, constituindo-se, segundo Frank L