Teoria Da Literatura

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Teoria da literatura

Domenico Sturiale Ivan Cupertino Dutra

Maria de Fátima Rocha Medina

1º Período

Palmas/TO - 2007

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DO TOCANTINS Reitor: Humberto Luiz Falcão Coelho

Vice-Reitor: Lívio William Reis de Carvalho

Pró-Reitor de Graduação: Galileu Marcos Guarenghi

Pró-Reitora de Pós-Graduação e Extensão: Maria Luiza C.P. do Nascimento

Pró-Reitora de Pesquisa: Antônia Custódia Pedreira

Pró-Reitora de Administração e Finanças: Maria Valdênia Rodrigues Noleto

Diretor de EaD e Tecnologias Educacionais: Claudemir Andreaci

Coordenador Pedagógico: Geraldo da Silva Gomes

Coordenadora do Curso: Kyldes Batista Vicente

EDUCON – EMPRESA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA LTDA Diretor Presidente: Luiz Carlos Borges da Silveira

Diretor Executivo: Luiz Carlos Borges da Silveira Filho

Diretor de Desenvolvimento de Produto: Márcio Yamawaki

Diretor Administrativo e Financeiro: Júlio César Algeri

ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO Produção e Organização de Conteúdos Acadêmicos: Darlene Teixeira Castro e

Maria Lourdes F. G. Aires

PRODUÇÃO E DESIGN GRÁFICO Gerenciamento e Fluxo Logístico: Vivianni Asevedo Soares Borges

Projeto Gráfico: Edglei Rodrigues e Irenides Teixeira

Ilustrações: Edglei Rodrigues e Geuvar S. de Oliveira

Revisão de Conteúdo: Kyldes Batista Vicente

Diagramação: Leonardo V. N. Torres

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Apresentação

Caro(a) Aluno (a),

Você está recebendo os textos referentes à disciplina de Teoria da literatura. Esses textos têm por objetivo fornecer mecanismos de compreensão sobre literatura, discurso e classificação de gênero. Este material, aqui apresentado, servirá como princípio norteador para seus estudos, não sendo, entretanto, único meio de estudo e conhecimento. Você deverá, além desse caderno de conteúdos e atividades, ampliar seu conhecimento sobre a matéria, por meio de outras leituras.

Teoria da literatura é uma disciplina que oferece uma visão panorâmica sobre os variados tipos de textos literários, sobre a literatura e seu discurso. É uma disciplina básica para toda a sua formação literária.

Seu caderno de conteúdos e atividades constará de 16 unidades didáticas. A unidade 1 será de caráter introdutório e servirá como base conceitual para a compreensão dos conceitos de arte, estética, poética e literatura enquanto manifestação artística.

Nas unidades de 2 a 6, você estudará os conceitos e métodos da literatura e os gêneros literários desde a teoria clássica até à contemporânea. As unidades de 8 a 15 tratarão cada uma de um gênero literário específico. Sendo assim, você tomará conhecimento das diversas manifestações do texto literário, da permanência e da evolução dos gêneros literários.

As unidades 7 e 16, enfim, servirão como momentos de revisão e de sistematização dos assuntos tratados.

Desejamos que você aproveite o presente trabalho e que faça dele um meio de aprendizagem e desenvolvimento em sua formação acadêmica.

Bons estudos.

Domenico Sturiale Ivan Cupertino Dutra

Maria de Fátima Rocha Medina

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PLANO DE ENSINO CURSO: Letras PERÍODO: 1º DISCIPLINA: Teoria da Literatura

EMENTA

A arte. A literatura. O cânon e seu processo de formação. Os gêneros literários e suas evoluções. O gênero épico. O gênero dramático. O gênero lírico: forma e conteúdo. O gênero narrativo: conceito, características e classificações. Os elementos constitutivos do texto narrativo. OBJETIVOS

• estudar os gêneros literários a partir de seu percurso histórico e formal;

• analisar as mudanças ocorridas entre o clássico, o moderno e o contemporâneo;

• analisar os tipos de gêneros literários e suas características formais; • proporcionar melhor compreensão para leitura do texto lírico

clássico e moderno; • desenvolver habilidades conceituais para estudo das narrativas de

conto, novela e romance; • possibilitar uma visão crítica acerca da formação do cânone literário.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

• Fundamentos teóricos: estética, poética, arte literária • Conceitos de literatura, objeto e métodos da teoria literária • Poética clássica • Poética romântica • Poética moderna • Poética contemporânea • Gênero lírico • Gênero épico • Gênero dramático • Gênero narrativo

BIBLIOGRAFIA BÁSICA D�ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto I: Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1995. EAGLETON, Terry. A teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 1987. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. São Paulo: Cultrix, 2003. ________________. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. São Paulo: Annablume, 2002.

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COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem: a obra literária e a expressão lingüística. Petrópolis: Vozes, 1994. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2006.. REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2004. TODOROV, Tzvetan. Poética da Prosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Sumário

Unidade 1 � Fundamentos teóricos da literatura................................. 9

Unidade 2 � A teoria literária: objeto e métodos................................18

Unidade 3 – Teoria clássica dos gêneros literários .............................27

Unidade 4 � Teoria romântica dos gêneros literários ..........................39

Unidade 5 � Teoria modernista dos gêneros literários.........................46

Unidade 6 � Teoria contemporânea dos gêneros literários...................54

Unidade 7 � Revisão de conteúdos ..................................................64

Unidade 8 � Gênero lírico clássico ...................................................74

Unidade 9 � Gênero lírico romântico................................................85

Unidade 10 � Gênero lírico modernista ............................................92

Unidade 11 � Gênero lírico contemporâneo .................................... 100

Unidade 12 � Gênero épico .......................................................... 106

Unidade 13 � Gênero dramático ................................................... 113

Unidade 14 � Gênero narrativo: conto e novela .............................. 122

Unidade 15 � Gênero narrativo: romance....................................... 130

Unidade 16 � Revisão de conteúdos .............................................. 137

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Meta da unidade Compreensão das relações entre literatura e arte.

Fundamentos teóricos da literatura

Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • articular e integrar os conceitos de arte, estética e poética.

Pré-requisitos

Para começar nossas reflexões teóricas sobre a literatura, nós precisamos de que você tenha uma experiência de leitura, ainda que mínima, de obras literárias. Com base em suas leituras, poderemos construir noções fundamentais de teoria da literatura, como a noção de arte (considerada aqui como atividade criativa, em que se manifesta o sentimento estético de determinado artista), a noção de estética (que é o estudo da beleza, de um ponto de vista filosófico), a noção de literariedade (que nos ajuda a diferenciar um texto literário de um texto não-literário) e a noção de poética (com que abordamos o fazer literário, desde uma perspectiva teórica). Nosso pano de fundo será constituído por uma discussão prévia sobre as manifestações artísticas em geral, que passa por uma reflexão estética sobre a beleza. Partindo dessa visão mais ampla, restringiremos, depois, nosso estudo a uma reflexão poética sobre a literatura Introdução

Ao começar a estudar as questões ligadas à teoria da literatura, é necessário atender à seguinte indagação: o que é literatura? Estamos certos de que as respostas suas e de seus colegas serão resultado de suas experiências de leitura. Mas essas respostas serão as mesmas? Provavelmente não, pois cada um tem uma experiência pessoal de leitura e, conseqüentemente, uma idéia diferente do que pode ser considerado literatura.

Gostaríamos agora de que você respondesse a mais uma questão: quais são os critérios que você utilizou para definir o que é literatura? Você considerou literatura todo tipo de texto escrito; somente as narrativas românticas; os livros lidos no ensino fundamental e médio; as histórias em quadrinhos; os livros de auto-ajuda; as narrativas longas; os poemas; as notícias de jornal...?

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Cada uma dessas interpretações depende da escolha prévia de uma determinada visão do que é literatura. É importante que você se lembre disto, ao longo dos seus estudos literários: cada teórico tem uma visão diferenciada para explicar o que é literatura. Cada um leva em consideração determinadas peculiaridades textuais para elaborar sua teoria, determinando quais características o texto deverá apresentar para ser considerado literário.

As questões acima apontam para a necessidade de demarcar uma abordagem de literatura. Nesta unidade didática, compreenderemos o que é literatura, quais são suas manifestações, qual é sua relação com a arte, quais são os teóricos que primeiro refletiram e escreveram sobre literatura.

Começaremos, então, com a estética e sua relação com a literatura. Imaginamos que todos tenham uma noção ainda que implícita do que seja estética. E, certamente, todos sabem o que é beleza. De alguma forma, na nossa mente, estética e beleza estão associadas.

Em seguida, discutiremos sobre poética. Muitos associam poética a poesia. Não é uma conexão totalmente incorreta, mas existem particularidades que devem ser ressaltadas para que se evitem equívocos lamentáveis.

Enfim, nossa atenção se voltará para a arte literária. Integraremos as noções de arte, estética, literatura e poética, apontando um percurso de leitura da literatura enquanto arte da palavra. Estética

Quando se fala em estética, é natural sua associação com o �belo�. A palavra estética é de origem grega (αισθητική) e significa perceber, sentir. Em filosofia, estética é o estudo da natureza do �belo� e dos fundamentos da arte.

Quando as pessoas vão a uma clínica de estética, o que elas buscam? Ficar mais belas. Observe, no entanto, que não é qualquer beleza que serve para essas pessoas. Não são raros os que chegam às clínicas, para mudar a cor do cabelo, o formato do nariz, retirar rugas, fazer maquiagem permanente, praticar exercícios, ter uma vida saudável, para ficar parecidos com determinado artista. Tudo isso em nome da estética. Para elas é preciso aproximar-se de um padrão de beleza preestabelecido pela sociedade. Quanto mais próximas estiverem desse padrão, melhor.

Trazendo essas reflexões para o nosso estudo, a idéia básica de estética permanece. Não é qualquer criação que pode ser considerada artisticamente bela. Apenas aquela que se aproxima de um determinado padrão previamente definido. Assim o conceito de beleza muda constantemente em função dos valores vigentes nos diferentes períodos da evolução histórica da arte.

Haverá momentos em que determinadas características serão mais valorizadas do que outras; épocas em que certos tipos de criação terão mais aceitação do que outros. Esse processo evolutivo ocorre constantemente.

Na filosofia antiga, dois filósofos, Platão e Aristóteles, fazem referências relevantes para o estudo da estética. É preciso observar que, na Antigüidade, a idéia de �belo� é sempre associada aos conceitos de �bom� e de �verdadeiro�. Você já observou que, popularmente, existe uma idéia de que tudo o que é belo é bom e verdadeiro? Talvez esse comportamento seja herança do pensamento da Antigüidade.

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Para ampliar sua noção de estética, é recomendável que você leia A República de Platão. Nesse livro, o filósofo grego escreve a respeito da criação de uma cidade ideal, cuja realização é associada aos conceitos de �belo�, �bom� e �verdadeiro�. Entre diversas outras narrativas, no livro VII de A República, podemos encontrar a �alegoria da caverna�, texto em que Platão trata da visão do �bem�, do governo dos filósofos e do conhecimento enquanto luz que tudo ilumina. Poética

Você pensou em poesia, ao ver o título desta seção? Esse é um pensamento esperado e não de todo incorreto. A poética tem a ver, sim, com a poesia e com a literatura em geral.

Vejamos uma definição de poética disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/, acesso realizado em 23/12/2006):

Estudo das obras literárias, particularmente das narrativas, que visa a esclarecer suas características gerais e sua literalidade, criando conceitos que possam ser generalizados para o entendimento da construção de outras obras.

Na mesma data, em http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx, foi encontrado o seguinte conceito de poética:

Arte de fazer versos; conjunto de regras a empregar na composição de obras poéticas.

Observe que os dois conceitos se complementam, pois o primeiro faz referência à narrativa em prosa e o segundo, à poesia em versos.

Há, certamente, outros conceitos relacionados à poética. Nada, no entanto, que represente uma variação muito significativa em relação aos dois conceitos aqui apresentados. Com base nisso, podemos concluir que o conceito de poética é mais restrito do que o de estética: enquanto esta se aplica às diversas facetas da arte e da vida humana, aquela se restringe à literatura.

Com base em tudo o que foi dito até agora, então, podemos afirmar que a poética é uma teoria sobre o fazer literário, com suas regras de composição, sua definição de valores, seus modelos literários, suas comparações entre textos literários.

Achamos que, agora, a relação entre os conceitos de poesia e de poética deve ter ficado clara: a poesia é um tipo de texto literário que é estudado na poética. Feitas essas considerações, resta apenas determinar outra relação: a que existe entre estética e poética. É o que veremos na próxima seção, em que consideraremos a literatura enquanto arte da palavra. Arte literária

Nas duas seções anteriores, estudamos a estética, que trata do �belo�, e a poética, que se relaciona ao fazer literário. Da associação entre a estética e a poética origina-se a arte literária. Você sabe muito bem que a literatura é feita de palavras. Porém, também, muitos outros tipos de texto são feitos de palavras. Como, então, diferenciar os textos literários dos textos não-literários? O que é necessário haver para que um texto seja considerado literário? Como se constrói o �belo� na literatura? Essas são as questões que serão discutidas nesta seção.

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Semiótica (do grego semeiotiké ou "arte dos sinais")

é a ciência geral dos signos e estuda todos os fenômenos

culturais como se fossem sistemas sígnicos ou sistemas de

significação. Em oposição à lingüística, que se restringe ao

estudo dos signos lingüísticos, a semiótica tem por objeto

qualquer sistema sígnico - artes visuais, fotografia, cinema,

música, culinária, vestuário, gestos, religião, ciência etc.

(Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Semi%C3%B3tica; acesso realizado

em 3/1/2007)

No inicio desta unidade didática, vimos como a decisão de considerar literariamente válido um ou outro texto depende da eleição de um determinado critério de literatura.

Os textos literários, de maneira geral, apresentam um aspecto artístico, imaginativo, ficcional e belo. Um texto é literário quando consegue produzir um efeito estético, ou seja, quando proporciona uma sensação de prazer e de emoção ao receptor.

A linguagem literária é conotativa, ou seja, apresenta um significado secundário, figurado e abstrato. Não é objetiva e concreta como a linguagem científica; não é especulativa, como a linguagem filosófica; não é informativa, como a linguagem jornalística. A literatura procura representar um mundo possível, inventado, ficcionalizado, por meio da palavra. Na literatura, dá-se vida a um mundo diferente do mundo real e verdadeiro, em que vivemos quotidianamente.

De acordo com Salvatore D�onofrio, a linguagem literária, por ser um sistema semiótico secundário que tem como significante o sistema lingüístico, constitui-se num discurso conotado, porque seu plano de expressão já inclui uma significação primária.

O texto literário transforma incessantemente não só as relações que as palavras entretêm consigo mesmas, utilizando-as além dos seus sentidos estritos e além da lógica do discurso usual, mas estabelece com cada leitor relações subjetivas que o tornam um texto móvel (modificante e modificável), capaz mesmo de não conter nenhum sentido definitivo ou incontestável. (D�ONOFRIO, 1999, p. 4-7)

Sendo assim, o princípio da estética no texto literário perpassa por valores lingüísticos e formais que o diferenciam de qualquer outro tipo de texto. A estética literária é, portanto, um trabalho artístico conduzido com a linguagem e com o texto. A estética acaba por criar um corpus literário que denominamos de cânone, constituído pelas obras literárias mais importantes de determinada cultura.

Vamos, agora, comparar dois textos. O primeiro é um poema, por nós adaptado, da poetisa grega Safo (612 - ? a.C.) que revela uma beleza estética deslumbrante. O segundo texto preocupa-se apenas com a colocação dos fatos. (I) A Átis Não minto: eu me queria morta. Deixava-me, desfeita em lágrimas. �Mas, ah, que triste a nossa sina! Eu vou contra a vontade, juro, Safo�. "Seja feliz", eu disse, "E lembre-se de quanto a quero. Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe Os nossos momentos de amor. Quantas grinaldas, no seu colo, � Rosas, violetas, açafrão � Trançamos juntas! Multiflores Colares atei para o tenro

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Pescoço de Átis; os perfumes b Nos cabelos, os óleos raros Da sua pele em minha pele! Cama macia, o amor nascia De sua beleza, e eu matava A sua sede�. Cai a lua, caem as plêiades e É meia-noite, o tempo passa e Eu só, aqui deitada, desejante. � Adolescência, adolescência, Você se vai, aonde vai? � Não volto mais para você, Para você volto mais não. (PIGNATARI, 1996) (II) Safo, a maior poetisa lírica da Antigüidade é, provavelmente, também a primeira mulher a fazer poesia importante na história da cultura ocidental. Nasceu na ilha grega de Lesbos, por volta do ano de 612 a.C. Pouco se sabe ao certo sobre esta mulher notável. Alguns a têm imaginado de uma beleza escultórica exuberante. Outros, como não muito bonita. Mas todos concordam que possuía um atrativo pessoal formidável e que, com seus belos olhos pretos, poderia até domar feras! Não é só essa, entretanto, a razão de sua fama. Filha de família rica, deixou cedo sua pequena cidade natal de Eresso, próxima à capital de Lesbos, Mitilene, onde estudou dança, retórica e poética, o que era, então, permitido só a mulheres da aristocracia. Mesmo de origem nobre, uma mulher dessa época a bem pouco podia aspirar fora dos trabalhos domésticos rotineiros. Mas Safo... era Safo! Uma mulher de fogo! Muito jovem, já possuía grande notoriedade devido mais a seus encantos pessoais do que à sua arte. Ela mesma dizia ter "cabecinha oca" e "coração infantil", tinha uma conduta libertada de preconceitos e inibições. (ELLIS. Disponível em http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura; acesso realizado em 28/12/2006)

Você deve ter percebido que há uma considerável diferença entre os

dois textos aqui apresentados. O primeiro texto impressiona pela escolha das palavras e por seu arranjo estético. O segundo texto é informativo, o autor não tem a preocupação de despertar a emoção e a imaginação do leitor. Sua única preocupação é fornecer uma série de informações sobre Safo. Assim, o primeiro texto pode ser qualificado como literário, e o segundo, como científico. Para construir o mundo da ficção, a literatura se serve de diversos e diferentes recursos. Um deles é o da verossimilhança, termo que significa �semelhança com o real�. Note bem que �semelhança� não é sinônimo de cópia. O texto literário precisa apresentar uma semelhança com o real, mas não é pura e simplesmente uma cópia fiel do real. Caso contrário, não apresentaria nenhum interesse para a literatura. A literatura trata de fatos e situações da vida das pessoas, sem a pretensão de afirmar a existência real desses fatos: eles existem apenas como realidade inventada. Quem vive na ficção são personagens � com existência ficcional � e não pessoas � com

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existência real. A arte literária está, pois, no caráter ficcional de suas criações.

Aristóteles (384–322 a.C.), filósofo grego nascido em Estagira escreve um tratado sobre literatura, a Arte Poética. Nele trata dos diversos aspectos da literatura e das características que lhe são necessárias para ser considerada arte. Para Aristóteles, a literatura é mimese, ou seja, imitação. Imitação de quê? Imitação do real. Imitação como? Imitação pela palavra. A literatura, então, imita o real mediante o uso da palavra. Não esqueça: imitar não é, em momento nenhum, sinônimo de copiar. A literatura ignora a linguagem cotidiana, mecânica, objetiva, repetitiva, buscando criar uma outra linguagem reinventada, nova, inesperada, desviante.

Literatura é representação e, como tal, não precisa ser fiel aos fatos narrados, nem esses fatos, necessariamente, devem corresponder a acontecimentos reais. A seguir, oferecemos uma definição de literatura estabelecida por Afrânio Coutinho, em suas Notas de teoria literária:

A literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada, através do espírito do artista, e retransmitida, através da língua, para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio. Os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade primitiva e adquiriram outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra natureza, diferentes dos fatos naturais objetivados pela ciência ou pela história ou pela sociedade. O artista literário cria ou recria um mundo de verdades que não são mais medidas pelos mesmos padrões das verdades ocorridas. Os fatos que manipula não têm comparação com os da realidade concreta. São as verdades humanas gerais, que traduzem antes um sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento das coisas humanas, um sentido de vida, e que fornecem um retrato vivo e insinuante da vida. A literatura é, assim, vida, parte da vida, não se admitindo possa haver conflito entre uma e outra. Através das obras literárias, tomamos contato com a vida, nas suas verdades eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque são as verdades da própria condição humana. (COUTINHO, 1978, p. 9-10)

O �belo�, na literatura, tem a ver com esse tratamento dado à linguagem: quanto mais subjetivo, menos automatizado, menos previsível, tanto mais literário e belo será o texto.

Existem diferentes tipos de poéticas que tiveram sua importância em diferentes momentos da evolução da literatura. Ao longo desse caderno de conteúdos e atividades, essas poéticas serão estudadas, comparadas, comentadas e avaliadas. Com a discussão sobre a arte literária, encerra-se esta primeira unidade didática. Fique atento na resolução das atividades, releia os textos apresentados, sempre que julgar necessário: essa leitura certamente

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Nesta unidade, como você pôde observar, ao abrirmos a

discussão sobre os conceitos de arte, estética, literatura e poética, foram colocadas as bases do complexo edifício da teoria literária.

Vimos como a estética se refere ao estudo da percepção da beleza na arte, a partir de valores e modelos previamente estabelecidos por uma comunidade, determinada no espaço e no tempo.

A poética, por sua vez, tem sua atenção mais focada na literatura, visando à elaboração de conceitos, características e regras da criação literária.

A essência formal da literatura pode, assim, ser considerada a linguagem conotativa, que diferencia o discurso literário dos demais discursos especulativos, científicos ou informativos.

Sua essência material é a verossimilhança, que faz com que a literatura seja a representação não da realidade efetiva, mas de uma realidade imaginária, ainda que possível.

O conceito de verossimilhança guarda estreita relação com a mimese aristotélica, que é imitação (recriação e invenção, não simples reprodução) do real mediante o uso da palavra.

Síntese da unidade

contribuirá para uma maior e melhor compreensão dos temas de teoria literária.

Leia com atenção o seguinte trecho extraído e adaptado de um ensaio do teórico da literatura Antonio Candido, intitulado �Dialética da Malandragem� e publicado no livro O discurso e a Cidade.

�O romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica sempre certa visão de sociedade, cujo aspecto e significado procura traduzir em termos de arte. É duvidoso que dê uma visão informativa, pois geralmente só podemos avaliar a fidelidade da representação através de comparações com os dados que tomamos a documentos de outro tipo. Talvez o problema deva ser proposto em outros termos, sem querer ver a ficção como duplicação, atitude freqüente na crítica naturalista que tem do realismo uma concepção que se qualificaria de mecânica. Na verdade, o que interessa à análise literária é saber qual a função exercida pela realidade social historicamente localizada para constituir a estrutura da obra. Trata-se de um fenômeno que se poderia chamar de formalização ou redução estrutural dos dados externos. Um romance pode ser constituído por alguns veios: (1) os fatos narrados, envolvendo as personagens; (2) os usos e costumes descritos; (3) as observações judicativas do narrador e de certas personagens. Quando o autor os organiza de modo integrado, o resultado é satisfatório e nós podemos sentir a realidade. Quando a integração é menos feliz, parece-nos ver uma justaposição mais ou menos precária de elementos não suficientemente fundidos, embora interessantes e por vezes encantadores como quadros isolados. Nesse último caso, os usos e costumes aparecem como documentos, prontos para a ficha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petite histoire. A força de composição do livro depende, pois, essencialmente, de certos pressupostos de fatura, que ordenam a camada

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Comentário

superficial dos dados. Esses precisam ser encarados como elementos de composição, não como informes proporcionados pelo autor. Sendo assim, é provável que a impressão de realidade comunicada pelo livro não venha essencialmente dos informes, mas de uma visão mais profunda e de uma capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade, elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais. Não é a representação dos dados concretos particulares que produz na ficção o senso da realidade; mas sim a sugestão de certa generalidade que dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundo fictício�. (CANDIDO, 1993, p. 31-45)

Com base na leitura atenta do trecho proposto e na reflexão sobre os temas abordados nesta unidade didática, escolha a alternativa correta entre as que são apresentadas a seguir.

a) Existe apenas uma estética realista, cronologicamente situada no século XIX, cujas obras são cópias fiéis de ambientes, personagens e fatos nelas representados. b) O autor de uma obra literária é um arquiteto que utiliza os tijolos da realidade, dispondo-os segundo um desenho ou plano próprio que revela a sua visão pessoal do mundo representado. c) Enquanto a arte, organizada esteticamente, é pura invenção sem nenhuma relação com a realidade, a literatura, regulada pelos princípios da poética, representa uma retratação ou duplicação do real. d) A integração dos dados reais, contidos, por exemplo, em um romance, acontece naturalmente, sem a contribuição do autor, haja vista a predominante vocação informativa e referencial de toda obra literária.

No caso da alternativa (a), atente para o momento em que Antonio

Candido fala de um �romance de tipo realista, arcaico ou moderno� (linha 1). João Cabral de Melo Neto, poeta modernista brasileiro, escreve, certa vez, que toda a história da arte ocidental é percorrida por duas grandes tendências criativas: uma tendência clássica de cunho realista e uma tendência romântica mais marcada pelo subjetivismo. Volte também aos conceitos de verossimilhança e de mimese, desenvolvidos na seção �Arte literária� desta unidade.

No caso da alternativa (b), preste atenção ao trecho em que Antonio Candido escreve que �não é a representação dos dados concretos particulares que produz na ficção o senso da realidade. É provável que a impressão de realidade venha de uma visão mais profunda e de uma capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade� (linhas 24-29).

No caso da alternativa (c), reveja, nesta mesma unidade, os conceitos de arte (atividade criativa), estética (contemplação do �belo�), literatura (ficção verbal) e poética (teoria da criação literária). Observe que a literatura e a poética não são contrapostas e sim complementares à arte e à estética.

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Após termos compreendido e integrado os conceitos de arte, estética, literatura e poética, sob a égide da palavra-chave �criação�, iremos penetrar com mais afinco no âmago da literatura, para defini-la com maior precisão, para estabelecer o corpus que é objeto dos estudos teóricos sobre literatura, para examinarmos mais de perto alguns métodos ou abordagens críticas de textos literários. Tudo isso é de extrema importância para quem pretenda realizar um estudo científico da literatura. Para tanto são necessários uma compreensão comum do conceito de literatura, o estabelecimento de um cânone de autores e obras, uma metodologia de análise, compreensão, interpretação e avaliação do objeto de estudo.

Informações sobre a próxima unidade

No caso da alternativa (d), pondere sobre as seguintes considerações de Antonio Candido: �o romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica sempre certa visão de sociedade, cujo aspecto e significado procura traduzir em termos de arte� (linhas 1 e 2); � (o romance de tipo realista) é duvidoso que dê uma visão informativa� (linha 3); �sem querer ver a ficção como duplicação� (linha 6); �quando o autor os organiza de modo integrado� (linhas 14 e 15); �elementos não suficientemente fundidos� (linhas 17-18).

Referências ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2003. CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. D�ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto. v. 2. São Paulo: Ática, 1999. ELLIS, Caticha. �Safo, versos imortais�. Disponível em http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura, acesso realizado em 28/12/2006. PIGNATARI, Décio. 31 Poetas, 214 Poemas. Do Rig-Veda e Safo a Apollinaire. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. PLATÃO. A república. São Paulo: Perspectiva, 2006. http://pt.wikipedia.org/wiki/, acesso realizado em 23/12/2006. http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx, acesso realizado em 23/12/2006. http://pt.wikipedia.org/wiki/, acesso realizado em 3/1/2007. http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura; acesso realizado em 28/12/2006.

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Meta da unidade Construção de um objeto e de métodos para a pesquisa literária,

dentro de diferentes concepções de literatura e de teoria literária.

A teoria literária: objeto e métodos Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • lidar com as principais abordagens teórico-críticas do texto

literário. Pré-requisitos

Os conceitos de literatura trabalhados nesta unidade representam uma continuidade das relações entre literatura, arte, estética e poética, vistas na unidade 1. É importante, pois, que você leve em consideração, durante a leitura da presente unidade, as idéias de literatura do primeiro grande teórico grego, Aristóteles (segundo o qual, literatura é mimese), e de três teóricos brasileiros contemporâneos já estudados: Salvatore D�Onofrio (literatura enquanto universo de significações modificantes e modificáveis), Afrânio Coutinho (literatura enquanto transfiguração do real ou realidade recriada) e Antonio Candido (literatura enquanto formalização, generalização e universalização dos dados externos da realidade que se tornam elementos composicionais internos a serviço de uma idéia de sociedade, de homem e de mundo).

Com base nessas premissas, construiremos aqui uma definição de teoria da literatura e apresentaremos sete tipos diferentes de métodos crítico-interpretativos que encaminharão nossas leituras de textos literários.

Introdução

No início da unidade 1, você deu respostas sobre a natureza da literatura. Nesta nova unidade, você conhecerá conceitos formulados por qualificados teóricos da literatura. É importante observar que, assim como você elegeu um critério para definir o que seria literatura, também os teóricos fazem o mesmo: optam por um conjunto de valores, a partir dos quais abordam os textos literários. Se você comparar o seu conceito de literatura ao de seu colega, observará a existência de traços comuns e de traços divergentes. O mesmo acontece na teoria da literatura. Alguns

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conceitos são bem semelhantes, divergindo, às vezes, em pequenos detalhes. Isso se explica pelo fato de que o objeto de estudo é o mesmo: a literatura.

Na seqüência desta unidade, você entrará em contato com o objeto dos estudos literários e com alguns métodos da teoria da literatura. O foco se volta para a literatura propriamente dita e para as diferentes formas de estudo a ela associadas. É uma boa oportunidade para retomar a contribuição de Aristóteles, que escreve a Arte Poética, um livro sobre assuntos literários de tamanha importância que, até hoje, apesar da evolução dos estudos literários, é referência para quem estuda literatura. Conceitos de literatura

Para os antigos sofistas gregos, a arte literária consiste na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução.

Para Aristóteles, a literatura é imitação (mimese) da realidade, mediante o uso da palavra.

Na Antigüidade, literatura é a arte das letras, a arte de escrever. Esse conceito, por ser bastante amplo, não tem grande serventia, podendo abranger tudo o que estiver escrito: manuais, bulas de remédio, textos técnicos etc.

Observe que até o fim da Idade Antiga, não há nenhuma consideração a respeito do caráter formal da literatura: formalmente, todo texto escrito, seja ele de caráter ficcional, filosófico, científico ou histórico, ainda é considerado literatura.

Com o Renascimento, que marca o início da Idade Moderna, a literatura passa a exigir do texto seu caráter ficcional. Literatura é ficção. Apesar de ainda não especificar a forma como essa ficção se constitui, esse conceito tem a vantagem de ser já mais restrito e funcional. É importante lembrar que a associação entre literatura e ficção, estabelecida no Renascimento, está hoje consolidada, de maneira que os dois termos são compreendidos como sendo sinônimos.

A partir do século XVII, o conceito de literatura começa a ter o caráter mais especifico de um conjunto de obras literárias de determinado país.

No século XX, Salvatore D�Onofrio propõe um conceito de literatura que consegue integrar satisfatoriamente os aspectos estéticos e poéticos, estudados na unidade didática 1. Vejamos sua conceituação:

A literatura é uma forma de conhecimento da realidade, que se serve da ficção e que tem como meio de expressão a linguagem artisticamente elaborada (D�ONOFRIO, 1997, p. 8).

Uma análise minuciosa desse conceito ajuda a compreender melhor algumas facetas que não ficam evidentes em uma primeira leitura.

• �A literatura é uma forma de conhecimento da realidade�: por meio desta declaração, D�Onofrio afirma que mediante a literatura se pode conhecer a realidade. Com isso, a literatura aproxima-se das outras formas de conhecimento da realidade: física, matemática, biologia, psicologia, filosofia etc. O que diferencia essas disciplinas é o objeto específico

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de estudo e a forma como cada uma delas busca e expressa o conhecimento.

• �Se serve da ficção�: aqui se trata da forma com que a

literatura aborda seu objeto de estudo. A ficção é o instrumento de perquirição da literatura. Outras disciplinas se servem de outros caminhos para construir seu saber: a filosofia usa o pensamento especulativo, a ciência o pensamento lógico-racional. O conhecimento da literatura acontece no âmbito da ficção e da arte.

• �Tem como meio de expressão a linguagem�: observe que a

linguagem é o meio de expressão da literatura. Outras artes possuem outros meios de expressão: a dança se expressa pelo movimento; o cinema, pela imagem em movimento; a pintura e a fotografia comunicam por intermédio da imagem fixa; a escultura, pela forma; a música, pelo som.

• �Artisticamente elaborada�: a literatura não é a única forma

de conhecimento que se serve da linguagem: o jornalismo, a filosofia e a história também se servem da linguagem. A literatura, no entanto, elabora artisticamente sua linguagem, abre mão de figuras de linguagem, para criar uma realidade ficcional verossímil e ter um impacto emocional no leitor. Assim como a música trabalha o som em diversas tonalidades e freqüências; assim como a pintura trabalha a cor em suas diversas nuanças; assim como a dança trabalha o movimento em seus aspectos mais inusitados e novos; a literatura trabalha a linguagem em todas as suas possibilidades, urdindo sua trama artística.

Objeto da teoria da literatura

Uma vez observados os conceitos de literatura � inclusive aquele que você mesmo elaborou � é hora de passar ao estudo do objeto e dos métodos da teoria da literatura. Para que nossa explanação fique clara, é importante definir previamente alguns termos.

• Objeto: refere-se ao conjunto dos textos literários que apresentam um diferencial em relação aos textos filosóficos, historiográficos, jornalísticos etc.

• Método: em grego significa �caminho para�. Neste caderno, indicará o caminho adotado pelos teóricos e pelos críticos para a compreensão da literatura.

• Teoria: �do Lat. theoria < Gr. theoría, ação de olhar, especulação. Conhecimento especulativo, puramente racional; conjunto de princípios fundamentais de uma arte ou ciência; doutrina ou sistema acerca desses princípios; opiniões sistematizadas� (disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx; acesso realizado em 23/12/2006).

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Nesta seção, portanto, vamos estudar os textos literários (objeto), a partir de um critério interpretativo (método), que se serve de um conhecimento especulativo, racional, sistematizado (teoria). Logo, teoria da literatura não é literatura. É um estudo objetivo sobre literatura que visa a explicar, compreender, articular e organizar o fazer literário. É a busca da especificidade do literário.

Aristóteles, para quem a literatura é imitação do real, será o primeiro a propor, em sua obra Arte Poética, uma sistematização do estudo da literatura. Ele elabora uma teoria dos gêneros literários, em que faz uma distinção entre os diversos tipos de obras a partir dos seguintes critérios:

• Objeto de imitação: podem ser imitadas ações nobres, representadas na poesia épica e trágica; ou ações corriqueiras, representadas na poesia cômica e lírica.

• Modo de imitação: na poesia épico-narrativa, o poeta fala em terceira pessoa; na poesia lírica, o poeta fala em primeira pessoa; na poesia dramática (trágica e cômica), o poeta empresta sua voz a todos as personagens.

Uma peculiaridade da literatura é a subjetividade. Mesmo quando o poeta fala em terceira pessoa ou empresta sua voz às personagens, sua relação com o real não se constrói a partir de uma perspectiva objetiva, mas desde um olhar poético, criativo, inventivo, subjetivo. No entanto, para além da pessoa que fala no texto, a garantia da subjetividade está no fato de o artista construir uma realidade inventada, verossímil, ficcionalizada: essa construção pode ser feita tanto na primeira quanto na terceira pessoa. Métodos da teoria da literatura

Após apresentarmos as características essenciais da literatura, passamos agora aos métodos interpretativos do fenômeno literário. Cada um deles procura explicar e entender a obra literária a partir de um ponto de vista. Isso implica em que esses métodos, por mais abrangentes que sejam, são limitados por sua própria perspectiva. Neste caderno, método literário será sinônimo de crítica literária. Os métodos serão divididos em extrínsecos (quando estudam os aspectos externos do texto literário) e intrínsecos (quando consideram suas características internas). Métodos extrínsecos

• Crítica biográfica: o crítico francês Sainte-Beuve é o organizador deste método literário, em que se busca explicar a obra com base na vida do autor. Estuda-se tudo o que for possível sobre o autor, na tentativa de justificar as peculiaridades de sua obra. Este método é bastante limitado por não permitir, por exemplo, que se analisem obras anônimas.

• Crítica determinista: Hippolyte Taine é o estudioso de destaque neste método. Influenciado pelo Positivismo de Augusto Comte, o método determinista aplica à literatura as técnicas de estudo das ciências naturais. A literatura passa a ser vista a partir de suas relações com a raça, com o meio e com o momento em que foi produzida.

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Síntese da unidade

Hermenêutica é um ramo da filosofia que se debate com a

compreensão humana e a interpretação de textos escritos.

A palavra deriva do nome do deus grego Hermes, o

mensageiro dos deuses, a quem os gregos atribuíam a origem da

linguagem e da escrita e consideravam o patrono da

comunicação e do entendimento humano. (Disponível em

http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Hermen%C3%AAutica&printable=yes; acesso realizado

em 2/1/2007)

• Crítica psicológica: este método foca sua atenção no estudo da psicologia do escritor e no processo de criação, sem descuidar dos efeitos psicológicos que a obra provoca nos leitores. Neste método, observamos claramente a diferença entre Platão - que vê o poeta como um ser inspirado pelos deuses - e Aristóteles - que considera o poeta como um artífice lúcido, que constrói, conscientemente, sua obra.

• Crítica sociológica: este método olha a literatura para nela enxergar suas relações com a dimensão humana social. A linguagem, as convenções, a vida das personagens, o escritor e os valores vigentes em determinada etapa da evolução humana são elementos de uma condição social representada na literatura. Objeto de estudo deste método é a maneira de a literatura exibir determinado sistema político, econômico e social, apresentando-se como expressão de uma sociedade.

Métodos intrínsecos

• Crítica lingüística: estudo da morfologia das palavras, da semântica e da sintaxe dos enunciados presentes no texto, como caminho privilegiado para chegar à determinação do significado de uma obra.

• Crítica formalista: método nascido no círculo lingüístico de Moscou, que examina a obra literária como um sistema, em que todos os componentes (forma e conteúdo) estão integrados. Dessa arquitetura integrada resultaria a literariedade do texto.

• Crítica estruturalista: neste método, que é uma evolução do método formal, a obra é vista enquanto estrutura em que todos os elementos são interdependentes, tendo significação pela sua relação com o todo.

Com o estudo dos métodos extrínsecos e intrínsecos você conclui a

unidade didática 2. Lembre-se de procurar mais informações sobre os temas apresentados, pois o universo da literatura é bastante amplo e não há como esgotá-lo. Desenvolva com atenção e cuidado as atividades propostas e continue lendo textos de literatura, para que nossas reflexões teóricas fiquem mais compreensíveis e prazerosas.

Nesta segunda unidade, avançamos no aprofundamento de noções básicas da teoria literária. Vimos algumas definições do conceito de literatura: por parte dos antigos sofistas (realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução) e de Aristóteles (imitação – mimese - da realidade, mediante o uso da palavra), até chegar ao fim da Antigüidade (arte das letras, arte de escrever); por parte do Renascimento (ficção); por parte de autores do século XVII (conjunto de obras literárias de determinado país); no século XX, por parte do teórico da literatura Salvatore D’Onofrio (forma de

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conhecimento da realidade, que se serve da ficção e que tem como meio de expressão a linguagem artisticamente elaborada).

Asseveramos que os textos literários constituem o objeto da literatura.

Distinguimos os métodos da teoria literária - que são pistas hermenêuticas de compreensão do fenômeno literário - em métodos extrínsecos (críticas biográfica, determinista, psicológica e sociológica) e métodos intrínsecos (críticas lingüística, formalista e estruturalista).

Enfim, sintetizamos tudo isso em uma densa definição de teoria da literatura: estudo de textos literários (objeto), a partir de determinados critérios interpretativos (métodos), baseados em conhecimentos racionais sistematizados (teoria).

A seguir, temos duas estrofes retiradas de dois poemas: o primeiro

do árcade mineiro Tomás Antônio Gonzaga, o segundo do ultra-romântico Álvares de Azevedo. (I) Propunha-me dormir no teu regaço as quentes horas da comprida sesta, escrever teus louvores nos olmeiros, toucar-te de papoilas na floresta. Julgou o justo céu que não convinha que a tanto grau subisse a glória minha. (Tomás Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu. �Lira 77�. Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/tomaz1.html. Acesso realizado em 2/1/2007) (II) Cavaleiro das armas escuras, Onde vais pelas trevas impuras Com a espada sanguenta na mão? Por que brilham teus olhos ardentes E gemidos nos lábios frementes Vertem fogo do teu coração? (Álvares de Azevedo, Lira dos vinte anos. �Meu sonho�. Disponível em http://www.fuvest.br/scripts/livros.asp?tipo=3&livro=AA001&parte=00046. Acesso realizado em 2/1/2007).

Os dois poemas em questão são integralmente analisados em toda a sua profundidade pelo crítico e teórico da literatura Antonio Candido, em uma obra intitulada Na sala de aula, citada nas referências bibliográficas desta unidade. Em determinado momento do livro, Antonio Candido escreve o seguinte texto por nós aqui adaptado:

Até aqui o texto foi considerado mais ou menos como um �objeto� que o analista manipula. A partir de agora, será concebido não como todo autônomo, mas parcela de um todo maior. Assim como as partes do poema são elementos de um conjunto próprio, o poema por sua vez é parte de um conjunto formado pelas circunstâncias da sua composição, o momento

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histórico, a vida do autor, o gênero literário, as tendências estéticas do seu tempo etc. Só encarando-o assim teremos elementos para avaliar o significado de maneira mais completa possível (que é sempre incompleta, apesar de tudo).

Se não fosse de quem é, a Lira 77 seria diferente, embora sendo a mesma. Por outras palavras: a estrutura e a organização seriam as mesmas, mas o significado seria diferente em boa parte. Ela seria a mesma obra de arte, o mesmo objeto que se pode analisar, mas produziria efeito diverso e no fundo significaria outra coisa. Só sabendo que é de Gonzaga, e conhecendo as circunstâncias biográficas em que foi composta, ela adquire significado pleno e, portanto, exerce pleno efeito. O conhecimento da estrutura não basta. (CÂNDIDO, 2000, p.33)

A leitura que propus consiste essencialmente em reconhecer significados sucessivos e cada vez mais escondidos, graças aos quais Álvares de Azevedo foi capaz de criar um símbolo poderoso para exprimir a angústia do adolescente em face do sexo, que vai até o sentimento da morte. Sob uma camada estética, estratificam-se os significados, até o que se refugia nas camadas mais fundas, onde a análise literária procura captá-lo. E nós sentimos que a beleza de um poema se localiza na camada aparente, a dos elementos estéticos, onde se enunciam os significados ostensivos, e que basta para uma leitura satisfatória, embora incompleta. Mas a força real está na camada oculta, que revela o significado final e constitui a razão dos outros. (CÂNDIDO, 2000, p.53)

Nesta unidade, foi proposto o estudo de alguns métodos extrínsecos e intrínsecos de análise literária. O posicionamento de Antonio Candido a respeito de tais métodos (como o biográfico, o psicológico, o sociológico, o historiográfico, o estilístico, o composicional, o lingüístico etc.) inspira-se

a) em uma concepção de �obra aberta�, no sentido dado a essa expressão por seu criador, o crítico italiano, Umberto Eco, segundo o qual uma obra literária nunca se esgota e está acabada, pois se vai alterando e desdobrando, na vida que lhe conferem as sucessivas, jamais definitivas, leituras. Umberto Eco reconhece que a obra literária também condiciona e orienta as leituras que a vão perfazendo. A obra é dotada de propriedades estruturais que permitem e, ao mesmo tempo, coordenam uma sucessão de interpretações e de perspectivas. Esse jogo só é possível na medida em que os textos o permitem. A leitura é projeção do leitor na obra, mas também modelação do leitor pela obra. E a experiência da leitura falha quando o sujeito é incapaz de se deixar trabalhar por aquilo que no texto contraria ou excede seu horizonte de expectativa. b) em um posicionamento totalmente a favor dos métodos intrínsecos, com a total exclusão de qualquer consideração contextual e extra-textual. A única coisa que conta é o texto e o que ele contém. c) em uma atitude resolutamente em prol dos métodos exógenos e circunstanciais: não se pode entender uma obra desvinculando-a do húmus cultural, social e histórico que lhe serviu de berço e alimento.

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O discurso de Antonio Candido se insere em uma diatribe entre

defensores da crítica extrínseca e promotores da crítica intrínseca. Tradicionalmente, os críticos do passado costumavam fazer uma abordagem extrínseca da obra literária, detendo-se na vida do autor, buscando suas intenções ao produzir determinado texto, indagando suas motivações psicológicas e sua personalidade. Alguns também, como vimos, detinham-se nas influências de ordem social, histórica e cultural. No começo do século XX, houve uma poderosa reação a tal tipo de crítica literária. Começou-se a pensar que a obra possuísse uma validade própria, independentemente de quem a tivesse escrito. A biografia e a psicologia do autor, a descrição do contexto histórico que presencia ao surgimento de determinado produto artístico passaram a ocupar um lugar secundário. Os críticos começaram a abrir mão de procedimentos analítico-interpretativos intrínsecos à obra. Iniciou a ser valorizada a língua, a forma, a composição, o discurso dentro do texto. O texto tornou-se um sistema fechado auto-sustentável. Como no caso de toda nova tendência, porém, ao esgotar-se o momento inicial de maior euforia, apareceram os inevitáveis limites. Ficou claro, assim, que a mera permanência nos limites da obra, em muitos casos, pode causar um empobrecimento de sua compreensão. Hoje, a maioria dos críticos se orienta não para uma adesão prévia a qualquer um dos inúmeros métodos críticos, mas para uma aplicação ad hoc do método ou dos métodos mais adequados a uma determinada obra literária.

Comentário

d) em uma postura crítica conciliadora que sabe valorizar as contribuições de ambos os lados, ressaltando valores internos e influências externas, para uma compreensão sempre mais aprimorada, embora nunca definitivamente completa.

Referências AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. Disponível em http://www.fuvest.br/scripts/livros.asp, acesso realizado em 2/1/2007. CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. Caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 2000. D�ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Editora Ática, 1997. GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/tomaz1.html, acesso realizado em 2/1/2007. http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx, acesso realizado em 23/12/2006. http://pt.wikipedia.org/w/index.php, acesso realizado em 2/1/2007.

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Após termos definido os conceitos de literatura e de teoria da

literatura, veremos, na próxima unidade, algumas formas de representação literária, chamadas gêneros. O estudo dos

gêneros literários começa já na Idade Antiga, com Platão e Aristóteles, dois filósofos gregos que você já conhece, e se

estende ao longo de toda a Idade Média e da Idade Moderna. Começaremos com a concepção clássica dos gêneros, para

dar continuidade, nas sucessivas unidades, às demais teorias dos gêneros. Veremos também como a natureza da literatura enquanto simulacro ou representação de representações tem

origem na teoria platônica dos três níveis de existência, segundo a qual existem três mundos paralelos: o mundo ideal,

o mundo material e o mundo das representações de representações. As representações trágicas, que são um

subgênero do gênero dramático, segundo Aristóteles, têm efeito catártico ou purificador. Para que a catarse do

espectador ou do leitor se realize eficazmente, é mister que seja observada a lei aristotélica das três unidades de tempo,

espaço e ação.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Compreensão do conceito de gênero literário e da teoria aristotélica

clássica sobre os gêneros literários.

Teoria clássica dos gêneros literários Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • classificar as representações literárias segundo os gêneros da

teoria clássica aristotélica. Pré-requisitos

Guiados pelas definições iniciais de literatura e de teoria literária, aprenderemos, nesta unidade, que todas as obras literárias podem ser classificadas segundo três gêneros, conforme uma concepção clássica formulada pela primeira vez na Idade Antiga. A divisão da literatura em gênero, no pensamento aristotélico, representa a primeira tentativa de organizar o vasto universo da criação literária e está fundamentada no conceito de mimese ou imitação da realidade, discutido na unidade 1. Você deve lembrar que imitar para Aristóteles não é copiar o real, mas transformá-lo em nova criação. Segundo o filósofo estagirita, a produção literária se divide em poesia épico-narrativa, que representa ações nobres, com um narrador que conta em 3ª pessoa; poesia dramática de cunho trágico, que concebe ações nobres, com as vozes das personagens que usam a 1ª pessoa; poesia dramática de cunho cômico, que retrata ações corriqueiras, com as vozes das personagens que se valem da 1ª pessoa; poesia lírica, que representa o mundo pessoal de um eu lírico que usa a 1ª pessoa. Introdução

Nesta terceira unidade didática, você estudará a teoria clássica dos gêneros literários. Além da teoria clássica, existem outras teorias dos gêneros literários: a romântica, a modernista e a contemporânea, que serão tratadas nas unidades seguintes.

A teoria clássica é também conhecida com o nome de teoria tradicional dos gêneros literários. É considerada clássica porque todas as outras teorias, sendo posteriores, sempre fazem referência a ela, para reafirmar, negar ou ampliar seus postulados. Para você que é estudante de Letras, é de suma importância conhecer essa teoria, cuja presença será constante ao longo de todos seus estudos literários.

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Você já sabe o que é teoria, pois esse tema foi trabalhado, nas

unidades didáticas anteriores. Só para relembrar: teoria é um conjunto de princípios fundamentais, uma doutrina ou um sistema que tem como objeto determinada arte ou ciência. Você já se perguntou sobre o significado de �gênero�? Normalmente, as pessoas associam esse termo à idéia de masculino/feminino ou aos gêneros alimentícios. Gênero é um termo latino que significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração.

Agora que você sabe o que é teoria e o que é gênero, preste atenção à sistematização dos princípios de classificação da literatura.

Platão e A República

Uma primeira sistematização do fenômeno literário foi feita por Platão, nos livros III e X de A República, que dividem a literatura em poesia dramática, lírica e épica. Platão parte do grau de imitação que cada uma dessas expressões estabelece com o real: a imitação dos homens em ação é chamada de poesia dramática; a imitação da subjetividade dos homens é chamada de poesia lírica; a imitação que mistura aspectos das duas anteriores é chamada de poesia épica.

Platão concebia um mundo dividido em três níveis. O primeiro nível é o do mundo das idéias: um mundo perfeito e inacessível para os seres humanos, em que se encontram os modelos imateriais ou ideais de tudo o que existe na matéria. O segundo nível é o do mundo material. O terceiro nível é o do mundo das representações das representações do mundo das idéias.

Para entender melhor essa concepção de mundo de Platão, faça a seguinte experiência com as pessoas de seu convívio. Reúna três ou quatro colegas e peça a eles que desenhem uma flor. Cada um desenhará uma flor diferente: pequena, grande, branca, amarela ou vermelha. No entanto, ninguém desenhará uma cadeira ou um telefone ou uma nave espacial. Isso porque todos possuem uma �idéia� de flor. Essa idéia básica que todos têm sobre o que seja uma flor corresponde ao primeiro nível estabelecido por Platão, o mundo das idéias.

Quando um artesão constrói uma flor, insere-se no segundo nível de existência platônico: ele dá vida a um objeto que representa uma idéia. Esse objeto que representa a idéia de flor corresponde ao segundo nível de existência estabelecido por Platão: o mundo material.

Finalmente, ao desenhar uma flor, seus colegas fazem uma �representação da representação�, pois o desenho de uma flor não é o objeto flor, mas a representação de um objeto flor, que, por suas vez, é a representação da idéia de flor. Com isso, fica estabelecido o terceiro nível platônico de existência: o nível do simulacro, ou seja, da representação de uma representação de uma idéia perfeita.

Você deve estar se perguntando, qual a importância de estudar os três níveis de existência de Platão. Tudo isso é importante para que você consolide a concepção de literatura enquanto representação e imitação. Segundo Platão, a literatura e a arte em geral são imitação da imitação. As narrativas, por exemplo, são feitas de palavras. Mas as palavras não são

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objetos, sentimentos ou ações. São apenas representações de objetos, sentimentos e ações. A literatura, mesmo quando é baseada em fatos reais, não trata do que aconteceu, mas do que poderia acontecer. Ter clareza quanto a essa distinção nos ajuda a não confundir literatura com realidade. Os fatos da realidade são acontecimentos realmente ocorridos; os fatos da literatura são �verdades inventadas�. Aristóteles e a Arte Poética

Aristóteles foi o mais brilhante discípulo de Platão. Sua contribuição para o desenvolvimento do pensamento filosófico é incalculável. Para Aristóteles, da mesma forma que para Platão, a literatura é imitação, e o fenômeno literário se manifesta segundo três gêneros distintos: o épico, o lírico e o dramático. Essa distinção refere-se às coisas que são imitadas e às maneiras de imitar.

Vamos definir, então, os conceitos de épico, lírico e dramático. Épico é o poema, cuja voz narrativa conta grandes feitos de heróis

ou de todo um povo. A Odisséia, escrita por Homero, é um poema épico da literatura grega que conta as aventuras de Ulisses, herói da guerra de Tróia, quando de sua viagem de retorno ao lar e à família. Os Lusíadas, de Camões, é um poema épico da literatura portuguesa que narra as aventuras de Vasco da Gama, navegador português que sai pelos mares em busca de um caminho marítimo para as Índias. Nesses dois poemas, um narrador conta, na terceira pessoa, as aventuras desses heróis. No caso de Os Lusíadas, Vasco da Gama representa o próprio povo português. Por essas características é que os dois textos em questão são chamados épicos.

Em quase todas as literaturas, temos exemplos de poemas épicos: na literatura latina, a Eneida de Virgílio; na literatura inglesa o Paraíso perdido de Milton; na literatura italiana o Orlando furioso de Ludovico Ariosto; na literatura brasileira, o Caramuru de Santa Rita Durão e O Uruguai de Basílio da Gama.

Os Lusíadas Canto I

As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando; E aqueles, que por obras valorosas Se vão da lei da morte libertando; Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

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Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram: Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.

O trecho acima é o início do Canto I de Os Lusíadas de Camões. Observe a fala em terceira pessoa e o tom de grandeza que marca o poema. Cursar Letras sem ler Os Lusíadas é deixar de conhecer o texto que organiza a língua portuguesa assim como a conhecemos hoje. O poema completo pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://lusiadas.gertrudes.com/ (acesso realizado em 3/1/2007).

Lírico é o poema, cuja voz, em primeira pessoa, fala sobre os sentimentos íntimos de um sujeito chamado, em teoria literária, �eu lírico�. Caracteriza-se pela subjetividade. Se você tem costume de ler poesia, você já identificou esse tipo de poema. Há um �eu� que fala no texto: as alegrias, as tristezas, os amores, as perdas, as ilusões, as esperanças e desejos, no poema lírico, são mostrados a partir do olhar de uma primeira pessoa. Tanto de meu estado me acho incerto Tanto de meu estado me acho incerto, Que em vivo ardor tremendo estou de frio; Sem causa, juntamente choro e rio, O mundo todo abarco, e nada aperto. É tudo quanto sinto um desconcerto: Da alma um fogo me sai, da vista um rio; Agora espero, agora desconfio; Agora desvario, agora acerto. Estando em terra, chego ao Céu voando; Num' hora acho mil anos, e é de jeito Que em mil anos não posso achar um' hora. Se me pergunta alguém porque assim ando, Respondo que não sei, porém suspeito Que só porque vos vi, minha Senhora. (http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/camoes.html; acesso realizado em 2/1/2007).

No soneto acima, escrito por Camões, observe a subjetividade do texto, a voz de um �eu� que fala de seu sentimento amoroso e de seus conflitos íntimos, resultantes do fato de amar uma mulher.

O gênero dramático se articula em forma de diálogo: existem personagens que falam, indicações de cena, de mudança de cena, de entrada

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e saída de personagens etc. Leia abaixo um trecho do Édipo Rei, tragédia escrita por Sófocles. A cena transcrita é aquela, em que o profeta Tirésias revela a Édipo o nome do assassino de Laio, antigo rei de Tebas.

CORO Acaba de chegar quem tudo nos vai descobrir! Trazem aqui o divino profeta, o único, entre todos os homens, que sabe desvendar a verdade! (Entra Tirésias, velho e cego, guiado por um menino. Escoltam-no dois servidores de Édipo).

ÉDIPO Ó Tirésias, que conheceis todas as coisas, tudo o que se possa averiguar, e o que deve permanecer sob mistério; os signos do céu e os da terra... Embora não vejas, tu sabes do mal que a cidade sofre; para defendê-la, para salvá-la, só a ti podemos recorrer, ó Rei! Apolo, conforme deves ter sabido por meus emissários, declarou a nossos mensageiros que só nos libertaremos do flagelo que nos maltrata, se os assassinos de Laio forem descobertos nesta cidade, e mortos ou desterrados. Por tua vez, Tirésias, não nos recuses as revelações oraculares dos pássaros, nem quaisquer outros recursos de tua arte divinatória; salva a cidade, salva a ti próprio, a mim, e a todos, eliminando esse estigma que provém do homicídio. De ti nós dependemos agora! Ser útil, quando para isso temos os meios e poderes, ë a mais grata das tarefas!

TIRÉSIAS

Oh! Terrível coisa é a ciência, quando o saber se toma inútil! Eu bem assim pensava; mas creio que o esqueci, pois do contrário não teria consentido em vir até aqui.

ÉDIPO Que tens tu, Tirésias, que estás tão desalentado?

TIRÉSIAS Ordena que eu seja reconduzido a minha casa, ó rei. Se me atenderes, melhor será para ti, e para mim.

ÉDIPO

Tais palavras, de tua parte, não são razoáveis, nem amistosas para com a cidade que te mantém, visto que lhe recusas a revelação que te solicita.

TIRÉSIAS Para teu benefício, eu bem sei, teu desejo é inoportuno. Logo, a fim de não agir imprudentemente...

ÉDIPO

Pelos deuses! Visto que sabes, não nos ocultes a verdade! Todos nós, todos nós, de joelhos, te rogamos!

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TIRÉSIAS

O que tem de acontecer, acontecerá, embora eu guarde silêncio!...

ÉDIPO Visto que as coisas futuras fatalmente virão, tu bem podes predizê-Ias.

TIRÉSIAS

Nada mais direi! Deixa-te levar, se quiseres, pela cólera mais violenta!

ÉDIPO Pois bem! Mesmo irritado, como estou, nada ocultarei do que penso! Sabes, pois, que, em minha opinião, tu foste cúmplice no crime, talvez tenhas sido o mandante, embora não o tendo cometido por tuas mãos. Se na fosses cego, a ti, somente, eu acusaria como autor do crime.

TIRÉSIAS

Será verdade? Pois eu! Eu é que te ordeno que obedeças ao decreto que tu mesmo baixaste, e que, a partir deste momento, não dirijas a palavra a nenhum destes homens, nem a mim, porque o ímpio que está profanando a cidade és tu!

ÉDIPO Quê? Tu te atreves, com essa impudência, a articular semelhante acusação, e pensas, porventura, que sairás daqui impune?

TIRÉSIAS O que está dito, está! Eu conheço a verdade poderosa!

ÉDIPO Quem te disse isso? Com certeza não descobriste por meio de artifícios!

TIRÉSIAS Tu mesmo! Tu me forçaste a falar, bem a meu pesar!

ÉDIPO Mas, que dizes, afinal? Não te compreendo bem! Vamos! Repete tua acusação!

TIRÉSIAS

Afirmo que és tu o assassínio que procuras!

A narrativa sobre vida, desgraças e tragédias do rei Édipo é bem conhecida no Brasil. Em 1987, a Rede Globo exibiu a novela Mandala, que era baseada no texto escrito por Sófocles. Na trama, o oráculo de Delfos prediz que Édipo mataria o pai, iria se casar com a mãe e com ela ter filhos. Na psicanálise, o conceito de complexo de Édipo é elaborado por Freud a partir desse texto. Você encontra a narrativa completa em http://www.alfredo-braga.pro.br/biblioteca/ÉDIPOrei.html

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Aristóteles, ainda, divide o gênero dramático em tragédia (que imita as ações nobres dos homens), e comédia (que imita as ações vulgares, baixas e viciosas). Os meios ou técnicas de imitação variam de acordo com o ritmo, a melodia e o tamanho do verso. Existem também variações de espaço e de tempo em que a ação se passa. Todos esses elementos são estudados por Aristóteles na obra Arte Poética. A lei das três unidades

Um aspecto importante a ser observado sobre a teoria clássica dos gêneros literários é sua visão apriorística da obra literária, segundo a qual, os valores e o perfil de uma obra são estabelecidos antes de a obra ser produzida. A teoria clássica dos gêneros literários também é conhecida pelo nome de poética clássica.

Aristóteles é o maior representante da poética clássica. Ele elabora, na Arte Poética, um conjunto de regras que, até hoje, ainda têm certa influência nos estudos literários. Um dos conceitos mais discutidos, entre os que Aristóteles apresenta, é o referente à lei das três unidades de tempo, de espaço e de ação.

Para Aristóteles, o efeito da tragédia é tanto maior quanto mais ela obedece à unidade de tempo, de espaço e de ação. Quanto mais densa e concentrada for a tragédia, maior será seu efeito sobre os leitores ou espectadores. A esse efeito dá-se o nome de catarse.

A catarse é um fenômeno resultante de um processo de tensão crescente que se constrói ao longo da trama trágica. A primeira cena apresenta um �problema�. Na sucessão das cenas, ocorre uma �complicação�, até se chegar ao �clímax�, em que é encontrada uma resposta para o problema apresentado. Achada a resposta, a tensão é desfeita, com conseqüente alívio do leitor ou espectador que viveu, vicariamente, as mesmas tensões das personagens. Essa sensação de relaxamento tem o nome de catarse. Aristóteles acreditava que essa sensação seria muito mais intensa quanto mais tivessem sido observadas as três unidades que dão a marca de excelência para a tragédia.

A unidade de tempo determina o tempo ideal para que a ação toda se desenvolva: começo, meio e fim não devem ultrapassar 24 horas; a unidade de espaço prevê que a ação se desenvolva toda em um único espaço físico; a unidade de ação define que tudo o que acontecer precisa estar voltado para a solução de uma única questão: não devem acontecer ações paralelas que não estejam diretamente envolvidas com o problema principal a ser resolvido.

Aristóteles argumenta que a não observação desses princípios faz com que a tragédia perca sua força dramática, pois a cada prolongamento temporal, deslocamento espacial ou nova ação, os elementos constitutivos da tensão se perdem, frustrando o efeito final catártico.

Aqui se conclui o estudo da teoria clássica dos gêneros literários. Não se concluem, porém, as leituras e referências sobre o tema. Você precisa ler muito mais para ampliar seu conhecimento. Fica a sugestão de que você leia a Arte Poética, de Aristóteles e o Édipo Rei, de Sófocles, considerada, dentro dos padrões estabelecidos por Aristóteles, a tragédia mais perfeita já escrita.

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Nesta terceira unidade, avançamos em nosso percurso teórico

de reflexão sobre o fenômeno da criação literária, que vem sendo construído ao longo de todo o nosso caderno de teoria literária. O primeiro passo fora definir a idéia de literatura. Sucessivamente, debruçamo-nos sobre o significado de teoria literária. Aqui, entramos em uma divisão interna essencial entre gênero épico, dramático e lírico. Nesse âmbito discursivo, revestiram extrema relevância a concepção platônica de literatura enquanto simulacro, baseada na existência de três mundos (ideal, material, das representações de representações), a lei das três unidades (tempo, espaço, ação), a função catártica da obra literária, mais especificamente da dramaturgia de cunho trágico. Ao imitar a realidade, encenando-a em um palco e emprestando a 1ª pessoa a personagens nobres, o artista cria uma tensão (no percurso dramático: problema – complicação – clímax - solução - desfecho) que se dissolve somente no fim, provocando no espectador ou leitor uma experiência de libertação.

Síntese da unidade

Leia os seguintes textos.

1 - Caramuru é um texto literário do frei Santa Rita Durão, escrito em 1781, com o intento de narrar o descobrimento da Bahia, feito quase no meio do século XVI pelo nobre Diogo Álvares Correia, e de apresentar, em vários episódios, a história do Brasil, com seus ritos e tradições. A obra começa da seguinte maneira: CANTO I De um varão em mil casos agitados, Que as praias discorrendo do Ocidente, Descobriu recôncavo afamado Da capital brasílica potente; Do Filho do Trovão denominado, Que o peito domar soube à fera gente, O valor cantarei na adversa sorte, Pois só conheço herói quem nela é forte.

(Disponível em http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/caramuru.html; acesso realizado em 2/1/2007)

2 - Neste texto literário de Aristófanes, adaptado de uma obra intitulada Lisístrata (411 a.C.), as mulheres fazem greve de sexo para forçar atenienses e espartanos em guerra a estabelecerem a paz. Aristófanes, em grego antigo Ἀριστοφάνης, (447-385 a.C.) foi um artista conservador, hostil às inovações sociais e políticas. Seus heróis defendem o passado de Atenas, os valores democráticos tradicionais, as virtudes cívicas e a solidariedade social. Violentamente satírico, critica a pomposidade, a impostura, os desmandos e a corrupção na sociedade em que viveu. Seu alvo são as personalidades influentes: políticos, poetas, filósofos e cientistas, velhos ou jovens, ricos ou

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pobres. Comenta em diálogos mordazes e inteligentes todos os temas importantes da época � a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta, os métodos de educação, as discussões filosóficas, o papel da mulher na sociedade, o surgimento da classe média. Lampito � Mas afinal quem convocou essa reunião de mulheres? Lisístrata � Fui eu. Lampito � Então vá logo dizendo o que você quer. Lisístrata � Vocês não sentem falta dos pais de seus filhos que a guerra mantém longe de vocês? Eu sei que os maridos de quase todas estão ausentes. Cleonice � (suspirando) Quanto ao meu, há cinco meses o coitadinho está fora, lá na Trácia, tomando conta de um general para ele não fugir! Lisístrata � É exatamente isso. Homem mesmo, que é bom, não há. Desde que começou esta última guerra nós não temos consolo... De grande só temos mesmo a saudade. Se eu achasse um meio, vocês concordariam com meu plano para acabar com esta guerra? Cleonice � É claro! Eu, pelo menos, topo qualquer parada, ainda que tenha que empenhar tudo o que é meu. Lampito � E eu subiria uma montanha de joelhos se soubesse que lá no cume encontraria a paz. Lisístrata � Então vou falar, pois não há mais razões para guardar segredo. Nós, mulheres, se quisermos obrigar nossos maridos a votar pela paz teremos de nos privar... de fazer amor! Ei! Por que vocês estão indo-se embora? Aonde vocês vão? Por que estão com essa cara amuada e coçando a cabeça? E essas lágrimas? Vocês vão ou não vão fazer o que eu disse? Qual é a dificuldade? Cleonice � Isso eu não posso fazer. Deus me livre! Antes a guerra! Mirrina � Nem eu. Deus me livre! Prefiro a guerra! Cleonice � Faço qualquer coisa que você queira. Se for preciso andar descalça em cima de uma fogueira, conte comigo. Antes isso que passar sem fazer amor. Isso é insubstituível, minha querida! Lisístrata � Ó sexo dissoluto! Não escapa uma! Quando vocês não estão pensando num homem é porque estão pensando em vários! Cleonice � E se, na medida do possível, nós nos privássemos disso que você disse � Deus me livre! � você garante que conseguiríamos a paz? Será que não há outro meio? Lisístrata � O meio é exatamente esse! Se ficarmos em casa, bem pintadas, com vestidos transparentes, deixando ver certos lugares bem depiladinhos, e quando nossos maridos avançarem para nós, taradinhos, loucos para nos agarrar, nós não deixarmos, garanto que eles votarão logo pela paz! Cleonice � E se nossos maridos nem perceberem nossos encantos à mostra? Lisístrata � Eles vêem até o que está escondido, minha filha, quanto mais o que se mostra! Vamos todas jurar com as mãos em cima de um escudo, como fazem os homens. Lisístrata � Ponham as mãos por cima da taça. E uma de vocês repetirá em nome de todas o que eu for dizendo. Vocês jurarão o mesmo que eu. E nosso compromisso solene será indissolúvel.

(Disponível em http://www.escolanacionaldeteatro.com.br/texto22.htm; acesso realizado em 2/1/2007)

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3 - Este texto literário é de Luís Vaz de Camões (1524-1580), considerado o maior escritor de língua portuguesa e um entre os mais notáveis da literatura ocidental de todos os tempos, seu gênio sendo comparável ao de Virgílio, Dante, Cervantes, Shakespeare. O texto em questão fala da precariedade da existência humana, tema universal desenvolvido por inúmeros letrados e aqui admiravelmente tratado por Camões. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem (se algum houve...) as saudades. O tempo cobra o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía.

(Disponível em http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/camoes.html; acesso realizado em 2/1/2007)

Em relação a cada um dos três textos literários propostos

anteriormente, respectivamente de Santa Rita Durão, Aristófanes e Camões, aponte se há preponderância da 1ª ou da 3ª pessoa ou se é prevalente a voz dada diretamente às personagens, se as ações expostas são nobres ou corriqueiras, se há presença de heróis, se está sendo representado o mundo exterior ou um mundo interior, íntimo e pessoal. Depois, em função das características observadas, classifique cada texto segundo a teoria clássica dos gêneros literários.

Obra/autor Pessoa Ações Herói Mundo

representado

Gênero

Caramuru de

Santa Rita

Durão

Lisístrata de

Aristófanes

Soneto de

Camões

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Teoria da Literatura Letras

A finalidade dessa atividade é verificar se a meta e o objetivo

estabelecidos no começo desta unidade foram adequadamente alcançados. Está sendo testada, portanto, a compreensão dos gêneros literários e a capacidade de aplicação dessa compreensão em textos literários concretos. O propósito é estabelecer qual dos textos respectivamente de Santa Rita Durão, Aristófanes e Camões é lírico, épico e dramático. E, para isso, traçamos um caminho que, se percorrido fielmente, vai nos levar naturalmente à solução do problema. Com efeito, o lírico depende da presença de um eu poético que se expressa em 1ª pessoa, em relação a ações corriqueiras ou cotidianas, sem a presença de heróis ou seres excepcionais, representando um mundo interior, íntimo e pessoal; por sua vez, o épico mantém relação com a 1ª pessoa de um narrador que se refere a fatos heróicos e ações nobres, contados em 3ª pessoa, com a representação do mundo exterior; enfim, o dramático está vinculado também a uma 1ª pessoa que, porém, não pertence a uma voz externa, mas a cada uma das personagens que tomam parte ativa no desenrolar da ação cênica, com ações e personagens nobres (no caso da tragédia) ou corriqueiras (no caso da comédia), e com a representação do mundo exterior.

Comentário

Referências ARISTÓFANES. Lisístrata. Disponível em http://www.escolanacionaldeteatro.com.br/texto22.htm, acesso realizado em 2/1/2007. ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2003. CAMÕES, Luiz Vaz de. Os lusíadas. Disponível em http://lusiadas.gertrudes.com/, acesso realizado em 2/1/2007. ---------------. Sonetos. Disponível em http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/camoes.html, acesso realizado em 2/1/2007. PLATÃO. A república. São Paulo: Perspectiva, 2006. DURÃO, Santa Rita. Caramuru. Disponível em http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/caramuru.html, acesso realizado em 2/1/2007.

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Teoria da Literatura Letras

A seguir estudaremos uma nova concepção

teórica sobre criação literária: a poética romântica. Alguns teóricos e críticos literários acreditam que toda a

história da literatura ocidental possa ser dividida em duas grandes tendências: a tendência clássica e a

tendência romântica. É fundamental, portanto, além de conhecer o Classicismo e o Romantismo enquanto

movimentos literários historicamente determinados (coisa que você fará ao longo de seus estudos de

História da literatura), compreender as peculiaridades dessas duas escolas enquanto marcas estéticas de

qualquer produto literário ocidental, independentemente da época e do lugar de composição. É o que faremos na

unidade didática 4. Atenção: para um bom aproveitamento da comparação entre estética clássica e

estética romântica, é necessário que você tenha claros todos os conhecimentos construídos até aqui. Portanto,

se ainda existe alguma dúvida, antes de passar à próxima unidade, volte ao material já lido, troque idéias com seus colegas e entre em contato com seu web-tutor.

Informações sobre a próxima unidade

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Teoria da Literatura Letras

Meta da unidade Apresentação das características da teoria romântica dos gêneros

literários.

Teoria romântica dos gêneros literários Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • diferenciar a concepção romântica da concepção clássica

dos gêneros literários. Pré-requisitos

Na unidade didática 4, efetuaremos um aprofundado cotejamento entre idéias clássicas e idéias românticas de criação literária.

Logo, para um bom aproveitamento desta unidade, são imprescindíveis os conhecimentos sobre poética, enquanto reflexão acerca do fazer literário, e sobre as particularidades da poética clássica, a saber, objetividade, imitação de modelos consagrados, formalidade, concepção aristotélica, visão apolínea, equilíbrio, finalidade didática e moral da arte, rigidez normativa, mitologia e conformismo. Será a partir dos conceitos aqui sinteticamente lembrados que procedermos, por oposição, ao delineamento das peculiaridades da poética romântica.

Introdução

Conforme você pôde perceber na unidade 3, a poética clássica tinha um caráter fortemente disciplinador e regulador da atividade literária: o texto precisava atender a regras claras e rígidas de composição, caso contrário, não seria considerado literatura. Desde uma perspectiva contemporânea, após termos passado, ao longo dos séculos, por tantas mudanças no processo de criação e de validação da obra literária, a poética clássica evidencia seu tom autoritário que, de alguma forma, engessa a criação em sólidas camisas de força.

No entanto, apesar disso, inúmeros poetas clássicos têm criado obras de valor estético e literário inigualável. Textos como o Édipo Rei de Sófocles são prova de que o talento é sempre maior do que qualquer imposição externa ao ato criativo. Édipo Rei é uma tragédia que obedece a todas as regras impostas pela poética clássica: respeito à lei das três unidades e à proposição de pureza dos gêneros literários. Não é admitida, na poética clássica, a mistura de gêneros dentro do mesmo texto, como, por exemplo,

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Apolo (em gr., Απόλλων) é um deus grego, filho de Zeus e Leto.

Em época mais tardia foi identificado com Hélios, deus do sol, pois era antes o deus da luz.

Mais tarde ainda, foi conhecido primordialmente como uma

divindade solar. (Adaptação do conteúdo disponível em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Apolo; acesso realizado em

11/1/2007)

Etimologia (do grego antigo ἐτυµολογία, composto de ἔτυµον = verdadeiro e λογία = ciência)

é a parte da gramática que trata da origem histórica das palavras

e da explicação de seu significado, por meio da análise

dos elementos que as constituem.

(Adaptação do conteúdo disponível em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Etimologia; acesso realizado em

10/1/2007)

acontece em uma tragicomédia, que é um artefato literário híbrido e de concepção mais recente.

A poética clássica marca um período evolutivo da literatura em que o centro das questões não é o homem com suas inquietações diante do mundo, mas a forma e a perfeição do texto literário: o classicismo tinha como bandeira o elogio da razão, da lógica e do bom senso e inspirava-se em valores aristotélicos e apolíneos. Aristóteles foi o filosofo do equilíbrio e da justa medida. Apolo era o deus da luz, da pureza e da perfeição. Em uma palavra, a poética clássica foi marcada pela objetividade.

Há um momento em que se faz necessária uma ruptura com o modelo clássico de perfeição e de pureza. Com o surgimento de um novo

gênero literário, o romance, uma nova visão do homem e do mundo vem à tona. Novos valores são estabelecidos em contraposição aos valores clássicos. Tome cuidado para não confundir o termo �romance� com o termo �romântico�. Embora as duas palavras tenham uma origem etimológica comum, seus significados são diferentes: romance é uma estrutura literária, como o conto, o poema, a crônica, o drama etc.; romântico diz respeito aos referenciais estéticos de determinada manifestação romanesca (assim, por exemplo, temos o romance romântico, o romance de ficção científica, o romance de aventura, o romance policial etc.).

A revolução do pensamento, do comportamento e da expressão artística que deu origem ao Romantismo caracteriza-se, ao contrário do Classicismo, por uma tendência dionisíaca e platônica. Platônica pelo fato de Platão ter uma visão idealizada do mundo. Dionisíaca por estar associada ao deus grego Dionísio, deus do vinho, da alegria e da festa. Em uma palavra, a maior peculiaridade da poética romântica é a subjetividade.

No Romantismo os valores clássicos são questionados. Novas proposições de escrita e de literatura se impõem. A literatura deixa de ter necessariamente uma finalidade moral e educativa, visando à construção de uma realidade ideal.

Os valores lógico-racionais cedem lugar à valorização da emoção, do individualismo, do �eu�. Para os românticos, a emoção não pode ser medida ou ficar presa a leis, imposições, limites que regulam sua expressão. As proposições impositivas da poética clássica não mais respondem aos anseios da nova geração romântica.

O espírito romântico caracteriza-se por uma visão de mundo focada no indivíduo: o autor romântico trata de seus dramas e dores pessoais, de seus amores nem sempre correspondidos, de suas utopias, de suas emoções, de sua subjetividade.

Esse espírito romântico não se restringe à literatura, antes, a expressão da religiosidade, da volta à natureza, da valorização dos temas nacionais e do passado espalha-se por todas as artes. Jean-Jacques Rousseau, filósofo francês, teve uma grande influência sobre o Romantismo. Sua tese de que o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade sinaliza a exaltação de um estádio humano primitivo supostamente puro e incorrupto. Essa concepção também é conhecida como mito do bom selvagem.

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Dionísio é o deus grego equivalente a Baco, no panteão romano, deus das festas, do vinho e do lazer. Passou parte de sua gestação na coxa de seu pai, pois sua mãe (Dionísio é o único deus filho de uma mortal) morreu antes de ele nascer. Ao se tornar homem, Dionísio se apaixona pela cultura da uva e descobre a arte de extrair o suco da fruta. Porém a inveja de Hera (esposa traída de Zeus) leva Dionísio a ficar louco e a vagar por várias partes da Terra. Quando passa pela Frígia, a deusa Réia o cura, instruindo-o em seus ritos religiosos. Curado, ele atravessa a Ásia ensinando a cultura da uva. (Adaptação do conteúdo disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Dion%C3%ADsio, acesso realizado em 12/1/2007)

No entanto, a marca mais forte do Romantismo pode ser considerada a liberdade de expressão. Para nosso estudo sobre a poética romântica, esse traço será o mais importante. Características da criação literária romântica A poética romântica apresenta diversas características, entre as quais podemos observar as seguintes:

• Posição frontalmente contrária ao Classicismo, pois a liberdade de expressão não poderia admitir regras ou imposições à livre manifestação dos sentimentos dos autores.

• Recusa da mitologia clássica: no Classicismo, observa-se a presença de histórias de deuses que fazem dos homens joguetes de suas paixões. No Romantismo, as paixões são humanas e não há mais lugar para a presença da mitologia e de seus deuses: o homem ocupa integralmente o espaço literário.

• Valorização das tradições populares da literatura: as histórias nacionais passam a ser valorizadas com o objetivo de se constituir uma idéia de nacionalidade.

• O gosto pelo exótico passa a fazer parte dos valores cultuados pelos românticos. Nessa época, são comuns viagens a lugares e países ainda não conhecidos pelos europeus.

• A poesia romântica valoriza as influências medieval e cristã. • É claramente perceptível na poesia romântica um elogio à

melancolia, ao soturno, à espiritualidade. • Há uma inquietação, certo incômodo diante da vida e das

situações sociais de desigualdade. Nisso o Romantismo difere radicalmente da indiferença clássica.

• No Romantismo, não há a previsão de características a serem rigorosamente observadas por seus adeptos. Por isso, a literatura romântica apresenta características pessoais, emocionais e sociais que são as do tempo de produção e do autor que produz o texto.

• Sentimentalismo, paixão, dramas interiores e fantasia são características presentes e marcantes na literatura romântica.

• Não há normas a serem seguidas, mas liberdade de expressão, tanto na forma quanto na temática. A estética romântica é chamada também de estética do gênio criativo, em contraposição ao caráter modelar clássico. No Classicismo, com efeito, o ideal da criação estética é representado pela imitação dos grandes mestres do passado; no Romantismo, o ideal criativo é totalmente apoiado no conceito de plena liberdade e originalidade.

Com base naquilo que foi estudado até agora, a que conclusões

podemos chegar? Observe que, na poética clássica, existe uma diretriz prévia que orienta a composição literária; por esse motivo ela é conhecida como uma poética apriorística. Já na poética romântica, podemos notar que não há

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Teoria da Literatura Letras

Na unidade didática 4, realizamos uma importante

contraposição entre estética clássica e estética romântica. Lembrando-nos de que, no campo da arte, por tratarmos de manifestações do espírito humano, não existe rigidez e precisão, mas aproximação e fluidez de conceitos, tentaremos propor a seguir um esquema sintético dos principais tópicos de diferenciação entre poética clássica e poética romântica.

Estética clássica Estética romântica

Modelaridade Originalidade

Objetividade (MUNDO) Subjetivismo (EU)

Foco na perfeição formal Foco no homem

Pressupostos filosóficos aristotélicos Pressupostos filosóficos platônicos

Concepção existencial apolínea Concepção existencial dionisíaca

Equilíbrio e justa medida Emoção, paixão e sentimento

Finalidade moral e educativa da arte Finalidade expressiva da arte

Regras de composição Total liberdade criativa

Mitologia pagã Cristianismo

Luz, dia, claridade Atmosferas soturnas, noite

Conformismo Inconformismo social, político e cultural

Síntese da unidade

mais nenhum vestígio de imposição, o que deixa os autores muito mais livres para criar seus textos e manifestar suas emoções.

Essas características fazem da poética romântica um conjunto de manifestações literárias que não pode ser estudado a partir de um parâmetro único. Por ter uma expressividade heterogênea, a poética romântica, ao contrário da clássica, ficou conhecida como uma tendência poética sem regras claras de expressão: houve muito mais manifestações do que discursos sobre forma e conteúdo. É quase como se cada autor fosse detentor de um código próprio de expressão que dispensasse a relação com seus contemporâneos. A liberdade de expressão exigida e exercida pelos românticos evidencia uma das peculiaridades mais marcantes desse período: a manifestação da subjetividade.

Analise e avalie as seguintes afirmações, marcando para cada uma

delas um �C�, se está inspirando-se na poética clássica, ou um �R�, se está inspirando-se na poética romântica.

( ) A formulação de um estatuto autônomo da arte, livre de entraves religiosos e feudais, independente do mecenato e das prescrições morais, implica na criação de obras de arte que tenham valor em si mesmas e não estejam presas a critérios de utilidade ou ao cumprimento de funções alheias à obra de arte em si. ( ) A arte literária fundamenta-se na imitação da realidade e na imitação dos mestres já consagrados pela tradição. ( ) O ideal consiste em nunca fazer algo com excesso.

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Teoria da Literatura Letras

Comentário

( ) A obra de arte flutua sobre quaisquer imposições vindas de esferas não-estéticas (morais, sociais, religiosas ou políticas). ( ) O belo não tem objetivo fora de si. Não é belo por causa da perfeição de outra coisa qualquer, e sim por causa de sua própria perfeição interna. Contemplamos um objeto belo não porque precisamos dele por alguma utilidade prática, mas pela pura contemplação da beleza. ( ) A arte tem uma dúplice vocação: deve ser útil, isto é, ensinar, educar, e, ao mesmo tempo, dar prazer. A esse propósito, certos autores utilizaram o famoso mote �delectare et prodesse�, que significa justamente �deleitar e ser útil�. ( ) A genialidade é uma disposição natural inata que dá à arte a regra. O gênio produz aquilo para o qual não se pode dar nenhuma regra externa previamente determinada. Conseqüentemente, a originalidade deve ser sua primeira propriedade. ( ) A literatura para alcançar sua principal missão enquanto arte, a saber, a de gerar o belo, não pode ter engajamento político. ( ) No pensamento equilibrado, a emoção comparece inteiramente sujeita ao controle da razão. Suas criações literárias são a tradução poética de temas nobres e elevados, com o objetivo de extrair lições morais e conceitos universais de cunho estético. Predomina a indiferença solene do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses, diante do destino inelutável e da morte como termo definitivo de toda vida. Inerme perante tais forças, o homem sábio vive a vida de forma equilibrada e serena, sem grandes desassossegos nem grandes alegrias, já que tudo passa e tudo perde o sentido diante da morte inevitável. ( ) A expressão de uma profunda dor deve ser contida na medida em que é regida pela lei da beleza. O mestre deve representar o grau mais elevado da beleza com o dado acidental da dor física.

A respeito da primeira afirmação, você pode voltar ao conteúdo desta unidade, onde se atesta que a arte romântica deixa de ter obrigatoriamente uma finalidade ideal de formação. Com o surgimento dessa nova idéia, estamos exatamente na origem do conceito moderno de autonomia da obra de arte em si e por si mesma.

Em relação à segunda afirmação, retorne ao conceito aristotélico de mimese, discutido na unidade didática 3, e às características primeira, oitava e décima da poética romântica apresentadas nesta unidade.

A terceira afirmação da atividade vincula-se à máxima aristotélica �in medio virtus�, que quer dizer �a virtude está no meio�. A poética ligada a essa linha de pensamento exalta o equilíbrio, a prudência, o incansável trabalho de criação literária.

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Teoria da Literatura Letras

A quarta asserção diz respeito ao espírito de liberdade que anima todas as manifestações culturais a partir do século XIX, época que assiste à consolidação do poder por parte da classe burguesa.

Em quinto lugar, temos uma proposição em plena consonância com o que já vínhamos comentando a propósito da autonomia da obra literária do Oitocentos para cá.

Horácio, em sua Ars poetica, sustenta a dúplice função da arte literária de que trata a sexta afirmação da atividade: agradar e formar. Toda a escola tradicional defende a necessidade de que a arte tenha, ao lado do entretenimento e do gozo estético, também uma função educativa.

A contraposição entre os dois paradigmas de criação literária, o clássico e o romântico, estudada nesta unidade, baseia-se na convicção de que a origem da produção literária resida em um corpus teórico previamente determinado (extrínseco à obra), no primeiro caso, ou no talento do artista (origem intrínseca), no segundo caso. A sétima declaração, avaliada na atividade, toma uma posição bem definida a favor de um e contra outro paradigma.

Outro elemento importante, na dicotomia entre clássico e romântico, é a indiferença e o conformismo, de um lado, e o compromisso, a luta e o engajamento, de outro lado. Especificamente na oitava assertiva, a arte deve ficar alheia ás questões particulares da sua época, universalizando-as e elevando-as a uma dimensão supra-histórica, ou pode envolver-se diretamente com os problemas contingentes do seu tempo? Esse é um debate, em que as duas poéticas estudadas nas unidades 3 e 4 tomam um posicionamento bem diferente uma da outra.

A nona afirmativa põe em jogo temas já discutidos a respeito da primeira, terceira, quarta, sexta e oitava assertivas: equilíbrio, função moral, indiferença, conformismo, ausência de excessos. A composição de todas essas características dá vida ao perfil de uma poética que certamente você não terá dificuldade em reconhecer.

Enfim, a décima afirmativa submete todo e qualquer valor expresso na obra de arte à lei do belo e ao princípio do equilíbrio. A beleza clara, luminosa, apolínea e a medida justa, prudente, aristotélica são componentes peculiares de uma determinada concepção artística que facilmente você conseguirá identificar. Referências http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikcion%C3%A1rio http://pt.wikipedia.org/wiki/Apolo, acesso realizado em 11/1/2007. http://pt.wikipedia.org/wiki/Etimologia, acesso realizado em 10/1/2007. http://pt.wikipedia.org/wiki/, acesso realizado em 12/1/2007.

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Após viajarmos pelos fascinantes universos do classicismo e do romantismo, mergulharemos, nas próximas páginas, no complexo mundo do modernismo que chega á maturidade no século XX. Veremos como alguns elementos românticos serão levados à frente e desenvolvidos, como, por exemplo, o inconformismo e a oposição a tudo o que é consagrado. Por outro lado, veremos também, a desconstrução de idéias em voga no período oitocentista, como a noção de tempo cronológico superado pelo tempo psicológico, como a noção de identidade burguesa superada por outras identidades periféricas e como a própria noção de subjetivismo que se aprofunda com os estudos psicanalíticos.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Apresentação das principais características da cultura moderna e

diferenciação das poéticas modernista, romântica e clássica.

Teoria modernista dos gêneros literários Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • reconhecer as marcas da modernidade em textos literários,

realizando as devidas diferenciações entre estética modernista, estética romântica e estética clássica.

Pré-requisitos

Nosso estudo sobre teoria dos gêneros literários, começado com Aristóteles no século IV a.C., passando pelos séculos românticos XVIII e XIX, chega agora ao século XX, que é a época da maioridade da modernidade surgida com o Renascimento do século XVI.

Toda vez que apresentamos uma nova poética, necessariamente, efetuamos algumas comparações com as poéticas que a precederam. No caso desta unidade, não será diferente. Por isso, para bem entender a concepção modernista de criação literária, é preciso retornar à marca de subjetividade que conota a poética romântica, assim como a expusemos na unidade 4.

O subjetivismo romântico será desenvolvido, no século XX, transformando-se em linguagens e temáticas sugestivas que, acentuando a verticalização analítica do eu, sondarão não mais apenas emoções e sentimentos humanos, mas as esferas do inconsciente e de seus fantasmas, tradicionalmente relegadas no plano da anormalidade, da alienação e do delírio.

Inserido em uma relação totalmente nova para com o tempo, o homem do século XX descobre o tempo psicológico, que, à diferença do tempo cronológico, ora é exageradamente lento em experiências extremadas de introjeção, ora exageradamente frenético no ritmo acelerado do urbanismo industrial.

A relativização das categorias de tempo e de espaço serve de contraponto a certa fluidez nas identidades humanas, abrindo as portas para a fragmentação que haverá de vir com a pós-modernidade.

O vácuo normativo inaugurado pelo Romantismo permite, agora, aos vanguardistas modernos, novas e arriscadas experimentações de ordem formal e temática.

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Como você pôde notar, a poética modernista se desenvolve em uma relação de contraposição com a poética clássica e em uma relação dialógica e dialética com a poética romântica, da qual se diferencia, embora representado de certa forma sua lógica e natural evolução.

Introdução

Nas unidades 3 e 4, aprendemos a elaborar dois parâmetros de compreensão da literatura. Em primeiro lugar, estudamos a poética clássica, caracterizada por uma visão aristotélica e apolínea do fenômeno literário, que privilegia formas exatas e claras e regras objetivas do bom escrever. A poética clássica é classificada como apriorística: primeiramente, é preciso conhecer as regras e, em seguida, compor o texto literário.

Em seguida, trabalhamos a poética romântica, que traz à cena literária as emoções do autor, seus dramas íntimos, suas dores e alegrias, sua individualidade, seus desejos, seu �eu�. Na poética romântica, a subjetividade ocupa o centro da produção literária: é a visão de mundo pessoal do autor que orienta sua escrita; não existem regras prévias à criação e extrínsecas à obra a serem seguidas; há um culto ao individualismo, à liberdade de manifestação das idéias e à livre construção do texto poético.

Vamos, agora, estudar a poética do modernismo e buscar identificar quais são suas linhas de força, proposições e métodos. É importante ter sempre em mente as características das poéticas já estudadas, para definir quadros de referência a partir de uma perspectiva de comparação, o que pode auxiliar no momento de estudos e exames.

O vocábulo �moderno� possui diversos significados, entre os quais, o de novidade e de diferenciação do passado. Segundo essa acepção, qualquer movimento artístico, literário, filosófico ou político que seja mais recente do que outro com que é comparado pode ser considerado moderno. Para exemplificar, podemos dizer que o Barroco é mais moderno do que o Classicismo, que o Arcadismo é mais moderno do que o Barroco, que o Romantismo é mais moderno do que o Arcadismo, que o Realismo é mais moderno do que o Romantismo, que o Simbolismo é mais moderno do que o Realismo etc.

O critério usado para fazer a classificação acima é o temporal: colocados em uma linha do tempo, os movimentos que mais se aproximam do momento presente serão sempre mais modernos do que aqueles que se encontram mais distantes. No entanto, esse não pode ser o único critério a ser considerado, caso contrário, a relação construída seria bastante frágil. Nessa unidade, vamos estudar outros aspectos que podem ser levados em consideração, para que se estabeleça uma relação mais sólida, entre as obras literárias e a teoria moderna que as quer abordar.

O conceito de modernidade nos gêneros literários

A modernidade se caracterizaria, primeiramente, por uma maior acentuação no caráter subjetivo da criação literária; pela inclusão da máquina como parceira constante da vida cotidiana, pelo uso do saber que tivesse uma utilidade imediata, por uma aceleração na relação com o tempo advinda da cooperação homem/máquina. Na modernidade acentua-se a busca pelas identidades diferenciadas, o que vai gerar um olhar que vê da periferia para o centro.

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Filippo Tommaso Marinetti (22 de dezembro de 1876,

Alexandria, Egito - 2 de dezembro de 1944, Bellagio,

Itália) foi um escritor, ideólogo, poeta e editor italiano, e

iniciador do movimento futurista, o chamado futurismo, cujo

manifesto publicou no jornal parisiense Le Figaro (20 de

fevereiro de 1909). (Disponível em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Marinettittp://pt.wikipedia.org/wiki/Marinetti ;

acessado em 14/1/2007)

Nota-se um descontentamento com a vida e com as relações sociais que se acentua na medida em que a cidade moderna se enche de pessoas solitárias que caminham sem rumo pelas ruas: nasce nesse contexto o �flâneur�, o cidadão que vê a cidade, que deambula meio desorientado diante do novo que é a modernidade, numa necessidade de ver o mundo todo, de caber no mundo todo.

Desse espírito de modernidade nascem as diferentes vanguardas: movimentos artísticos e literários que, no mais das vezes, não apresentarão um número significativo de seguidores e que não farão escola, como fizeram os movimentos que os precederam. Na modernidade, existe uma postura questionadora da realidade consagrada, uma atitude inovadora voltada para tudo aquilo que é alternativo, periférico e desprestigiado pela cultura oficial dominante, atitude de busca e de experimentação formal e temática.

Essa busca pelo novo, esse experimentalismo, a descoberta ou invenção de novas formas de expressão e de novas realidades representadas na ficção, vai fazer da literatura um campo extremamente fértil para a manifestação de novas e criativas individualidades literárias. Se for preciso dizer em poucas palavras algo que pudesse caracterizar a modernidade, diríamos que a modernidade é multifacetada. Esse caráter é perceptível na ruptura que a modernidade propõe com a tradição: a modernidade sugere a realidade, no lugar de defini-la objetivamente em todas as suas nuances.

O ritmo moderno de vida não se adapta mais ao compasso clássico e romântico: é preciso que o discurso literário acompanhe o desenvolvimento industrial, que fala a língua da máquina, do movimento, da aceleração. Há uma nova noção de tempo que é bem observada por Marinetti no terceiro item de seu Manifesto Futurista: a literatura, no passado, exaltara a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono; nos tempos modernos, teria chegado a hora de exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco.

É importante observar que o manifesto de Marinetti expressa de forma mais agressiva e acabada o que já havia começado com Baudelaire, o primeiro poeta moderno. Na lírica de Baudelaire ecoa a voz de Edgar Allan Poe, que via a literatura como uma ferramenta capaz de tirar o conforto do leitor, desconcertando-o e confrontando-o com uma linguagem obscura, quase incompreensível, que exige dele uma inteligência crítica mais aguçada. Nessa perspectiva, a modernidade é um espaço de luta entre o autor, a obra e o leitor. O embate é um recurso presente nas diversas manifestações artísticas da modernidade, uma vez que nelas há a presença de situações sociais chocantes que, até então, não tinham sido absorvidas pela arte.

Tensão, pressão, controvérsia são marcas maiores da poética modernista: todo o aparato literário se coloca em função de criar dissonâncias, obscuridade, diferentes realidades e diferentes respostas para a produção do texto literário, que não se quer mais exato ou apenas subjetivo,

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mas sugestivo, repleto de possibilidades de leitura, de interpretação e de construção de significados. Para traçar uma possível trajetória da modernidade, leiamos alguns trechos do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe: Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de alguém que batia levemente a meus umbrais. "Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais. É só isto, e nada mais." Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais - Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais!

O poema continua e você pode ler o texto completo em:

http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/trad/921.html. Após leitura do poema completo, leia outro texto de Edgar Allan Poe que explica a construção do poema O Corvo, �A Filosofia da Composição�, que você encontra no seguinte endereço: http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/filosofia.htm.

A influência de Edgar Allan Poe para a origem da modernidade é perceptível na obra de Baudelaire, de Mallarmé e de Valéry, poetas franceses que por primeiros traduzem o sentimento moderno em seus textos. A cidade com seus espaços públicos e privados, com suas personagens, com seus encantos e misérias entra na cena literária com Baudelaire, que apresenta a figura do �flâneur�, o cidadão que caminha a esmo pela cidade, vendo e deixando-se ver. No livro As Flores do Mal, esse sentimento de modernidade é expresso de forma exemplar. No poema que você vai ler a seguir, observe como é tratada a questão do anonimato das ruas, dos encontros fortuitos, das diversas possibilidades de acontecer um verdadeiro encontro entre as pessoas, encontro esse que é apenas sugerido, mas que não acontece. Baudelaire, em suas cenas de rua, faz a contraposição entre a previsibilidade dos salões literários e os desencontros, os acasos, as possibilidades, os medos da vida moderna. Para ler mais poesia de Baudelaire, visite http://br.geocities.com/edterranova/baudelapoesias2.htm. Boa leitura! A uma passante A rua em derredor era um ruído incomum. Longa, magra, de luto e na dor majestosa, Uma mulher passou e com a mão faustosa Erguendo, balançando o festão e o debrum; Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. Eu bebia perdido em minha crispação No seu olhar, céu que germina o furacão, A doçura que embala e o frenesi que mata.

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Síntese da unidade

Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade, E cujo olhar me fez renascer de repente, Só te verei um dia e já na eternidade? Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais, Tu que eu teria amado - e o sabias demais! Poética modernista

Para concluir nossa discussão, é preciso ainda dizer que, diferentemente da poética clássica, que apresenta uma característica prescritiva (em primeiro lugar, o conhecimento das regras e, posteriormente, a produção do texto literário), diferentemente da poética romântica, que prega a abolição total das regras em função de uma livre expressão da subjetividade do escritor, a poética modernista se caracteriza pelo fato de, primeiro, os autores escreverem os textos, sucessivamente, os críticos os julgarem e, finalmente, os teóricos estabelecerem padrões de escrita e de expressão tipicamente modernistas.

Como vocês puderam observar, foram apresentadas características de textos escritos por autores do período modernista, do fim do século XIX e parte do século XX. A poética modernista constrói-se, então, a partir da leitura desses textos literários, por meio da observação das propostas literárias, das tendências presentes nos textos, da forma de construção do discurso, da manifestação da individualidade, da direção do olhar sobre a sociedade e sobre a vida na cidade. Outro ponto capital para a compreensão da poética modernista é a constante busca por respostas. Cada texto traz em si uma resposta possível que seu autor formula para as questões sociais, políticas, filosóficas, literárias e existenciais de seu tempo.

Na próxima unidade didática concluiremos nossas discussões sobre as poéticas literárias tratando da teoria contemporânea dos gêneros literários.

A unidade didática 5 teve como foco principal o conceito de

modernidade em literatura, que, surgido já no século XVI, chega à sua plena maturidade no século XX. Ao longo da nossa discussão sobre a concepção do Novecentos acerca dos gêneros literários e da criação artística, desenvolvemos o significado do termo “moderno” além de uma acepção meramente cronológica. Surgiram, então, enquanto aspectos peculiares da modernidade, a concepção utilitarista e imediatista do saber, a extremada desaceleração ou a frenética aceleração de uma nova categoria temporal chamada de tempo psicológico, a valorização das identidades periféricas, tradicionalmente desprestigiadas, e de tudo o que se apresenta como alternativo, o inconformismo existencial e social, a férrea crítica a tudo que é convencional, canônico ou consagrado, uma acentuada propensão ao experimentalismo formal e temático responsável por um rico panorama de produção vanguardista, a intenção de não simplesmente entreter, mas chocar, abalar e provocar o fruidor da arte, uma linguagem sugestiva, um aprofundamento do

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subjetivismo até alcançar as dimensões do subconsciente e do inconsciente.

1 - Você sabe o que é um palíndromo? É uma palavra ou mesmo uma frase que pode ser lida de frente pra trás e de trás pra frente mantendo o mesmo sentido. Por exemplo, em português: �amor� e �Roma�; em espanhol: �Anita lava la tina�. Ou, então, a frase latina: �Sator arepo tenet opera rotas�, que não só pode ser lida de trás pra frente, mas pode ser lida na vertical, na horizontal, de baixo pra cima, de cima pra baixo, girando os olhos em redor deste quadrado: S A T O R A R E P O T E N E T O P E R A R O T A S

Essa frase latina polivalente foi criada pelo escravo romano Loreius,

200 anos antes de Cristo, e tem dois significados: �O lavrador mantém cuidadosamente a charrua* nos sulcos� e/ou �o lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita�. Osman Lins construiu o romance �Avalovara� (1973) em torno desse palíndromo.

Muita gente sabe o que é um caligrama - aqueles textos que existiam desde a Grécia antiga, em que as letras e frases iam desenhando o objeto a que se referiam - um vaso, um ovo, ou então, como num autor moderno tipo Apollinaire, as frases do poema se inscrevendo em forma de cavalo ou na perpendicular imitando o feitio da chuva. Mas pouca gente sabe o que é um lipograma. Lipo significa tirar, aspirar, esconder. Portanto, um lipograma é um texto que sofreu a lipoaspiração de uma letra. O autor resolve esconder essa letra por razões lúdicas. Já o grego Píndaro havia escrito uma ode, sem a letra �s�. Os autores barrocos no século XVII também usavam esse tipo de ocultação, porque estavam envolvidos com o ocultismo, com a cabala e com a numerologia.

Por que estou dizendo essas coisas? Culpa da Internet. Esses jogos verbais que vinham sendo feitos desde as cavernas agora foram potencializados com a informática. Dizia eu numa entrevista outro dia que estamos vivendo um paradoxo riquíssimo: a mais avançada tecnologia eletrônica está resgatando o uso lúdico da linguagem e uma das mais arcaicas atividades humanas - a poesia. Os poetas, mais que quaisquer outros escritores, invadiram a Internet. Se em relação às coisas prosaicas se diz que a vingança vem a cavalo, no caso da poesia a vingança veio a cabo, galopando eletronicamente. Por isto que toda vez que um jovem iniciante me procura com a angústia de publicar seu livro, aconselho-o logo: �Meu filho, abra uma página sua na Internet para não mais se constranger diante dos editores e críticos. Estampe seu texto na Internet e deixe rolar�.

(SANT'ANNA, 1999) *Charrua: arado.

O autor do texto acima avalia as inovações introduzidas pela

Internet, diante das tradições da literatura.

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Você, certamente, já deve ter reparado que a internet permite e

potencializa a retomada de jogos verbais típicos da poesia. Além disso, a internet é um poderoso meio de comunicação que permite hoje a escritores debutantes e renomados publicar seus poemas com mais facilidade e em forma de produção independente, sem mais precisar de editora.

Quanto a exemplos de jogos de distribuição de letras e palavras no espaço, podemos ter o palíndromo, o caligrama e o lipograma. Na internet, por exemplo, em chat, e-mail, fórum etc., é comum, em um processo similar ao lipograma, suprimir as letras de algumas palavras. A frase �você também quer ir?�, por exemplo, pode ser escrita da seguinte maneira: �vc tb q ir?�.

O poema de Manuel Bandeira parece querer representar iconicamente e sonoramente a forma de uma onda. Por isso, explora recursos sonoros, como a assonância (repetição de sons de vogais) das vogais nasais /õ/ e /ã/ e a aliteração (repetição de sons de consoantes) da consoante �d�.

Comentário

Leia o poema completo de Manuel Bandeira no livro Estrela

da Vida Inteira.

a) Aponte dois aspectos que, segundo ele, são positivos no uso da Internet. b) Há muitos séculos, já se exploravam as possibilidades de distribuição das palavras no espaço de modo análogo ao que passou a ocorrer nas telas de computador. Cite dois exemplos do texto que evidenciam a exploração dessas possibilidades.

2 � Leia o poema abaixo: A O N D A a onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda (...) (BANDEIRA, 1993)

a) De qual dos jogos verbais referidos no texto de Affonso Romano de Sant�Anna o texto de Manuel Bandeira se aproxima? Explique. b) Explique a exploração dos recursos visuais e sonoros no texto de Manuel Bandeira e o efeito de sentido que provoca.

Referências BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1993. SANT'ANNA, Affonso Romano de. O Globo, 15/09/1999. http://pt.wikipedia.org/wiki/Marinettittp://pt.wikipedia.org/wiki/Marinetti http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/trad/921.html http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/filosofia.htm http://br.geocities.com/edterranova/baudelapoesias2.htm

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Falamos nesta unidade de modernidade e de modernismo. Porém, não encerramos ainda o processo histórico da reflexão teórica sobre a literatura. Resta-nos abordar, com efeito, o último capítulo � por sinal, o mais difícil � do fazer literário por parte dos artistas contemporâneos, segundo alguns, pós-modernos. Você poderá constatar como a maior parte das novidades da modernidade se transformam, na pós-modernidade, em fracasso e cansaço. A próxima unidade exigirá muito de quem está escrevendo e de quem, como você, estará acompanhando nossa linha de raciocínio, sendo nossa maior dificuldade a falta do necessário distanciamento histórico entre nosso estudo e o objeto da nossa indagação. Assim, você poderá observar como as palavras mais recorrentes serão provisoriedade, efemeridade, em formação, caducidade e ecletismo.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Definição das principais tendências contemporâneas na cultura, na

arte e na literatura.

Teoria contemporânea dos gêneros literários

Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • diferenciar as marcas típicas da contemporaneidade das

particularidades de outras poéticas, em textos literários. Pré-requisitos

A poética contemporânea é uma teoria em construção que difere de todas as poéticas que a precederam e que, ao mesmo tempo, de todas elas empresta algum elemento. Logo, para que você tenha um aproveitamento satisfatório, nesta unidade didática, consideramos importante que volte a refletir sobre o caráter normativo, fechado e aprioristico da poética clássica, sobre o alento e a aspiração libertária da poética romântica, sobre as construções teóricas a posteriori da poética modernista. A contemporaneidade se diferenciará de todas as suas irmãs mais velhas. Mas, ou por incapacidade ou por livre escolha, nunca como em nossa época, viu-se um revisitação tão fecunda de obras do passado, sob forma de paródia ou de pastiche. Portanto, é fundamental para um profissional das letras a capacidade de distinguir, especialmente em atualizações de obras do passado, o que é próprio do fazer literário clássico ou moderno e o que pertence já à pós-modernidade. Introdução

Chegamos, finalmente, à contemporaneidade, época em que vivemos e em que pensamos os fatos sociais, filosóficos, literários, históricos e psicológicos que nos cercam. Talvez, por esses motivos, seja um pouco mais difícil tomar distância dessa realidade, para fazer reflexões e propor conceituações fechadas. Nessa perspectiva, o que se pode fazer para falar sobre a poética da contemporaneidade é indicar quais os cenários que se delineiam no panorama literário e quais as tendências que se consolidam.

Falamos de uma poética com regras previamente estabelecidas (a poética clássica), de uma poética sem regras preestabelecidas (a poética romântica) e de uma poética cujas regras são definidas após a produção

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artística (a poética modernista). Na contemporaneidade, fala-se de uma poética em devir, a saber, de uma poética que se faz na medida em que as obras são produzidas. À diferença da teoria modernista, a poética contemporânea ainda não está consolidada, nem tem essa pretensão, pois sua tópica é o efêmero. Sua voz fala do lugar do não-lugar; fala da condição de provisoriedade que caracteriza o presente; fala de um espaço de passagem. A poética da contemporaneidade representa um lugar de fronteira: diversos discursos, fazeres e saberes nela se cruzam, complementam-se, enriquecem-se, mas não se consolidam, pois a realidade aqui evidencia seu dinamismo e a impossibilidade de ser reduzida a um discurso fechado, parcial e limitante. Por tudo isso é que nós asseveramos seu caráter de processo em devir.

Contemporaneidade: falência de valores e atualização

Até a poética da modernidade, podemos falar de algumas categorias que se repetem e que são revistas, questionadas, ressignificadas pelos autores, no processo evolutivo de construção da literatura. Por exemplo, falamos de autores, originalidade, tempo, espaço, personagens, foco narrativo e outras marcas que contribuem para uma melhor compreensão do fenômeno criativo.

No discurso da contemporaneidade, esses elementos são revisitados de tal forma que, às vezes, mesmo continuando formalmente presentes, torna-se quase impossível dizer que sejam os mesmos do passado. Assim, a poética da contemporaneidade constrói-se a partir de uma falta geral de referências e de modelos de pensamentos, a partir de uma falta geral de respostas que funcionem como soluções.

Nos últimos anos, houve mudanças sociais bastante significativas: o surgimento e formidável desenvolvimento da sociedade da informação, a revolução promovida pelas novas tecnologias e a falência de um modelo de capitalismo que não conseguiu gerar riqueza para todas as parcelas da população envolvidas nos processos de produção de bens e serviços. Assim, a poética da contemporaneidade apresenta uma tendência bastante forte a trazer para a cena literária a maior peculiaridade da pós-modernidade, que é a descentralização: a periferia questiona o centro, deslocando-o de seu lugar privilegiado de fornecedor de modelos e olhares, para que também o centro possa ser olhado a partir de outras perspectivas.

A expressão da objetividade que caracterizou a poética clássica, da individualidade que é marca da poética romântica e da busca de um olhar que situasse o homem diante das novidades da modernidade se perdem diante do caos que se instala na contemporaneidade: não existe mais subjetividade a ser expressa, não há mais objetividade orientada por regras que garantiriam a certeza de uma paz a ser construída no futuro, não há mais novidade diante dos fatos, diante das certezas, diante do novo. O que existe é um olhar cansado de buscar e é desse lugar do cansaço que se constrói a poética da contemporaneidade.

Há um cansaço pela busca de respostas que, na verdade, nada respondem. A contemporaneidade, de alguma forma, é a constatação de um fracasso: falhou o capitalismo, falhou a religião, falhou a ciência, falhou a tecnologia, falhou a democracia, falhou a filosofia. O projeto da humanidade falhou, chegando ao seu limite. E não mais serve para dar resposta aos eternos questionamentos do homem. Por esses motivos, a

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contemporaneidade não se apresenta, senão, como sendo a paródia de tudo o que já foi, em algum momento do passado, uma referência.

Se, no passado, a construção de referências se estabelecia em bases sólidas de conhecimentos, na contemporaneidade, a única herança a ser partilhada é o tédio, o cansaço, a descrença a respeito de um mundo das idéias, perfeito e possível - como diria Platão, a descrença a respeito de um mundo material e racional - como diria Aristóteles. Hoje somos herdeiros das mais sofisticadas tecnologias que o mundo jamais conheceu. Mas nos acomete também a mais terrível doença: a profunda incerteza de que haja uma solução possível.

O conhecimento, que foi uma das molas da evolução da humanidade, perde seu espaço e seu lugar para a cópia, para a reprodução em série. Com a facilidade proporcionada pela tecnologia, a idéia de se fazer esforço tornou-se ridícula: a reprodução de tudo o que já existe ficou demasiado facilitada; esforçar-se para reelaborar a realidade, nesse contexto de cansaço e desilusão, parece uma idéia bastante absurda.

A literatura e as artes em geral, que durante séculos tiveram a função de balizar o futuro, perderam algo que, em verdade, nunca possuíram e que constituía seu fetiche: a originalidade. Todo texto é retalhado por diversas vozes que nele falam interagindo entre si. Por isso, a rigor, não existe texto original. Todo texto está constantemente voltado para trás, atendendo a demandas de textos que o precederam, e projetado para a frente, antecipando possíveis réplicas de textos vindouros. Na contemporaneidade, aquilo que hoje parece ser a única possibilidade de originalidade é assumido pela paródia: de tudo o que se podia chamar de original é possível fazer uma reprodução crítica, nova e - por paradoxal que isso possa parecer - original.

A poética da contemporaneidade, além de evidenciar a descrença em todos os valores, a velocidade alucinante de um conhecimento feito de panoramas, de imagens projetadas como diapositivos, evidencia também a dificuldade de o homem pós-moderno lidar com as diferentes tecnologias. Existe um apelo enorme para o consumo de tecnologias e informações, que, estranhamente, nada mais fazem senão afirmar a impossibilidade de consumir esse conhecimento.

O espanto da contemporaneidade emerge em dois aspectos complementares: a idéia de um excesso de ofertas e, conseqüentemente, a idéia de descartabilidade. Tudo se torna descartável: não se escrevem mais narrativas longas, não se escrevem mais verdades duradouras. É a vitória do efêmero. O paradoxo é que há uma perenidade na efemeridade que constrói a contemporaneidade. Vivemos uma época de verdades provisórias e frágeis. A literatura registra e analisa essa tendência: suas palavras-chave, descontentamento, provisoriedade, espanto, fragilidade.

É importante observar que, no momento em que os autores da contemporaneidade optam deliberadamente por parodiar a literatura do passado, cumprem o papel de atualizar os autores que estavam confinados a esse passado. Pelo fato de não haver mais uma busca pela originalidade, as obras do presente apresentam um diálogo bastante profícuo com os autores da tradição: novas respostas são propostas em substituição às do passado; novas leituras, interpretações e questionamentos são sugeridos para a construção das vozes que falam no intertexto entre passado e presente.

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Para ilustrar uma paródia contemporânea do passado, vamos fazer referência a Machado de Assis, expoente da mais sólida tradição literária brasileira. Um dos seus contos mais lidos e comentados é �Missa do Galo�, que narra a aventura de um jovem interiorano carioca do período imperial na véspera do Natal. Nogueira, 17 anos, está pela primeira vez na corte do Rio de Janeiro, instalado em casa de parentes. Na noite de Natal, em um ambiente à meia-luz, tem uma conversa sugestiva e sedutora com a esposa de seu anfitrião, ela vestindo apenas um leve roupão e meio lânguida de sono. Na narrativa machadiana, fica apenas a sugestão de um encontro amoroso que, anos depois, será recontado por seis autores da contemporaneidade por meio da voz e do olhar das diferentes personagens que fazem parte da narrativa.

De alguma forma, há uma atualização da narrativa machadiana, pois sua voz ecoa no diálogo proposto pelos autores da contemporaneidade, ao mesmo tempo em que esses mesmos autores falam do lugar do presente, evidenciando um posicionamento diferente do de Machado de Assis do século XIX. O livro que traz essas narrativas se chama Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema, editado pela Summus Editorial. Leia em http://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/missadogalo.htm, acesso realizado em 23/1/2007. o conto de Machado de Assis. Antônio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Osmar Lins são os autores que reescreveram o conto de Machado de Assis. Permita-se o prazer de ler o conto de Julieta de Godoy no seguinte endereço: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/missa_do_galo1.htm, acesso realizado em 23/1/2007. Contemporaneidade: multiplicidade de saberes e sentimento de nulidade

Nesse cenário de multiplicidade, de hibridismos e de incertezas, é ingênuo continuar a acreditar na possibilidade de uma tripartição dos gêneros literários, como queria Aristóteles. A instabilidade própria da contemporaneidade aponta para uma mistura de discursos, de crenças e de respostas. Tudo isso se traduz na literatura em tipos textuais inclassificáveis do ponto de vista das poéticas tradicionais, com características oriundas de diversos gêneros e subgêneros literários: drama, poema, relato, diário, jornal, carta etc. A fluidez de conceitos e significados aponta para uma interface, em que diversas estruturas e conhecimentos vão conviver em igual nível de importância. Há uma obra no romance brasileiro que ilustra bem esse caráter de mistura de gêneros, de saberes, de olhares e de discursos: Avalovara, de Osman Lins. Na narrativa, está disponível uma série de dados para fazer funcionar o discurso literário: palíndromos, simetrias, relação entre quadrados e espirais, totalidades e parcialidades. Esse tipo de narrativa cosmológica inaugura e revela a impossibilidade da existência de gêneros puros.

Ao fazer uma mescla de gêneros, de vozes e de fazeres literários, Osman Lins traz à tona � ensaiando uma atualização erudita � a voz de Aristóteles e de todos os autores que se inscrevem na tradição literária. De alguma forma, as angústias da contemporaneidade evidenciam um processo

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de criação e de aceleração dos diálogos entre os diversos gêneros que exige dos leitores um maior conhecimento das tradições e do passado. Por esse caráter, não seria impossível afirmar que a contemporaneidade é, de alguma forma, uma releitura do passado e um olhar em mosaico sobre tudo o que poderia ter sido.

Outro exemplo para ilustrar essa matriz da contemporaneidade é a narrativa Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso: a presença de diversos discursos, estruturas narrativas e vozes faz dessa obra um bom exemplo da busca pela construção de uma narrativa que traga em si todas as narrativas e que represente o universo da expressão literária.

De alguma forma, a obra de Lucio Cardoso antecipa o que seria a narrativa possibilitada pela internet: um mosaico de discursos, de fazeres, de vozes, de desejos que buscam dar conta da realidade que, quanto mais se quer restrita, mais escorre entre os fios do discurso que a busca prender. O que se tem, então, é uma realidade fragmentada, frágil, tecida de ausências presentes nas referências mais ou menos ocultas do discurso paródico que se volta para o passado.

Desse contexto nasce um sentimento pungente de nulidade: não há respostas, por maiores que sejam os esforços, por maiores que sejam os investimentos, por utópicas que sejam as crenças. O que se constata é a presença de uma crise que se torna perene, invertendo seu sentido primeiro de efemeridade.

A sensação de que a crise não passa leva as personagens a viverem situações de desconforto, de desencontro, de busca constante, de relações superficiais e descartáveis. As referências que organizavam a sociedade se perdem e o que se pode oferecer é uma realidade sem parâmetros. Os valores sociais, familiares, pessoais, religiosos, políticos, sexuais, filosóficos e tradicionais não servem mais de guia. A linearidade narrativa que implicava início, meio e fim se desarticula, a idéia de originalidade se perde e a mesma angústia do autor diante da página em branco será a do leitor diante do texto que não lhe propõe respostas, mas apenas questionamentos temáticos e estruturais.

João Gilberto Noll é um autor que exemplifica bem o desalento do leitor diante de uma realidade ficcional que não se traduz em parâmetros ou referências estabelecidas. Em sua narrativa, há um explícito hibridismo entre cinema, literatura, arte popular, música e outros sistemas semióticos.

Em seu livro de contos O Cego e a Dançarina, podem ser observados alguns desses procedimentos narrativos que criticam passado, modernidade e contemporaneidade, questionando verdades estabelecidas, agora transformadas em verdades precárias. As personagens nolleanas estão inseridas em um código de verdades que valoriza o presente e sua efemeridade, não há esperança, assim como não há lembrança: apenas a desconsolação e o incômodo do presente que se eterniza.

Não existe um lugar para a subjetividade nem para a individualidade, pois não há lugar para projetos, para sonhos, para partilhas. O que existe é um sujeito caricaturado. De alguma forma, a contemporaneidade se volta para o passado, para negá-lo, mas também, para cultuá-lo em seu culto de negação. A angústia, então, está na constatação de que o peso das certezas do passado é mais esmagador do que as incertezas do presente.

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Síntese da unidade

Uma das coisas que caracteriza a contemporaneidade, também chamada de pós-modernidade, é um estado permanente de crise na sociedade, nos laços entre seus segmentos e dentro de cada segmento. Essa crise crônica parece mesmo ter descaracterizado o sentido tradicional do crítico e da crítica literária, abolindo a possibilidade de se pensar em um futuro fora da crise.

A pós-modernidade se constitui como uma crítica à modernidade,

sem a menor chance, contudo, de podê-la substituir com um projeto alternativo. Nela convivem elementos do clássico e do moderno, sem alguma interação, sem integração, sem a constituição de um todo significativo. Predomina o ecletismo. Se a modernidade, com a secularização do mundo, já havia decretado a sentença de morte de Deus, a pós-modernidade encarrega-se de executar o veredicto, realizando a desconstrução do projeto iluminista de modernidade, com seus mitos de passado, presente e futuro. Instala-se o niilismo, ou seja, o prevalecer do nada, do vazio, da ausência de valores e de sentido existencial. Único valor remanescente é o prazer hedonista do hic et nunc (aqui-e-agora), absolutamente fundamental para a manutenção e implementação do mercado. O ideal comunitário se faz não mais pelas idéias ou princípios, ou pela tradição, e sim pelo estilo e pela imagem.

Nessa sociedade programada haveria lugar para o sujeito em sua

singularidade? Se a modernidade sugeria a individualidade como um de seus vetores, a pós-modernidade exagerou esse ideal ao limite da caricatura --- surge o chamado sujeito narcisista. Trata-se do neo-individualismo pós-moderno: um sujeito sem ideais e sem projetos a não ser o de consumir e cultuar sua auto-imagem. Narcisista e vazio, desenvolto e apático, ele � o sujeito pós-moderno - está no centro da crise de valores pós-moderna.

A estética pós-moderna apresenta diferenças fundamentais em

relação a tudo que veio antes dela, incluindo todas as estéticas modernistas. Os próprios critérios-chave da estética moderna, do novo, da ruptura e da vanguarda são desconsiderados pelo pós-moderno. Já não é preciso inovar nem ser original, e a repetição de formas passadas é não apenas tolerada como encorajada. Temos, assim, uma sobreposição de linguagens, paradigmas e projetos que desafogam na paródia ou no pastiche.

Nesta unidade, tentamos apresentar as principais características da poética contemporânea, apesar de, enquanto sujeitos envolvidos no objeto da nossa discussão, não possuirmos o devido distanciamento histórico para analisar nosso assunto com total serenidade. Inicialmente, comparamos a poética pós-moderna às demais teorias já estudadas e observamos sua profunda diferenciação, não obstante o renovado interesse da literatura atual pelas obras do passado. Em seguida, abordamos os temas recorrentes nas obras literárias atuais, que são temas de discussão nos mais variados ambientes culturais: o caráter de

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provisoriedade, decadência, efemeridade, descentralização, descartabilidade, hibridismo, ecletismo, niilismo, desconstrução, hedonismo, imediatismo e narcisismo em tudo aquilo que é criado, produzido, inventado pelo homem no cenário contemporâneo pós-moderno. Deparamo-nos também com alguns paradoxos, como o da democratização versus inacessibilidade dos recursos tecnológicos extremamente complexos ou o da morte do passado versus o aproveitamento antropofágico e paródico dos produtos do passado, frente a uma negação da velha e ultrapassada idéia de originalidade. O quadro dessa poética, por razões óbvias, não poderá ficar completo, sendo que, enquanto estamos escrevendo a realidade já está superando e, porventura, invalidando nossas asserções e nossos pontos de vista.

Leia os textos a seguir e responda às questões: Fala do Velho do Restelo ao astronauta (José Saramago) Aqui na terra a fome continua A miséria e o luto A miséria e o luto e outra vez a fome Acendemos cigarros em fogos de napalm* E dizemos amor sem saber o que seja. Mas fizemos de ti a prova da riqueza, Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez. E pusemos em ti eu nem sei que desejos De mais alto que nós, de melhor e mais puro. No jornal soletramos de olhos tensos Maravilhas de espaço e de vertigem. Salgados oceanos que circundam Ilhas mortas de sede onde não chove. Mas a terra, astronauta, é boa mesa (E as bombas de napalm são brinquedos) Onde come brincando só a fome Só a fome, astronauta, só a fome. (Disponível em http://portodeabrigo.do.sapo.pt/saramago1.html; acesso realizado em 27/1/2007) *Napalm: produto inflamável utilizado como armamento militar. Consiste em um tipo de gasolina gelificada altamente inflamável. Essa arma foi inventada em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial pelos Estados Unidos. Diversos lançadores foram desenvolvidos para seu uso, culminando nas armas lança-chamas, utilizadas contra os exércitos vietnamitas no final da década de 60. Em 1980, seu uso contra as populações civis foi proibido por uma convenção da Organização das Nações Unidas. (Adaptação do texto disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Napalm, acesso realizado em 27/1/2007).

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Mar Português (Fernando Pessoa) Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem de passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. (Disponível em http://portodeabrigo.do.sapo.pt/pessoa11.html; acesso realizado em 27/1/2007) Os Lusíadas (Camões)

Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C´uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas! (Disponível em http://lusiadas.gertrudes.com/poesia4.html; acesso realizado em 27/1/2007)

Os textos de Fernando Pessoa e de José Saramago são intertextuais em relação ao episódio do Velho do Restelo de Camões. Refletindo sobre a visão do modernista Pessoa e do pós-modernista Saramago, assinale a alternativa correta:

a) Saramago não se refere criticamente a valores éticos ou existenciais, detendo-se apenas na questão da guerra e do progresso. b) Fernando Pessoa estabelece uma relação irônica com o texto camoniano, pois parodia o tom grandiloqüente da fala do Velho do Restelo, valendo-se de apóstrofes. c) Os versos de Fernando Pessoa se assemelham aos do episódio do Velho de Restelo pela ausência de personificação. d) Saramago e Fernando Pessoa não se valeram da perfeição formal camoniana, o que invalida o teor intertextual, que compreende estrutura formal e conteúdo. e) Saramago apresenta uma crítica universalizante que retoma o alerta feito pelo Velho do Restelo, atualizando-o.

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Em relação à afirmação (a), observe que, ao se deter em fenômenos

como os da guerra ou do progresso, necessariamente, Saramago é levado a assumir um ponto de vista crítico, ainda que implícito, sobre a existência e o agir dos homens.

Na alternativa (b), fala-se de uma paródia irônica de Pessoa em relação a grandiloqüência de Camões. Em �Mar português�, há um discurso paródico, ou seja, um relativo afastamento da férrea crítica do Velho do Restelo camoniano: apesar das �lágrimas de Portugal�, �tudo vale a pena / se a alma não é pequena�. Porém, não há ironia nem ataque à grandiloqüência: enquanto o Velho do Restelo nega categoricamente a validade de uma empresa humana que, para garantir glória e fortuna a uma elite corrupta, sacrifica vidas inocentes, o eu lírico pessoano sugere que para conquistar algo � aspiração natural e legítima de todo homem, em que se faz presente até um espírito divino (Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu) � deve-se ter a força de ir além da dor, do sacrifício e do sofrimento.

Quanto à alternativa (c), nos dois poemas, há personificação: em Pessoa, o mar é interlocutor do eu lírico e sugere-se que seu sal seja o resultado das lágrimas pela morte de tantos aventureiros e conquistadores; em Camões, à sede de glória é dado o nome de Fama com a inicial maiúscula e a ela o eu lírico se refere como a um interlocutor em carne e ossos, lamentando as ruínas provocadas nos lares portugueses.

No que diz respeito à alternativa (d), a intertextualidade não implica necessariamente em uma imitação formal e material. Podemos ter intertextos que compartilham uma base comum de forma e conteúdo e intertextos baseados apenas em uma semelhança de forma ou de conteúdo. No caso dos nossos três poetas, Camões, Pessoa e Saramago, temos mais um diálogo temático do que uma preocupação de referências formais. E o tema em questão é: vale a pena sacrificar paz, afetos e a própria vida, voltando-se para bens duvidosos, como glória, fama, riqueza, poder a serem conquistados futuramente?

Enfim, na opção (e), trata-se de uma crítica que já foi da personagem camoniana do Velho do Restelo e que estaria sendo recuperada, de forma atualizada, pelo eu lírico saramaguiano: o �napalm�, arma genocida utilizada pelos EUA no Vietnam, como todos os meios utilizados pelos poderes humanos para alcançar seus sórdidos planos, têm como efeito maior �miséria, luto e fome�.

Comentário

Referências http://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/missadogalo.htm http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/missa_do_galo1.htm http://portodeabrigo.do.sapo.pt/saramago1.html http://portodeabrigo.do.sapo.pt/pessoa11.html http://pt.wikipedia.org/wiki/Napalm, acesso realizado em 27/1/2007).

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Concluímos, aqui, nossos estudos sobre as teorias dos gêneros literários, chamadas também de poéticas. Na próxima unidade, faremos uma revisão dos assuntos tratados até aqui. Todo bom caminhante sabe da importância de parar, para tomar fôlego, revigorar-se, olhar no mapa o caminho andado e o que falta para alcançar a meta. Será justamente isso o que faremos a seguir: olhar com uma visão panorâmica todo o desenvolvimento teórico realizado até aqui sobre a literatura.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Realização de uma visão panorâmica e sintética de todo o

desdobramento teórico-literário efetuado nas primeiras seis unidades deste caderno de conteúdos e atividades.

Revisão de conteúdos

Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • integrar em uma visão de conjunto os fundamentos teóricos

dos estudos literários e as quatro teorias dos gêneros literários, a saber, a clássica, a romântica, a modernista e a contemporânea.

Pré-requisitos

Esta unidade é essencialmente uma etapa de retrospecção em que se exigem as habilidades de síntese e de correlação de informações. As unidades trabalhadas até agora analisaram pontualmente aspectos diferentes de um único universo chamado teoria da literatura. É chegado o momento, agora, de refletir mais detidamente sobre a unidade do nosso discurso e sobre os vínculos profundos que cada aspecto abordado mantém com os demais. Além do estudo passo-a-passo, realizado até aqui, portanto, requer-se agora um esforço de integração e de generalização. Introdução

Estamos completando uma primeira etapa do nosso estudo teórico da literatura. Como em todo processo, consideramos importante nos conceder uma pausa de descanso e aproveitar para fazer uma revisão do caminho traçado até agora. Observemos, então, que relação há entre os fundamentos teóricos da literatura e as diferentes teorias dos gêneros literários. Fundamentos teóricos da literatura

A abordagem teórica do universo literário parte necessariamente da definição de três conceitos básicos: estética, poética e arte literária.

• Estética é o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. A beleza não é um conceito universal e eterno, a saber, algo que possua validade além de toda barreira geográfica e além de todo limite temporal. Cada geração e

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cada grupo humano geograficamente localizado definem o que é belo, a partir de um padrão convencional previamente estabelecido. Portanto, o conceito de beleza muda com o passar do tempo e de lugar para lugar.

• A poética representa um âmbito mais restrito de estudos e

pode ser definida como uma teoria sobre o fazer literário, em que são estabelecidos valores e modelos literários, regras de composição, comparações entre textos.

• Com o auxílio da estética e da poética, podemos agora

definir com maior propriedade a concepção de arte literária como a criação de textos verbais, belos, ficcionais, imaginativos, capazes de suscitar emoção e prazer, portadores de um significado abstrato e figurado que costuma ser chamado de conotativo. Com base em todos esses elementos, o texto literário é um texto modificante, que provoca uma mudança em quem o lê e, ao mesmo tempo, um texto modificável, suscetível de múltiplas interpretações a partir dos olhares diferentes de seus diversos leitores.

• O primeiro teórico da literatura foi o filósofo grego

Aristóteles, autor de uma obra intitulada Arte poética. Nela se fala de mimese, conceito que recebeu, ao longo da história, uma dúplice interpretação: por um lado, em uma vertente mais fiel ao pensamento originário de Aristóteles, foi entendido como verossimilhança, isto é, imitação do real; por outro lado, segundo uma perspectiva platônica, foi concebido como imitação de modelos consagrados. No primeiro sentido, a arte seria uma representação do real; no segundo sentido, corresponderia à representação de uma representação do real, à imitação de um modelo literário já consagrado.

• A literatura configura-se, então, como aquele conjunto de

textos que representam a realidade sem querer ser uma cópia fiel dela, mantendo o valor de recriação ou ressignificação do real. Como tal, pois, a arte literária pode ser compreendida enquanto forma de conhecimento do mundo e da existência humana, com a mesma dignidade de outros caminhos epistemológicos, como a ciência, a filosofia ou a religião.

• O objeto da literatura é constituído por todos aqueles textos

que, na concepção de determinada comunidade humana historicamente determinada, ao representar ficcionalmente a realidade, utilizam a linguagem verbal elaborando-a artisticamente e tendo como resultado a criação do belo.

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• A teoria literária representa, assim, um conhecimento especulativo e racional acerca dos princípios estéticos e poéticos que regulam, organizam e sistematizam o universo literário. A teoria indaga a arte literária, seguindo determinadas pistas hermenêuticas e exegéticas, chamadas de métodos.

• Os principais métodos de pesquisa e crítica literária são o

método biográfico, o determinista, o psicológico, o sociológico, o lingüístico, o formalista e o estruturalista.

Teorias dos gêneros literários

• Ao refletir sobre as maneiras de representar literariamente a realidade, os dois mais famosos filósofos gregos, Platão e Aristóteles, conceberam três gêneros ou tipos de texto: o gênero lírico, o gênero dramático e o gênero épico. O texto lírico representa a intimidade dos homens. O texto dramático representa os homens em ação. O texto épico representa a interioridade e a exterioridade dos homens.

• A poética clássica consiste na abordagem tradicional da arte

literária, de seus gêneros, regras, princípios e valores, a partir das reflexões platônicas e aristotélicas. É uma teoria apriorística que define previamente seus modelos, em relação aos quais pede respeitosa reverência.

• Para que a obra gere seu fim último que é a catarse ou

purificação das paixões do espectador ou leitor, dentro da concepção teórica tradicional, o autor deve obedecer à lei das três unidades de tempo, de espaço e de ação, e à sucessão sistêmica dos eventos que vão de um problema, passando por uma complicação, por um clímax, até chegar, enfim, a uma solução.

• Com a poética romântica os gêneros literários deixam de

ter uma finalidade ético-educacional e começam a serem valorizados em si e por si mesmos. A criação literária não mais se inspira nos prestigiados modelos antigos, ensaiando a autonomia da invenção genial, livre de toda coação engessante. Em contraposição à visão objetiva do mundo, centrada na dimensão exterior da realidade, cara à poética clássica, a perspectiva romântica tende para a subjetividade e para a representação interior e íntima do real.

• A contraposição entre teoria clássica e teoria romântica

rege-se também pela dicotomia de dois pressupostos filosóficos, o aristotélico de um lado e o platônico de outro, e pelo contraste entre uma visão apolínea, pautada pelo equilíbrio e pela razão, e uma visão dionisíaca, focada no caótico e emocional.

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• A função da literatura também muda. Na época clássica, predominava o ideal da formação ética: a arte concorria a educar o indivíduo segundo os valores vigentes em uma determinada sociedade. Na época romântica já a obra de arte deixa de ter um objetivo extrínseco, valorizando a expressão do artista e as qualidades intrínsecas poéticas do próprio produto artístico.

• Enquanto estética do gênio criativo, a poética romântica

abandona o antigo aparelho normativo, toda imitação de modelos e abre-se à valorização do novo, do inusitado, do original, do diferente, do desviante.

• A poética modernista pode ser considerada uma evolução

natural da semente romântica, embora em alguns casos haja algumas rupturas importantes.

• O tempo cronológico, que já no Romantismo começara a

acompanhar os estados anímicos da personagem, agora, no século XX, na esteira das reflexões bergsonianas, transforma-se em tempo psicológico, extremamente acelerado, como é a vida urbana e industrial do homem-máquina, ou exageradamente dilatado pela análise minuciosa e detalhista de toda nuance pré-consciente, subconsciente ou inconsciente.

• Experimentalismo é a palavra de ordem. Começam, já nas

primeiras décadas do século XX, os anseios descentralizadores e desconstrutivistas que marcarão a pós-modernidade, no fim de século. Os movimentos vanguardistas, porém, raramente alcançam a solidez e a maturidade de uma verdadeira escola.

• A palavra-chave da poética contemporânea é

provisoriedade. Até o presente, não há uma tendência ou uma estrutura consolidada que possa valer como marca inconfundível da arte literária pós-modernista. A única coisa que, com o passar do tempo, adquire constância é a própria transitoriedade.

• São, portanto, sinônimo de contemporaneidade a falta de

referências como conseqüência da crise da objetividade clássica e da subjetividade moderna, a valorização dos olhares periféricos, o sentimento de fracasso e de cansaço pelo malogro de todo projeto tradicional e moderno, a substituição do esforço físico pelos serviços da tecnologia, o fim do mito romântico da originalidade, o diálogo paródico com o passado, o hibridismo dos gêneros, a extinção da linearidade discursiva.

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Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo para, contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórico, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral; o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com todas as obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. (Disponível em http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/convidado30.htm; acessado em 27/1/2007).

Minha bela Marília, tudo passa; A sorte deste mundo é mal segura; Se vem depois dos males a ventura, Vem depois dos prazeres a desgraça. (Disponível em http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/arcadismo acesso realizado em 27/1/2007)

Busque Amor novas artes, novo engenho, Para matar-me, e novas esquivanças; Que não pode tirar-me as esperanças, Que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, Andando em bravo mar, perdido o lenho.

1 - Reflita sobre o seguinte texto do poeta inglês T.S. Elliot:

Que relação é possível tecer entre a frase de Elliot e o conceito estético de beleza trabalhado na unidade 1 deste caderno? 2 - No Arcadismo ou Neoclassicismo, estética literária do século XVIII, o fazer poético, geralmente, inspirava-se em uma harmonia e perfeição ideal da Natureza. O bucolismo, para os árcades neoclássicos, representava o refúgio na Natureza, onde o poeta poderia encontrar tranqüilidade e paz para uma vida amena. Leia o trecho a seguir do poeta brasileiro Tomás Antônio Gonzaga e assinale a alternativa incorreta:

a) a existência considerada pelo prisma da religião cristã. b) a vida muito breve e a felicidade inconstante. c) a sorte como determinante da existência humana. d) que depois dos prazeres, certamente, vem a desventura. e) o convite do poeta para que Marília aproveite o tempo antes que ele passe.

3 - Leia a seguir o soneto de Camões:

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Mas, conquanto não pode haver desgosto Onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê; Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei por quê. (Disponível em http://www.palavreiros.org/criticaliteraria_busqueamornovasartesnovoengenho.html; acessado em 27/1/2007).

Sobre esse soneto podemos afirmar que: a) O poeta revela a ingênua esperança de que um dia o Amor o matará. b) Camões não espera mais nada do Amor para não se decepcionar ainda mais com esse sentimento. c) Como qualquer poeta clássico, Camões adota uma postura racionalista e deixa claro que pode compreender plenamente o Amor. d) O poema mostra que para Camões o Amor não age a favor do ser humano. Mas o poeta desiludido crê que essa contrariedade não faça tanta diferença, "pois onde falta a esperança não pode haver maior desgosto". e) Observamos o desespero do poeta que nem sequer sabe decidir se deseja ou não a ação do Amor em sua vida. Camões não pode definir se o amor é bom ou mau e se deseja ou não que ele continue a dirigir seu destino.

4 - Marque com C as afirmações corretas e com I as afirmações incorretas sobre literatura, gênero e estilo literários: ( ) Tanto no verso quanto na prosa pode haver poesia. ( ) Todo momento histórico apresenta um conjunto de normas que caracteriza suas manifestações culturais, constituindo o estilo da época. ( ) O texto literário é aquele em que predominam a repetição da realidade, a linguagem linear, a unicidade de sentido. ( ) No gênero lírico, os elementos do mundo exterior predominam sobre os do mundo interior do eu poético. 5 - Leia o seguinte poema de Cassiano Ricardo: POÉTICA 1 Que é a poesia? uma ilha cercada de palavras por todos os lados. 2 Que é o Poeta? um homem

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que trabalha o poema com o suor do seu rosto. Um homem que tem fome como qualquer outro homem. (Disponível em http://www.fccr.org.br/cassiano/cartilha1.htm, acesso realizado em 27/1/2007).

O eu lírico do texto de Cassiano Ricardo expressa uma definição do fazer literário e do artista. Essa definição é semelhante ao conteúdo de qual dos seguintes fragmentos?

a) �Como varia o vento � o céu � o dia, / Como estrelas e nuvens e mulheres, / Pela regra geral de todos seres, / Minha lira também seus tons varia, / e sem fazer esforço ou maravilha.� (Álvares de Azevedo) b) �O artista intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas.� (João Cabral de Melo Neto) c) �Minhas poesias não têm unidade de pensamento entre si, porque foram compostas em épocas diversas � debaixo de céu diverso � e sob a influência de impressões momentâneas.� (Gonçalves Dias) d) �Um dia tive saudades da casa paterna e chorei. As lágrimas correram e fiz os primeiros versos da minha vida, que intitulei - Às Ave-Maria: a saudade havia sido a minha primeira musa.� (Casimiro de Abreu) e) �Não faças versos sobre acontecimentos / Não há vida nem morte perante a poesia.� (Casimiro de Abreu)

6 - Leia atentamente os dois textos a seguir: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA (Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba) [...] A experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis) e em um reconhecimento perceptivo (anamnesis): o espectador pode ser afetado pelo que se representa, pode identificar-se com as pessoas em ação, dar, assim, livre curso às paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (katharsis). Essa descoberta e justificação do prazer catártico, com a qual Aristóteles corrigia o �mecanismo do efeito direto�, sobre o qual Platão apoiara sua condenação da arte, é, por certo, a herança mais provocante da teoria antiga do poético. Dela se poderia dizer (o que a estética psicanalítica apenas confirmou) que nos deu a única resposta até hoje convincente sobre a questão de por que a contemplação do mais trágico acontecimento nos causa o mais profundo prazer. [...] (Disponível em http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/convidado30.htm; acessado em 27/1/2007)

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Comentário

O texto literário transforma incessantemente não só as relações que

as palavras entretêm entre elas, utilizando-as além dos seus sentidos estritos e além da lógica do discurso usual, mas estabelece com cada leitor relações subjetivas que o tornam um texto móvel (modificante e modificável), capaz mesmo de não conter nenhum sentido definitivo ou incontestável. (D�ONOFRIO, 1999, p. 4-7)

Que relação podemos estabelecer entre os dois textos teóricos, quanto à natureza da obra literária?

1 - O texto teórico de T. S. Elliot faz-nos refletir, mais uma vez, sobre o conceito estético de beleza trabalhado na unidade 1. Não existe beleza universal, válida em todas as épocas e em todos os lugares. O belo tem como momento prévio um juízo dado por uma determinada comunidade em um determinado tempo histórico. Em função disso Elliot afirma que �nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho� e que �não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo�. 2 - Quanto ao trecho poemático de Tomás Antônio Gonzaga, a alternativa (a) é incorreta, haja vista a inexistência, nos versos em questão, de um ponto de vista religioso; a alternativa (b) é correta, tratando justamente do tema central do poema, isto é, da brevidade e inconstância da existência humana; a alternativa (c) é correta, pelo fato de a vida ser entendida pelo eu lírico como fruto do destino, da sorte ou da fortuna (todas elas entidades mitológicas caras ao arcadismo); a alternativa (d) afirma corretamente a alternância entre bem e mal, observada ao longo do ciclo vital humano; a alternativa (e), enfim, apresenta corretamente o convite final da estrofe ao carpe diem, uma das máximas em voga no classicismo e no neoclassicismo. 3 - Apesar de ser um autor clássico, Camões é também homem de seu tempo. O século XVI é a época que marca, na Europa, o início do Renascimento, tempo em que muitas certezas tradicionais vêm menos, deixando transparecer já o espírito relativista da Idade Moderna. Perante a experiência amorosa, neste e em outros poemas, Camões se revela perplexo e desconcertado. A razão, o equilíbrio e a constante tranqüilidade da época clássica cedem lugar à incerteza de uma nova época que começa sua jornada. 4 - Aprendemos, na fundamentação teórica inicial sobre literatura, que a poesia é alma da arte literária, que ela se dá mediante a aplicação de uma técnica poética e como fruto da criatividade do artista e que não é exclusiva do verso, estando implicada em todo tipo de produção literária em prosa ou em verso. Poeticamente, toda época literária define seus princípios e suas normas, seja a priori, como o classicismo, ou a posteriori, como o modernismo. A própria recusa sistemática de normas, típica do romantismo, na realidade resulta também em uma espécie de regra: a norma de não ter normas. E para a pós-modernidade, que é o tempo em que estamos vivendo, existe também um corpus normativo em formação, que, porém, não conhecemos plenamente, em função da falta do necessário distanciamento histórico.

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Já foi dito inúmeras vezes que literatura é representação. Porém, vale lembrar, mais uma vez, que não existe representação humana absolutamente correspondente à realidade representada ou à verdade. Toda representação é constitucionalmente construção, distante, portanto, de qualquer linearidade e fidelidade ao objeto de representação. O artista usa os tijolos do real, dispondo-os, porém, de maneira totalmente nova em função da sua perspectiva e daquilo que ele quer realizar. No lirismo, comumente, tende-se a uma maior verticalização na interioridade do eu lírico, enquanto, na narrativa, geralmente, há uma maior atenção para com a realidade externa referencial. 5 - Se levarmos em consideração �o suor do rosto� com que o poeta �trabalha o poema� e constrói as palavras que cercam a ilha da poesia �por todos / os lados�, então, poderemos aproximar o poema de Cassiano Ricardo à fala de João Cabral de Melo Neto, que, como bom engenheiro da palavra, enfatiza o trabalho de quem cria, cultiva, imagina, esmera, pule o verso. Enquanto defensor da poesia enquanto fruto da atividade, às vezes difícil e penosa, do artista, João Cabral de Melo Neto pode ser considerado expoente da vertente teórica apolínea e aristotélica, que se contrapõe a outra, essencialmente mais platônica e dionisíaca, que enxerga a criação como um fenômeno mais emocional, telúrico e quase que sobrenatural. 6 - Na sexta atividade, o cerne da questão está na concepção do texto literário enquanto texto móvel modificante e modificável. Ele é modificante em virtude dos efeitos provocados no leitor ou espectador: segundo as palavras textuais de Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba, �o espectador pode ser afetado pelo que se representa, pode identificar-se com as pessoas em ação, dar, assim, livre curso às paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (katharsis)�. O mesmo texto literário é modificável, graças às múltiplas ressignificações que seus leitores ou espectadores realizam a cada nova leitura. Sua plurissignificatividade ou polissemia são ativadas a cada nova fruição da obra e, de certa forma, dão vida a um novo texto sempre diferente, em uma parceria criativa entre autor e leitor da obra.

Referências D�ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto. Vol. 2. São Paulo: Ática, 1999. VICENTE, Gil. Auto da Lusitânia. São Paulo: Ateliê, 2000 http://www.fccr.org.br/cassiano/cartilha1.htm http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/arcadismo http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/convidado30.htm http://www.palavreiros.org/criticaliteraria_busqueamornovasartesnovoengenho.html

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Após a primeira parte de nosso caderno de conteúdos e atividades, sobre os fundamentos teóricos da teoria literária e sobre as diferentes poéticas e gêneros literários que marcam o desenvolvimento da literatura ocidental, começaremos a entrar na especificidade de cada gênero literário, iniciando pelo gênero lírico clássico. Veremos como suas raízes fincam firmemente na antiga cultura greco-latina, em estreita relação com a música e com a simplicidade dos temas da realidade cotidiana de todo homem. Conheceremos os principais representantes do lirismo clássico e algumas de suas criações literárias.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Apresentação do surgimento e desenvolvimento do gênero lírico

greco-latino.

Gênero lírico clássico Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • reconhecer poemas clássicos, identificando suas

peculiaridades.

Pré-requisitos Devido ao assunto aqui tratado, resulta óbvia a importância da

unidade didática 3 sobre a poética clássica ou teoria clássica dos gêneros literários. Os autores e as obras aqui contemplados têm como referencial um corpus normativo rígido de composição e um considerável respeito à tradição literária que serve de modelo para novas produções artísticas. Veremos que, em alguns casos, a lírica deixa de ser imitação da natureza e passa a ser imitação de uma representação da natureza realizada por outro autor consagrado. Esse fenômeno pode ser compreendido só a partir do conceito aristotélico de mimese ou imitação criativa e da tripartição platônica do mundo (mundo ideal, mundo material, mundo das representações de representações), assuntos esses amplamente debatidos ao longo da unidade didática 3. Introdução

Terminado o estudo das teorias dos gêneros literários, começamos a estudar em sua especificidade cada um dos diferentes gêneros literários. Em sua obra Arte poética, Aristóteles propõe a divisão da literatura em três gêneros literários básicos: o lírico, o épico e o dramático. Para ele, os gêneros devem ser puros, excluindo-se a influência de características de um gênero em outro. Estudos recentes mostram que essa pureza de gênero jamais existiu. O que pode existir é a predominância de um gênero sobre o outro em determinado texto literário.

Ainda segundo Aristóteles, a tríplice divisão dos gêneros literários é baseada na forma como cada um deles usa a palavra. Nas próximas unidades didáticas, falaremos sobre cada um dos gêneros literários clássicos, apresentando textos ilustrativos que ajudem na compreensão de suas características.

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O Popol Vuh conta a história da criação dos povos quichés da América Central e constitui o documento mais antigo que se conhece sobre a história da humanidade, anterior ao Rig Veda dos hindus e ao Zend Avesta dos persas. (Lúcia Pimentel Góes, 1991, p.110).

O assunto �lirismo clássico� nos remete à Antigüidade clássica, pois

é por meio das civilizações grega e latina que temos acesso aos textos literários mais antigos, embora não se tenha uma data nem um local precisos que marquem o início da literatura ocidental. A emotividade natural do ser humano diante do belo e o gosto pelo som, pela melodia e pela harmonia levam-nos a crer que a arte literária surgiu nas comunidades primitivas. Mas, afinal, as primeiras poesias foram cantadas na Grécia (berço da Odisséia), na Arábia (berço das Mil e uma noites) ou na Guatemala (berço do Popol Vuh)? Ou o fenômeno artístico ocorreu em vários lugares da terra, simultaneamente?

Nos relatos primitivos, não existia separação das esferas social, econômica, cultural e religiosa. Assim, tudo o que ocorria na comunidade era motivo de encontro, expressão emotiva e representação estética. Na Grécia antiga, as pessoas costumavam manifestar os mais diversos sentimentos por meio de versos, acompanhados por instrumentos musicais: as preces em forma de hinos, as glórias dos heróis em odes, os prazeres da mesa, do vinho e da cama mediante ditirambos (poemas dedicados a Dionísio), a morte de um ente querido sob forma de elegia. A arte era estreitamente vinculada ao cotidiano, apreciada por todos e transmitida às gerações posteriores.

Antes de prosseguir, seria interessante refletir sobre as seguintes questões: você já participou de algum evento poético na sua comunidade, como café literário, sarau, noite literária ou algo parecido? Qual é o seu poema preferido? Por quê? Qual foi o último livro de poemas que você leu? O que você prefere: poemas clássicos, românticos, modernistas ou contemporâneos? Por quê? As atividades do curso de Letras estão aumentando seu gosto estético pela literatura? As pessoas da sua comunidade gostam de poemas? Há poetas em sua comunidade?

Origem do verso escrito Com a escrita (século VI a

VIII a.C.), muitas manifestações de caráter oral acompanhadas por instrumentos musicais foram recolhidas em livros, como, por exemplo, as epopéias atribuídas a Homero, que narram as façanhas de grandes heróis, como Ulisses e Aquiles, o teatro de Sófocles, Ésquilo e Eurípides e a poesia lírica.

Na medida em que as cidades gregas (polis) cresciam, segundo Cara (1998, p. 14), �parecia crescer a necessidade de uma

expressão individual�. Os poetas líricos gregos considerados mais importantes, Píndaro (518-438 a.C.), Anacreonte (564-478 a.C.) e Safo (625-580 a.C.), embora escrevessem sobre temas variados, possuíam âmbitos temáticos específicos.

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Lira de ouro, bem comum de Apolo e das Musas de trança violeta: os passos de dança, princípio de júbilo, te escutam, os aedos obedecem teu sinal quando pulsa vibrada os primeiros compassos dos prelúdios condutores de coros. Consegues apagar o pontiagudo raio de fogo semprefluente. Sobre o cetro de Zeus adormeces a águia, que recolhe de um flanco e de outro suas asas rápidas, rainha dos pássaros. Toldas sua cabeça em gancho de uma névoa escura, doce claustro das pálpebras; possuída por teus sons ela crispa no sono o dorso flexível. (Píndaro � tradução de Haroldo de Campos. Apud CARA, 1998, p. 16)

Píndaro se dedicava à exaltação da pátria, cantando, sobretudo, os feitos dos vencedores dos jogos atléticos. Seus poemas eram denominados epinícios e eram acompanhados com cítaras e aulos (tipos de flautas).

O poema de Pindaro que propomos a seguir, traduzido por Haroldo de Campos, exemplifica a simbiose e a sinergia existentes entre poesia e música, na antiga Grécia. Façamos uma leitura do texto prestando atenção à leveza e à musicalidade de suas imagens. A �Lira de ouro� é tão poderosa que submete aos seus encantos os dançarinos e os declamadores de poemas (aedos). Até a águia, a ave atenta e vigilante do poderoso Zeus, �crispa no sono o dorso flexível�.

A leitura deste poema sirva para ativar os conhecimentos trabalhados até agora em teoria literária. Vamos ler observando os encadeamentos dos versos e desfrutemos da beleza estética do texto.

Outro importante poeta grego foi Anacreonte. Sua lírica cantava os

prazeres do amor e do vinho, com poemas laudatórios, e rechaçava a guerra e o tormento da velhice. Para ele, o amor era fugaz, sensual e passageiro. Talvez por isso suas composições sobre esse tema eram breves. Foi considerado o poeta dos banquetes. Em sua homenagem há uma tradição poética denominada �poesia anacreôntica� que canta os prazeres das musas (as artes) e de Afrodite (o amor). No pequeno fragmento abaixo podemos notar o tom jocoso e gracioso do poeta. A negra terra bebe e bebem as árvores a ela;

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Ignota voz, qual se da antiga lira Fosse a encantada música das cordas, Qual se essa a voz de Anacreonte fosse.

bebe o mar as brisas, o sol o mar, a lua o sol. Porque brigais comigo, companheiros, comigo que também quer beber?

Vale a pena ler outros fragmentos de poemas de Anacreonte no site: http://br.geocities.com/bibliotecaclassica/textos/anacreonte.htm (acesso realizado em 14/1/2007).

Você conhece o poema �Vaso grego�, do parnasiano brasileiro Alberto de Oliveira? Seu tema é a taça em que se servia vinho aos deuses. No final, o texto faz referência à encantadora voz de Anacreonte.

Dos três poetas gregos citados acima, Safo é a que merece maior

destaque. Num ambiente em que a mulher tinha a função de cuidar dos afazeres domésticos, enquanto aguardava a vinda incerta do marido guerreiro que passava longas temporadas em terras distantes ou em alto-mar, Safo foi a primeira grande voz individual e feminina do mundo grego. Mulher aristocrata, reuniu as garotas que tinham como fim último o casamento com guerreiros, para dar-lhes formação literária e humana. Na escola de Safo, as adolescentes podiam falar de dúvidas, medos e conflitos, o que, segundo Garro (1995), resultava num relacionamento muito estreito entre elas. Tal situação gerou rumores de que Safo mantinha relações sexuais com suas alunas, fenômeno conhecido até hoje com o nome de lesbianismo (Lesbos era a ilha em que Safo e suas companheiras residiam). Mas, como afirma Garro, �Safo não necessitava ser homossexual para falar de amor, esplendidamente� (p. 38).

�O assunto principal de seus poemas foi o amor, sempre expresso com simplicidade natural, às vezes com ternura, às vezes com ardor apaixonado. Ela usou em seus poemas uma grande variedade de metros, um dos quais, o sáfico, foi associado especialmente a seu nome. Sua poesia foi muito apreciada na Antigüidade, tendo sido elogiada por Platão e por muitos poetas da antologia grega�. http://www.starnews2001.com.br/safo.html (acesso realizado em 14/1/2007)

Vejamos, no poema abaixo, a extraordinária sensibilidade feminina que se manifesta por meio do eu poético preocupado com as adolescentes e com uma questão social. Tal constatação é demonstrada ao preferir a companhia da aluna (inclusive �aquela que partiu� para o casamento) à aspereza da guerra. É um poema belíssimo, cuja leitura vale a pena repetir várias vezes até compreender em profundidade suas múltiplas nuances. Fica aqui o nosso convite a conferir outros poemas de Safo no site: http://www.starnews2001.com.br/safo.html (acesso realizado em 14/1/2007)

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Para Anactória A mais bela coisa deste mundo para alguns são soldados a marchar, para outros uma frota; para mim é a minha bem-querida. Fácil é dá-lo a compreender a todos: Helena, a sem igual em formosura, achou que o destruidor da honra de Tróia era o melhor dos homens, e assim não se deteve a cogitar em sua filha nem nos pais queridos: o Amor a seduziu e longe a fez ceder o coração. Dobrar mulher não custa, se ela pensa por alto no que é próximo e querido. Oh não me esqueças, Anactória, nem aquela que partiu: prefiro o doce ruído de seus passos e o brilho de seu rosto a ver os carros e os soldados da Lídia combatendo cobertos de armadura.

Os romanos sofreram grande influência da lírica grega e isso explica por que a literatura latina não passou pelo mesmo processo dos escritores gregos (do popular ao erudito, do oral ao escrito, do ditirambo ao teatro). Na terra de Virgílio, os diferentes âmbitos institucionais já estavam definidos e, pelo contato com a já estruturada literatura grega, sob a proteção do imperador Augusto (63 a.C.-14 d.C), que era um mecenas, ou seja, um protetor e estimulador das artes, os poetas latinos produziam segundo padrões artísticos preestabelecidos (poesia lírica amorosa, satírica ou didática, poesia épica, teatro etc.).

Os poetas latinos de maior valor foram: Virgílio (70-19 a.C.); Horácio (65-8 a.C.), Ovídio (43 a.C. � 18 d.C.) e Catulo (87-54 a.C.).

Virgílio recebeu uma esmerada educação graças à proteção do ministro do imperador César Octaviano, Caius Mecenas (de onde derivou a denominação de mecenas em relação àqueles que apóiam e estimulam a arte). Virgílio escreveu as Bucólicas ou Éclogas, em que reflete a influência do gênero pastoril criado pelo grego Teócrito. Na famosa écloga IV, canta-se a chegada de um menino que trará uma nova idade dourada para Roma, e que a cultura posterior identificou com a figura de Cristo. O poeta também escreveu as Geórgicas, poema que trata da agricultura, destinado a proclamar a necessidade de restabelecer o mundo campesino tradicional na Itália. A partir do ano 29 a.C., Virgílio inicia a composição de sua obra mais famosa, a Eneida.

Horácio, por intermédio de Virgílio, tornou-se também amigo de Mecenas que o apresentou ao imperador Augusto. Horácio foi o primeiro literato profissional de Roma. Escreveu Sátiras (Sermones), de cunho moral; Odes (Carminas), poemas lírico-mitológicos; Epodos (Iambos), pequenos poemas líricos escritos na mocidade sobre assuntos de Roma; Epístolas,

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Da triste humanidade o fim lhes custa: Perguntam qual será da terra, a face, Qual forma a sua, dos mortais vazia? Quem irá às aras ministrar incenso? Será talvez o mundo entregue às feras? O que foi dos homens será entregue aos brutos?

(Ovídio, Metamorfoses, versos 245-250)

Ela o solta, Ele voa além da Lua. De acesa grenha, De espaçosa cauda, No céu girando, resplandece estrela. http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/ovidio2.htm (acesso realizado em 14/1/2007)

entre as quais está sua obra mais importante, a Epístola aos Pisões, que, segundo Brandão, �expressa o pensamento literário maduro de Horácio e historicamente exerce importante papel na constituição daquilo que se costuma entender com a expressão �teoria clássica da literatura��. (Brandão, 1997)

Ovídio cultivou mais o gênero da elegia, em que trata de matéria erótico-amorosa. Escreveu vários livros como Os amores, A arte de amar, Os remédios do amor, Os cosméticos para o rosto da mulher. No exílio escreveu Os cantos tristes e Cartas do ponto. Mas sua obra mais famosa é Metamorfoses.

Este extraordinário livro em versos, talvez terminado no ano 8 a.C., é um poema de pouco mais de 70 páginas dedicado à transformação, uma espécie de versão mitológica da história natural, dividida em 15 livros. Trata da mudança dos homens em animais, plantas e minerais, desde o princípio dos tempos, quando ainda reinava o Caos, até a época de Júlio César. O ditador romano é incensado pelo poeta em um momento especial, o derradeiro, quando caído, após ser apunhalado pelos senadores, é recolhido do chão pela deusa Vênus, que o ergue da poça ensangüentada, carrega-o para o céu, transformando-o em uma cometa. No verso final, Ovídio escreve:

Catulo escreveu poesias de assunto amoroso, dedicadas a Lésbia. A suavidade de seus poemas revela um dos maiores poetas líricos de todos os tempos. Vejamos no texto abaixo, traduzido por Haroldo de Campos, a intensidade do desejo do eu lírico que se dirige a Lésbia, para que haja uma entrega sem restrições. Observe a grande musicalidade, efeito das freqüentes aliterações e assonâncias, como também das repetições de hipérboles que conferem movimento e vivacidade ao poema. Vivamos, minha Lésbia, e amemos, e as graves vozes velhas - todas � valham para nós menos que um vintém.

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Cessem do sábio grego e do troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Tarjano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta. (CAMÕES, 2000, p. 21)

Os sóis podem morrer e renascer: quando se apaga nosso fogo breve dormimos uma noite infinita. Dá-me pois mil beijos, e mais cem, e mil, e cem, e mil, e mil e cem. Quando somarmos muitas vezes mil Misturaremos tudo até perder a conta: que a inveja não ponha o olho de agouro no assombro de uma tal soma de beijos. (Catulo. Apud Cara, 1998, p. 18)

É importante ressaltar que o lirismo clássico não se restringiu à Grécia e à Roma antigas. A história registra que, durante a Idade Média, as grandes obras clássicas foram proibidas e confinadas nas bibliotecas dos conventos, onde eram acessíveis apenas a um grupo restrito de estudiosos. No entanto, já na baixa Idade Média, entre os séculos IX e XIV, com o surgimento do Humanismo e a invenção da imprensa, a leitura das obras clássicas ganhou novo vigor. Foi no Renascimento, no século XVI, que o Classicismo ressurgiu com toda a sua força. Nessa época, principalmente na Itália, foram escritas várias obras de arte poética, além de terem sido elaboradas releituras da obra de Horácio. As atenções se voltaram, sobretudo, para a Arte Poética de Aristóteles, que foi traduzida, interpretada recriada e até modificada, tornando-se a base teórica da arte renascentista. A obra aristotélica transformou-se em um corpus de normas rígidas a serem rigorosamente seguidas. Segundo uma interpretação do conceito de mimese, o artista não deveria imitar (recriar artisticamente) a natureza, mas aquilo que já havia sido recriado com perfeição pelos clássicos greco-latinos. Felizmente, em todos os tempos há gênios que rompem as convenções. Camões, por exemplo, no Quinhentos português, embora tenha escrito Os Lusíadas à moda clássica, realizou tamanha quantidade de inovações a ponto de ser consagrado como um dos maiores poetas épicos de todos os tempos. Mostrando uma clara consciência disso, bem no exórdio do Canto Primeiro de Os Lusíadas proclama:

Além de sua produção épica, o poeta português foi extremamente clássico, em poemas líricos como o conhecido soneto �Amor é fogo que arde sem se ver�, e, ao mesmo tempo, genuinamente popular ao escrever cantigas como, por exemplo, a que propomos a seguir:

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Síntese da unidade

Mote Descalça vai pera a fonte Lianor, pela verdura; vai fermosa e não segura. Volta Leva na cabeça o pote, o testo nas mãos de prata, cinta de fina escarlata, sainho de chamalote; traz a vasquinha de cote, mais branca que a neve pura; vai fermosa e não segura. Descobre a touca a garganta, cabelos d'ouro o trançado, fita de cor d'encarnado... Tão linda que o mundo espanta! Chove nela graça tanta que dá graça à fermosura; vai fermosa, e não segura. Vale a pena ler este e muitos outros poemas de Camões no site: http://www.secrel.com.br/jpoesia/camoes.html (acesso realizado em 14/1/2007)

Estudando o gênero lírico clássico, pudemos observar como as origens da poesia ocidental residem na herança greco-latina antiga. À diferença de outras líricas mais recentes, o lirismo primitivo possuía um estreito vínculo com o acompanhamento musical e com os aspectos corriqueiros da cotidianidade dos homens. A produção literária em versos liga-se originariamente à personagem mítica de Homero, que recolhe uma enorme e vasta tradição literária oral, predominantemente épica, organizando-a em obras admiradas até hoje, como a Ilíada e a Odisséia. Apesar do predominante cunho épico da produção homérica, há espaço em sua obra para ensaios líricos, assim como também nas obras dos três maiores dramaturgos gregos, Sófocles, Ésquilo e Eurípides. Mas os três grandes mestres do gênero lírico clássico, na Antigüidade grega, foram Píndaro, com seus versos de exaltação da pátria, Anacreonte, famoso cantor dos prazeres do amor e do vinho, e Safo, com seus versos de intensa simplicidade sobre o amor. Na cultura latina, que vive à sombra da herança grega, temos Virgílio, poeta pastoril, campesino e patriótico; Horácio, poeta satírico de cunho moral, lírico-mitológico e epistolar; Ovídio, poeta elegíaco e erótico-amoroso; Catulo, poeta lírico-amoroso. Como conclusão da nossa exposição, falamos um pouco sobre o maior poeta lírico lusitano, Luís Vaz de

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Tanto de meu estado me acho incerto, que em vivo ardor tremendo estou de frio; sem causa, juntamente choro e rio, o mundo todo abarco e nada aperto. É tudo quanto sinto, um desconcerto; da alma um fogo me sai, da vista um rio; agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto. Estando em terra, chego ao Céu voando, nu'hora acho mil anos, e é de jeito que em mil anos não posso achar u'hora. Se me pergunta alguém porque assi ando, respondo que não sei; porém suspeito que só porque vos vi, minha Senhora. (CAMÕES, 2000)

Camões, cujo lirismo une motivos mais clássicos e eruditos de marca renascimental a traços populares de cunho medieval.

Leia atentamente este poema lírico de Luís Vaz de Camões: 1 - Considerando a beleza e a eficácia poética com que é tratado o mundo em desarmonia, observemos o conteúdo que as palavras expressam nesse poema. Nele, percebemos que as contradições e as incertezas percorrem todo o texto, representando um eu que não se encontra em equilíbrio. NÃO é exemplo de uma contradição nesse poema:

a) �que em vivo ardor tremendo estou de frio;� b) �só porque vos vi, minha Senhora.� c) �o mundo todo abarco e nada aperto.� d) �agora desvario, agora acerto.� e) �Estando em terra, chego ao Céu voando,�

2 - Em relação à forma desse poema de Camões, assinale a afirmação CORRETA:

a) A composição apresenta-se na forma de um soneto (dois quartetos mais dois tercetos). b) O poema não apresenta um esquema de rimas definido. c) Apesar de ser um poema clássico, foge às características dessa estética. d) Os versos foram organizados em redondilha maior (verso de sete sílabas poéticas). e) e) O poema não segue a organização tradicional do soneto, em que, no último terceto, é apresentada a razão das reflexões do poema.

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Comentário

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli7-1ve.htm, acessado em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.)

Quanto à primeira questão, a contradição ou oxímoro ou paradoxo é

uma figura de linguagem largamente usada por Camões e que leva os críticos a falar até de protobarroquismo, pela especificidade que esse recurso de estilo terá, mais tarde, no movimento literário do século XVII. Depois de uma existência medieval fechada em cima de firmes certezas, a indecisão vem caracterizar a atitude do homem barroco que hesita perante céu e terra, espírito e carne. Esse sentimento de precariedade tem já suas raízes na crise renascimental com que se abre a Idade Moderna e constituirá uma das principais tônicas da modernidade, até desembocar no niilismo e na desfragmentação do sujeito pós-moderno. Nas alternativas da primeira questão, temos as seguintes contradições: �ardor� versus �frio�; �mundo todo� versus �nada�; �desvario� (isto é, desvio, erro) versus �acerto�.

Quanto à segunda questão, o poema camoniano em questão, como boa parte de sua produção lírica, é escrito em forma de soneto, com um esquema rimático definido da seguinte maneira: nos primeiros dois quartetos: ABBA + ABBA (primeiro e quarto verso: rima interpolada; segundo e terceiro verso: rima emparelhada); nos demais dois tercetos: ABC + ABC. A estética de referência é a clássica, pelo fato de a inspiração poemática ocorrer dentro de universo poético previamente e rigidamente regulado. Cada verso contém (Tan / to / de / meu + es / ta / do / me + a / cho / in / cer (to) // que + em / vi / vo + ar / dor / tre / men / do / es / tou / de / (frio)) dez sílabas poéticas (decassílabo). Conforme a organização tradicional do soneto, a última estrofe revela que o estado de indecisão do eu lírico tem como causa provável a paixão por uma mulher. Referências BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org). Aristóteles, Horácio, Longino. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1997. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Cultrix, 2000. CAMÕES, Luís de. Lírica. São Paulo: Ateliê, 2000. CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1998. GARRO, Maria. Poemas de Safo. Buenos Aires: Corregidor, 1995. GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira, 1991. SAMUEL, Rogel. Manual de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1997. http://br.geocities.com/bibliotecaclassica/textos/anacreonte.htm http://www.starnews2001.com.br/safo.html http://www.secrel.com.br/jpoesia/camoes.html http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/ovidio2.htm http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli7-1ve.htm, acessado em 26/1/2007.

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A seguir, ocupar-nos-emos de um lirismo, de certa

forma, contraposto ao lirismo tradicional. Com efeito, se este se inspira em normas preconcebidas, aquele

simplesmente se considerará totalmente autônomo e livre em relação a qualquer tentativa de coação criativa; se este prima pelo equilíbrio e a justa medida, aquele se

compraz nos exageros desmedidos; se este valoriza a tradição e os modelos consagrados, aquele quebra toda

dependência para com o passado e lança-se temerariamente para o futuro.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Reconhecimento de especificidades românticas no lirismo literário.

Gênero lírico romântico Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • identificar peculiaridades de diversas vertentes românticas

em textos poemáticos. Pré-requisitos

Na presente unidade, você poderá observar, por meio da apresentação de distintos poemas, como as peculiaridades da criação romântica (subjetividade, platonismo, nostalgia, simbiose entre natureza e homem, religiosidade, liberdade de expressão, ruptura com as normas clássicas) manifestam-se com maior evidência no gênero lírico. A teoria poética romântica, abordada na unidade didática 4, poderá ajudar-nos, então, a compreender os textos poemáticos, apresentados a seguir, e a comprovar sua essência romântica. Também, se você já consegue identificar textos líricos clássicos, graças ao trabalho desenvolvido na unidade 8, será mais fácil, por contraposição, reconhecer os textos líricos românticos, visto que os dois estilos literários apresentam entonações e visões de mundo opostas. Introdução

É comum as pessoas associarem poemas de qualquer estilo ao romantismo, estabelecendo uma estreita relação entre poesia, expressão de sentimentos, manifestação de emoções e espírito romântico. Nessa perspectiva, para leigos no assunto, todo poema seria romântico. Tal associação se justifica de certa forma, pela presença, no lirismo, da subjetividade que, de modo geral, é elemento da poesia, mas que, mais especificamente, tem lugar de destaque na lírica do movimento romântico, que se estende do final do século XVIII até o século XIX. Tendências dos textos líricos românticos

Vale lembrar que o Romantismo surge com o liberalismo, filosofia individualista, divulgada pela revolução francesa e centrada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

A centralização exacerbada no �eu� é uma das atitudes mais radicais do movimento romântico em oposição ao Classicismo. Ao centrar-se no

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o Romantismo rechace o racionalismo neoclássico que pretendia conhecer o universal e somente o universal, não podemos esquecer de que o sentido individualista dos românticos foi alcançado graças à Ilustração e ao racionalismo que cortaram os muitos laços com que a religiosidade alienante, os costumes e os preconceitos atavam o homem e o impediam de voar livre e criativamente. (JIMENEZ; CÁCERES, 1997)

Musa! Um gesto sequer de dor ou de severo Luto jamais te afeie o cândido semblante! Diante de um Jô, conserva o mesmo orgulho, e diante De um morto, o mesmo olhar e sobrancelho austero! (Francisca Júlia. In: Literatura brasileira) Se eu morresse amanhã Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! (Álvares de Azevedo, 2002)

Neste momento de combate e tormenta literária, quem é preciso lamentar, os que morrem ou os que lutam? Sem dúvida, é triste ver um poeta de vinte anos que se vai, uma lira que se quebra, um futuro que se apaga; mas isto não é como o repouso? (apud LOBO 1987, p.144)

�eu�, sujeito e agente do mundo e no mundo, cessa a prática clássica da imitação aristotélica. No entanto, como observam argutamente Jimenez y Cáceres, embora

Nos fragmentos abaixo é possível notar visíveis diferenças entre lírica neoclássica, em que um eu poético distante impõe uma postura severa à mulher diante da dor, e lírica romântica, que realiza com mais participação a exteriorização do sofrimento de uma mãe e de uma irmã.

O texto de Álvares de Azevedo recorda que no Romantismo era comum a recuperação da paz perdida, por meio da morte. Sobre a morte de jovens poetas, Victor Hugo opina:

Os românticos optam pela anarquia e pela escrita desautomatizada, pela liberdade criadora, seguindo a inspiração momentânea, extremamente inconstante, visto que depende do humor e do estado de alma no ato da escrita. �Quanto mais mergulhamos em nossa alma, mais ousamos exprimir um pensamento mais secreto, mais trememos quando esse aparece escrito; ele parece estranho e é essa estranheza que constitui o seu mérito� (STENDHAL Apud LOBO, 1987, p.144). Ao negar a tradição clássica com seu modelo único de beleza, os românticos desencadearam uma incomensurável revolução estética centrada na inspiração e na genialidade individuais. �E agora que venha o poeta! Há um público. E essa liberdade o público a quer tal como deve ser, conciliada com a ordem, no Estado; com a

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Versos compostos no início da primavera Num bosque eu repousava a ouvir centenas De notas em sonora confusão, No doce estado em que cismas amenas Tristes cismas nos dão. Minha alma a Natureza quis ligar Às suas obras, que os anos não carcomem; E me afligia o coração pensar No que o homem fez com o homem. (WORDSWORTH, 2001)

Elegias romanas Falai-me, ó pedras! oh falai, vós altos palácios! Ruas, dizei uma palavra! Gênio, não te moves? Sim, tudo tem alma nos teus santos muros, Roma eterna; só para mim tudo se cala ainda. Quem me diz segredos, em que fresta avisto Um dia o ser belo que queimando me alivie? (Johann Wolfgang von Goethe. Disponível em http://www.starnews2001.com.br/literatura.html; acesso realizado em 22/1/2007)

arte, na literatura. A liberdade tem uma sabedoria característica, sem a qual não é completa� (HUGO. Apud LOBO, 1987, p.136).

Diante do barulho das máquinas e do corre-corre citadino, na era da revolução industrial, os poetas rebeldes têm reações distintas: uns (Edgar Allan Poe e Victor Hugo) encaram a realidade para tentar mudá-la e tornar obra e artista mais próximos da vida, além de debater sobre as mudanças político-sociais e culturais; outros, egocêntricos e inadaptados à vida burguesa cheia de conflitos, tensões, caos e desespero preferem fugir para lugares exóticos, pitorescos, primitivos ou naturais. Distantes da estreiteza moral e social da civilização, entregam-se ao culto da melancolia e da sentimentalidade.

O fragmento abaixo é retirado de um poema de Goethe e certamente é o resultado das andanças e pesquisas do escritor pela península italiana. �Viajar, conhecer terras e povos estranhos, paisagens exóticas, ruínas, restos de velhas civilizações, monumentos de povos desaparecidos � torna-se igualmente uma forma de escapismo� (MOISÉS, 1999, p.119) O texto expressa as tensões de um eu poético que, desesperado, se dirige à natureza e às ruínas, tentando encontrar respostas para sua angústia. Isso sugere o estranhamento e a frustração dos poetas românticos diante da nova arquitetura (as chaminés das fábricas com todo seu simbolismo) encampada pelas grandes cidades européias.

Outros românticos, insatisfeitos e inconformados com o presente, preferiram �retornar� ao passado (com uma predileção especial pela Idade Média) a fim de entrar em contato com elementos folclóricos, lendários e primitivos. As lembranças e uma áurea de misticismo povoam mentes e

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o êxito desses poemas foi menor na Grã-Bretanha do que fora dela, talvez devido aos preconceitos antiescoceses lá vigorantes. [...] Não demoraram a surgirem plagiários, ou melhor, supostos �continuadores� de Macpherson, que alegavam ter recolhido e traduzido do gaélico outros poemas do bardo Ossian não constantes na �vulgata� (PAES, 1995, p. 127).

versos desses poetas, transbordando de emoção e musicalidade. Tal revisitação das tradições teve início na Escócia (PAES, 1995), com James Macpherson (1736-1796), que, ao publicar textos próprios, apresentava-os como compilações de fragmentos de baladas e canções do velho poeta bardo Ossian, que vivera no século III d.C. Somente depois de muito tempo é que foi descoberta a verdade, quando os poemas já haviam caído no gosto popular e influenciado grandes nomes do Romantismo europeu como Blake, Byron, Smith, Young, entre outros. Como assevera Paes,

Vale ressaltar que a volta ao passado histórico, característica do movimento romântico, adquire sentidos distintos em função de diferentes perspectivas. Para uns, é na Idade Média que se conservam as raízes culturais, com o surgimento das línguas vernáculas e as façanhas dos grandes heróis que ficaram na memória do povo, como Rodrigo Díaz (El Cid), na Espanha. Além disso, com a época medieval também estão identificados os valores cristãos e morais que se perderam com a revolução industrial, com a desintegração das famílias que saíram do campo para a cidade, movidas por uma preocupação material fomentada pelo capitalismo emergente. Nesse tipo de imaginário romântico, a Idade Média corresponde a uma espécie de �paraíso perdido�. Já, para outros, a Idade Média é uma época de cenários místicos, cheios de fantasias e de liberdade que combinam com a forte aspiração romântica à autonomia criadora.

No poema abaixo, do poeta português Almeida Garret, podemos notar esse retorno à lírica medieval, na simplicidade e intensidade rítmica dos versos em redondilhas. O tema evoca o encontro entre Ulisses e as Sereias de vozes sedutoras, história da tradição antiga que dialoga com a vassalagem medieval, leitmotiv caro à época romântica. Barca Bela Pescador da barca bela, Onde vás pescar com ela, Que é tão bela, Ó pescador? Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Ó pescador! Deita o lanço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Ó pescador! Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela

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Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabíá; As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. (CAMPEDELLI, 1999)

Meu anjo Meu anjo tem o encanto, a maravilha Da espontânea canção dos passarinhos; Tem os seios tão alvos, tão macios Como o pêlo sedoso dos arminhos. Triste de noite na janela a vejo E de seus lábios o gemido escuto. É leve a criatura vaporosa Como a froixa fumaça de um charuto. (AZEVEDO, 2002, p. 105)

Só de vê-la, Ó pescador! Pescador da barca bela, Inda é tempo, foge dela, Foge dela, Ó pescador! (Almeida Garret. In: MOISÉS, 1997, p. 218)

Além do sentimento passadista, uma das vertentes românticas volta-se para o espírito nacionalista, possivelmente gerado pelas guerras napoleônicas, na Europa, e pela independência política, no Brasil. Nesse, sobretudo, há um nacionalismo exacerbado de que a conhecida �Canção do exílio�, de Gonçalves Dias, é exemplo peculiar. Ao ritmo das redondilhas e de um conteúdo extremamente saudosista, o eu poético canta a sua pátria, a partir da condição de quem está dela afastado, sentindo saudades. Você pode notar que a intensa musicalidade e o ritmo ligeiro dos versos são semelhantes ao texto anterior. Também chama atenção a cor local, por meio de imagens vibrantes, como as das palmeiras e dos sabiás. Vale ressaltar que, para o espírito romântico, a natureza é uma extensão do �eu�.

O romântico rejeita a concepção clássica de beleza, incorporando no

conceito de beleza o grotesco, do qual o Quasímodo, o celebre corcunda de Notre Dame, é um exemplo. Muitas vezes a mulher se transforma em anjo, santa ou mesmo �senhora�, o que resulta em uma relação de vassalagem amorosa. Isso porque a musa é, em geral, inatingível. O feminino pode, às vezes, também se transformar em amor ideal platônico, caso a amada não corresponda aos anseios do eu poético.

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A lírica romântica, como vimos, está resolutamente centrada

nos elementos norteadores de toda o movimento romântico. Partindo de uma perspectiva liberal e individualista, típica de uma burguesa em franca ascensão, a poesia dos séculos XVIII e XIX inaugura a estética do gênio criativo e a desautomatização da escrita. O artista, inconformado com o hic et nunc, torna-se um escapista, compensando sua insatisfação presente na fuga para a morte, lugares exóticos, melancolia, paixões fortes, natureza, passado, Idade Média.

Síntese da unidade

Na primeira questão, temos três trechos poéticos românticos. Porém,

só no terceiro, o de Álvares de Azevedo, detectamos as características procuradas, a saber, o intimismo e a falta de engajamento político: o foco está voltado exclusivamente para o eu, seu estado, seus sentimentos, em um processo de total introspecção; o mundo externo está apagado, sem exercer apelo nenhum no espírito do eu lírico.

Comentário

O lirismo romântico brasileiro, em uma de suas formas de expressão, trata da interiorização da atividade pessoal e do desligamento da vida pública, tal como podemos perceber em:

a) Gonçalves Dias, em �Canção do Exílio�: Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá.

b) Castro Alves, em �Navio Negreiro�:

Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite Horrendos a dançar...

c) Álvares de Azevedo, em �Idéias Íntimas�:

Parece-me que vou perdendo o gosto, Vou ficando blasê, passeio os dias Pelo meu corredor, sem companheiro, Sem ler, nem poetar. Vivo fumando, Minha casa não tem menores névoas Que a deste céu de inverno...

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli9-1ve.htm, acessado em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.) a melhoria do que está sendo ofertado na rede educacional da sua cidade.

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Na próxima etapa, estudaremos mais um capítulo do vasto universo lírico: o gênero lírico modernista. As influências modernas pós-românticas provocam, na lírica ocidental, transformações que a encaminham já para a ruptura pós-moderna, com a queda dos valores anteriores: existência de modelos, ilusão da originalidade, concepção de uma verdade absoluta, presença de uma realidade objetiva, representação fiel do real, existência de um sujeito etc. Aprenderemos, então, a reconhecer as marcas do modernismo no texto lírico, encaminhando-nos para o último passo que será o estudo da lírica contemporânea.

Informações sobre a próxima unidade

Referências AZEVEDO, Álvares. Lira dos Vinte anos e poesias diversas. São Paulo: Ática, 2002. CAMPEDELLI, Samira Yousseff. Literatura: história e texto. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1999. JIMÉNEZ, Felipe B. Pedraza y CÁCERES, Milagros Rodríguez. Las épocas de la literatura española. Barcelona: Ariel, 1997. LOBO, Luíza. Teorias poéticas do Romantismo. Rio de Janeiro: Mercado Aberto, 1987. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1999. ________________. História da Literatura Portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997. PAES, Paulo. Transleituras. São Paulo: Ática, 1995. WORDSWORTH, William. Lyrical Ballads. S.c.: Penguin Uk, 2001. http://www.casimiro.rj.gov.br/poemas.php?op=A

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Meta da unidade Apresentação das principais vanguardas que influenciam a evolução

do lirismo ocidental modernista.

Vanguarda é o nome que se dá ao conjunto de tendências que, em uma determinada época, se opõem às tendências vigentes,

principalmente no campo das artes.

Gênero lírico modernista Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • identificar, em textos líricos, as mudanças provocadas pelo

modernismo com relação às fases romântica e tradicional. Pré-requisitos

A presente unidade tem como pressuposto evidente todo o discurso desenvolvido na unidade 5, em particular no que diz respeito a aceleração temporal, valorização do periférico e do alternativo, vanguardismo extremado, experimentalismo, crítica a tudo o que há de consagrado e convencional. Por isso, recomendamos-lhes levar em consideração todos esses elementos para ter um bom aproveitamento desta unidade. Introdução

Na unidade 5, você pôde conhecer as marcas do modernismo, observando as diferenças entre esta e as estéticas romântica e clássica. Agora, vamos conhecer os aspectos que influenciaram a produção lírica a partir do século XX.

A partir do século XX, o homem moderno sofre inúmeras modificações no seu modo de pensar e perceber o mundo. Essas transformações estão ligadas a avanços tecnológicos que, até então, pareciam impossíveis, como a invenção do automóvel, do avião, do cinema etc. A velocidade deslumbra o olhar do homem moderno. A eletricidade já é um fato, ao lado dos barcos a vapor e das locomotivas que transportam pessoas e mercadorias com maior velocidade que as carruagens.

Vanguardas européias

Toda a efervescência social, política, econômica e cultural, ocorrida especialmente na Europa, possibilita o aparecimento de movimentos artísticos que procuram acompanhar a mudança do mundo, representando a agitação da vida moderna, além de proclamar a necessidade de a arte tratar de temas atuais, deixando de ficar presa à cultura greco-latina, como ocorria no Parnasianismo.

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Manifestações artísticas, como o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo

e o Surrealismo surgem neste período e ficam conhecidas como correntes de vanguarda ou vanguardas européias, caracterizando-se pelo desejo de destruição do passado e pela visão crítica do presente e, juntas, dão origem ao Modernismo. Futurismo

Com base no Manifesto do Futurismo, publicado em Paris, em 1909 (o primeiro de uma série de vinte manifestos), e assinado pelo italiano Filippo Tommaso Marinetti, o Futurismo propõe: o amor ao perigo, à verdade, à energia; a abominação do passado, da arqueologia, do academicismo, da nostalgia, do sentimentalismo; a exaltação da guerra, do militarismo, do patriotismo: �A guerra é a única higiene do mundo�; a substituição da psicologia do homem (desaparecimento do eu na literatura) pela obsessão da matéria; a incorporação de novos temas poéticos: locomotivas, automóveis, aviões, navios a vapor, fábricas, multidões de trabalhadores; exaltação da bofetada e do soco: �Não há beleza senão na luta�.

Em março de 1912, na cidade italiana de Milão, é publicado o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, contemplando os seguintes pontos:

• a destruição da sintaxe, com os substantivos dispostos ao acaso;

• o emprego do verbo no infinitivo, para que se adapte elasticamente ao substantivo e possa dar o sentido de continuidade e da intuição que nele se percebe;

• abolição do adjetivo, para que o substantivo guarde sua �cor essencial�;

• abolição do advérbio, �que dá à frase uma cansativa unidade de tom�;

• supressão dos elementos de comparação: como, parecido com, assim como;

• substituição dos sinais tradicionais de pontuação por signos matemáticos: X-:+=>< e por sinais musicais;

• abolição de todos os clichês.

Com o objetivo de fazer do Futurismo o estilo de arte que expresse o progresso, a vida mecanizada, este movimento acaba se tornando um meio de divulgação do Fascismo de Mussolini. Futurismo e Fascismo têm em comum o desprezo pela democracia e pelo socialismo, o antifeminismo e uma tendência antiburguesa.

Um texto que representa as propostas futuristas é Ode Triunfal, de Álvaro de Campos (heterônimo do poeta português Fernando Pessoa). Observe um trecho:

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Você pode ler toda a Ode Triunfal em:

http://www.revista.agulha.nom.br/facam02.html

Veja o quadro de Picasso em: http://www.cic.unb.br/docentes/arcela/lcmm/disciplinas/aeii2005

.2/tarefas.html

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical - Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força - Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, Porque o presente é todo o passado e todo o futuro Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! (...) Cubismo

A pintura do espanhol Pablo Picasso, especialmente o quadro �Les Demoiselles d�Avignon�, de 1907, propõe uma nova forma de apreensão do real: por meio de formas geometrizadas e deformadas, Picasso procura captar o objeto em simultaneidade, de vários ângulos ao mesmo tempo.

Esse é o ponto de partida para o Cubismo: representação da realidade por meio de estruturas geométricas, desmontando os objetos para que, remontados pelo espectador, deixem transparecer uma estrutura superior, essencial. Os cubistas afirmam que as coisas nunca aparecem como elas são, mas deformadas em todos os sentidos. Na literatura, podem ser apontados os seguintes elementos do estilo cubista:

• a obra de arte não deve ser uma representação objetiva da natureza, mas uma transformação dela, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva;

• a procura da verdade deve centralizar-se na realidade pensada, criada, e não na realidade aparente;

• a ordem cronológica deve ser eliminada. As sensações e recordações vão e vêm, em uma troca contínua entre presente e passado, embaralhando o tempo;

• valoriza-se o humor, a fim de afugentar a monotonia das modernas sociedades industrializadas;

• suprime-se a lógica, privilegiando o pensamento-associação, que transita entre o consciente e o subconsciente;

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Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. (...)

�Dada� significa �cavalo de balanço� em francês, �sim� em romeno, �preocupação em conduzir o carrinho do bebê� em alemão, �uma forma de chamar a mãe� em italiano, e, em certas regiões da África, �o rabo da vaca sagrada�. A partir dessa plurissignificação, a obra dadaísta passa a ser improvisação, desordem, dúvida, oposição a qualquer tipo de equilíbrio.

Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público.

O Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade é um conhecido exemplo de literatura ao estilo cubista e que você poderá ler integralmente em: http://www.culturabrasil.org/cda.htm. Dadaísmo

Conhecido como a mais radical das correntes de vanguarda, o Dadaísmo surge em Zurique, na Suíça, com o primeiro manifesto do romeno Tristan Tzara, lido em 1916.

Para os dadaístas, a guerra evidencia a crise de uma civilização, cujos valores morais e espirituais já não têm mais razão de serem preservados. Por isso, afirma-se um desejo de independência e de desconfiança para com a sociedade em geral: �Não reconhecemos nenhuma teoria. Basta de academias cubistas e futuristas: laboratórios de idéias formais�. Fazem parte das propostas dadaísta os seguintes itens:

• a denúncia das fraquezas do continente europeu; • a recusa do racionalismo burguês; • a desmitificação da arte: �a arte não é coisa séria�; • a negação da lógica, da linguagem e da ciência; • a abolição da memória, da arqueologia, dos profetas e do

futuro.

No último manifesto do movimento (ao todo foram sete), Tzara dá uma receita para fazer um poema dadaísta:

As exposições dadaístas visam provocar escândalo. A mais sensacional de todas é realizada em Colônia, na Alemanha, em 1920. Com o tempo, o Dadaísmo irradia-se para outros centros, como Nova Iorque, Berlim, Hannover e Paris. A partir da década de 1950, aparecem, sobretudo nos Estados Unidos, movimentos neodadaístas chamados de �arte do lixo� e de �pop-art�, baseados nas mesmas idéias de protesto e de antiarte.

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Veja o texto completo de Caetano Veloso em:

http://caetano-veloso.letras.terra.com.br/letras/

76613/ Parafins gatins alphaluz sexohnei la guerrapaz Ourake palávora driz okê Cris expacial Projeitinho imanso ciumortevida vidavid Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun Homenina nel parais de felicidadania:

A última estrofe da música Outras palavras, de Caetano Veloso representa um exemplo de texto dadaísta: 4. Surrealismo

A última vanguarda surge em 1924, em Paris, quando André Breton rompe com o Dadaísmo e lança o Manifesto do Surrealismo. Breton e artistas como Louis Aragon e Salvador Dali querem produzir uma nova cultura e encontrar um caminho de acesso às zonas profundas do psiquismo humano. Questionando a sociedade e a arte, eles se propõem destruir as duas coisas, para recriá-las a partir de técnicas renovadoras.

Os surrealistas procuram fundir a imaginação com a razão; o maravilhoso do sonho, dos estados de alucinação e até da loucura do homem, com o maravilhoso das coisas exteriores: a fantasia e a realidade unidas permitiriam captar uma super-realidade. Estas são algumas das propostas dos surrealistas:

• abolição da lógica. Recusa-se o racionalismo absoluto que permite apenas captar fatos relacionados com a nossa experiência;

• valorização do inconsciente. Apoiados na pesquisas de Sigmund Freud, que identifica zonas (o subconsciente e o inconsciente) muito importantes para a ação do ser humano, procura-se inspiração nos sonhos;

• atribuição de um caráter lúdico à arte. A poesia deixa de ser entendida como canto ou como meio de comunicação de vivências, para se tornar ação mágica, mito, meio de conhecimento;

• automatização da escrita. O texto deve ter como preocupação maior captar o funcionamento real do pensamento. Os pensamentos devem ser exprimidos caoticamente, tal como nos ocorrem, sem preocupação com sua sistematização lógica;

• presença do humor negro. Com o propósito de não usar lugares-comuns, os surrealistas juntam muitas vezes uma palavra logicamente adequada a uma outra absurda, produzindo imagens insólitas, como: anjo torto, cadáver agradável, morte feliz etc.

É importante lembrar que esses movimentos amadureceram as

tendências iniciadas por Edgar Allan Poe, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Valéry. No livro Estrutura da lírica moderna, Hugo Friedrich (apud D�ONOFRIO, 1997) diz que há duas polaridades no fazer poético do século XX: uma lírica intelectualizada, de rigor formal, e uma lírica livre,

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Nosso estudo do gênero lírico modernista começou com uma

breve definição do contexto histórico, em que se inserem as quatro principais vanguardas artísticas que exerceram profunda influência no começo do século XX: futurismo, cubismo, dadaísmo e surrealismo. Apesar de diferenças objetivas entre tais movimentos, é possível traçar um perfil único daquilo que podemos definir tendência vanguardista do Novecentos: rejeição e relativização histórica do passado, da tradição e da ordem racional e burguesa; exaltação do perigo, da energia, da velocidade, da matéria, da tecnologia, da intuição; recusa de normas, formas e modelos engessantes; desconstrução dos simulacros convencionais e reconstrução de novas representações alternativas do real; fim definitivo da linearidade e do paradigma lógico cartesiano; valorização do humor, das dimensões subconscientes e inconscientes da psique humana; desmitificação da arte; fusão de imaginação e razão; expressividade caótica e paradoxal do mundo interior e exterior.

Síntese da unidade

Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número. (...)

Pesquise o poema completo em: (Disponível em http://www.fuvest.br/vest2006/provas/2fase/por/por2f.pdf; acesso realizado em 30/1/2007

alógica, elevada às últimas conseqüências pelo poeta surrealista. Embora haja essas duas polaridades, é importante observar que elas não se excluem.

Assim é que temos expressões poéticas ao estilo de Valéry e Mallarmé e ao modo surrealista de Breton. Na literatura de língua portuguesa, temos em Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Mário de Andrade grandes representantes da poética modernista.

1 - Leia, abaixo, um fragmento do poema de Manuel Bandeira. Em seguida, responda à questão proposta:

O poema acima relata o suicídio de João Gostoso. Em relação aos diversos recursos literários narrativos aqui adotados, considere as seguintes afirmações: I. Os elementos utilizados para criar o perfil da personagem indicam tratar-se de um homem do povo, pois seu nome é comum (João), seu emprego é braçal e seu local de moradia é um barracão sem número em uma favela. II. As características de João Gostoso, ao invés de revelarem traços da identidade da personagem, servem para inseri-lo num profundo anonimato. Tal fato poderia sugerir uma oposição entre essa personagem e os detalhes do ambiente em que se desenrola a ação (bar Vinte de Novembro e Lagoa Rodrigo de Freitas). III. A seqüência de versos dissílabos (bebeu / cantou / dançou) possui ritmo acelerado, remetendo à intensidade dos últimos momentos de prazer vivenciados por João Gostoso.

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Comentário

IV. Os aspectos formais desse poema-narrativa estão desvinculados do conteúdo, uma vez que sua disposição (versos livres e brancos) não é elemento gerador de significado.

É correto o que se afirma em: a) II, III e IV b) I, II e IV c) I, II e III d) d)Todas as alternativas e) I, III e IV

2 - A respeito do poema anterior NÃO podemos afirmar: a) O poema assume apenas a proposta de libertação da forma poética, em versos livres e brancos. b) A partir do título notamos uma proposta de redimensionar o assunto da poesia, uma vez que o cotidiano pode assumir uma dimensão poética, na medida em que é reinventado em linguagem e ritmo. c) O segundo verso do poema, iniciado pela construção uma noite, sugere que o que João Gostoso viveu naquela noite, Bebeu/ Cantou/ Dançou, foi uma exceção em sua rotina. d) Podemos entender que o tamanho do primeiro e do último verso do poema exprimem um grande número de dificuldades vividas pelo personagem e contrastam com os versos curtos Bebeu/ Cantou/ Dançou que apontam os momentos de alívio como raros na vida dele. e) A omissão do número do barracão em que João Gostoso morava, confere a ele um caráter de personagem típica, isto é, representa várias pessoas que vivem na mesma situação.

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli10-3ve.htm, acessado em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação).

Em relação à primeira questão, todas as afirmativas estão corretas menos a última, em que se sustenta que os aspectos formais não possuem relação com o conteúdo do poema. Ao contrário, vê-se que a escolha por versos livres (sem métrica definida) e brancos (sem rima), juntamente com outras escolhas formais (primeiro e último verso longos, demais versos curtos) faz parte de uma opção consciente do poeta e da estética literária a que ele pertence de introduzir temas e figuras tradicionalmente excluídos do mundo culto e refinado da arte.

Ligada à primeira, a segunda questão tem todas as afirmativas corretas menos a marcada pela letra (a), pois o uso de versos livres e brancos � como vimos anteriormente � não se explica apenas por uma opção poética de libertação formal, implicando também em uma precisa razão de conteúdo.

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Prontos para a última etapa da nossa viagem no gênero lírico? A seguir, veremos como o lirismo ocidental se transforma, em virtude das influências de uma nova época, o chamado pós-modernismo. Com base em pressupostos teóricos já desenvolvidos na unidade 6 a respeito da literatura e das artes em geral, agora retomados dentro do contexto mais específico da lírica, observaremos algumas aplicações representativas em textos líricos brasileiros das últimas décadas do século XX.

Informações sobre a próxima unidade

Referências BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. D`ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental. São Paulo: Átila, 1997. http://www.fuvest.br/vest2006/provas/2fase/por/por2f.pdf http://www.revista.agulha.nom.br/facam02.html http://www.cic.unb.br/docentes/arcela/lcmm/disciplinas/aeii2005.2/tarefas.html http://www.culturabrasil.org/cda.htm http://caetano-veloso.letras.terra.com.br/letras/76613/ http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli10-3ve.htm

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Meta da unidade Observação dos sinais de pós-modernidade na atual situação do

lirismo ocidental.

Gênero lírico contemporâneo Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • entender e identificar, em textos líricos, a progressão ou

ruptura que há entre modernidade e pós-modernidade.

Pré-requisitos O conhecimento prévio para um bom aproveitamento desta unidade

está contido na unidade 6 sobre poética contemporânea e nas unidades 8, 9 e 10 sobre gênero lírico clássico, romântico e modernista. Com efeito, as característica típicas do lirismo contemporâneo dialogam o tempo inteiro com os pressupostos teóricos de referência do fazer literário dos séculos XX e XXI: obra aberta, provisoriedade, descentralização, desconstrução, teoria do caos, cansaço, fracasso, desilusão, fim da originalidade e da linearidade, hibridismo, ecletismo, niilismo, hedonismo, imediatismo, narcisismo. Como você pode observar, há uma região de contato quanto a temas e tendências entre modernismo e pós-modernismo, que torna difícil uma rígida separação entre as duas poéticas. Mas, como sabemos, nossa época já não procura mais as divisões exatas e as representações cartesianas de conceitos e idéias. A referência às outras etapas históricas do lirismo é necessária também para descobrir o que há de novo e o que se mantém do passado, nesse diálogo constante entre ontem e hoje que, como veremos, é uma das maiores peculiaridades da arte contemporânia. Introdução

Com o avançar da cultura e de suas manifestações para a época contemporânea acentua-se sempre mais a rapidez da evolução intelectual, artística, científica e tecnológica, de modo que se torna sempre mais difícil o controle e a organização do universo literário pós-moderno. Marcado por uma difusa e onipresente incerteza e fluidez nas relações de trabalho e na produção artística, nos produtos e padrões de consumo, a contemporaneidade apresenta mudanças constantes em todas as esferas da vida, que, de certa maneira, ampliam o substrato real de que a arte é simulacro.

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Assim, a produção contemporânea não tem se restringido apenas a fatos ou acontecimentos fictícios, mas tem elegido a realidade como elemento privilegiado de criação poética, em um mundo, como o nosso, em que, muitas vezes, a vida supera a ficção. A tais características soma-se ainda a ironia, considerada por Hutcheon (1991) elemento integrante de fundamental importância das obras contemporâneas.

Assim, a lírica contemporânea questiona no presente determinada tradição literária, com o intento de extrair revisões a partir de outros olhares, em uma concepção que relativiza a historiografia oficial, segundo uma interpretação da poesia já livre da ilusão representativa e adepta de uma sempre renovada construção do mundo por parte do homem.

O pós-modernismo renova o entusiasmo por um passado que não está encerrado, mas que é desconstruído e reconstruído em cada ato de escrita. Segundo Linda Hutcheon, a tônica mais consistente do pós-modernismo parece ser mesmo uma profunda, radical e constante ironia em relação ao passado e ao presente. Características do lirismo contemporâneo

Caracterizada pelo hibridismo formal e material, a poesia contemporânea caminha para uma renovação do discurso poético, experimentando percursos lingüísticos inovadores.

Outras características são o gosto pela intertextualidade e pela paródia, a presença do quotidiano com a conseqüente recuperação de um diálogo poético com o real, além de uma forte tendência para a narratividade do verso.

Encontramos também o gosto pela liberdade de expressão, como continuação de um marco já estabelecido pela poética modernista, empenhada na construção de uma poética da marginalidade (com a eleição de temas como o sexo, a droga, o álcool, a loucura), como já ocorria em Baudelaire.

Nossa poesia ganha, cada vez mais, sentidos particulares, através de caminhos diversificados, livre de regras ou cânones impostos, constantemente repensando e interrogando a si mesma, em permanente diálogo com a filosofia.

Existe ainda um gosto particular pela sacralização das pequenas coisas quotidianas.

É a partir dessas características, então, que surgem: • A poesia-práxis, que considera cada palavra como um ser

atuante, uma fonte geradora de outras palavras. Mário Chamie e Cassiano Ricardo lideram este movimento. Veja um fragmento do poema Plantio, de Chamie:

Cava, então descansa. Enxada; fio de corte corre o braço de cima e marca:mês, mês de sonda. Cova. Joga, então não pensa.

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Síntese da unidade

O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão. (...)

Veja o texto completo em: http://www.espacoacademico.co

m.br/035/35cult_poesia.htm

Semente: grão de podalarga a palma de lado e seca: rês, rês de malha. Cava. (O poema completo está disponível em http://www.avanielmarinho.com.br/posmodernismotropi.htm; acesso realizado em 31/1/2007).

• A poesia social, cuja temática centra-se na denúncia das

desigualdades sociais. O brasileiro Ferreira Gullar é um dos autores que cultivam a poesia social. Veja um fragmento de Não há vagas:

• O poema-processo, também conhecido como poema-código, um gênero que leva ao extremo as propostas concretistas, utilizando signos visuais para a constituição do poema, resultando em um poema visual, semiótico.

• A poesia marginal, que se encontra fora do circuito editorial, podendo ser lida em muros, postes, folhas mimeografadas, páginas de jornal, enfim, em qualquer lugar apto a expressar descontração e subjetividade.

A primeira sensação ao olhar para o lirismo contemporâneo é a dificuldade para distingui-lo do lirismo modernista e certa perplexidade em determinar-lhe marcas definitivas que nos permitam fixá-lo com precisão. Existem três razões que explicam isso: em primeiro lugar, certa comunhão de traços entre modernismo e pós-modernismo: algumas peculiaridades modernistas só fazem é exacerbar no pós-modernismo; em segundo lugar, certa resistência do modernismo e do pós-modernismo a aceitar rótulos e camisas de força; em terceiro lugar, a falta de um necessário e saudável distanciamento histórico em relação a fatos que acabaram de ocorrer ou que ainda estão se prolongando enquanto estamos escrevendo.

De forma geral, podemos falar do perfil do lirismo contemporâneo, mostrando suas obras e seus autores, e citando elementos-chave como: a ironia (Hutcheon), o inconformismo com todo

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Estas poesias "narrativizadas" ocultam, através de uma simbologia ligada aos elementos da natureza, os sentimentos mais profundos da donzela. As cantigas podem ser em forma de diálogo: a donzela fala com os elementos da natureza (o mar, árvores, a fonte, o cervo, o papagaio) ou seres humanos (a mãe, as amigas ou as confidentes).

(ANDRADE, 1999) (Disponível em http://www.cursinhodapoli.org.br/pdfs/simulados/1_2003.pdf; acesso realizado em 30/1/2007)

tipo de convenção, norma, paradigma consolidado, cânone e estrutura previamente e autoritariamente determinada, a revisitação do passado e das tradições com espírito desconstrutivista e reconstrutivista, o hibridismo, a intertextualidade, a paródia, a cotidianidade, a narratividade do verso. Quatro tendências fundamentais encerram a nossa rápida excursão pelo lirismo contemporâneo: a poesia-práxis, que humaniza a palavra tornando-a semente geradora de inúmeras outras palavras; a poesia social, que com seu engajamento político, denuncia as desigualdades que o avanço científico e tecnológico não conseguiram sanar; a poesia processo, que desenvolve a proposta concretista valorizando a iconicidade e a imagética da palavra e do verso poético; e a poesia marginal, que se coloca fora dos circuitos convencionais do mercado cultural, buscando caminhos de difusão cultural alternativos e mais democráticos.

"Navegar é preciso", escreve Fernando Pessoa em um de seus poemas do livro Mensagem, ainda mais através das palavras. Na internet encontramos alguns endereços destinados à poesia. Um bom site é a página do Instituto Camões (www.instituto-camoes.pt), destinada a quem deseja ampliar seu conhecimento sobre a poesia portuguesa. Pesquisando sobre as cantigas de amigo, encontramos o seguinte comentário:

As formas dessas cantigas são retomadas ao longo da história da

literatura por poetas que têm procurado nessas composições medievais processos criativos para cantar o sentimento amoroso. Eugênio de Andrade é um poeta português que nasceu na Póvoa da Atalaia em 1923. Estudou em Lisboa e em Coimbra. A partir de 1950, fixou-se no Porto. A variedade dos seus registros faz de sua poesia uma das mais representativas da literatura portuguesa contemporânea. Escreveu o seguinte poema: Canção Tinha um cravo no meu balcão; Veio um rapaz e pediu-mo - mãe, dou-lho ou não? Sentada, bordava um lenço de mão; Veio um rapaz e pediu-mo - mãe, dou-lho ou não? Dei um cravo e dei um lenço, Só não dei o coração; Mas se o rapaz mo pedir - mãe, dou-lho ou não?

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O poema de Eugênio de Andrade apresenta de maneira atualizada

uma típica estrutura poética de cantiga medieval. Na contemporaneidade � como vimos � não foram estabelecidos novos padrões estéticos ou uma nova maneira de fazer literatura. O que ocorre é um intenso interesse por tudo aquilo que já foi produzido ao longo dos séculos. Assim, o passado e revisitado, reinterpretado, imitado ou estilizado parodicamente.

Comentário

A respeito do poema de Eugênio de Andrade NÃO podemos afirmar:

a) Esse poema não recria a situação das cantigas de amigo. b) Os elementos simbólicos do "cravo" e do "lenço" (que a moça deseja dar ao rapaz) podem ser lidos como símbolos da liberdade da rapariga em relação ao amor. c) Aproximamos essa "Canção" de uma cantiga medieval, pois retoma uma situação comum desses textos: a donzela fala com a mãe sobre seus sentimentos amorosos. d) Podemos aproximar a canção contemporânea a uma cantiga medieval, devido à composição paralelística, isto é, à repetição dos versos (�Veio um rapaz e pediu-mo�, na primeira e segunda estrofe; �- mãe, dou-lho ou não?�, na primeira, segunda e terceira estrofe). e) Também a rima contribui para a aproximação desse poema a uma cantiga de amigo, pois a combinação de sons proporciona musicalidade.

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli8-1ve.htm, acessado em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.) Referências ANDRADE, Eugênio de. Poemas de Eugênio de Andrade. São Paulo: Nova Fronteira, 1999. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. http://www.espacoacademico.com.br/035/35cult_poesia.htm http://www.cursinhodapoli.org.br/pdfs/simulados/1_2003.pdf http://www.avanielmarinho.com.br/posmodernismotropi.htm

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Após termos esgotado o gênero lírico, na próxima unidade, abordaremos o gênero épico, que, embora seja praticado até hoje, teve seu apogeu na época clássica. Conheceremos suas particularidades formais e temáticas e três entre suas maiores obras: a Ilíada e a Odisséia, tradicionalmente atribuídas ao mítico poeta grego Homero, e a Eneida, do poeta latino Virgílio.

Informações sobre a próxima unidade

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Meta da unidade Estudo da natureza do épico na literatura ocidental.

Gênero épico Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • reconhecer as principais peculiaridades de textos épicos.

Pré-requisitos

O gênero épico, apesar de ter até hoje seus cultores entusiastas, é uma tendência literária mais própria da época clássica. É por isso que, para um seu melhor entendimento, aconselhamos uma retomada dos principais tópicos da poética clássica, em particular de seu caráter aprioristico que leva à definição prévia das partes de uma epopéia (proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo), dos tipos de versos utilizáveis na narrativa épica (decassílabo e dodecassílabo) e de toda uma série de elementos estéticos e poéticos que caracterizam a produção artística de seus principais representantes. Introdução

Enquanto no gênero dramático, que discutiremos na próxima unidade, a palavra é representada (atores em cena representam acontecimentos, que ocorrem ao vivo diante do espectador), no gênero épico, a palavra é narrada, ou seja, o que vai caracterizar esse gênero é a presença de uma voz que tece uma narrativa para o leitor.

Para fazer mais presente e verossímil o desenrolar da história, o gênero épico utiliza diversos recursos, entre os quais a configuração de um espaço onde acontecem as ações, a delimitação de um tempo para os acontecimentos, a definição de personagens, cada uma com seu caráter delineado, a estruturação das ações segundo um princípio, um meio e um fim.

Baseando-se nessa breve e limitada apresentação, você deve estar pensando que o gênero épico é muito parecido com os diversos romances que você já leu. Na verdade, você não se engana, pois a matriz do romance moderno é o texto épico. No entanto, existem algumas ressalvas que devem ser feitas, para que você possa distinguir essas duas diferentes estruturas literárias, a épica e a romanesca.

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A estrutura do épico é o verso. Trata-se de longos poemas que colocam em evidência as qualidades de um herói, suas façanhas, lutas, inteligência, coragem, honra. A personagem épica sempre é protagonista de fatos históricos (o poema épico Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, por exemplo, narra as aventuras de Vasco da Gama na busca de um caminho marítimo entre a Europa e as Índias); ou de fatos maravilhosos (o poema épico Ilíada, de Homero, por exemplo, conta as aventuras de Aquiles durante a guerra de Tróia). Os longos poemas épicos podem ser chamados também de epopéias. Caracterização do gênero épico

O termo �épico� tem sua origem no vocábulo grego épos, que significa narrativa, recitação. Homero, poeta grego que viveu nos séculos IX e VIII a.C., é considerado o pai da poesia épica, pois os dois poemas que modelam o gênero � a Ilíada e a Odisséia - foram escritos por ele. Em Roma, o poeta Virgílio, autor da Eneida é outro expoente essencial para a compreensão da poesia épica.

Abaixo você observa algumas das características comuns a todos os poemas épicos:

• As epopéias são poemas, geralmente em versos de tamanhos regulares: os versos de 10 sílabas são chamados decassílabos e os de 12, dodecassílabos ou alexandrinos, podendo ser heróicos ou sáficos. As epopéias dividem-se em cinco partes:

1 � Exórdio ou Proposição: introdução em que se apresenta o herói e o tema. 2 � Invocação: um pedido de inspiração às musas da poesia. 3 � Dedicatória: o poema é dedicado a alguém (um rei, um protetor, um povo). 4 � Narração: os fatos são narrados com ênfase nas peripécias do herói e nos acontecimentos históricos. É a parte mais ampla da epopéia. 5 � Epílogo: fechamento da epopéia, geralmente com a consagração dos heróis.

• Há a presença de deuses olímpicos e de seres mitológicos. • Há um narrador em terceira pessoa, que vai caracterizar a

epopéia como um texto objetivo, por conta de seu distanciamento em relação ao fato narrado.

Entre as epopéias mais representativas da literatura ocidental,

podemos ainda citar a Canção de Rolando, o Romance de Alexandre, as narrativas da Távola Redonda e o Cantar de Mio Cid, todas dos séculos XII, XIII e XIV. Com o passar do tempo, a epopéia continua a ser cultivada por alguns escritores, apresentando novos aspectos e diferentes características. A Ilíada de Homero

A Ilíada é um poema do século VIII a.C., sobre o fim da guerra de Tróia (acontecimentos ocorridos durante 51 dias do décimo e último ano de guerra), cujo foco principal é a cólera de Aquiles, um dos heróis gregos. O poema é dividido em 24 cantos (se fosse um texto em prosa, esses cantos

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equivaleriam aos capítulos da narrativa). A guerra de Tróia tem como causa imediata o rapto de Helena, a mais bela das mortais e esposa do aqueu Menelau, irmão de Agamémnom, por parte de Páris, o mais belo dos mortais e filho de Príamo, rei de Tróia. Os aqueus, ascendentes diretos dos gregos, resolvem, então, declarar guerra aos troianos. Durante o conflito, Aquiles decide retirar-se por lhe ter sido retirada a bela Briseida, recebida anteriormente como despojo de guerra. Inconformado com a injustiça sofrida, ele deixa que seus amigos lutem e morram. Em determinado

momento da batalha, Aquiles consente em emprestar sua armadura a seu amigo Pátroclo, que é morto por Heitor, guerreiro troiano. A dor e a fúria de Aquiles pela morte do amigo são tão intensas que ele esquece o desentendimento com os aqueus e decide voltar á peleja. Sua força e ira fazem recuar os exércitos troianos. Durante um duelo, Aquiles mata Heitor, irmão de Paris, e arrasta seu cadáver diante da cidade sitiada antes de devolvê-lo a seu pai � Príamo - para o funeral. Os aqueus saem vitoriosos da guerra contra os troianos e voltam para Atenas.

Nessa epopéia aparecem duas expressões que se popularizaram e são usadas até hoje. Uma delas tem a ver com o cavalo de Tróia, artimanha utilizada pelos aqueus para penetrar na inexpugnável cidade de Tróia. Você sabe o que quer dizer ganhar um �presente de grego�? A outra expressão refere-se ao grande herói da Ilíada, Aquiles. O que significa encontrar o �calcanhar de Aquiles�?

A Odisséia de Homero Finda a guerra de Tróia, que durou dez anos, os gregos preparam

seus navios e seus exércitos para retornar a Atenas. A Odisséia é uma narrativa do século VIII a.C., sobre a volta de Ulisses, ou Odisseu, a Ítaca, sua terra natal. O poema é também composto de 24 cantos em versos de seis sílabas ou hexâmetros. Durante a volta ao lar, Ulisses enfrenta diversos desafios que o obrigam a passar mais dez anos na viagem de volta ao lar. Possêidon, o deus dos mares, cria as maiores dificuldades para atrasar o retorno de Ulisses, que só consegue voltar graças à ajuda dos deuses do Olimpo, à sua inteligência, perspicácia, bravura, coragem, força e audácia. Com a narrativa da volta de Ulisses se alternam as cenas de Penélope e Telêmaco, sua esposa e seu filho, às voltas com os usurpadores do trono do herói aqueu. Penélope entra para a literatura como modelo de fidelidade e respeito, pois fica vinte anos esperando pela volta de seu esposo, resistindo ao assédio de muitos pretendentes. Depois de muitas peripécias, Ulisses chega à casa, mata os príncipes que o queriam destronar e reassume seu lugar de rei e de esposo. Marcam admiravelmente a narrativa o episódio da feiticeira Circe, a luta contra os Ciclopes e a astúcia de Ulisses no episódio da Ilha das Sereias, quando obriga toda a tripulação a colocar cera nos ouvidos e faz-se amarrar ao mastro do navio, para que todos pudessem passar incólumes pela costa da ilha, sem se atirar ao mar, enfeitiçados pelo canto das ninfas marinhas.

Você, certamente, já ouviu ou usou as expressões �essa situação se transformou em uma odisséia� ou �trabalhar, estudar e ainda dar conta das tarefas do lar é uma odisséia�. Agora, você já pode entender qual é a origem

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dessa expressão e seu significado. Associada a Homero, existe a expressão �homérica�. Outras expressões como �briga homérica� ou �história homérica� apontam para um fenômeno de grandes proporções e que não tem prazo para terminar. Você já deve ter percebido que muito do conhecimento popular e das expressões que usamos no cotidiano têm sua origem na literatura. Continue lendo e estudando e surpreender-se-á ainda com muitas outras.

A Eneida de Virgílio

Para completar nosso estudo sobre o gênero épico, veremos um resumo da Eneida, poema épico de 12 cantos, escrito pelo poeta latino Virgílio, no século I a.C.. A Eneida conta a viagem de Enéias, sobrevivente da guerra de Tróia, para a Itália, onde fundaria uma nova Tróia, para que a realeza troiana fosse perpetuada. A Eneida celebra os três ideais da republica romana: a virtude, a justiça e a piedade.

Livro Primeiro PROPOSIÇÃO � Viagens, combates e sofrimentos de Enéias que

transporta os deuses ancestrais para o Lácio, onde começa a erguer os muros de Roma.

INVOCAÇÃO � O poeta pede à Musa que explique o motivo da perseguição que a deusa Juno move contra os troianos.

NARRAÇÃO � A Eneida começa com os troianos deixando a Sicília e se preparando para chegar à Itália. Nesse momento, Juno, por intermédio de Éolo, provoca uma grande tempestade que dispersa os navios. Netuno intervém a tempo para evitar a desgraça. Vênus pede a proteção de Júpiter para Enéias. Júpiter profetiza o glorioso futuro de Enéias e de seus descendentes.

Livros Segundo e Terceiro � ANALEPSE O segundo livro narra as últimas horas de Tróia, depois do episódio

do cavalo enviado pelos aqueus. Narra os acontecimentos na casa de Enéias e sua fuga de Tróia em chamas.

O Livro Terceiro narra as viagens de Eneias: chegada à Trácia;

visita ao santuário de Delos, onde ouve e interpreta erradamente a profecia de Apolo; passagem pelas Ilhas Estrófades; abordagem do Epiro; passagem por Tarento, pela Sicília, pelo Etna; ancoragem na terra dos Ciclopes; chegada a Drépano, onde morre Anquises.

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Síntese da unidade

Livro Quarto: Livro consagrado aos amores de Dido e Enéias: despertar da paixão e vãos esforços de Dido para se manter fiel à memória do primeiro marido, Siqueu; ordem de Júpiter a Enéias de regressar à sua missão; desepero e suicídio de Dido, ao ver-se abandonada.

Livro Quinto: Jogos fúnebres em honra de Anquises, realizados no aniversário da sua morte, durante os quais, as mulheres troianas incendeiam os navios, para não terem de afrontar novos perigos. Anquises aparece em sonho a Enéias e convidando-o a ir ao seu encontro debaixo da terra, a fim de conhecer seu futuro.

Livro Sexto: Descida aos infernos: o Hades é o encontro com a

morte e com o passado para a preparação da vida e do futuro. Livros Sétimo a Duodécimo: Guerras na Itália Livro Sétimo: Enéias chega ao Lácio e oferece presentes ao rei

Latino, por quem é acolhido. Latino concede-lhe também a mão da sua filha Lavínia que, segundo a previsão dos oráculos, deverá ser esposa de um estrangeiro.

Livro Oitavo: Vênus obtém de Vulcano a confecção de um escudo

onde estão representados os grandes acontecimentos da futura história de Roma e envia-o a Enéias. Os troianos descobrem os lugares predestinados à fundação de Roma, onde encontram Evandro e os Árcades e celebram uma sólida aliança abençoada pelos deuses.

Livro Nono: Turno põe fogo na frota troiana, mas os navios metamorfoseiam-se em ninfas.

Livro Décimo: Assembléia dos deuses, em que Júpiter decide

manter-se neutro. Enéias regressa de sua viagem. Livro Undécimo: Enéias manda o cadáver de Palante a Evandro.

Eneias marcha sobre Laurento. Livro Duodécimo: Duelo entre Enéias e Turno, os deuses Júpiter e

Juno chegam a um acordo quanto ao destino dos troianos: fica estabelecido que eles se unam aos latinos. Enéias sai vitorioso no duelo com Turno vibrando-lhe um golpe mortal.

Assim terminam a Eneida e nosso estudo do gênero épico. Procure

conhecer outros poemas épicos como a epopéia portuguesa Os Lusíadas e as epopéias brasileiras O Uruguai e Caramuru. Boa leitura.

A epopéia é um texto que estabelece, entre o leitor e a história, uma intermediação narrativa. Sua estrutura elementar é o verso. Obrigatoriamente, suas personagens são heróis. Sua organização básica

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Deixas criar às portas o inimigo, Por ires buscar outro de tão longe, Por quem se despovoe o reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe! Buscas o incerto e incógnito perigo, Por que a fama te exalte e te lisonje, Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia! (CAMÕES, 1999) (Disponível em http://lusiadas.gertrudes.com/poesia4.html, acesso realizado em 30/1/2007)

consta de cinco partes: o exórdio ou preposição, a invocação, a dedicatória, a narração e o epílogo. Apresentamos, nesta unidade, três exemplos notáveis de gênero épico: 1) a Ilíada (século VIII a.C.), epopéia homérica de 24 cantos sobre o final da guerra de Tróia, que foi um conflito decenal entre aqueus e troianos, causado pelo rapto de Helena, esposa do rei aqueu Menelau, por parte de Paris, filho de Príamo, rei de Tróia; 2) a Odisséia (século VIII a.C.), epopéia homérica de 24 cantos sobre a decenal viagem de volta de Ulisses para Ítaca, sua terra natal, após o término da guerra de Tróia; 3) a Eneida (século I a.C.), epopéia virgiliana de 12 cantos sobre a viagem do troiano Enéias à Itália, para fundar uma nova Tróia, que corresponde ao império latino.

O texto a seguir é uma estância (estrofe 101, canto IV) extraída do poema épico �Os Lusíadas�, de Luís Vaz de Camões. Trata-se de uma passagem do episódio do Velho do Restelo, personagem criada pelo poeta e que apresenta em sua fala uma crítica à vaidade humana, ao imperialismo que se serve das navegações de exploração para ampliar seus confins e aos sacrifícios feitos pelo povo português para o sucesso das conquistas marítimas portuguesas. Vejamos:

A partir da leitura da estrofe, assinale a alternativa CORRETA: a) Podemos certificar que a fala do Velho do Restelo confirma, em plena expansão mercantilista, a renovação do perfil econômico de Portugal, de acordo com os princípios da burguesia em ascensão. b) A fala do Velho do Restelo não se posiciona sobre as navegações. Seu discurso é sobre questões metafísicas. c) A personagem camoniana do Velho do Restelo, por sua idade e pela falta de sensatez, apresenta um discurso que não deve ser levado em consideração. d) No trecho em questão, a fala da personagem faz uma crítica ao fato de que o território português ficou frágil diante das inúmeras perdas humanas em função das tentativas de chegar às Índias por um caminho marítimo: �Por quem se despovoe o reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe!�. e) Seria uma contradição existir dentro do poema �Os Lusíadas� (criado para exaltar a imagem de Portugal) um momento de crítica às navegações. Portanto, a fala do Velho do

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Teoria da Literatura Letras

A seguir, descobriremos o significado literário de

drama, tragédia, comédia, farsa e auto, que são todos aspectos fundamentais de um novo gênero literário,

chamado, desde a Antigüidade, de dramático ou teatral. Entraremos em contato também com alguns dos

maiores dramaturgos de todos os tempos: Sófocles, Shakespeare e Gil Vicente.

Informações sobre a próxima unidade

Realmente, na economia global da obra, o episódio do Velho do

Restelo se configura como uma voz desconcertante, incômoda e dissonante. Uma epopéia, para todos os efeitos, criada como glorificação da expansão imperialista, guarda em seu âmago uma poderosa e contundente desconstrução da apologia do "navigare necesse; vivere non est necesse", que significa �navegar é preciso; viver não é preciso�. Essa frase foi dirigida, pela primeira vez, pelo general romano Pompeu (106-48 a.C.) a seus marinheiros amedrontados que recusavam viajar durante a guerra (Plutarco, �Vida de Pompeu�). Mais tarde, é usada por Fernando Pessoa em um poema que tem como título a mesma frase. O contraste paradoxal das duas vozes, uma favorável e outra contrária às navegações, faz de �Os Lusíadas� uma obra altamente moderna e atual.

Comentário

Restelo não pode ser compreendida enquanto crítica à política expansionista portuguesa.

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli6-1ve.htm, acessado em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.)

Referências CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Ateliê, 1999. http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli6-1ve.htm

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Meta da unidade Desenvolvimento do dramático, do trágico e do cômico no

classicismo ocidental.

Gênero Dramático Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • distinguir, no âmbito do gênero dramático, os subgêneros

tragédia, comédia, farsa e auto. Pré-requisitos

Nosso discurso sobre o gênero dramático mantém duas ligações importantes com assuntos já discutidos neste caderno. A primeira conexão diz respeito à diferenciação entre dramaturgia e narração quanto respectivamente à ausência ou à presença de uma voz narrativa explícita no texto. A segunda se refere às funções educativa e catártica que a tragédia e a comédia antiga têm em relação ao público a que se dirigem. Nos dois casos, faz-se, portanto, referência a assuntos já tratados nas primeiras três unidades introdutórias deste caderno. Para a compreensão da presente unidade, pois, aconselhamos refletir novamente sobre os sujeitos detentores de voz dentro do texto literário. Há uma enorme diferença estética e poética se uma personagem se define por si só, mediante sua fala e suas ações, como no gênero dramático, ou se sua fala e suas ações são mediadas pelo prisma de um narrador que as interpreta. Também, para compreender a fundo a antiga tragédia grega e sua função celebrativa, juntamente à dimensão estética, é mister adentrarmos o significado da catarse, que purifica o espectador das paixões, garantindo-lhe a preservação do status quo cultural em que está inserido. Introdução

Cotidianamente, ouvimos pessoas dizerem ter vivido uma situação bastante dramática e, ao afirmarem isso, entendem que passaram por um momento de grande tensão emocional. Por exemplo, você já deve ter ouvido o apresentador do telejornal dizer que os bombeiros fizeram um resgate dramático das vítimas de um acidente. O que se quer enfatizar é o fato de ter havido uma tensão emocional bastante intensa, seguida ou não de relaxamento. Nesse sentido agora apresentado, a noção do vocábulo �dramático� nada tem a ver com a acepção que dele temos em literatura.

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Para a literatura, dramático é o texto que foi escrito para ser

representado. Ou seja, o texto dramático é o texto de teatro. Gênero dramático e gênero teatral são, portanto, sinônimos.

Para Aristóteles, o gênero dramático se serve da presença de personagens em ação e de seus diálogos para imitar a realidade. No teatro, as cenas são apresentadas diretamente ao público pelos atores, que encarnam as personagens do texto dramático.

O teatro nasceu na Grécia antiga a partir dos rituais que cultuavam Dionísio, o deus do vinho, da alegria e da fertilidade. Nessas cerimônias religiosas, eram comuns o consumo de grande quantidade de vinho e a execução de canções, danças e procissões de mascarados. Alguns participantes costumavam personificar os deuses, que, assim, dramaturgicamente, vinham participar do culto que lhes era dedicado. É natural que todos sabiam que, no culto, o deus não estava presente à festa, mas sim representado por alguém que se fazia passar por ele. Dessas festas e dessas representações nasceu o teatro. Tragédia

A tragédia é o ponto mais alto do teatro grego, principalmente nos textos de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Havia, na Grécia antiga, concursos de teatro que aconteciam durante as festas em homenagem a Dionísio. Os atores usavam máscaras que evocavam os sentimentos representados. Fazia também parte das apresentações a presença do Coro, que tecia comentários e dialogava com as personagens, ao longo da trama. As obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides marcam esse período como o de maior esplendor da cultura grega.

A palavra tragédia, para a maioria das pessoas, tem o sentido de desgraça, acontecimento horrível, morte, perda de pessoa querida ou de posses, acontecimento inesperado que deixa um rastro de miséria. No senso comum, está associada, no mais das vezes, à idéia de morte. Popularmente, a morte apresenta sempre o lado trágico da existência.

Na dramaturgia grega antiga, a tragédia representa o enfrentamento da vontade dos deuses e do destino (Destino é um dos deuses do panteão mitológico da Grécia) por parte do ser humano. Esse enfrentamento normalmente se dá pelo fato de o homem ter cometido um crime ou ter desrespeitado regras ou leis estabelecidas, ações que requerem uma punição. É importante que a personagem trágica seja de caráter nobre, a ponto de reconhecer seu erro, e que tenha a dignidade suficiente para enfrentar com honradez a justa punição. Não são raros os casos em que a infração tenha sido cometida inadvertidamente, na tentativa de fugir a um destino já traçado. Esse é o caso de Édipo Rei, de Sófocles, considerado por Aristóteles o mais perfeito exemplo de tragédia. Édipo ignora tudo sobre sua origem e sobre seu futuro. Como era comum em seu tempo, ele vai ao oráculo de Delfos � o templo do deus Apolo � buscar respostas para suas dúvidas. Quando pergunta sobre seu futuro, Édipo recebe a profecia de que ele mataria o pai, casar-se-ia com a mãe e com ela teria filhos. Apavorado, Édipo sai da cidade em que vive e dirige-se a Tebas, acreditando fugir do seu destino. No entanto, ao fazer isso, ele apenas favorece a realização do oráculo. Com efeito, Édipo ignora que os que ele considera pais naturais são

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apenas adotivos, sendo ele, na verdade, filho carnal do rei e da rainha de Tebas.

A leitura do texto e a exibição do espetáculo causam horror e piedade ao público, pois é horrível a idéia de ver o filho matar o pai, casar-se com a mãe e tornar-se pai de seus próprios irmãos. Ao mesmo tempo, a platéia e os leitores têm piedade de Édipo, pois ele é um ser humano de alma boa, que age de forma correta, buscando evitar que desgraças aconteçam em sua vida e na de seus pais. A esse sentimento de horror e de piedade Aristóteles põe o nome de catarse. A catarse se resolve em uma purificação das paixões resultante da exposição aos sentimentos representados na cena teatral: ao identificar-se com o sofrimento representado, o espectador liberta-se dessas mesmas paixões que movem a personagem.

A tragédia trata de sentimentos nobres. É de bom tom que a desgraça aconteça com uma personagem de boas intenções, que ignore parte da trama, mas que tenha coragem para buscar a solução de todos os problemas objeto de representação. É preciso que ocorra a decadência de um homem nobre que perde tudo, menos a honra e o caráter, como punição por um erro cometido. O tratamento da questão precisa ser sério, caso contrário, o efeito catártico não se produz, conforme o pensamento de Aristóteles. Comédia

O vocábulo comédia é bastante conhecido. Comumente, emprega-se esse termo com uma acepção de riso, de gozação, de ridículo, que não está distante do sentido original desse gênero literário, cujo berço também foi a Grécia clássica.

Os rituais em honra a Dionísio deram origem, também, à comédia, gênero literário que, contrariamente à tragédia, que trata das desgraças dos homens nobres e elevados, lida com as questões cotidianas das pessoas comuns. A comédia foca sua ação na crítica dos hábitos sociais, na alegria e na diversão.

No entanto, essas características não retiram da comédia o mesmo caráter educativo e catártico antes atribuído à tragédia. A tal propósito, é importante observar que, enquanto a tragédia coloca, de forma séria, o homem diante de suas mazelas, erros, dúvidas e angústias, a comédia coloca-o diante de situações ridículas e jocosas, fazendo com que ele se divirta com as trapalhadas das personagens. No entanto, não se pode negar que a comédia, enquanto diverte, também faz pensar no incômodo da situação da personagem de quem rimos, para que evitemos passar por situações semelhantes.

Podemos, portanto, afirmar que tanto a tragédia quanto a comédia possuem a função de educar o ser humano, colocando-o diante de seus comportamentos e limitações. A única diferença consiste apenas na abordagem da questão: a tragédia lida com sentimentos nobres, é seria e elevada, refere-se ao passado; a comédia lida com sentimentos corriqueiros, é risonha e sarcástica, refere-se ao presente. O objetivo final das duas manifestações dramáticas é o mesmo: corrigir o ser humano em suas imperfeições.

Os comediógrafos acreditavam que �ridendo castigat mores�, ou seja, que a comédia, ao provocar o riso, corrige os costumes.

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Ser ou não ser � eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino feroz Ou pegar em armas contra o mar de angústias E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono � dizem � extinguir Dores do coração e as mil mazelas naturais A que a carne é sujeita; eis uma consumação Ardentemente desejável. Morrer; dormir; Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte Quando tivermos escapado ao tumulto vital Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão Que dá à desventura uma vida tão longa. (William Shakespeare, �Hamlet�, ato lll, cena 1. Disponível em http://www.2dmais.com.br/livros/WilliamShakespeare/hamlet1.pdf . Acesso realizado em 20/1/2007)

Aristófanes é o grande nome da comédia grega. A marca essencial de suas comédias é a crítica e o escárnio contundente contra tudo o que julgava responsável pela decadência de Atenas. Pertencente ao primeiro período de florescimento da comédia, Aristófanes constrói uma obra eminentemente de crítica política: todas as figuras do cenário governamental são duramente ridicularizadas. Até os deuses não eram poupados. Isso só foi possível pelo fato de haver, em Atenas, uma democracia consolidada que respeitava a liberdade de expressão dos cidadãos.

A partir do momento em que Atenas não é mais uma cidade livre, após perder a guerra do Peloponeso (431 a.C.), sua democracia deixa de existir e a comédia passa a ser proibida. Posteriormente, a comédia passa por uma fase, durante a qual vão predominar a paródia e a crítica de costumes.

Para conhecer algumas das comédias de Aristófanes, leia Lisístrata (411 a.C.): a guerra do Peloponeso enfraquece Atenas e deixa as mulheres sem seus homens, pois todos estão envolvidos no conflito. Incomodada com a situação, Lisístrata reúne, em Atenas, um plenário de mulheres que decide fazer greve de sexo e ocupar a Acrópole, onde está depositado o tesouro ateniense que sustenta a campanha militar. O objetivo final da greve é colocar fim à guerra. Leia esse texto que é de um humor inteligente e mordaz. Outras comédias de Aristófanes são: As Nuvens, As Vespas e As Rãs. William Shakespeare

Quando se fala de tragédia e comédia, não se pode ignorar a contribuição genial de William Shakespeare, dramaturgo e poeta inglês da segunda metade do século XVI e começo do século XVII. A linguagem de Shakespeare renova o teatro. Segundo o crítico Harold Bloom, o que o ocidente entende por �ser humano� nasce com o teatro shakespereano.

Tragédias como Romeu e Julieta, Otelo, Macbeth, Hamlet, Rei Lear são textos que marcam e sinalizam a passagem do homem medieval para o homem renascentista, de uma era de certezas para uma era de questionamentos. Leia abaixo um dos trechos mais conhecidos de Shakespeare, que faz parte da tragédia Hamlet.

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Nesse trecho tão famoso e tão citado nasce aquilo que, na opinião de Harold Blooom, configura o �ser humano� moderno: o questionamento das próprias ações e posições, e a incerteza diante de um mundo cheio de possibilidades.

Algumas das comédias mais famosas de Shakespeare são O mercador de Veneza, Sonho de uma noite de verão, A comédia dos erros e A tempestade. Farsa

A farsa é uma manifestação do gênero dramático que descende da comédia e que, comparada a essa, é considerada um gênero menor. A farsa se caracteriza por apresentar personagens caricatas, ridículas ou grotescas, exageradas e sem alguma preocupação moral. Sua trama geralmente é muito mais direta e as situações representadas extremamente burlescas. Se com a comédia o público é levado a questionar o próprio comportamento, o mesmo não ocorre com a farsa, que oferece apenas um riso fácil e passageiro, sem maiores preocupações com questões éticas ou sociais. O objetivo primeiro da farsa é apenas a diversão.

Para atingir seus objetivos, a farsa vai lidar com situações bastante triviais: equívocos familiares, adultérios, situações absurdas e paradoxais, que envolvem estereótipos ou tipos, como o amante, o padre, a fofoqueira, o bêbado, a alcoviteira, o malandro, a moça ingênua etc.

Na literatura portuguesa há um bom exemplo desse tipo de texto, A Farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente. O tom da peça é dado pelo seguinte provérbio: "Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube". A trama da obra do dramaturgo lusitano é constituída pelas aventuras de Inês Pereira, moça em idade de casar que procura e encontra um marido que seja esperto. A esperteza do marido se mostra desfavorável a Inês, pois é por ele mantida sob estreita e contínua vigilância. Ao ficar viúva, Inês procura um outro marido que seja menos esperto do que ela e que a deixe à vontade para viver seus prazeres extraconjugais. Assim, o primeiro marido fora o �cavalo� que a derrubou, enquanto o segundo é exatamente o �asno� que a carrega. Auto

Para concluir nossos estudos sobre o gênero dramático, trataremos de outra manifestação teatral, o Auto. A diferença básica entre o auto e as demais manifestações teatrais até aqui apresentadas é o fato de que o auto aborda temas religiosos, tendo como pano de fundo a crítica aos costumes da época. Na literatura portuguesa, destaca-se Gil Vicente, que escreve a Trilogia das Barcas: o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca do Céu. Nos autos, Gil Vicente faz uma exposição com o intuito de moralizar os vícios humanos, sem abrir mão da verve irônica e jocosa do texto.

Como na farsa, no auto, as personagens não têm nome, pois representam estereótipos sociais. Encontramos tipos como o padre, o juiz corrupto, o político desonesto, a prostituta, a beata, o marido traído, o agiota, o homem de bom coração e outros membros dos mais diferentes segmentos sociais.

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Diversamente daquilo que entende o senso comum, drama, em

teoria da literatura, significa conflito e representação cênica. A tensão vivida pelas personagens de uma história não é contada por um narrador explícito, mas representada em um palco pelos próprios sujeitos envolvidos na ação dramática. A origem de tal gênero, chamado também de teatral, é grega, antiga e dionisíaca, portanto, religiosa. Seus mais prestigiados desdobramentos são a tragédia, a comédia, a farsa e o auto. Tragédia e comédia compartilham, na Antigüidade, a importante vocação educativa e catártica. As duas tratam do enfrentamento do homem com seu destino, a primeira de uma forma séria e com assuntos nobres, a segunda de uma forma jocosa e com assuntos corriqueiros. A farsa poderia ser considerada uma comédia sem preocupações pedagógicas, com uma tendência a exagerar a alegria levando-a para o grotesco, o escárnio e o ridículo, para fins de mero entretenimento. O auto representa uma ação dramática especificamente aplicada a tema e conteúdos de natureza religiosa, com claras intenções educativas.

Síntese da unidade

Lírica - - - - - - - - - - Primeira pessoa (função emotiva): o eu fala. Épica - - - - - - - - - - Terceira pessoa (função referencial): fala-se de algo. Dramática- - - - - - - - Segunda pessoa (função conativa): fala-se a alguém.

Segundo Vitor Hugo, a sociedade humana começa a cantar o que sonha (gênero lírico), depois canta o que faz (gênero épico) e por fim pinta o que pensa (gênero dramático). Na vida, devemos sempre passar por essas três fases, sem exclusividade de nenhuma delas.

Em uma outra perspectiva, mas dentro dessa mesma concepção unificadora, Jacobson determina uma correspondência entre estruturas lingüísticas e gêneros literários:

Na dramaturgia contemporânea, existe uma forma de comunicação ator-espectador, em que o contato com o público se realiza não apenas no nível emocional, mas também nos níveis físico e espacial e que é chamada de �Teatro de participação". A estrutura formal do drama é quebrada, mantendo-se apenas uma espinha dorsal como ponto de referência, a fim de permitir o máximo de variações possíveis em torno do tema abordado sem que o sentido da história desenvolvida fuja ao controle nem dos atores nem do público. Dessa forma, o público mantém certo poder de decisão sobre o desenrolar e o desfecho do evento na medida em que, ao atuar física, espacial e emocionalmente, influi sobre o tema desenvolvido, sobre os atores e sobre o espaço físico onde se desenvolve o acontecimento.

Várias experiências foram desenvolvidas obedecendo a esse esquema, com maiores ou menores níveis de desestruturação ou, em outras palavras, de possibilidades abertas ao público para interferir no acontecimento.

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Comentário

“O estranho cavaleiro” �O estranho cavaleiro� é uma peça escrita por Michel de

Ghelderode, autor belga, praticamente desconhecido no Brasil, exceto por uma peça que já foi montada por vários grupos amadores e profissionais � O Escoriai.

�O estranho cavaleiro� se passa em um asilo de mendigos, na Idade Média. Seus habitantes, logo no início da peça, ouvem um persistente ruído de sinos, que vem de fora em crescendo. Pedem ao guarda do asilo que suba à janela e vá ver o que é. O guarda, subindo em uma escada, começa a descrever a cena que se passa do lado de fora. Descreve um cavalo, um enorme cavalo, de cuja crina e rabo pendem sinos. O cavalo galopa em direção ao asilo e montado nele está um cavaleiro. Um estranho cavaleiro. A medida que o guarda descreve com maiores detalhes cavalo e cavaleiro, os mendigos percebem que se trata da morte que se aproxima. O resto da ação se detém na reação de cada um e de todos ante a perspectiva de tal visita.

A ação é montada em um local, onde atores e espectadores estão muito próximos, envolvidos no mesmo ambiente, uma vez que os espectadores, ao entrar no teatro, desembocam no próprio quarto dos mendigos e só podem se sentar ou nas camas dos mendigos (beliches) ou no chão.

Essa experiência é importante porque representa uma tentativa de contato direto com o público e de uma quebra na estrutura formal de uma peça teatral convencional.

À medida que a ação se desenvolve e cresce em intensidade ante a iminente chegada da Morte o público é trabalhado emocionalmente, sem que a ação seja quebrada, ou seja, a peça não "pára". A participação do público forma um contínuo lógico dentro da estrutura da peça, conseguindo-se uma boa integração entre atores e público, sem nenhum contexto de "obrigatoriedade de participação". QUESTÃO – Escreva que tipo de trabalho emocional os atores podem propor ao público que �participa� da peça, como desfecho da chegada da Morte ao palco. Depois, compare sua proposta com as demais de seus colegas de sala.

Esse tipo de evento teatral tem implicações em, pelo menos, dois níveis de atuação:

� o nível de comunicação; � o nível psicológico. No nível da comunicação, parece-nos que já ninguém mais discute

que com o advento do rádio, do cinema e da televisão os conceitos de comunicação mudaram radicalmente. O alcance do teatro como meio de comunicação de massa é praticamente inexistente. Basta pensar que a renúncia de Nixon, por exemplo, foi vista e ouvida por 100 milhões de pessoas no mundo inteiro, no exato momento em que estava acontecendo e que pode ser reproduzida exatamente a qualquer momento (vídeo tape).

O argumento de que, na época dos gregos e mesmo na Idade Média, o teatro era um meio de comunicação de massa fundamental e vastamente

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utilizado, é obsoleto. Na Grécia clássica e na Idade Média, o teatro foi utilizado para transmitir os padrões culturais, morais e políticos vigentes a uma população que, além de ter meios de diversão muito restritos, era praticamente toda analfabeta. Nessa época, o teatro funcionou maravilhosamente. Hoje, no entanto, a realidade é completamente diferente. A relação convencional ator-espectador é vastamente explorada pelo cinema e pela televisão. E, parece-me, com muito maior versatilidade do que no teatro. Além disso, economicamente, a possibilidade de reproduzir infinitamente cópias do mesmo acontecimento, além de baratear o custo do empreendimento aumenta as possibilidades de alcance do que está sendo transmitido. A televisão só começou a ser um empreendimento realmente economicamente viável depois do desenvolvimento do video-tape.

Esses argumentos fazem-nos pensar que o teatro se tornaria realmente eficiente em sua função social, se buscasse formas de manifestação que não fossem substituíveis pelos modernos meios de comunicação de massa.

Uma dessas formas � obviamente há muitas outras � é o teatro de participação. Até este momento, nenhum outro meio de comunicação tem a possibilidade de provocar situações onde o indivíduo seja levado, sistematicamente, a atuar física, espacial e emocionalmente fora de seu contexto cotidiano e vivenciar essas situações globalmente. Transpondo essa proposição do plano geral para um plano mais específico e direcionado, nenhum meio de comunicação, além do teatro, tem a possibilidade de levar um grupo de crianças a um parque, transformando-o em uma floresta encantada, humanizando as personagens que habitam em seu mundo interior no nível da fantasia e possibilitando que, por meio de uma atuação direta, essas crianças transformem e resolvam de maneira única e insubstituível uma situação problema.

No nível psicológico, dois aspectos nos parecem de fundamental importância: o lúdico e o catártico.

O elemento lúdico é o fator predominante no tipo de manifestação que descrevo. Lúdico não apenas no sentido restrito de "brincadeira", mas em um sentido mais amplo de elaboração de sistemas físicos, emocionais e cognitivos em grau crescente de complexidade, mediante o uso de elementos sensitivos, motores e simbólicos que tenham uma correlação direta com o plano do real.

Freud explicou a ludicidade como uma forma de projeção de desejos guardados no nível da fantasia e a possibilidade de elaborar conflitos no plano lúdico com a intenção de controlá-los.

Para Piaget, a ludicidade está fortemente associada à aquisição e desenvolvi-mento da inteligência. É através de experiências lúdicas que o indivíduo, criança, adolescente ou adulto, desenvolve a sua capacidade de compreender e controlar situações de vida e passar, progressivamente, a níveis mais complexos de compreensão de si próprio, dos outros e do universo. Em outras palavras, é através do lúdico que o indivíduo adquire e desenvolve a sua "visão de mundo".

A idéia do lúdico está muito próxima da idéia de risco. Toda atividade lúdica implica em correr algum risco e todo risco implica em uma atividade lúdica. Risco entendido não no sentido de acertar ou errar apenas, mas em enfrentar uma situação-limite relativamente desconhecida.

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Encerrado o gênero dramático, entraremos a seguir no último gênero literário a ser contemplado no nosso estudo: o narrativo. Dividiremos nossa análise em duas etapas: a primeira sobre conto e novela; a segunda sobre o romance. Nossa abordagem será, ao mesmo tempo, histórica e estrutural. Estamos convencidos de que um fator decisivo para a distinção dos vários subgêneros narrativos é representado pelos elementos estruturais como personagens, ação, espaço, tempo, linguagem, ponto de vista e discurso. Por isso, enfatizaremos tais componentes e sua influência na configuração geral da obra e na construção dos sentidos ideológicos prevista pelo autor.

Informações sobre a próxima unidade

O não-lúdico é justamente o indivíduo que, tendo aprendido uma determinada função passa a repeti-la indefinidamente sem perspectivas de transformação. Risco, nenhum. Avanço, nenhum. Tarefa, perfeita.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio vemos, então, que o lúdico está profundamente ligado à idéia de risco, risco à idéia de desconhecido, enfrentar o desconhecido à idéia de tomada de decisão. Se essa seqüência está correta, o lúdico está profundamente associado à idéia de tomar decisões, de atuar.

A catarse, para Aristóteles, é a purgação das emoções. Não deixa de ser um conceito muito próximo à teoria da ludicidade de Freud. E também muito próximo à teoria da assimilação e adaptação de Piaget.

No entanto, deveríamos nos perguntar em que níveis a catarse se dá plenamente. Em que níveis a catarse realmente funciona como um processo real de assimilação e adaptação. Em que níveis esse conceito, sobre o qual todo o teatro tem se baseado até hoje, realmente implica em uma transformação de uma estrutura racional e/ou emocional. Até que ponto não se tem confundido catarse com identificação. Catarse implica em um processo de transformação. Identificação é um sistema estático de fazer aflorar emoções e que muitos confundem com catarse. A real catarse, para que signifique um processo de transformação, tem que ser exercida emocional, física e espacialmente.

(Este texto escrito por José Antônio Domingues e por nós adaptado foi retirado da edição especial da Revista de Teatro da SBAT, referente ao Seminário de Teatro Infantil de 1975, organizado pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, do MEC, realizado no Auditório Salvador de Ferrante da Fundação Teatro Guairá, em Curitiba, no período de 3 a 7 de fevereiro de 1975), disponível em http://www.cbtij.org.br/, acesso realizado em 30/1/2007).

Referências http://www.2dmais.com.br/livros/WilliamShakespeare/hamlet1.pdf http://www.cbtij.org.br/

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Meta da unidade

Gênero narrativo: conto e novela Identificação dos elementos narrativos nos subgêneros conto e novela.

. Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • apontar as especificidades narrativas dos subgêneros conto e

novela. Pré-requisitos

Nesta unidade, torna-se de fundamental importância o conceito aristotélico de mimese, por nós discutido nas unidades 1 e 2 deste caderno. A narrativa é por excelência o gênero que se volta para a representação da realidade ou mundo dos objetos. Mas esse tipo de representação, dentro da arte, nunca é neutro, objetivo, destacado. Nele há sempre uma maior ou menor participação do autor, que transforma essa representação em construção imagética e ideológica, reconstrução do real, ressignificação de dados referenciais externos. Introdução

Agora que já estudamos e compreendemos o lirismo e a dramaturgia, o nosso foco de estudo será o gênero narrativo. Antes de discutirmos cada uma das fôrmas literárias pertencentes a esse gênero literário, é importante entendermos o significado do termo ficção. A palavra vem do latim fictionem, que significa ato de modelar, criação, formação; ato ou efeito de fingir, inventar, simular; suposição; coisa imaginária, criação da imaginação.

A essência da ficção é a narrativa, uma das mais antigas e populares formas de entretenimento.

Para que tenha valor artístico, a ficção exige uma técnica de arranjo e apresentação que comunique à narrativa beleza e eficácia formal e estrutural. A ficção distingue-se da história e da biografia, por estas serem narrativas de fatos reais e não terem como objetivo principal uma preocupação estética. A ficção é produto da imaginação criadora e tem uma função prevalentemente estética e poética, embora, como toda a arte, suas raízes mergulhem na experiência humana.

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A narrativa de ficção está dividida em conto, novela e romance. Nesta unidade, estudaremos os primeiros dois.

De acordo com Moisés (2001), as formas em prosa requerem um estudo mais cuidadoso, em virtude de seus complexos critérios de diferenciação. O que, por exemplo, diferenciaria o conto da novela e esta do romance? Será possível utilizar um método quantitativo para essa diferenciação? Um conto teria menor número de páginas sempre? Quantas páginas determinariam a diferença entre romance e novela?

Segundo o referido crítico, o critério mais conveniente para estabelecer a diferença entre o conto Missa do Galo de Machado de Assis, o romance O primo Basílio de Eça de Queirós e a novela Ciranda de Pedras de Lígia Fagundes Teles é o qualitativo. Isso se dá a partir da análise dos elementos estruturantes de cada narrativa, como personagens, enredo, tempo, espaço, ação e linguagem. 1 - Personagem: é a pessoa que atua na narrativa. Pode ser principal ou secundária, típica ou caricatural. 2 - Enredo: é a narrativa propriamente dita, que pode ser linear, analéptica (com incursões no passado) ou proléptica (com incursões no futuro). A trama narrativa mantém o interesse do leitor, que espera por um desfecho. Chama-se também simplesmente de ação. 3 - Ambiente: é o meio físico e social onde se desenvolve a ação das personagens. Trata-se do pano de fundo ou do cenário da história, também designado de paisagem. 4 - Tempo: é o elemento fortemente ligado ao enredo, com sua linearidade, recuos ou avanços. Pode ser cronológico ou psicológico. Cronológico, quando avança no sentido do relógio; psicológico, quando é medido pela repercussão emocional, estética e psicológica nas personagens. 5 - Ponto de vista: se refere às diferentes maneiras de narrar. Geralmente, se resume a duas perspectivas:

a) narrador-onisciente: o eu narrativo conta a história, usando a 3ª pessoa, como observador que sabe tudo. b) narrador-personagem: o eu narrativo conta a história, usando a 1ª pessoa, encarnando-se em uma personagem, principal ou secundária, geralmente sem conhecer os elementos todos da trama.

6 - Discurso: é o procedimento do narrador ao reproduzir as falas ou o pensamento das personagens. Há três tipos de discurso:

a) direto: neste caso, o narrador, após introduzir as personagens, faz com que elas reproduzam a fala e o pensamento por si mesmas, de modo direto, utilizando o diálogo.

Exemplo: Fabiano perguntou logo: � O que tem esses meninos que perguntam demais?

b) indireto: neste tipo de discurso, não há diálogo; o narrador não põe as personagens a falar e a pensar diretamente, mas

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torna-se seu intérprete, transmitindo o que disseram ou pensaram, sem reproduzir o discurso que elas teriam empregado.

Exemplo: Fabiano queria saber por que os meninos perguntavam demais. c) indireto livre: consiste na fusão entre narrador e personagem, isto é, a fala da personagem insere-se no discurso do narrador, sem o emprego dos verbos de elocução (como dizer, afirmar, perguntar, responder, pedir e exclamar). Exemplo: Agora (Fabiano) queria entender-se com Sinhá Vitória a respeito da educação dos pequenos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha. 7 - Linguagem e estilo É a vestimenta com que o autor reveste seu discurso, nas falas, nas descrições, nas narrações, nos diálogos, nas dissertações ou nos monólogos. Conto

Conforme André Jolles (apud MOISÉS, 2001, p. 33), o conto aproxima-se da fábula, do apólogo, do mundo das fadas e da carochinha, sendo cultivado no século XVI por La Fontaine e pelos Irmãos Grimm.

Já para outros estudiosos, o conto teria aparecido, milhares de anos antes de Cristo, já com narrativas antiqüíssimas, como a de Caim e Abel ou a de Salomé, entre outras. As Mil e Uma Noites, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, Simbad, o Marujo são exemplos de contos antigos vindos do Oriente.

Durante a Idade Média, o conto tem seu apogeu na Itália com o Decameron de Boccaccio. Na Espanha, com Cervantes e Quevedo, o conto ganha expressão. Na França, o conto é cultivado por Perrault, Mme. D�Aulnoy, Balzac, Flaubert e Maupassant. No século XVI, em Portugal o conto surge com Gonçalo Fernandes Trancoso, autor dos �Contos e Histórias de Proveito e Exemplo�.

Conceitualmente, podemos entender o conto como uma narrativa unívoca e homogênea, que contem apenas uma unidade dramática gravitando ao redor de um conflito. É estruturada com economia de ingredientes, todos direcionados para um alvo determinado. O conto constitui, assim, um recorte de determinado momento presente, em que passado e futuro são irrelevantes. A estruturação do conto assemelha-se à técnica fotográfica, em que a lente do fotógrafo detém-se não na totalidade, mas em um recorte específico da totalidade.

A linguagem do conto é objetiva, com uso de metáforas de imediata compreensão do leitor, excluindo-se quaisquer elementos que não sejam diretos, objetivos, concretos. O conto, por ser objetivo, geralmente é narrado em terceira pessoa, mas podem ocorrer também os seguintes tipos de focos narrativos:

• A personagem principal narra a sua história: narração em primeira pessoa do singular ou do plural.

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• Uma personagem secundária narra em 3ª pessoa a história da protagonista.

• O narrador, analítico ou onisciente, narra a história, analisando a psicologia das personagens.

• O narrador conta a própria história como observador: procura tornar a narrativa mais linear e objetiva.

De acordo com Moisés (2001), os contos podem ser dos seguintes

tipos: a) Conto de ação: é o mais comum; foca a ação e caracteriza-se pela linearidade. b) Conto de personagem: é menos freqüente; foca sua atenção no protagonista que em geral é uma personagem plana. c) Conto de cenário ou atmosfera: é menos freqüente ainda; tende a gravitar em redor de determinados objetos; a ênfase dramática recai sobre o cenário e o ambiente, transformados em protagonistas. d) Conto de idéia: as idéias se materializam em personagens, combinando-se com os elementos estruturantes da narrativa. e) Conto de emoção: seu intuito é produzir emoção, por meio de assombramento, espanto ou surpresa.

Moisés (2001, p. 66) nos diz que �a grande força do conto reside no

jogo narrativo para prender o leitor até o desenlace�. Esse jogo narrativo é feito a partir de: economia de personagens; unidade de ação, tempo e espaço; brevidade narrativa; predominância do diálogo. Novela

Estamos acostumados a ver telenovelas, em que os episódios se esticam ou se encurtam conforme o gosto do telespectador. O autor dá fim à trama quando percebe o cansaço da audiência. Isso também acontecia quando a novela não era assistida, mas ouvida ou lida.

O termo italiano novella está ligado a notícia nova ou novidade. Cultivada desde a Antigüidade greco-latina, a novela é a modalidade narrativa que se caracteriza pela seqüencialidade dos episódios, das personagens e dos cenários. Durante a Antigüidade, foi cultivada de forma embrionária, sem ainda receber a denominação moderna de novela. São exemplos dessas primeiras manifestações do gênero novelístico os textos latinos do Satirycon de Petrônio, das Metaformoses de Ovídio e de O Asno de Ouro de Apuleio.

Prosificadas a partir das canções de gesta, as novelas de cavalaria representam as primeiras manifestações com a denominação de novela. Pertencente ao ciclo arturiano, A demanda do Santo Graal é o primeiro exemplo de novela cavalheiresca produzida no século XII. Com o surgimento da novela toscana em XIV, o italiano Boccaccio, servindo-se da tradição oral popular e de heranças latinas (Petrônio, Ovídio e Apuleio), torna-se o mestre desse gênero com a publicação de Decameron.

Ao contrário do conto, a novela não está centrada em uma única unidade narrativa. Possui uma pluralidade de células dramáticas dispostas

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em uma seqüência narrativa, que sempre oferecem a possibilidade da inserção de mais um episódio. Daí sua peculiar estrutura aberta.

Na novela de cavalaria Dom Quixote, Cervantes tece a narrativa das andanças do cavaleiro Dom Quixote e de seu fiel escudeiro Sancho Pança. Ao pararem nas tavernas, Dom Quixote e Sancho Pança ouvem dos contadores locais histórias de amor e de aventuras, todas fielmente registradas por Cervantes em sua obra. Essas narrativas se entrelaçam curiosamente à história dos protagonistas, sob forma de narrativas secundárias, caracterizando a obra de Cervantes como novela.

Do ponto de vista histórico, a novela ocupa posição menos relevante do que o conto e o romance, por ser um gênero literário que procura realizar o máximo de aventura com o mínimo de profundidade.

A ação na novela se caracteriza por sua polivalência, ou seja, constituindo-se em uma série de unidades ou células dramáticas, com início, meio e fim, que se encadeiam graças a personagens ou ambientes, como se se tratasse de um aglomerado de contos dispostos em uma dada ordem.

Outro aspecto importante da novela é a seqüencialidade das células dramáticas ou conflitos. Apesar disso, o autor não esgota totalmente a tensão de uma unidade dramática. Muitas vezes, serve-se do mistério ou do suspense da unidade anterior para manter o interesse do leitor na passagem para uma unidade sucessiva.

O tempo da narrativa novelística obedece regularmente à estrutura linear, é histórico: segue o relógio, o calendário ou as convenções sociais. A fluidez da narrativa se dá horizontalmente, correspondendo ao encadeamento dos fatos. O presente é dominante e, muitas vezes, o passado das personagens é relatado em poucas linhas. Ligado ao tempo está o espaço. Nesse, o novelista repele a paisagem estática. Daí o ritmo acelerado e dinâmico da novela.

Embora, como o conto, a novela possua uma linguagem simples, direta e de imediata compreensão, a descrição de personagens e de cenários é detalhadamente cultivada. Bem estruturada também é a construção das personagens que, ao contrário do conto, não tem limite. Os protagonistas são numerosos e as personagens secundárias aparecem com freqüência. Alguns, para compor o cenário humano, aparecem por alguns instantes e desaparecem para nunca mais voltar, além de poderem ser substituídas sem nenhum prejuízo para a narrativa. Na maioria das vezes, trata-se de personagens planas, estáticas, pré-definidas e com pouca profundidade.

Ao lado das personagens, o narrador, quase sempre analítico e onisciente, como uma câmera, registra todas as vibrações e inquietudes de cada uma delas.

Podemos classificar as novelas do seguinte modo:

a) Novelas de cavalaria: nasceram na Idade Média. Seus dois berços foram a França e a Inglaterra, durante o século XII. São divididas em três ciclos: o ciclo bretão (ou arturiano), que gira em torno das proezas do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda; o ciclo carolíngio, em torno dos feitos de Carlos Magno e dos doze pares; o ciclo clássico, baseado em temas da Antigüidade greco-latina. É importante destacar três momentos das novelas de cavalaria: a Idade Média com A Demanda do

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Santo Graal; a transição do mundo medieval para o renascentista com Amadis de Gaula; o apogeu da cavalaria na época barroca com Dom Quixote. b) Novelas sentimentais e bucólicas: a principal tônica desse tipo de novelas é a descrição da natureza que serve de fundo para a narração de amores entre pastores. A primeira narrativa desse tipo é Dáfnis e Clói (século III a.C.), atribuída a Longus, seguida pela mais afortunada Arcádia (1504), de Sannazzaro. c) Novelas picarescas: pícaro é um homem de vida irregular que consegue sobreviver por meio de sua esperteza. Este tipo de novela iniciou com a publicação de Vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades em 1554, de autor anônimo e alcançou seu auge no século XVII, com os espanhóis Cervantes, Quevedo, Luís Vélez de Guevara, espalhando-se por outros países. d) Novelas históricas: caracterizam-se pela recriação do passado a partir de documentos verídicos construídos pela imaginação do ficcionista. Podem remontar a um passado remoto ou próximo. Iniciam-se com o Romantismo em Waverley, de Walter Scott. Mantêm muita afinidade com o ideário romântico e são prodigiosamente representadas por Alexandre Dumas, Vítor Hugo, Tolstoi, Alexandre Herculano, Garrett, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, entre outros. e) Novelas policiais e/ou de mistério: trata-se da mais recente modalidade novelística. Caracterizam-se por ser narrativas de crimes aparentemente perfeitos, que os protagonistas se empenham em desvendar. Edgar Allan Poe foi seu iniciador com The Murders in the Rue Morgue (1841), mas logo este gênero se bifurcou em novelas policiais com detetives, astúcias policiais (Agatha Christie e Conan Doyle são seus grandes representantes) e novelas de terror ou góticas (de Balzac, Clara Reeve e outros).

A novela tende a ser construída com recursos que encadeiam as

peripécias das personagens e os núcleos narrativos. Assim, temos: • Pluralidade e seqüencialidade dramática. • Número ilimitado de personagens. • Liberdade de tempo e de espaço. • Diálogo, narração, descrição.

No Brasil, como exemplo de novelas, podemos citar: Noite, de Érico

Veríssimo; A vida real, de Fernando Sabino; Uma vida em segredo, de Autran Dourado; A morte e a morte de Quincas Berro d�Água, de Jorge Amado. A televisão há décadas explora com muito sucesso essa espécie de narrativa. Está também despontando a webnovela, narrativa que pode ser acompanhada pela internet, com a possibilidade de o expectador opinar a respeito das ações das personagens.

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Nesta nova etapa da nossa caminhada, definimos inicialmente o

conceito amplo de ficção, como atividade criativa de cunho imaginário, baseada em dados da realidade, com uma precípua função poética. Com isso, pudemos diferenciar a narrativa ficcional de outros tipos de narrativa, como por exemplo a narrativa histórica, que representa e constrói a realidade sem uma preocupação estética prevalente. Entramos, então, em dois subgêneros narrativos, o conto e a novela, deixando o romance para a próxima unidade didática. Estabelecemos diferenciações estruturais entre conto e novela e entre esses dois e o romance, quanto a seus principais elementos constituintes: personagens, enredo, ambiente, tempo, ponto de vista, discurso, linguagem e estilo. Caracterizamos também as origens, a evolução histórica e a tipologia do gênero conto e do gênero novela, pontuando alguns momentos, autores e obras de maior significado.

Síntese da unidade

1 - O discurso indireto livre é um recurso narrativo utilizado pelo narrador onisciente, com vistas a traduzir pensamentos, percepções e sentimentos das personagens, sem a intervenção direta da fala destes. Observe a ocorrência de tal recurso no trecho destacado a seguir, extraído da novela Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a

barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.

Eram todos felizes. Sinhá vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinhá Vitória provocaria a inveja das outras caboclas.

(RAMOS, 1986, p. 15-16) Em qual dos trechos a seguir da mesma novela do escritor alagoano

ocorre o discurso indireto livre? a) O círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na sombra, vermelhas. Fabiano, visível da barriga para baixo, que vagos clarões cortavam. b) Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. c) A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinza. d) Seria necessário mudar-se? Apesar de saber que era perfeitamente necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse. e) Afastou-se inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.

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A seguir, completaremos nossa discussão sobre o gênero narrativo, estudando o universo romanesco, de um ponto de vista histórico e estrutural. A compreensão da teoria do romance é uma etapa importantíssima a fim de termos com esse tipo de produção literária não mais um contato ingênuo e superficial, mas a possibilidade de entendê-lo por aquilo que realmente é, a saber, um instrumento de compreensão da realidade à nossa volta.

Informações sobre a próxima unidade

A respeito da primeira questão das nossas atividades, para haver

discurso indireto livre, como vimos no desenvolvimento da presente unidade, as falas das personagens não podem ter as marcas convencionais, como verbos de dizer, travessão, dois pontos etc. Pelo contrário, essas vozes (�Sinhá vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinhá Vitória provocaria a inveja das outras caboclas.�) ficam justapostas à voz do narrador sem aparente separação (�Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim. Eram todos felizes.�). Nas alternativas (a), (b) e (c), temos somente a voz do eu narrativo, ora descrevendo ora narrando. Na alternativa (e), além da voz narrativa, temos a voz do soldado apresentada mediante discurso indireto (�perguntou o caminho�). Por fim, é justamente na alternativa (d) que recorre o discurso indireto livre: a voz de Fabiano (�Seria necessário mudar-se?�; �Talvez a seca não viesse, talvez chovesse.�) justaposta à do narrador (�Apesar de saber que era perfeitamente necessário, agarrou-se a esperanças frágeis.�).

Comentário

Referências D�ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2002. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2001. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1986. http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli10-3ve.htm http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/atena1-1ve.htm

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Meta da unidade Representação da parábola histórica e das características estruturais do romance enquanto subgênero narrativo.

Gênero narrativo: romance Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • descrever, em textos romanescos, características diferenciais

do romance em relação ao conto e à novela. Pré-requisitos

Assim como na unidade passada, também nesta, o conceito aristotélico de mimese, por nós discutido no exórdio deste caderno, assume um papel central na discussão do gênero romanesco. O romance, junto ao conto e à novela, volta-se para a representação da realidade. Representação, porém, que, em momento nenhum, adapta-se ao convencional. A participação de quem escreve no objeto representado é tal e tanta que se pode falar, mais propriamente, em construção, reconstrução ou nova significação do real. A escrita narrativa é ideológica e interpretativa, assim como também a atividade do leitor que ao fruir do romance, novamente, interpreta e ressignifica o percurso de valores, signos e idéias traçado pelo autor. Nesta unidade, além do mais, aproveitaremos o corpus teórico utilizado na unidade 14, mormente no que diz respeito aos elementos narratológicos do conto e da novela, como ação, tempo e espaço, tipos de personagem e de narrador, pontos de vista narrativos. Introdução

A palavra romance, segundo Moisés (2001), originou-se do termo provençal romans, que, por sua vez, deriva da forma latina romanicus e que indica as línguas dos povos europeus que, durante a Idade Média, encontravam-se sob o domínio romano. Mais tarde, passou a designar composições literárias de cunho popular, narrativas em prosa e verso escritas nas línguas românicas. Os romances de cavalaria da época se encaixavam nessa denominação. Você já estudou esse tipo de narrativa na unidade anterior com a classificação de novelas de cavalaria.

Especialmente na Espanha, composições curtas em verso (redondilho maior ou redondilho menor) eram conhecidas como romance. No século XVII, o termo começou a circular na acepção moderna. Novel, em

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língua inglesa, é o termo utilizado para romance. Em francês, roman; em italiano, romanzo; em espanhol, novela.

Na segunda metade do século XVIII, com a revolução industrial inglesa, surge o romance como forma literária porta-voz das ambições e desejos da burguesia em ascensão. Assim, o gênero romance, historicamente, surge com o Romantismo, substitui a epopéia e torna-se o passatempo da burguesia, cuja existência artificial e vazia se encarrega de retratar.

O romance romântico estruturava-se segundo duas camadas: de um lado, oferecia uma imagem otimista, cor-de-rosa, apresentando aos burgueses a imagem do que pretendiam ser e não do que eram efetivamente; de outro lado, realizava uma crítica ao sistema, ora sutil e implícita ora declarada e violenta.

A princesa de Clèves (1678), de Mme. de Lafayette, constitui o embrião dessa nova fôrma. No século XIX, o romance conhece seu apogeu. Stendhal (O Vermelho e o Negro, 1830) é considerado o primeiro grande romancista europeu oitocentista, com que o romance adquire dimensões psicológicas realmente modernas. Mas é Balzac que, com a Comédia Humana, verdadeiramente cria o romance moderno, tendo, depois, como discípulos ilustres Flaubert, Zola e outros.

Nos fins do século XIX, os russos Dostoievski, Tolstoi, Gogol e outros trazem para a literatura romanesca problemáticas e análises psicológicas até então desconhecidas.

Sucessivamente, uma marcante transformação do romance ocorre com Proust, no início do século XX. À procura do tempo perdido (1913) aprofunda a sondagem psicológica iniciada com Dostoievski: desrespeita a coerência formal, usa a memória como forma de apreender o fluxo vital, concebe um tempo não mais cronológico. Esse caos narrativo dá ao romance horizontes imprevisíveis. Gide, por sua vez, avançando na linha de Proust, deflagra as personagens e retira do romance a verossimilhança existencial. Ninguém mais pode prever como agirá cada personagem. A arte aproxima-se assustadoramente da vida.

Com Ulisses (1922), James Joyce contribui decisivamente para mais uma transformação do gênero, transportando para o romance o caos do mundo consciente e inconsciente, introduzindo formas lingüísticas totalmente anárquicas e livres de qualquer normativismo gramatical e lógico. Essa desintegração dos padrões formais é acentuada com Huxley com Contraponto (1928) e Admirável Mundo Novo (1932), em que o autor tece dramas coletivos (financeiros, amorosos, ideológicos) refletindo as angústias da atualidade.

A partir de então, Thomas Mann, Virgínia Woolf, Franz Kafka, William Faulkner e outros desenham o novo panorama do romance contemporâneo. A partir de 1939, o nouveau roman, de origem francesa, retoma descobertas anteriores e leva a questionamentos sobre a condição de um romance sem mais a presença da burguesia.

De acordo com Moisés (2001, p. 165), muito mais do que a novela, o conto e a poesia, o romance tem a capacidade de apresentar uma visão global do mundo. Tem a capacidade de recriar a realidade, recompondo-a e reconstruindo-a de forma peculiar e única, pois o romancista pode utilizar ao máximo os recursos da prosa de ficção e as contribuições vindas de outros

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âmbitos, como a História, a Psicologia, a Filosofia, a Política, a Economia e as Artes. Estrutura do romance

O romance apresenta uma pluralidade de conflitos ou células dramáticas, mas sem a falta de limites potencial da novela. No romance, há simultaneidade dramática, mediante a interligação de conflitos na mesma unidade de tempo e de espaço, e não seqüencialidade, como acontecia na novela.

O romance se caracteriza pela pluralidade e amplitude dos ambientes: suas personagens podem viajar por vários lugares distantes um do outro ou estar em uma mesma casa. Por ser um gênero burguês, seu espaço é prevalentemente urbano, com a exceção do romance regionalista.

Segundo Moisés (2001, p. 182), o tempo no romance deve ser analisado segundo três modalidades básicas:

• tempo histórico ou cronológico; • tempo psicológico; • tempo metafísico ou mítico.

O tempo histórico obedece ao ritmo do relógio e do calendário:

marcação de dia e noite, estações do ano, fluxo das marés, movimento do sol, enfim, o tempo que pode ser medido a partir do ritmo objetivo da natureza. O tempo psicológico ignora a marcação do relógio. É cronometrado por sensações, idéias, pensamentos, vivências, experiências universais. Trata-se, portanto, de um tempo subjetivo, que varia de pessoa para pessoa, sendo marcado de maneira diferente para cada um. Esse tempo está ligado ao fluxo de consciência, às reminiscências fixadas na memória e relembradas por elementos associativos. O tempo metafísico ou mítico é o tempo do ser (Moisés 2001), é o tempo coletivo, primordial, concretizado nos ritos e festas sagradas.

Podemos dividir a história do romance em duas etapas. A primeira época, do século XVIII até Proust, é marcada por romances de tempo histórico, como Senhora, de José de Alencar, O Cortiço, de Aluísio Azevedo e Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado. O segundo período, de Proust até os nossos dias, é marcado pelo tempo psicológico e tem, entre seus romances mais representativos, Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Personagens do romance

Personagem (do latim persona = máscara) é o termo utilizado para designar as pessoas que vivem os dramas na narrativa.

De acordo com Moisés (2001, p. 226), animais não são considerados personagens. Os que participam do desenrolar de uma narrativa podem ser projeções de uma pessoa (como no caso de Quincas Borba, no romance homônimo de Machado de Assis), podem ser invulgares em sua condição (como a cachorra Baleia de Vidas Secas) ou podem servir de motivo ao desenvolvimento da ação (como a baleia de Moby Dick). Os animais participam como personagens de fábulas ou de narrativas de cunho poético.

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O número de personagens no romance é variável. As personagens romanescas não estão todas no mesmo plano. Por isso é importante que sejam classificadas a partir de vários critérios:

• Quanto à importância no desenrolar da narrativa: protagonistas, antagonistas, deuteragonistas.

• Quanto à sua universalidade: planas, redondas.

Na hierarquia dramática, as personagens protagonistas são as personagens principais, as deuteragonistas e/ou antagonistas são as personagens secundárias.

Consideramos planas ou bidimensionais as personagens destituídas de profundidade psicológica ou dramática e marcadas por uma qualidade, defeito, faculdade ou característica peculiar. As personagens planas, geralmente, movem-se no tempo histórico linear, podendo ser tipos universais ou caricaturas regionais.

As personagens redondas ou tridimensionais, por sua vez, têm maior profundidade e obedecem a seus impulsos interiores, colocando-se freqüentemente fora dos padrões sociais. Em virtude disso, muitas vezes, tornam-se símbolo de uma condição humana mais elevada e movem-se em um tempo psicológico mais complexo e intrigante. Tipos de romance

Edwin Muir (apud MOISÉS, 2001, p. 298) classifica o romance segundo três modelos fundamentais: romance de ação, romance de personagem e romance de drama.

No romance de ação, o destaque é constituído pelo enredo, com ênfase nos acontecimentos e nos episódios. Nesse tipo de romance, as personagens dependem do enredo, mantêm uma relativa estaticidade e dependência da imaginação do romancista. Nesse caso, teremos um romance psicologicamente �superficial�, centrado no sobrenatural, no terror, no fantástico etc. Os românticos O Guarani, de José de Alencar, e Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, são exemplos desse tipo de romance.

Contrapondo-se ao romance de ação, o romance de personagem põe a sua ênfase nos protagonistas e outras personagens da ação. Nesse tipo de romance, o romancista descreve os ambientes a partir das personagens. O primo Basílio, de Eça de Queirós, é um bom exemplo de retrato da sociedade portuguesa a partir da personagem Luísa. O crime do Padre Amaro, Os Maias, A Relíquia também pertencem à categoria de romance de personagem. Por meio deles, Eça de Queirós realiza uma vasta panorâmica da sociedade burguesa portuguesa oitocentista.

Para Moisés (2001, p. 301), o romance de personagem funciona como um documento, em que as personagens são planas com forte tendência para a tipificação.

O romance de drama é aquele em que personagem e ação são inseparáveis. Neste caso, a personagem não pode ser plana, pois somente a personagem redonda, com sua rica personalidade, possui verossimilhança nos diversos planos de atuação. Esse tipo de romance é, muitas vezes, conhecido como romance psicológico, caracterizando-se por uma forte dimensão introspectiva. Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, citado anteriormente, é um típico romance de drama.

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Teoria da Literatura Letras

Nosso estudo do romance começou pela explicação etimológica

do seu nome. O termo latino romanicus, transformado no provençal romans, indicava, inicialmente, as línguas européias medievais, derivadas da antiga língua latina. Sucessivamente, por extensão, passou a indicar as obras literárias escritas em tais idiomas. A perspectiva histórica ajudou-nos a efetuar uma breve análise sociológica de uma forma literária tipicamente burguesa, que ora exalta ora critica asperamente a consciência burguesa, transformando-se, na contemporaneidade, em um meio de aproximação da condição existencial pós-moderna, mediante a exploração do fluxo de consciência, do caos narrativo e da desfragmentação e desintegração dos padrões formais do romance tradicional. Analisamos também, além dos vários tipos de romance (o de ação, o de personagem e o de drama), algumas das suas estruturas mais peculiares, refletindo sobre a pluralidade e simultaneidade das células dramáticas, a amplitude dos ambientes, as possíveis variações de tempo e a extrema variedade de personagens.

Síntese da unidade

1 - Leia atentamente o trecho a seguir, retirado do romance realista Memórias póstumas de Brás Cubas, do carioca Machado de Assis: O menino é pai do homem Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" � ao que eu retorquia: � "Cala a boca, besta!". [...] Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor* dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. (ASSIS, 1988, p. 32) * Contemptor = desprezador.

Assinale a alternativa INCORRETA a respeito do narrador: a) O ponto de vista do narrador maduro é o mesmo que o personagem possuía no próprio momento em que ocorreram os episódios de sua infância.

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Todos os enunciados a respeito do trecho romanesco machadiano

estão corretos, com exceção do enunciado (a) que propõe a existência de um ponto de vista comum na personagem Brás Cubas quando criança e no narrador Brás Cubas já adulto. É evidente que, ao contrário, temos aqui duas perspectivas totalmente distintas. O próprio texto em questão nos ajuda a entender: �merecera eu a alcunha de �menino diabo��, �fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso�, �opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui� são todos juízos dados pelo narrador adulto sobre as atitudes da personagem criança que sinalizam uma divergência de olhares e uma amplitude maior por conta de quem, à distância de anos, pode observar os fatos com mais maturidade e serenidade.

Comentário

b) O narrador maduro sabe mais que a personagem quando criança, pois quando relata sua infância na casa dos pais, olha para ela de modo distanciado, o que lhe dá uma visão crítica sobre o passado. Uma prova disso é o julgamento que faz sobre si mesmo no episódio do doce de coco: "e eu tinha apenas seis anos". c) A visão de Brás Cubas é parcial, já que narra os fatos a partir de um ângulo neles implicado � o de narrador personagem � contando apenas o que vê. Mas esse narrador é capcioso: conta também � e principalmente � as interpretações do que vê e o modo como as vê. d) No trecho em questão, o narrador tece considerações sobre sua infância e faz um balanço crítico de sua vida. Se quando menino era matreiro, opiniático e egoísta, não poderia ser diferente quando homem. Essa idéia está contida no título "o menino é pai do homem", significando que foi a partir desse menino matreiro que se originou o homem Brás Cubas. e) No trecho lido, Brás Cubas nos apresenta uma visão de fatos que se passaram em sua infância. Essa visão se amplia em uma demonstração de como era sua família e o narrador compara os dois pontos de vista � o da personagem e o do homem já maduro � sobre os acontecimentos.

Referências ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: LTC, 1978. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Record, 1988. D�ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2002. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2001. http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli10-3ve.htm

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Teoria da Literatura Letras

Concluímos, aqui, nossos estudos sobre cada um dos gêneros literários. Na próxima unidade, faremos uma

revisão dos assuntos tratados até aqui, olhando em uma visão panorâmica todo o desenvolvimento teórico

realizado até aqui sobre a literatura.

Informações sobre a próxima unidade

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Teoria da Literatura Letras

Meta da unidade Realização de uma visão panorâmica e sintética de todo o

desdobramento teórico-literário efetuado nas unidades de 8 a 15 deste caderno de conteúdos e atividades.

Revisão de conteúdos Objetivo

Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de: • integrar em uma visão de conjunto os gêneros literários

lírico, épico, dramático e narrativo, em seus desdobramentos epocais.

Pré-requisitos

Esta unidade quer ser uma retrospecção sintética e integradora das unidades de 8 a 15. Torna-se necessário, portanto, voltar a refletir sobre tudo o que foi construído a respeito dos gêneros lírico, épico, dramático e narrativo. Particularmente, gostaríamos de chamar a sua atenção em relação ao tipo de vozes presentes em cada um desses gêneros, em relação aos temas específicos tratados por cada um deles e em relação às funções e objetivos que cada gênero se prefixa cumprir junto ao seu público. Tratando-se aqui da última unidade deste caderno e ainda de uma unidade de revisão, de certa forma, tudo o que foi escrito e discutido até aqui é pré-requisito e deve ser levado em conta para um justo dimensionamento do panorama aqui traçado. Introdução

Estamos concluindo nosso ciclo de estudos teóricos sobre literatura. Nada mais justo, então, que efetuar uma breve panorâmica retrospectiva sobre os temas apresentados nas últimas oito unidades didáticas. Esses temas são todos interligados por um fio condutor: a teoria dos gêneros literários. Para cada gênero literário e para cada momento estético de seu desenvolvimento, precisamos, então, apelar para os fundamentos teóricos vistos nas primeiras duas unidades e para a teoria dos gêneros, assim como foi destrinchada, ao longo dos séculos, nas quatro grandes orientações estéticas, a clássica, a romântica, a modernista e a contemporânea. Como podem observar, esta unidade representa, pois, o momento mais alto de todo o nosso percurso, a ocasião que nos permite integrar de uma forma definitiva todo o conhecimento construído até aqui.

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Teoria da Literatura Letras

Gêneros literários A primeira etapa da nossa viagem no universo dos gêneros literários

é constituída pelo gênero lírico, dividido em quatro subestações; lirismo clássico, romântico, modernista e contemporâneo.

• O lirismo clássico greco-latino representa a origem e a base de toda a poesia ocidental, estabelecendo, além de um vínculo inicial entre verso e experiência cotidiana, o uso de instrumentos musicais para acompanhar a declamação de poemas. Esse vínculo gradualmente se extinguirá ou modificará, dando vida a uma progressiva intelectualização do verso e à produção de técnicas melódicas e rítmicas intrínsecas, como recursos sucedâneos do antigo acompanhamento musical.

• O homem clássico, graças a nomes de alto relevo, como

Homero, Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Píndaro, Anacreonte, Safo, Virgílio, Horácio, Ovídio, Catulo, foi capaz de produzir um patrimônio poético de uma tal densidade e consistência que, até hoje, leitores dos cinco continentes encontram motivos válidos para cultuar obras escritas milênios atrás.

• A época clássica é também o berço de um outro grande

gênero literário, a epopéia. Ao lado do mundo íntimo e subjetivo do eu lírico, existe em literatura também a interposição narrativa entre um leitor e uma determinada história fruto da imaginação do artista. O gênero épico, enquanto fruto do espírito clássico, obedece a precisas leis estéticas e poéticas: é estruturado em versos, concebe a presença obrigatória de heróis e de ações nobres, suas criações estão rigidamente organizadas em exórdio ou proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo.

• Em época clássica, teve origem também outro gênero, o

gênero dramático, que encena em um palco o conflito ou drama de determinados personagens ao redor de um enredo. A diferença entre epopéia e drama é que neste não há, pelo menos explicitamente, interposição narrativa, sendo direta a relação entre espectador e personagem. No gênero dramático, encontramos tragédias, em que o homem nobre enfrenta impavidamente o destino e a vontade dos deuses, aceitando com dignidade a justa punição como conseqüência de um erro, na maioria das vezes, cometido em boa fé. Mas encontramos também comédias, em que pessoas comuns enfrentam problemas corriqueiros, em uma atmosfera de alegria e diversão. Temos também a farsa, filha da comédia e com vocação exclusivamente de entretenimento, e o auto, representação teatral de cunho religioso e moral. De uma maneira ou de outra, o teatro foi concebido, desde o início,

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para surtir um efeito catártico, purificador, curativo na platéia.

• O lirismo romântico vem libertar o fazer literário de certas

amarras poéticas que o constrangiam, em uma época avessa a qualquer coação externa da livre iniciativa individual. O poeta romântico possui alma inconformada com o hic et nunc. Por isso, todas suas produções mais exemplares trarão a marca do �escapismo�, traduzido ora como exotismo, ora como primitivismo, ora como historicismo, ora como sentimentalismo, ora como culto da morte.

• O lirismo modernista é fruto de uma época e de uma

cultura da desilusão, em que muitos mitos modernos caem e, apesar de viver uma contingência de grande euforia pelo rápido avanço tecnológico, há muita tristeza e cansaço pela constatação dos horrores causados pela razão humana.

• A poesia modernista recebe influência de algumas incisivas

vanguardas artística da Europa, onde a rigor não houve uma verdadeira escola modernista unificada, mas uma justaposição de experimentações de linguagens e conteúdos, voltadas a responder aos anseios das gerações do pós-guerra.

• O lirismo contemporâneo é um bojo, em que se recupera

tudo o que vem do passado, reinterpretando-o á luz da ironia, da paródia, da intertextualidade, do pastiche, do hibridismo formal. Tudo muda muito rapidamente. Paradoxalmente, o único dado permanente é a própria mudança. A vida supera a arte, há coisas na ficção que não mais precisam ser imaginadas, basta olhar para a própria vida. O mundo agora passa a ser construído, não mais lido, não mais interpretado, não mais conhecido, não mais descoberto. O passado não está mais encerrado, podendo ser desconstruído e reconstruído a nosso bel prazer.

• O gênero historicamente mais recente, embora

visceralmente ligado à narratividade épica, é o gênero narrativo. Nele contam-se histórias, que mantêm um vínculo mais ou menos próximo com a realidade, mas sem a exigência da fidelidade na retratação do real, com a única preocupação de uma verossimilhança que pode ser interna ou externa, e com o objetivo precípuo de criar algo esteticamente belo.

• Essas histórias de ficção podem ser contadas na forma de

conto, quando são caracterizadas por certa homogeneidade e focada em uma única célula dramática, com poucas personagens sucintamente delineadas, com unidade de ação, espaço e tempo, com sobriedade de detalhes, linguagem

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O texto cmpleto de Gil Vicente pode ser encontrado em

www.quimera-editores.com/vicente.

direta e brevidade narrativa. Podem também ser contadas em forma de novela, com mais acentuada heterogeneidade, pluralidade de células dramáticas justapostas e paralelas, em uma seqüência virtualmente infinita. Podem, enfim, ser contadas em forma de romance, que é o subgênero narrativo de fôlego mais amplo. Aqui as células dramáticas são muitas, simultâneas e submissas a uma célula principal em que se movem os protagonistas e em que se desenrola a ação principal, cuja extinção provoca motu proprio o desfecho da obra romanesca.

1 - Leia atentamente o texto a seguir: TODO MUNDO: Eu hei nome Todo o Mundo, e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro, e sempre nisto me fundo. NINGUÉM: E eu hei nome Ninguém, E busco a consciência.

No auto em questão, quais são as características do teatro vicentino que aparecem?

a) Personagens que representam, por meio do riso e da comicidade (ridendo castigat mores), o homem universal. b) Uma linguagem rebuscada e culta, própria da sociedade feudal da época. c) A procura por uma consciência individual, mediante a crítica ao imperialismo português, sempre ávido de conquistas materiais. d) Uma crítica social que revela o percurso psicológico interior de cada personagem.

1 - Os três excertos que seguem foram extraídos de poemas de Álvares de Azevedo: I. Anjinho Um anjo d´asas azuis. Todo vestido de luz, Sussurrou-lhe num segredo Os mistérios de outra vida! E a criança adormecida Sorria de se ir tão cedo! II. Virgem Morta É tarde! E quando o peito estremecia Sentir-me abandonado e moribundo! É tarde! É tarde! Ó ilusões da vida, Morreu com ela da esperança o mundo!...

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III. Lembrança de morrer Só levo uma saudade - é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... De ti, ó minha mãe, pobre coitada Que por minha tristeza te definhas!

A respeito desses poemas, assinale a alternativa INCORRETA: a) No trecho I (poema "Anjinho"), podemos perceber um ambiente que envolve o mistério e sugere a idéia de morte em que �a criança adormecida / Sorria de se ir tão cedo!�. b) No trecho II (poema "Virgem Morta"), teríamos o lamento de notar a impossibilidade do amor diante da morte, de que resultaria um eu lírico que sente o tédio: �Sentir-me abandonado e moribundo�. c) No poema III ("Lembrança de morrer"), o ambiente romântico do estilo de Álvares de Azevedo é percebido em �sombras�, �noites�, �velar� e �definhas�, palavras que trazem à imaginação ligações com a idéia da morte. d) No poema III ("Lembrança de morrer"), notamos a idéia de ingenuidade, típica desse poeta em uma parte de sua obra, quando destacamos a presença materna. e) Como poeta da terceira geração romântica, Álvares de Azevedo constrói imagens grandiosas para tratar de questões sociais, apontadas nos poemas acima.

3 - O episódio do Velho do Restelo representa um contraponto à glorificação das navegações portuguesas narradas por Camões em todo seu poema. Em seu livro Dialética da Colonização, Alfredo Bosi considera o episódio como o anticlímax da narrativa. Para ele: A fala do Velho do Restelo destrói ponto por ponto e mina por dentro o fim orgânico de Os Lusíadas, que é cantar a façanha do Capitão, o nome de Aviz, a nobreza guerreira e a máquina mercantil lusitana envolvida no projeto. [...] A viagem e todo o desígnio que ela enfeixa aparecem como um desastre para a sociedade portuguesa: o campo despovoado, a pobreza envergonhada ou mendiga, os homens válidos dispersos ou mortos, e, por toda parte, adultérios e orfandades. �Ao cheiro desta canela / o reino se despovoa�, já dissera Sá de Miranda. A mudança radical de perspectiva (que dos olhos do capitão passa para os do Velho do Restelo) dá a medida da força espiritual de um Camões ideológico e contra - ideológico, contraditório e vivo. [...] No largar da aventura marítima e colonizadora o seu maior escritor orgânico se faria uma consciência perplexa: �Mísera sorte! Estranha condição!".

O Camões ideológico e contra-ideológico, contraditório e vivo, ao qual se refere Alfredo Bosi, pode ser visto como um resultado de:

a) Um período marcado pelo bifrontismo [coexistência de um espírito medieval que não foi abandonado por completo e de uma visão clássica, antropocêntrica, mercantilista].

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b) Um período essencialmente materialista, no qual o homem superou o dilaceramento entre o teocentrismo e o antropocentrismo, o que justifica Os Lusíadas como epopéia sem ambivalência. c) Um período em que os ideais renascentistas exaltam a expansão do império luso, dentro de uma unilateralidade que impede o uso de ideais cristãos e medievais dentro de uma epopéia como Os Lusíadas. d) Um período paradoxal, porém marcado por ideais pacifistas, já que Camões, em Os Lusíadas, não celebra feitos guerreiros, mas sim, fatos humanos. e) Um período bifronte, mas rígido em valores espirituais, representados pelo Velho do Restelo, que enaltece glória, honra e fama. (Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli11-por.htm e http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/atena1-1ve.htm, acessados em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.)

4 � Observe o texto abaixo A *** Falo a ti � doce virgem dos meus sonhos, Visão dourada dum cismar tão puro, Que sorrias por noites de vigília Entre as rosas gentis do meu futuro. Tu m�inspiraste, oh musa do silêncio, Mimosa flor da lânguida saudade! Por ti correu meu estro* ardente e louco Nos verdores febris da mocidade. Tu, que foste a vestal* dos sonhos d�ouro, O anjo-tutelar dos meus anelos*, Estende sobre mim as asas brancas... Desenrola os anéis dos teus cabelos! (Casimiro de Abreu) *Estro = imaginação criadora *Vestal = mulher casta ou virgem *Anelo = desejo ardente (Disponível em http://www.casimiro.rj.gov.br/poemas.php?op=A; acesso realizado em 30/1/2007)

O eu lírico no poema de Casimiro de Abreu se dirige a uma mulher com características específicas. A alternativa em que se atribuem à mulher características semelhantes às definidas no texto em questão é: (A) �Pra distrair minhas mágoas / Namoro e toco vitrola�. (Murilo Mendes) (B) �É um característico do século: a mulher está perdendo a superstição do homem�. (Machado de Assis)

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(C) �Não creias, não, mulher: ele te engana! / As lágrimas são galas da mentira�. (Joaquim Manuel de Macedo) (D) �Eu senti-a tremer, e a transluzir-lhe / nos olhos negros a alma inocentinha�. (Álvares de Azevedo) (E) �A primeira vez que vi Teresa / Achei que a cara parecia uma perna�. (Manuel Bandeira) 5 - O texto abaixo é o trecho inicial do conto O espelho, de Machado de Assis, e servirá de base para a questão seguinte:

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

A respeito do trecho, não é possível afirmar que: a) o foco narrativo do texto está colocado em terceira pessoa, o que é possível perceber pelo fato de que o narrador não é um dos personagens. b) a intenção do autor é criar uma atmosfera de mistério, utilizando-se, para isso, de uma estratégia descritiva. c) a colocação dos personagens num morro, entre o céu e a cidade, pode estar ligada à �alta transcendência� dos assuntos e às �coisas metafísicas� que investigavam, porque tudo isso gera um sentido de elevação, de distanciamento da realidade. d) a iluminação da sala com velas e a fusão da luz dessas velas com a do luar podem ser entendidos como uma estratégia argumentativa do autor para colocar o leitor em um ambiente de mistério. e) o trecho �nossos quatro ou cinco investigadores� evidencia mudança de foco narrativo, dado o uso do pronome de 1ª pessoa do plural.

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli10-3ve.htm e de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/atena1-1ve.htm, acessados em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.) 6 - É graças ao narrador que entramos em contato com a organização da narrativa e com os fatos que a compõem. Ao selecionar os eventos a serem relatados e o tipo de relato, o narrador obedece também a critérios de ordem ideológica, propondo uma visão de mundo. O trecho que segue, extraído de Macunaíma, sugere a visão de mundo de seu autor, Mário de Andrade. Leia-o com atenção e em seguida, responda à questão proposta:

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A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre malocas temíveis. E aquele diacho de sagüi-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormia... Que mundo de bichos! Que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furador por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandioca!... A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina. De manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. (ANDRADE, 1978, p. 37)

Considere as seguintes afirmações sobre a relação entre o narrador do trecho acima e os fatos por ele relatados: I. A abordagem em terceira pessoa revela um distanciamento por parte do narrador, que se posiciona, em todo o trecho transcrito, de forma objetiva diante do episódio narrado. II. A ausência de vírgulas em certas passagens confere um ritmo acelerado à narrativa, o que, de certa forma, traduz a impressão de continuidade do barulho e tumulto percebido pelo herói no ambiente em que se encontra. III. Da maneira como a narrativa é articulada, pode-se concluir que o olhar do narrador, por vezes, se mistura ao de Macunaíma, o que se comprova por meio de diversas ocorrências do discurso indireto livre, como se dá em �Que mundo de bichos!�. IV. A adoção de termos indígenas como "cuquiadas", "cunhãs" e "tapiris" para designar objetos e seres revela-nos que a ótica adotada pelo narrador, assim como por Macunaína, tende a romper com o modelo eurocêntrico de percepção.

É correto o que se afirma: a) apenas em II, III e IV. b) apenas em II e IV. c) apenas em II e III. d) apenas em III e IV. e) apenas em I e IV.

(Conteúdo adaptado de http://www1.uol.com.br/vestibuol/simulado/poli10-3ve.htm, acessado em 26/1/2007. O Cursinho da Poli é mantido pelo Instituto Grêmio Politécnico da USP para o Desenvolvimento da Educação.)

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7 - Compare os textos a seguir TEXTO 1 Moça linda bem tratada Moça linda bem tratada, Três séculos de família, Burra como uma porta: Um amor. (ANDRADE, 1999) (Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/and.html#moca; acesso realizado em 31/1/2007) TEXTO 2

Ah! Vem, pálida virgem Ah! Vem, pálida virgem, se tens pena De quem morre por ti, e morre amando, Dá vida em teu alento à minha vida, Une nos lábios meus minh�alma à tua! Na tu�alma infantil, na tua fronte Beijar a luz de Deus: nos teus suspiros Sentir as vibrações do paraíso; A teus pés, de joelhos, crer ainda Que não mente o amor que um anjo inspira Que eu possa na tu�alma ser ditoso, Beijar-te nos cabelos soluçando E no teu seio ser feliz morrendo! (Álvares de Azevedo, Lira dos vinte anos e poesias diversas. São Paulo: Ática, 2002) (Disponível em http://www.astormentas.com/din/poema.asp?key=12183&titulo=A+T...; acesso realizado em 31/1/2007)

a) Diferencie os olhares do eu poético em relação à figura feminina, no primeiro e no segundo texto. Estabeleça uma comparação, apontando semelhanças ou diferenças e justificando sua fala. b) Quanto à estrutura do texto, que diferenças você destacaria entre os textos? Há alguma relação entre a estrutura e o conteúdo deles? Qual?

c) A qual das quatro poéticas trabalhadas neste caderno (a clássica, a romântica, a modernista e a contemporânea) pertence o segundo poema? Responda à pergunta e apresente elementos que caracterizam a poética identificada.

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Comentário

O poema pode ser encontrado integralmente em

www.sendnet.com.br/nefrita/gullar/agosto_1964.htm.

8 � Observe o fragmento do texto de Ferreira Gullar Agosto l964. Entre lojas de flores e de sapatos, bares, Mercados, butiques, Viajo Num ônibus Estrada de Ferro � Leblon. Volto do trabalho, a noite em meio, Fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud. Relógio de lilases, concretismo, Neoconcretismo, ficções da juventude, adeus, Que a vida Eu a compro à vista aos donos do mundo. Ao peso dos impostos, o verso sufoca, A poesia agora responde a inquérito policial-militar. (...)

No texto acima, o eu lírico reflete sobre sua condição e sobre o

destino de sua poesia. Levando também em conta o título do poema responda às seguintes questões:

a) Qual é o ambiente focalizado, na primeira estrofe do poema? Por quê? Com que expressões o poeta constrói esse ambiente? Que sentido(s) poderia atribuir às mesmas? b) Que fato histórico pode ter motivado essas reflexões? Por quê? Quais os fragmentos do poema e quais as razões que fundamentam sua resposta? De acordo com os últimos versos, de que modo o eu lírico pode contribuir para que a situação seja alterada?

1 - Na primeira questão, temos uma amostra de teatro humanista vicentino, em que se aplica a antiga máxima de �moralizar os costumes corruptos da sociedade mediante o riso�. Aponta-se para as fraquezas do homem de todas épocas e de todos os lugares, levando-as ao palco de maneira leve e cômica, mas não por isso menos contundente e eficaz. 2 - Não há, na segunda questão, imagens grandiosas nem discussões sociais, somente os motos íntimos de um eu lírico que reflete sobre o amor, a vida, o amor e o fim das ilusões terrenas. 3 - A época em que Camões vive é certamente de grandes contrastes, contradições e paradoxos. Não é mais a perspectiva teocêntrica de uma decadente Idade Média nem ainda o confiante orgulho antropocêntrico de uma Idade Moderna em seu estado avançado. A perplexidade do homem diante do desconcerto do mundo modela uma obra como Os Lusíadas que, por seu declarado classicismo, deveria proceder de maneira linear e

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unilateral, mas que guarda em seu seio, para surpresa do leitor, uma profunda contradição, que em nada afeta a sua beleza e que, pelo contrário, faz dela uma obra extremamente moderna e atual. 4 - Álvares de Azevedo, como a maioria dos poetas da segunda geração romântica, idealiza a figura feminina em seus versos, prestando-lhe culto, mas transformando-a em uma criatura, muitas vezes, inverossímil. A lírica romântica deverá esperar a terceira geração e um poeta do valor de Castro Alves para que suas personagens femininas adquiram maior concreção. 5 - Das alternativas propostas na quinta questão, todas são plausíveis menos a última, pelo fato de o pronome de 1ª pessoa plural �nossos� não implicar aqui em uma mudança de foco narrativo (de narrador-onisciente para narrador-personagem). A expressão, com efeito, tem a mera intenção de aproximar o leitor do narrador e até incluí-lo na narrativa, realizando o assim chamado �leitor incluso�. 6 - Em relação à sexta questão, tudo o que se afirma em II, III e IV está correto. O problema está na assertiva I, em que se sugere um distanciamento e uma objetividade do narrador de �Macunaíma� em relação à ação que no trecho proposto não existe, haja vista a supressão das vírgulas para participar iconicamente o ritmo acelerado, o barulho e o tumulto da narrativa e do ambiente; algumas convergências dos olhares do narrador e do protagonista, como na exclamação �Que mundo de bichos!�; o uso de termos indígenas como atitude ideológica de desconstrução da perspectiva eurocêntrica. 7 - A acentuada idealização do feminino, observada, repetidas vezes, em textos românticos, como este de Álvares de Azevedo, contrasta visivelmente com o tom prosaico dos versos de Oswald de Andrade. A relação poética com o real é profundamente e radicalmente díspar entre romantismo e modernismo. Isso acarreta efeitos desde o conteúdo até a estrutura formal do poema. Observamos certa correspondência entre um assunto elevado e uma forma mais refinada, sofisticada e erudita, de um lado; e uma idêntica correlação entre um assunto corriqueiro e uma forma que se faz mais despojada e simples, como a representar iconicamente o teor do tema e a intencionalidade profunda da abordagem. 8 - Lembre-se de que Ferreira Gullar representa aquela vertente do lirismo contemporâneo chamada de poesia social, muita atenta às problemáticas de ordem política e social que compõem o cenário sombrio de uma sociedade sempre mais desigual e à beira do autoritarismo e do poder escuso de seus legítimos representantes.

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Referências ANDRADE, Oswald de. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 1999. AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos e poesias diversas. São Paulo: Ática, 2002. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992. http://lusiadas.gertrudes.com/poesia4.html http://www.revista.agulha.nom.br/and.html#moca http://www.astormentas.com/din/poema.asp?key=12183&titulo=A+T... http://www.sendnet.com.br/nefrita/poemas/gullar/agosto_1964.htm