TEORIA DA REPRESENTAÇÃO direto eleitoral

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TEORIA DA REPRESENTAO DIRETA: a soberania do estado exercida por meio representativo, na forma indireta, sem mandatrios.

Clio dos Santos Fagundes[1]

INTRODUO

Nos pases de constituio rgida, como no Brasil, h rigorosos controles de constitucionalidade tanto pela via difusa como pela via abstrata, visando manter o texto normativo ntegro, coeso. Apesar da vasta experincia dos nossos tribunais no controle da inconstitucionalidade e da constitucionalidade no h casos de controle de emendas nascidas da vontade popular.

Atravs de questionamentos embasados nas doutrinas e jurisprudncias disponveis prope-se aqui a discutir a soberania, seu papel, seus aspectos considerando seus fundamentos principalmente na ocorrncia do referendo e do plebiscito. Vislumbra-se, ainda, analisar as formas de controle quando do ingresso das normas nascidas diretamente da vontade popular.

Em suma tende-se a verificar o tratamento dado norma nascida atravs do exerccio da soberania popular direta detentora tanto do poder constituinte originrio como do poder reformador. Partindo do principio de que o poder soberano do estado a viga mestra do direito positivo e das constituies estabelecidas, emergem algumas indagaes.

O poder fonte teria maior status frente s normas originadas do legislador comum ordinrio?

Os poderes legislativo e judicial, cada qual, nas suas atribuies, poderia anular projetos de lei quando estes nascem genuinamente do anseio popular?

Por certo, as bases encontram-se no parmetro constitucional que se estabelece em favor do princpio da soberania popular que tem seu nascedouro na Carta Federativa de 1988. Esta, prescreve categoricamente que a Unio ser formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos a soberania. A carta constitucional trata com poucas palavras os temas relacionados soberania direta ficando a ntida ideia de que muito mais longos sero os caminhos dos projetos populares se comparados s formas tradicionais.

QUESTES QUE ENVOLVEM O TEMA

O artigo 14, nos incisos I, II e III da Constituio Federativa do Brasil de 1988 afirma categoricamente que a soberania popular ser exercida atravs do plebiscito, referendum e iniciativa popular. Da se extrai e se afirma que a soberania nasce da exegese poltica que fundamenta os princpios norteadores do estado democrtico de direito tal qual a cidadania e dignidade da pessoa humana. E, por tais razes, ela vem grafada simbolicamente na entrada da carta constitucional. Deste extrato norteador soma-se a importncia histrica e sociolgica advinda da carga ideolgica que demarca o prembulo constitucional mostrando as origens do estado nascente.

O termo soberania nasceu na Grcia nos sculos IV e V a.C. Foi neste perodo de maior liberdade que os cidados passaram a discutir nas assembleias e tribunais populares os assuntos da polis. O conceito fora modificado muitas vezes at apresentar-se nos moldes como a conhecemos. No sculo XIII, entre os suos j realizavam os Landsgemeindei, que era a participao direta do povo nas principais decises polticas - mantida at os dias de hoje nos cantes de Appenzell, Glaris e Unterwald.

Miguel Reale na sua brilhante obra Teoria Geral do Estado alega que o poder estatal passa pela soberania. Nela, o poder positivado, atravs da combinao de diversos elementos e que sempre esteve distante da vontade da massa humana que em nada, ou muito pouco, influencia no processo de criao das normas. Elaborar leis trabalho tcnico por excelncia e

que exige anlise das vontades politicas, valores e contingncias de forma que a entrega dos poderes soberanos a um grupo que represente os objetivos estatais e os anseios atravs dos representados nica forma encontrada desde a antiguidade.

Assim, o detentor dessa representao, supostamente conhecedor das aspiraes comuns, da moral coletiva, da religio e do direito natural existente na comunidade far o registro desses valores ou inovar de acordo com sua conscincia e poderes atribudos naquele determinado territrio. Jean Bodin (1596, p. 197.) foi quem primeiro disse que soberania o poder de legislar, ou seja, uma forma ilimitada juridicamente, pois se estabelece acima dos interesses dos habitam o estado como as corporaes, grupos econmicos, etc. Hans Kelsen (1944) chega a afirmar que a soberania estava limitada pelo direito natural por ser este um poder que emana naturalmente mesmo sem a existncia do estado. Porm so nos princpios do direto natural que a soberania encontra seu embasamento maior. Os jusnaturalistas j afirmavam que esse direito impera antes da norma ou mesmo quando no existe qualquer outra.

As assembleias constituintes, quando investidas deste poder soberano criam o futuro estado e nos que j esto estruturados inovam a ordem jurdica de forma a renascer outro estado juridicamente. Touscoz (1994) afirma que a soberania estabelece, em favor do Estado, uma "presuno" de competncia, o que lhe d exclusividade de competncia no seu territrio. J Bodin (1596), diz ser esta um poder supremo, incontrastvel, no submetido a nenhum outro poder. Na obra, Os Seis Livros da Repblica, esse autor defende que a soberania caracterizase por ser una, absoluta, indivisvel, inalienvel, imprescritvel, irrevogvel, perptua. Rousseau (1778), trilhando na mesma direo de Bodin via a como poder supremo do povo.

Os traos de soberania, com os aspectos simblicos que conhecemos hoje, embasaram os movimentos revolucionrios, do fim do sculo XVIII e XIX na Frana e nos Estados Unidos. Nestes casos, a influncia nasce do contratualismo de Rousseaue da filosofia jusnaturalistas princpios da democracia semidireta ou participativa, quando estas ganharam maior dimenso e filiados.

Visando posicionar a soberania ou mesmo ajust-la em relao ao poder reformador, Sahid Maluf (2003, p. 195) pontua: Em Geral os poderes constitudos conservam uma parcela do poder Constituinte, permanentemente, para reformas ou emendas da constituio, no curso das legislaturas,

dentro dos limites estabelecidos pelo prprio texto. Essa funo chamada de poder reformador, poder constituinte secundrio, ou poder constituinte derivado coloca-se num posio intermediria entre o poder constituinte derivado e o poder constitudo ordinrio. Constitui na competncia para reformar parcialmente ou emendar a constituio, que no um cdigo esttico, mas dinmico, devendo acompanhar a evoluo da realidade social, econmica a e tico jurdica.

Quanto ao exerccio, a soberania manifesta-se mais comumente atravs dos institutos do referendum e do plebiscito grafados na Carta brasileira, no rol dos princpios fundamentais, apesar de contraditoriamente a mesma no permitir o exerccio direto desses institutos soberanos passando pelo crivo e autorizao do congresso nacional.

Plebiscito a forma jurdica pelo qual o povo chamado a aprovar ou no um fato, um acontecimento, concernente estrutura do Estado ou de seu governo, fato comum em episdios importantes como a diviso de um determinado territrio, rea, estado, provncia.

No contexto deste trabalho, destacamos como mais adequada a definio de Azambuja apud Oliveira (1988, p. 97): plebiscito o que mais aproxima o Governo da democracia pura, mas tambm o mais complexo, tanto por sua intimidade com outros instrumentos, como o plebiscito e o veto popular, como pelas diferentes classificaes que abriga

De forma objetiva, a soberania e a democracia direta, confundem-se ideologicamente, pois ambas trazem significados ideolgicos, fincados nos aspectos sociais, antropolgicos e histricos. A discusso entre pblico e privado no pensamento social e poltico ocidental remonta aos debates filosficos da Grcia clssica sobre a vida da polis, quando os cidados se reuniam para discutir questes de interesse comum e criar uma ordem social voltada para o bem comum. Mais especificamente em Atenas, onde o povo, reunido na gora para o exerccio direto e imediato do poder poltico, transformava a praa pblica no grande recinto da nao (BONAVIDES, 2001, p. 268).

Dada roupagem ideolgica e histrica, no se concede o exerccio da soberania popular a naes sem liberdade democrtica. Soberania e democracia convergem e comungam simbolismos similares que desaguam nas mesmas bases: as aspiraes populares quando

geridas pelo prprio povo. Ambos os termos so semelhantes em significados. A soberania se exerce sem amarras ou coao de qualquer outro poder particular ou estatal e a democracia, conforme j explicitado, caminha chancelada pela vontade popular.

Em face do tema liberdade para exercer o poder soberano Sahid Maluf (1997 p. 194) narra um famoso episdio ocorrido entre Dom Joo VI e os constituintes portugueses em 1821. Diz o autor que o monarca determinou que nova constituio da monarquia, a ser elaborada, deveria manter a religio catlica, apostlica romana, manter a dinastia da casa de Bragana, bem como observar as bases da constituio da monarquia espanhola [...]

A democracia direta etimologicamente representa forma de governo no qual o poder poltico exercido pelo povo (BOBBIO, 1986. pag. 135). Apesar dos termos revelarem-se ideologicamente como sinnimo, o seu exerccio, latu sensu, nunca se concretizou no Brasil. Entre as muitas dificuldades de exerccio esto as de ordem logstica.

Os institutos do referendo, plesbicito e iniciativa popular so praticados na forma semidireta, mantendo-se apenas o esprito e a aspirao de se pratic-la na forma direta latu sensu. Ou seja, apesar de comumente se mencionar a existncia do exerccio de representao direta, o seu modus operandi ainda representativo na forma indireta, ou seja, por mandatrios.

Naturalmente o povo mantm-se detentor do poder, ainda que o faa pelos mtodos da representao parlamentar dentro das peculiaridades do poder constitudo. O professor Machado Pauprio (1979, p. 179) chega a afirmar que a soberania no propriamente um poder, mas a qualidade deste poder; a qualidade de supremacia que em uma determinada esfera, cabe a qualquer poder. Ou seja, seria um atributo do qual se reveste o estado para organizar o seu prprio poder de autodeterminao de forma que a soberania pertence originariamente nao, mas o seu exerccio atribudo ao rgo estatal criado por ela donde se representa os interesses de todos e do estado.

Rousseau, defensor da liberdade no sentido positivo, que Berlin (1981, p.163) definiu como sendo referente posse por todos, e no somente por alguns membros mais qualificados de uma sociedade, de uma cota do poder pblico que pode interferir em todos os aspectos da vida de todos os cidados seria um apologista da liberdade positiva, na medida em que defenderia

a participao direta do povo na elaborao das leis e sua interferncia ativa no processo poltico, sendo a populao protagonista deste ltimo.

A ideia de exerccio compartilhado do poder, presente na definio de liberdade positiva de Berlin, corresponde maneira direta, democrtica e participativa pela qual Rousseau preconiza que seja exercido o poder Legislativo em seu modelo poltico. Assim, a liberdade positiva estaria associada democracia participativa. Esta apologia da liberdade positiva pode ser constatada quando Rousseau afirma que povo submetido s leis deve ser o seu autor (Rousseau, 1995, p. 99), ou quando escreve que Toda lei que no foi ratificada pelo povo em pessoa nula; no de forma alguma uma lei (Rousseau, 1995, p. 148). Nesse sentido, Liberdade positiva tem a ver com participao poltica e com exerccio ativo da cidadania e dos direitos polticos, que so elementos onipresentes na abordagem poltica de Rousseau.

No perodo imperial, o Brasil exerceu a soberania representativa de forma indireta, atravs do voto de provncia. Por esse instituto o povo elegia Assembleias Paroquiais e os eleitores de provncias que seriam os representantes junto s Assembleias Gerais, local onde podiam votar nos deputados e senadores.

Jose Afonso da Silva (2004, p. 176) dissertando sobre o tema representatao pressupe ser um conjunto de instituies que disciplinam a participao popular no processo poltico, que vm a formar os direitos polticos que qualificam a cidadania tais como as eleies, o sistema eleitoral, os partidos polticos". Enfim, mecanismos disciplinadores para a escolha dos representantes do povo.

O exerccio da soberania na forma direta est consagrado na Carta Constitucional de 1988 atravs de referendo e iniciativa popular. Se fizermos uma analogia, veremos que algumas conquistas importantes conseguidas pelos estadunidenses quando da implantao dos primeiros estados como o direito de revogao, veto popular, recall[2] nunca figuraram na pauta dos constituintes brasileiros. A participao direita do povo na votao de projetos numa espcie de referendo participativo como ocorre na federao Sua nunca foram sequer cogitados em quaisquer das assembleias constituintes, por certo, no estava entre as aspiraes do nosso povo.

Modelo de representao direta do povo no poder o recall o mais famoso, pois age diretamente no controle dos atos normativos e dos detentores de poder, existente, por exemplo, em alguns estados da federao estadunidense. A participao direta do povo junto ao poder fator importante no desenvolvimento da cidadania e talvez seja por esta razo que tanto os suos como os norte-americanos so tidos como modelos de democracia e participao do povo junto gesto pblica.

conSIDERAES FINAIS

Antes de ser aspirao ideolgica latu sensu, soberania anseio sociolgico e poltico de todos os povos minimamente organizados quando se debruam para definir seus prprios rumos. A participao direta de promulgar e fixar seus interesses preserva e retoma o direito natural. O povo, fonte de todo o poder e, por isso, titular, investido desta soberania e mantido em suas reservas nos constituintes secundrios. Nas naes mais evoludas o chamamento popular para demarcar novo incio do estado j pressupe uma prvia organizao.

Nos estados que possuem guerras intestinas, o grupo mais organizado politicamente e detentor da avassaladora maioria investe-se da obrigao de juntar os interesses opostos. E, quando isso ocorre, fixa-se o incio do estado. De qualquer sorte, somente o amadurecimento poltico da nao em pr do exerccio democrtico far nascer as bases da soberania. Por ser participao direta e livre no se admite a coero ou influncias de poderes subjugados. Na forma direta tem status de me das outras normas, pois brota do prprio titular: o povo.

Este trabalho uma sntese do primeiro captulo do meu livro Democracia Representativa: Princpios e Genealogia (Representative Democracy: Principles and Genealogy), que ser publicado pela University of Chicago Press. Para auxiliar o leitor, irei esboar os argumentos principais do livro. Na obra, investigo as condies que tornam a representao democrtica um modo de participao poltica que possa ativar uma variedade de formas de controle e superviso dos cidados. Argumento que a democracia representativa uma forma de governo original, que no idntica democracia eleitoral. Ao invs de usar uma estratgia polmica, procuro iluminar as suposies no questionadas quanto proximidade e presena fsica que apiam a idia de que a democracia direta sempre a forma poltica mais democrtica, e a representao, um recurso ou uma alternativa second best. Valho-me dos trabalhos seminais de Hanna Pitkin e Bernard Manin para demonstrar que a represenO QUE TORNA A

REPRESENTAO DEMOCRTICA?* Nadia Urbinati * Apresentado no Encontro Anual da American Political Science Association (Apsa), Washington (EUA), setembro de 2005. Traduo de Mauro Soares.O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 192 tao poltica um processo circular (suscetvel ao atrito) entre as instituies estatais e as prticas sociais. Como tal, a democracia representativa no nem aristocrtica nem um substituto imperfeito para a democracia direta, mas um

modo de a democracia recriar constantemente a si mesma e se aprimorar. A soberania popular, entendida como um princpio regulador como se guiando a ao e o juzo polticos dos cidados, um motor central para a democratizao da representao. No livro, utilizo uma abordagem genealgica para ilustrar essa teoria da democracia representativa. De fato, estudiosos das instituies polticas esto de acordo com que os princpios centrais do governo representativo foram estabelecidos no sculo dezoito com o propsito de refrear a democracia e construir um governo limitado e, desta forma, responsvel. O quadro que desenho (por meio de um exame crtico das teorias da representao de Rousseau, Kant, Sieys, Paine e Condorcet) mostra que as coisas so um pouco mais complicadas. A idia do governo representativo como intrinsecamente singular produziu duas escolas distintas de pensamento que podem ser referidas, respectivamente, como um modelo eleitoral de democracia e um modelo representativo. A primeira endossava uma viso da representao que combinou elitismo nas instituies polticas (o nico local tanto da deliberao bem como do voto) e legitimao popular (localizada na votao atravs da eleio), na qual o primeiro consistiria no domnio da competncia e a ltima no domnio do consentimento. Nesta viso, a representao se funda no princpio da diviso do trabalho e em uma seleo funcional de expertise. A segunda escola de pensamento era explicitamente democrtica e visava evitar a concentrao da fonte

de legitimao nas instituies estatais e a reduo do consentimento popular a um ato de autorizao. Nesta viso, a representao se funda na teoria do consentimento, que Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 193 v a eleio como a expresso do direito de participar em algum nvel da produo das leis, no como um mtodo de transferncia das preferncias idiossincrticas das pessoas a prossionais polticos selecionados. Desde o sculo dezoito, tericos da democracia representativa (a saber, Paine e Condorcet) propuseram situar a representao dentro de um misto complexo de deliberao e voto, autorizao formal e inuncia informal, que envolvia tanto representantes quanto cidados. Em vez de um esquema de delegao da soberania, eles viam a representao como um processo poltico que conecta sociedade e instituies. Uma teoria da democracia representativa envolve uma reviso da concepo moderna de soberania popular que conteste o monoplio da vontade na denio e na prtica da liberdade poltica. Ela marca o m da poltica do sim ou no e o incio da poltica como uma arena de opinies contestveis e decises sujeitas reviso a qualquer tempo. Isso amplica o signicado da prpria presena poltica, porque faz da vocalizao sua manifestao mais ativa e consoante e do juzo acerca das leis e polticas justas e injustas seu contedo. Pode-se dizer que a representao poltica provoca a disseminao da presena do soberano e sua transformao em uma tarefa contnua e regulada de contestao e

reconstruo da legitimidade. Portanto, embora a autorizao eleitoral seja essencial para se determinar os limites e a responsabilidade do poder poltico, ela no nos diz muito a respeito da verdadeira natureza da poltica representativa em uma sociedade democrtica. As eleies engendram a representao, mas no engendram os representantes. No mnimo, elas produzem um governo responsvel e limitado, mas no um governo representativo. Isso me leva a argumentar que a representao ativa um tipo de unicao poltica que no pode nem ser denida nos termos de um acordo contratual entre eleitores e eleitos, nem decomposta em um sistema de competio que O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 194 aponte aqueles que devero pronunciar o interesse geral de todos. Um representante poltico nico no porque substitui o soberano na aprovao das leis, mas precisamente porque ele no um substituto para o soberano ausente (a parte que substitui o todo), uma vez que ele precisa ser constantemente recriado e estar dinamicamente em harmonia com a sociedade para aprovar leis legtimas. Com base nisso, correto armar que a democratizao e o processo representativo compartilham uma genealogia e no so antitticos. O juzo e a opinio so sedes da soberania tanto quanto a vontade, se admitirmos a soberania como correspondendo a uma temporalidade ininterrupta e a inuncia incalculvel dos princpios e ideais

bsicos concernentes ao interesse geral, que transcendem os atos de deciso e eleio. Essa reexo me leva a sustentar que a representao estimula um ganho de poltica em relao ao ato sancionador pelo qual os cidados soberanos raticam e recapitulam, com regularidade cclica, as aes e promessas de candidatos e representantes. Representatividade e defesa so as expresses desse ganho e marcam o vnculo inevitvel, ativado pelo processo eleitoral, entre o lado de dentro e o lado de fora das instituies legislativas. A representao democrtica pressupe, notadamente, uma reviso das noes tanto de representao quanto de soberania. Neste artigo, irei me concentrar na primeira e sustentar trs principais argumentos: o de que a representao pertence histria e prtica da democratizao; o de que diferentes teorias de representao so possveis, dependendo da relao entre Estado e sociedade civil; e o de que esta relao chama a ateno para o papel da ideologia e do partidarismo na poltica, um aspecto que a teoria poltica contempornea deixa de apreciar com sua profundamente arraigada abordagem racionalista da deliberao.Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 195 1. Mark A. Kishlansky(1986: 21). Democracia e representao O trabalho cuidadoso de Mark A. Kishlansky sobre o nascimento do processo eleitoral na Inglaterra do sculo dezessete revelou um liame cronolgico e funcional entre trs fenmenos polticos: a adoo do mtodo eleitoral para se designar os legisladores; a transformao dos eleitos, de

delegados em representantes; e a emergncia das alianas partidrias ou ideolgicas entre os cidados. Embora as eleies tenham sido consideradas uma instituio aristocrtica desde Aristteles, nos Estados modernos o processo eleitoral estimulou dois movimentos que se tornaram cruciais para o subseqente processo de democratizao. Por um lado, ele desencadeou uma separao entre sociedade e Estado ou, melhor dizendo, uma transio de relaes simbiticas entre os delegados e suas comunidades para formas de unicao que eram totalmente simblicas e construdas politicamente. Por outro, a dissociao dos candidatos de suas posies ou classes sociais destacou o papel das idias na poltica, ou, como preferiria dizer, o propsito idealizador do processo de representao. Como resultado, a representao no pode ser reduzida nem a um contrato (de delegao) rmado atravs das eleies nem nomeao de legisladores como substitutos do soberano ausente, porque sua natureza consiste em ser constantemente recriada e dinamicamente ligada sociedade. Em suma, a histria moderna sugere que a genealogia da democratizao comeou com o processo representativo. A democratizao do poder estatal e o poder unicador das idias e movimentos polticos levados a cabo pela representao foram interconectados e mutuamente reforadores 1 . A anlise de Kishlansky sugere que abordemos as eleies e a representao em termos da relao entre o Estado O que torna a representao democrtica?

Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 196 (o governo) e a sociedade civil. Embora a estrutura eleitoral da representao no tenha mudado muito em dois sculos a despeito da extenso do sufrgio, os tericos no deveriam fazer vista grossa s mudanas cruciais que a transformao democrtica engendrou no funcionamento e signicado das instituies representativas 2 . A emergncia do povo (os cidados) como um agente poltico ativo no se limitou a meramente renovar instituies e categorias antigas. No momento em que as eleies se tornaram um requerimento solene e indispensvel de legitimidade poltica e formao de magistraturas, Estado e sociedade no puderam mais ser desligados e o traado das fronteiras separando e conectando suas esferas de ao tornou-se uma questo persistente de reajuste e negociao. A representao espelha esta tenso. Pode-se dizer que ela reete no simplesmente idias e opinies, mas idias e opinies a respeito das vises dos cidados acerca da relao entre a sociedade e o Estado. Qualquer reivindicao que os cidados tragam para a arena poltica e queiram tornar um tema de representao invariavelmente um reexo da luta para a redenio das fronteiras entre as suas condies sociais e a legislao. Trs teorias da representao Trs teorias da representao emergem quando olhamos como o governo representativo funcionou ao longo de seus duzentos anos de histria, do parlamentarismo liberal dos primrdios at sua crise e, nalmente, sua transformao

democrtica, aps a Segunda Guerra Mundial. Podemos 2. Para uma anlise em estudo de caso das mudanas estruturais ocorridas ao longo da democratizao do sistema eleitoral (extenso do direito de voto e voto secreto) veja-se Robert A. Dahl (s.d.: 1-50). Sobre a estrutura inalterada do governo representativo a partir de sua instaurao constitucional no sculo dezoito: Bernard Manin (1997: 3).Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 197 dizer que a representao tem sido interpretada alternativamente de acordo com trs perspectivas: jurdica, institucional e poltica. Elas pressupem concepes especcas de soberania e poltica e, conseqentemente, relaes entre Estado e sociedade especcas. Todas elas podem tambm ser usadas para se denir democracia (respectivamente, direta, eleitoral e representativa). Contudo, apenas a ltima faz da representao uma instituio consonante com uma sociedade democrtica e pluralista 3 . As teorias jurdica e institucional esto interconectadas bem de perto. Elas so ambas baseadas em uma analogia entre Estado e Pessoa e em uma concepo voluntarista de soberania, e so expressas em uma linguagem formalista. A teoria jurdica a mais antiga e requer mais ateno, pois cunhou o modelo para a institucional, a qual foi seu rebento. Ela pr-datou a concepo moderna de soberania estatal e a nomeao eleitoral de legisladores. denominada jurdica porque trata a representao como um contrato privado de comisso (concesso de autorizao para realizar uma ao por pessoa ou pessoas que

devem ser elas mesmas detentoras do direito de realizar essa dada ao 4 ). Delegao (instrues vinculativas) e alienao (incumbncia ilimitada) tm sido tradicionalmente os dois plos extremos desse modelo, a primeira simbolizada por Rousseau e a ltima por Hobbes, e alm dele, Sieys e Burke (embora o primeiro no tenha teorizado um protetorado representativo e o ltimo no tenha assentado a representao sobre uma base contra3. Estas trs concepes so identicveis nos escritos dos autores que optei por analisar neste trabalho, marcadamente Rousseau, Sieyes e Condorcet. 4. Quentin Skinner (2002, vol. 3: 185). A teoria jurdica era consistente com a funo consultiva dos delegados no parlamento pr-eleitoral e tornou-se relevante em funes administrativas modernas (por exemplo, em comunidades locais e em corporaes); M. V. Clarke (1964: 283-288). O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 198 tual) 5 . O modelo jurdico congura a relao entre representado e representante conforme as linhas de uma lgica individualista e no-poltica, na medida em que supe que os eleitores julgam as qualidades pessoais dos candidatos, ao invs de suas idias polticas e projetos. Desta forma, a representao no e no pode ser um processo, nem pode ser uma matria poltica (que implique, por exemplo, uma

demanda por representatividade ou representao justa), de incio pela simples razo de que, nas palavras de Pitkin, a representao por denio qualquer coisa feita aps o tipo correto de autorizao e dentro de seus limites 6 . Como Anthony Downs candidamente reconheceu, ao comentar os efeitos da aplicao do modelo privado de representao que ele endossava democracia, no h nada para os representantes representarem 7 . A teoria jurdica da representao rene as matrias do poder estatal e da legitimidade dentro da lgica do par presena/ausncia (do soberano) e descola a representao da defesa e da representatividade, as duas manifestaes polticas -- conforme logo explicarei que provm de sua 5. Muito embora o modelo moderno de autorizao teve Hobbes como seu primeiro terico, seria incorreto classicar a concepo de Hobbes como a de um governo representativo, pois, uma vez autorizado, o seu soberano pode agir como quiser. Uma vez que Hobbes no prev eleies aps o ato primeiro de autorizao, a obrigao do soberano de agir com vistas ao bem comum dos sditos ca inteiramente sua discricionariedade. Pode-se objetar que o interesse o interesse do governante em preservar seu poder pode, no obstante, atuar como uma fora normativa de responsabilidade e ir ao encontro dos interesses da sociedade por paz e estabilidade. Esta no , contudo, uma relao de representao poltica, que exige direta submisso a eleies peridicas e regulares, pois esta no se

apia sobre o juzo discricionrio do governante. 6. Pitkin sustenta que essa teoria faz a representao parecer uma caixa preta, algo que ela mesma no consegue compreender nem denir. No pode haver algo como representar bem ou mal... No existem coisas como a atividade de representao ou os deveres de um representante (1967: 39). John Locke no exceo, pois, ainda que os dois contratos que teorizou permitiam ao indivduo reter seu poder bsico de julgamento, as eleies (o segundo contrato), contudo, so nica e essencialmente um meio para a criao de instituies e no representao do povo. 7. Anthony Downs (1957: 89).Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 199 8. A origem da idia de representao foi a Bula Papal Unam Sanctam, do Papa Bonifcio VIII (1302). O corpus mysticum Christi era a Igreja unida espiritualmente por Cristo atravs de seu vigrio, o Papa, que comandava a Igreja visvel dos is; Ernst Kantorowicz (1957: 167-179). A respeito da secularizao da unidade mstica na unidade do Estado sob a pessoa do Lder (fhrer), sustentada por Schmitt, ver Ellen Kennedy (2004: 64-81). relao inevitvel com a sociedade e a atividade poltica dos cidados. Com Hobbes, seu primeiro intrprete moderno, esta abordagem evoluiu para uma tecnologia de formatao de instituies que se tornou enormemente inuente tanto para os tericos do governo representativo (Sieys, certamente) quanto para seus crticos. Durante a crise do parlamentarismo, por exemplo, no comeo do sculo vinte, Carl Schmitt recuperou a funo construtivista da representao concebida por Hobbes e Sieys e a usou para tornar o ausente presente ou reconstruir a unidade orgnica do Volk acima do

(e contrria ao) pluralismo dos interesses sociais, atravs da personicao do soberano (no lder ou fhrer). Seu objetivo era um Estado unicado mais fortemente do que era possvel por meio do compromisso parlamentar entre interesses ou do governo por discusso 8 . Em seu radicalismo, o caso de Schmitt um exemplo til da incompatibilidade entre a representao como uma tcnica de unidade (mstica) da comunidade e a representao poltica. A teoria jurdica da representao abriu as portas para uma justicao funcionalista da representao e dos direitos polticos, da cidadania e dos processos de tomada de deciso. Sua fundamentao tornou-se a coluna vertebral do governo representativo liberal e, mais tarde, da democracia eleitoral. Ela baseada em um dualismo bem denido entre Estado e sociedade; faz da representao uma instituio centrada rigorosamente no Estado, cuja relao com a sociedade deixada ao juzo do representante (tutor); e restringe a participao popular a um mnimo procedimental (eleies como a nomeao de magistrados).O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 200 9. Marcel De la Bigne de Villeneuve (1929-1931, vol. 2: 32). Em resumo, a perspectiva centrada no Estado, sugerida pela teoria jurdica, pregura dois cenrios possveis. De um lado, como argumentava Rousseau, a representao no tem lugar no discurso de legitimao poltica pela razo bvia de que signica transferir o poder de autorizao

do uso da fora (o poder soberano) da comunidade como um todo para sua(s) parte(s). De outro, como argumentou Sieys, a representao pode ser uma estratgia de edicao de instituies na condio de que seja dada aos sditos apenas a tarefa de selecionar os legisladores. Tambm neste caso a soberania essencialmente voluntarista e sua vontade restrita vontade eleitoral, com o resultado (e o propsito consciente) de que a nao soberana fala apenas atravs da voz dos eleitos. Nesta conta, a soberania parlamentar pode ser vista, paradoxalmente, como uma transmutao eleitoral da doutrina da vontade geral de Rousseau, uma vez que, transferida para a Nao representada, aquela vontade se torna uma estratgia para se bloquear o caminho para a democracia 9 . Tanto a teoria jurdica como a teoria institucional da representao assumem que o Estado (e a representao como seu mecanismo produtivo e reprodutivo) deve transcender a sociedade de modo que se assegure o Estado de Direito, e que as pessoas devem encobrir suas identidades sociais e concretas para tornar os mandatrios agentes imparciais de deciso. Elas supem que a identidade jurdica do eleitor/autorizador vazia, abstrata e annima, sua funo consistindo em nomear polticos prossionais que tomem decises s quais os eleitores se submetem voluntariamente. Assim, o que encontramos no sistema denominado representativo que ele no um sistema de representao do povo e da vontade da nao, mas um sistema de Nadia Urbinati

Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 201 organizao do povo e da vontade da nao 10 . A suposio subjacente separao entre o homem e o cidado, a qual Karl Marx famosamente condenou por sua hipocrisia asinina, era a de que a esfera poltica deve ser independente da esfera social (e em particular dos interesses econmicos e das crenas religiosas) para que sejam obtidas a igualdade legal e a organizao impessoal do Estado. Esta a premissa axiolgica comum a ambas as teorias da representao e a conseqncia lgica de sua abordagem construtivista da soberania 11 . Elas emergiram e foram moldadas antes da transformao democrtica da sociedade e do Estado e permaneceram essencialmente impermeveis a ela. Representao poltica A terceira teoria rompe com estes dois modelos. Ela cria uma categoria inteiramente nova na medida em que concebe a representao dinamicamente, ao invs de estaticamente: a representao no tem que fazer uma entidade preexistente p. ex. a unidade do Estado ou do povo ou da nao visvel; diferentemente, ela uma forma de existncia poltica criada pelos prprios atores (o eleitorado e o representante). Esta teoria faz jus especicidade da representao poltica em relao a todas as outras formas

de mandato e em particular ao esquema privado de autorizao. A representao no pertence apenas aos agentes ou instituies governamentais, mas designa uma forma de processo poltico que estruturada nos termos da circularidade entre as instituies e a sociedade, e no connada deliberao e deciso na assemblia. tarefa dos represen10. Raymond Carr de Malberg (1922, vol. 1: 231). 11. Neste caso, a representao perde todo o seu carter poltico e identicada com o ato de instituio da funo de um orgo; a separao entre o cargo e o agente ou a formao do Estado no sentido weberiano qualica esta concepo como uma teoria do funcionalismo.O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 202 12. Carl J. Friedrich (1963: 273); tambm Ernst-Wolfgang Bckenfrde (1991, caps. 6-7). 13. Pitkin, (1967: 209); Friedrich (1963, chap. 17). tantes populares, portanto, coordenar e criticar. A unidade necessria no se segue logicamente da unidade daquele que representa, como Hobbes sustentaria, mas deve ser criada e constantemente recriada atravs de um processo poltico de atividade dinmica 12 . Sua gradual consolidao durante o sculo vinte, com a adoo do sufrgio universal (embora uma formulao anterior possa ser encontrada na argumentao de John Stuart Mill pela representao proporcional), reete a transformao democrtica tanto

do Estado quanto da sociedade e o crescimento do mundo complexo da opinio pblica e da vida associativa, que do ao juzo poltico um peso que ele nunca antes teve. Esboada por Carl J. Friedrich em um captulo que uma obra-dearte de clareza, devemos sua reformulao de orientao mais democrtica a Hannah Pitkin: a representao aqui signica agir no interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles 13 . A teoria poltica da representao argumenta que, em um governo que deriva sua legitimidade de eleies livres e regulares, a ativao de uma corrente comunicativa entre a sociedade poltica e a civil essencial e constitutiva, no apenas inevitvel. Invertendo a mxima sustentada pelas duas teorias prvias, ela argumenta que a generalidade da lei e os critrios de imparcialidade derivados da cidadania nem deveriam nem necessitam ser realizados s custas da visibilidade poltica do homem (leia-se, a identidade social como distinta de e oposta identidade poltica). As mltiplas fontes de informao e as variadas formas de comunicao e inuncia que os cidados ativam atravs da mdia, movimentos sociais e partidos polticos do o tom da representao em uma sociedade democrtica, ao tornar Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 203 o social poltico. Vontade e juzo, a presena fsica imediata (o direito ao voto) e uma presena idealizada mediada (o

direito livre expresso e livre associao) esto inextricavelmente entrelaados em uma sociedade que ela mesma uma confutao viva do dualismo entre a poltica da presena e a poltica das idias, uma vez que toda presena um artefato do discurso. A representao poltica no elimina o centro de gravidade da sociedade democrtica (o povo), ao mesmo tempo em que despreza a idia de que os eleitores em vez dos cidados ocupem este centro, de que o ato de autorizao seja mais importante do que o processo de autorizao. Continuidade, ruptura e o poder negativo Quando o constitucionalismo liberal se estabeleceu como um projeto consciente de engenharia do Estado no sculo dezoito, os lderes e tericos polticos pensavam que o espao dual dos cidados e instituies representativas produzido pelas eleies era o sine qua non da legiferao imparcial e competente, porque protegia o arranjo deliberativo tanto das paixes tirnicas da maioria quanto dos interesses particulares das faces. Esta crena permeou os escritos de autores to diversos quanto Madison e Burke, que promoveram uma verso elitista da razo pblica de Rousseau, ao fazer dela a realizao de cidados selecionados e virtuosos. O problema, contudo, que, uma vez que os lderes e as instituies, ao invs de imparcialmente desvinculados das inuncias sociais, so vulnerveis a elas, este dualismo no funcionou e no funciona como pretendido. Somente se os representantes fossem imparciais, virtuosos e competentes motu proprio poderia o insulamento de suas vontades em relao aos cidados solucionar o problema da parcialidade e da corrupo. Se este fosse o caso, entretanto, as eleies no teriam sentido. Todavia, a escolha da eleio como um mtodo de sele-

o prova duas coisas: primeiro, nem o povo nem o governo O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 204 podem contar com a sorte para obter bons legisladores; e, segundo, no existe algo como uma aristocracia naturalmente selecionada e autoreferencial. Ainda que as eleies sejam um mtodo de controle formalmente limitado porque post-factum e apenas indiretamente antecipatrio, elas comprovam o fato de que em uma democracia os representantes no devem e jamais podem ser insulados da sociedade. Falando historicamente, esta a razo pela qual as eleies se tornaram sinnimo de democracia e a exigncia de instituies representativas sinnimo da reivindicao popular por soberania. Fazendo uma reticao concepo minimalista de democracia, eu diria que a competio eleitoral tem duas virtudes de destaque, no uma: ao passo que ela ensina os cidados a se livrarem dos governos pacicamente, ela tambm os faz participar do jogo de tornar a si mesmos livres dos governos. por essa razo que o direito a voto faz mais do que somente evitar a guerra civil 14 . O direito a voto engendra uma vida poltica rica, que promove agendas polticas concorrentes e condiciona a vontade dos legisladores de uma forma constante, no apenas no dia da eleio. Ele encoraja o desenvolvimento amplo de formas extra-eleitorais de ao poltica, embora sem a garantia de que a inuncia poltica ser distribuda igualmente e se tornar autorizada. Alm do mais, ele

reala o paradoxo da viso instrumentalista da representao, a qual, por um lado, refere-se opinio do povo como a fonte de legitimidade e, por outro, sustenta que os representantes tomam decises boas e racionais conforme se protegem de uma opinio popular sempre manipulvel 15 . O paradoxo dessa abordagem no-poltica (j que guiada pela competncia) da poltica que, a despeito de ela se 14. Adam Przeworski (1999: 45). 15. Jrgen Habermas (1996: 485).Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 205 arrogar ser a marca registrada das liberdades civis e econmicas e do constitucionalismo, ela abre caminho para uma teoria das instituies que to insensvel representao quanto a teoria de Rousseau do governo direto. Ela supe que o representante deva ser surdo opinio pblica para tomar boas decises. No centro desse paradoxo est a viso formalista, geralmente no revelada, da participao dos cidados como veredicto eleitoral do soberano (autorizao aos magistrados) e uma viso estreita da deliberao democrtica como um processo que envolve exclusivamente os eleitos e refere-se a decises autorizadas. O resultado uma viso incompleta e distorcida do que so os representantes e de como eles devem agir 16

. A concluso previsvel a de que a eleio funciona para conferir poder a uma classe prossional que delibera acima das cabeas dos cidados, cuja nica funo aceitar ou recusar seus lderes e nunca molestlos enquanto eles tocam seus negcios, j que devem compreender que, uma vez que tenham elegido um indivduo, a atuao poltica problema deste, no deles 17 . Importantes esforos tm sido feitos para se estimular uma interpretao no-formalista. De fato, desde seus primrdios constitucionais, o governo representativo pertenceu a uma famlia complexa e plural cujo ramo democrtico no era propriedade exclusiva daqueles que advogavam por participao ao invs de representao. Como sustenta meu livro, os revolucionrios americanos e franceses do sculo dezoito usavam dois termos distintos para denotar suas iniciativas inovadoras: governo representativo e democracia representativa. Ainda que ambos os termos tenham sido usados por vezes 16. Pitkin (1967: 54). Elster deniu o discurso aos eleitores de Bristol, de Burke, como a mais famosa exposio de razes para a democracia deliberativa, embora Burke estivesse propondo democracia para os poucos, ou traando um modelo de aristocracia deliberativa ao invs de democracia deliberativa(cf Elster, 1998: 3). 17. Joseph A. Schumpeter (1962: 295). O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 206 como sinnimos, os lderes polticos mais perspicazes estavam conscientes das diferenas. Por exemplo, Sieys nunca

usou o ltimo, mas Condorcet o fez, julgando que o cidado soberano devesse ter os direitos e os meios legais para ser ativo quando quer que ele/ela o achasse til ou necessrio. Designar representantes no era o nico meio de se participar ou a nica funo relacionada ao droit de cit. Retomando a intuio de Condorcet, eu argumento que a especicidade e a singularidade da democracia moderna esto necessariamente baseadas, ainda que a isso no se limitem, no lanamento das pedras de papel por intermdio do voto 18 . Elas residem na circularidade que as eleies criam entre o Estado e a sociedade e no continuum do processo de tomada de decises que liga os cidados assemblia legislativa. Esta tambm a fundamentao da teoria discursiva da soberania popular, uma importante contribuio interpretao democrtica da representao. A teoria do discurso, contudo, fornece apenas um retrato parcial do processo poltico de representao, pois, ao passo que enfatiza a comunicao (circularidade) como a fora socialmente integradora que unica os momentos parlamentar e extraparlamentar, ela no presta suciente ateno aos momentos de ruptura daquela comunicao, momentos de circuito que trazem baila, revelia, a contribuio da representatividade legitimao democrtica da representao 19 .

Em um estilo hegeliano, o modelo de mediao de Jrgen Habermas explica bem melhor a relao orgnica entre o Estado e a sociedade do que a crise dessa relao, quando a continuidade entre os representantes e os cidados interrompida e os ltimos cam propensos a gerar formas 18. Empresto a expresso de Engels, atravs de Przeworski Minimalist conception of democracy (1998: 49). 19. Habermas (1996: 299).Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 207 extraparlamentares de auto-representao; quando formas de espontaneidade poltica (novos movimentos) penetram a cena poltica e enriquecem a pluralidade de vozes. O fenmeno que requer nossa ateno encontra-se entre o estado de normalidade orgnica e o evento extremo de uma ruptura radical e violenta da ordem legal, quando, atravs de sua presena ativa e criativa, os cidados desvendam e denunciam a distncia poltica entre a nao real e a legal, mas no reivindicam o poder de tomar as decises. Em um ensaio notvel de 1789 sobre tipos de despotismo, Condorcet classicava a espcie de regulamentao arbitrria, passvel de originar-se em um governo no qual a legislao resulta do consenso dos cidados em serem representados, como despotismo indireto. O despotismo indireto ocorre quando as pessoas no so mais verdadeiramente representadas ou quando ele [o corpo legislativo] se torna muito desigual para elas 20

. Isso traz tona os temas do mandato poltico e do vnculo de anidade entre os eleitos e os cidados eleitores, dois componentes essenciais da representao poltica que no podem ser explicados dentro do contexto da poltica como vontade (e da democracia eleitoral), mas dependem muito do papel do juzo na deliberao poltica dentro e fora do rgo legislativo. No livro, analiso em detalhe os dois componentes da representao democrtica, defesa e representatividade. Aqui, preciso 20. Marie-Jean Antoine Nicolas Caritat, marqus de Condorcet (1968, 9: 151-152) (grifos meus); uma idia similar foi prenunciada por Locke, que descreveu como usurpao as situaes nas quais legisladores eleitos traam seu mandato e o soberano alterava arbitrariamente a prxis eleitoral, sem convocar novas eleies de modo a recompor o parlamento em acordo com o consentimento popular (Locke, The Second Treatise of Government, 222, 216). A idia de que a democracia caracterizada pelo carter continuamente responsivo do governo s preferncias de seus cidados muito difundida entre os tericos contemporneos da democracia; Robert A. Dahl (1971: 1) (grifos meus); contudo, na cincia poltica contempornea, a governabilidade (estabilidade do executivo) triunfa sobre a antecipao pelas eleies, de modo que o carter continuamente responsivo signica, essencialmente, eleies regulares.O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 208 simplesmente apontar para o fato de que a nova forma de arbitrariedade que o governo representativo est pronto a engendrar no tirnica no sentido tradicional, pois ela no toma a forma de uma violao das regras constitucionais e normas legais. Essa a razo pela qual o despotismo indireto no justica formas violentas de rompimento com a ordem legal, ou meios excepcionais.

Ele justica, entretanto, formas de prtica poltica que sinalizem a necessidade de se superar a diviso interna cidadania simbolicamente unicada. A linguagem do discurso poltico, como a do discurso moral, deve ser sucientemente estvel para que o que um homem diga realmente consista na tomada de uma posio, realmente diga-nos algo a seu respeito; continuidade para alm do perodo eleitoral a norma que esperamos que os representantes sigam, de forma que possamos reconhec-los, por assim dizer, ou julg-los sempre, no somente ao nal de seus mandatos eleitorais. Uma vez que, ao aceitarem suas candidaturas, eles aceitaram submeter suas idias e aes a nosso juzo, no cabe a eles sozinhos avaliarem a signicncia das posies que escolheram livre e responsavelmente tomar; no cabe [a eles] sozinhos decidir se a reivindicao inicial [por eles] introduzida foi [por eles] adequadamente apoiada e elaborada 21 . Uma teoria democrtica da representao deve ser capaz de explicar os eventos de continuidade bem como as crises e, alm disso, envolver a idia de que o povo soberano conserva um poder negativo que lhe permite investigar, julgar, inuenciar e reprovar seus legisladores. Esse poder negativo por duas importantes razes: sua nalidade deter, refrear ou mudar um dado curso de ao tomado pelos representantes eleitos; e ele pode ser expresso tan21. Hanna Fenichel Pitkin (1885: 236) (grifos meus).Nadia Urbinati

Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 209 to por canais diretos de participao autorizada (eleies antecipadas, referendo, e ainda o recall*, se sensatamente regulado, de modo que no seja imediato e, acima de tudo, rejeite o mandato imperativo ou instrues) quanto por meio dos tipos indiretos ou informais de participao inuente (frum e movimentos sociais, associaes civis, mdia, manifestaes) 22 . Esse poder popular negativo no nem independente da nem antittico representao poltica. Alm do mais, ele um ingrediente essencial do desempenho democrtico da representao, porque entranhado no prprio carter face de Jano desta instituio, que tem uma face virada para o Estado e outra para a sociedade. A representatividade consiste, como veremos daqui a pouco, na norma em relao qual o poder negativo dos cidados pode ser descrito tanto como uma fora revigorante quanto como um indicador que, semelhana de um termmetro, sinaliza o status da fora integradora que liga os eleitos e a assemblia que sedia a sociedade. Como oposto simtrico comunicao enquanto fora socialmente integradora, o poder negativo dos cidados combina as normas de comunicao deliberativa (reciprocidade e publicidade) com a representatividade do representante. Em suma, a teoria democrtica precisa fazer retica-

es concepo minimalista assim como viso deliberativa habermasiana, de modo que se compreenda o mundo complexo da democracia representativa. Reticar a primeira, porque o foco na votao como resoluo temporria do conito poltico nos mostra a localizao da vontade auto* Cassao do mandato por voto popular [N.T.] 22. Conforme exposto no ltimo captulo do livro, Condorcet foi o primeiro autor a conceber mecanismos institucionais para se reparar a interrupo da atuao responsiva, tais como o recall (sob certas circunstncias e condies), eleies antecipadas e referendos; estes procedimentos destinavam-se a institucionalizar o poder negativo dos cidados (o direito reprovao) ou o direito de intervir quando quer que houvesse uma crise de representatividade.O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 210 rizada a legislar, mas no nos fornece um retrato completo do jogo democrtico que pe aquela vontade em movimento e a forma. Reticar a ltima, porque o foco na fora integradora da comunicao joga luz insuciente sobre a refrega poltica, que a representatividade da representao traz tona, uma caracterstica que sempre uma questo de grau e utuao, e uma construo ideolgica que est sempre aberta reviso e reavaliao. A presena por meio do discurso e das idias Uma populao de eleitores no capaz por si mesma de iniciativa, mas, no mximo, de consentimento; todavia, uma democracia representativa no uma massa de eleitores inorgnicos e seus cidados so capazes de tomar iniciativas diretas e indiretas

23 . A representao poltica invalida a opinio de que a sociedade a soma de indivduos dissociados que competem e se unem, votam e agregam preferncias por atos discretos de livre escolha e clculo instrumental. Ela se contrape a uma concepo da democracia como uma multido numrica de unidades singulares ou associadas foradas a delegar seu poder pela simples razo de que uma multido no pode ter uma vontade, no pode exercer nenhum poder ou ser um governo. Uma poltica representacional concebe a sociedade democrtica como uma malha intrincada de signicados e interpretaes das crenas e opinies dos cidados a respeito de quais so seus interesses; crenas que so especcas, diferenciadas e sujeitas variao ao longo da vida real das pessoas. A democracia nica porque extrai das diferenas a fora para a unio (as pessoas so capazes de se unir na diferena, sem se abstrarem de suas diferenas) 24 . 23. Augustine Cochin (1979: 80-81). 24. Charles Taylor (1998: 153).Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 211 Na poltica representativa, diferentemente da democracia direta, os eleitores no so meras quanticaes. Eles espelham a complexidade de opinies e de inuncia poltica, nenhuma das quais uma entidade computvel aritmeticamente. Quando traduzimos idias em votos, tendemos s vezes a nos esquecer dessa complexidade e assumir

que os votos reetem preferncias individuais, ao invs de representarem opinies. Muito da argumentao de que a agregao de votos no esgota a expresso da opinio familiar aos crticos da teoria da escolha social. Contudo, algumas observaes adicionais podem ser reunidas para se alterar a leitura da votao democrtica como uma participao que se presta a selecionar no polticas, mas tomadores de deciso. Contrariamente aos votos sobre questes isoladas (democracia direta), um voto em prol de um candidato reete a longue dure e efetividade de uma opinio poltica ou de uma constelao de opinies polticas; ele reete a atratividade de uma plataforma poltica, ou um conjunto de demandas e idias ao longo do tempo (a democracia representativa tem sido ento considerada um regime de tempo) 25 . O voto direto (ou, nas palavras de Condorcet, a democracia imediata) no cria um processo de opinies e no permite que elas se baseiem em uma continuidade histrica, pois faz de cada voto um evento absoluto e, da poltica, uma srie nica e discreta de decises (soberania pontuada). Mas quando a poltica programada de acordo com os termos eleitorais e as polticas incorporadas pelos candidatos, as opinies compem uma narrativa que vincula os eleitores atravs do tempo e do espao e faz das causas ideolgicas uma representao de toda a sociedade e de seus problemas. Isso explica 25. Pierre Rosanvallon(2000: 62, 49); para uma excelente anlise de dois modos de se interpretar o voto seja como transcrio de interesses ou de opinies polticas veja Jeremy Waldron (1990: 49-51). O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006

212 por que as opinies nunca tm peso igual, nem mesmo no caso hipottico de duas opinies diferentes recebendo o mesmo nmero de votos. Se o peso das opinies fosse igual, a dialtica das opinies e o prprio voto fariam pouco ou nenhum sentido. O voto uma tentativa de se dar peso s idias, no de torn-las idnticas quanto ao peso, ou com algum peso 26 . Pode-se, portanto, dizer que a democracia representativa revela o trabalho miraculoso das opinies e narrativas ideolgicas de uma forma que a democracia direta no capaz, pois ela nos compele a transcender o ato de votar, num esforo de se reavaliar repetidamente a correlao entre o peso das idias e o peso dos votos (na preservao, obteno ou aumento do consentimento). Na democracia direta, todo voto como um novo comeo (ou uma resoluo nal) porque corresponde simplesmente contagem de vontades ou preferncias, mas no nem pode ser representativo das idias; esperar pela prxima oportunidade no faz sentido, j que nela toda deciso absoluta, porque torna as opinies idnticas s vontades e carece de qualquer vnculo histrico com as cadeias de opinies e decises passadas e futuras. Esta a razo por que o voto direto em uma matria no uma alternativa guerra civil, mas, na realidade, aumenta o risco de guerra civil e por que, de outro lado, a poltica

representativa um fator de estabilidade. Em uma democracia representativa, a cadeia de opinies, interpretaes e idias que buscam visibilidade atravs da votao em um candidato ou partido consolida a ordem poltica a divergncia se torna um fator de estabilidade, um mecanismo de todo o processo poltico. Ela torna-se o liame que mantm unida uma sociedade que no possui centro visvel e que 26. Antonio Gramsci (1973: 1.625); mas veja tambm John Dewey (1969: 232-233); e Ronald Dworkin (2000: 207). Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 213 vem a se unicar por meio da ao e do discurso (experincias comuns de interpretao que os cidados compartilham, narram, resgatam e refazem incessantemente, na condio de partidrios-aliados). Como Paine compreendeu, as opinies e as crenas podem converter o poder em um processo poltico incessante ao qual a representao d efetividade, pois enaltece o mundo pblico das idias e a mediao do discurso, ambos os quais tornam nossos votos mais signicativos do que uma poro innitesimal da vontade geral. De modo bem ecaz, Claude Lefort salientou a natureza no-fundacional da democracia moderna (leia-se representativa), a qual em virtude do discurso...revela que o poder a ningum pertence; que aqueles que exercem o poder no tm domnio sobre ele; que eles, de fato, no o personicam; que o exerccio do poder requer uma contestao repetida e peridica; que a autoridade daqueles investidos de poder criada e recriada como resultado da

manifestao da vontade do povo 27 . A representao poltica ilumina e enfatiza a natureza qurula da democracia. Na Repblica, Plato descreveu (e criticou) a democracia no somente como um sistema de igualitarismo nivelador cego especicidade individual, no qual operam a seleo por sorteio e a alternncia de cargos ao invs da admisso dos competentes por alocao funcional. Na descrio de Plato, a democracia primeiramente, e acima de tudo, um sistema no qual todos os cidados discordam quanto ao controle do governo porque todos eles reivindicam voz ativa no trato e resoluo desse desacordo. Contudo, da mesma forma que a participao na eleio, a alternncia e o sorteio dissipam algumas discordncias, mas no silenciam a disputa entre os cidados. Mas por que os cidados disputam entre si, se sabem de antemo que iro 27. Claude Lefort (1988: 225).O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 214 todos governar em algum momento ou tero outra chance de ter seus representantes eleitos e seu partido apoiado pela maioria? 28 Os tericos da democracia superestimam a escolha das pessoas e subestimam, por assim dizer, a escolha de polticas e idias que a escolha das pessoas indica ou representa 29

.O carter da competio democrtica , entretanto, moldado no apenas pelas regras do jogo, mas tambm pelos meios utilizados pelos cidados para expressar e resolver seus desacordos qual seja, o discurso independentemente de sua presena ser direta ou eleitoral 30 . No por acaso, escritores clssicos que descreviam a democracia ateniense realaram que todos os cidados possuam uma chance igual no apenas de competir pelo poder, mas tambm de propor leis e conquistar a maioria na ekklesia. A crtica de Pseudo-Xenofonte constituio de Atenas, em nome da competncia aristocrtica, o primeiro documento relevante a atacar a democracia por empregar o sorteio e a alternncia a todos os cidados indistintamente, no apenas aos melhores dentre eles ou aos de mesma estirpe. Um sistema de governo no qual os iguais so tratados igualmente no necessaria28. Plato (1983: 305). 29. Na Inglaterra pr-eleitoral, por exemplo, quando os postos parlamentares eram distribudos entre os nobres como um reconhecimento de honra, o sorteio -- no as eleies -- era utilizado para se designar os candidatos, porque consistia em um sistema neutro que no permitia o julgamento ou a discriminao entre os pares (Kishlansky, 1986: 36). 30. Esta a razo pela qual a concepo minimalista da democracia deciente. Ao passo que intelectualmente elegante, a idia de democracia hobbesiana (busca da paz) no pode ser verdadeiramente minimalista. Sua ambio ser apenas descritiva, de modo a ser to universalizvel quanto possvel. O problema que,

enquanto ele sustentar que mantm fatores no-minimalistas -- tais como deliberao e participao -- fora da denio e reduzir a democracia a um conjunto de normas regulando a expresso e soluo temporria das foras polticas conitantes, o minimalismo no pode manter-se el sem presumir, sub-repticiamente, a participao e a deliberao dos cidados, sem as quais tanto a existncia das foras polticas conitantes quanto a manifestao de seu conito seriam inconcebveis.Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 215 mente democrtico, ainda que seja certamente igualitrio. Isto , por exemplo, o que distingue Atenas de Esparta e a razo pela qual a primeira, em vez da ltima, era conhecida como uma democracia, embora ambas utilizassem o sorteio e a alternncia para selecionar magistrados, requeressem a presena direta dos cidados na assemblia e, nalmente, restringissem a cidadania a um consrcio relativamente pequeno de homens nativos adultos e livres. interessante notar que Rousseau (um admirador de Esparta) desdenhava, pelo mesmo motivo, tanto a democracia representativa quanto a direta, pois ambas, uma vez que empregavam o discurso como uma forma de ao poltica (ou de um modo indireto), tinham que se valer da competio para conquistar o consenso (fosse diretamente com relao s questes ou em relao a um candidato). Em sua mente, isso fazia da poltica democrtica um experimento permanente de opinies e formao de consenso, no qual a retrica e o juzo valorativo no a presena por si ou a vontade seriam essenciais. Ainda mais interessante o

caso de Hobbes, que no acreditava que as democracias eleitoral e direta fossem fundamentalmente diferentes e que apenas a primeira tivesse um carter aristocrtico. Hobbes compreendeu que a democracia sempre uma mistura de igualdade e aristocracia, de tal modo que ela consiste tanto no igual direito de voto como tambm no igual direito de fala; e o discurso o veculo para a distino individual, a pluralidade e a altercao que a eleio regula 31 . O partidarismo como uma representao ativa do geral A democracia um conito delimitado ou um conito sem assassinato: no consenso 32 . Todavia, para que este 31. Thomas Hobbes (1994: 120). Discuti este assunto em Representation as Advocacy: A Study of Democratic Deliberation, Political Theory 28 (2000): 758-786. 32. Przeworski (1998: 49). O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 216 seja o caso, os cidados devem consentir com certos valores ou princpios, e os vencedores e perdedores devem conar que seus adversrios iro abrir mo das armas independentemente do resultado das eleies. Seria, portanto, mais correto dizer que a democracia (na medida em que funcione e perdure) requer algum consenso bsico porque diz respeito divergncia e tambm ao raciocnio instrumental. No

importa o quo mnima a denio de democracia, o minimalismo parece vir ao nal de um processo mais ou menos bem sucedido, que as pessoas tenham elas mesmas encampado 33 . O raciocnio instrumental e estratgico sucientemente sosticado para consistir em uma racionalizao posterior de uma mais ou menos problemtica experincia (de tentativa e erro) de aprendizado pela prtica -- parafraseando-se uma mxima pragmatista 34 . No novidade dizer que, embora os procedimentos possam conter a desordem social, sua eccia amplamente dependente de fatores ticos ou culturais. Isso verdadeiro particularmente no caso da representao, pois o mandato que amarra o(a) representante sua consistncia essencialmente voluntrio; no legalmente vinculativo. A representao consiste em uma prxis poltica que no meramente a realizao arbitrria de escolhas, nem meramente o resultado da barganha entre ambies privadas, separadas 35 . O raciocnio instrumental e o compromisso ocorrem em um contexto de entendimento comum acerca da direo poltica que o pas deveria ou no tomar, com 33. O fato de que concordamos sobre como casos particulares devam ser decididos... mostra... que os membros da comunidade fazem valer um conjunto de critrios comum. Sem critrios, tcitos ou explcitos, nossos veredictos seriam no conjunto inconsistentes e em desacordo com os veredictos de outros membros da

comunidade... Logo, a possibilidade de se participar do jogo depende, em ltima instncia, do fato bruto de que concordamos (Elgin, 1999: 63). 34. Cf. John Dewey (1991: 175-184). 35. Pitkin (1967: 212). Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 217 a conscincia de que este no uma realidade que nos seja objetivamente dada de uma ou outra forma 36 . Nestas condies, tal raciocnio capaz de distinguir o inimigo total do partidrio poltico, a munio da eleio*, para parafrasear Malcom X. A maior parte do tempo, sistemas de crenas e mesmo valores estereotipados estruturam a barganha e o raciocnio estratgico, de forma que, ainda que os eleitores possam parecer ou honestamente tentar raciocinar estrategicamente, eles acabam votando contra ou a favor de constelaes de idias e crenas quando votam em um candidato individual 37 . John Rawls descreveu a profundidade e a amplitude de um consenso sobreposto o que Hegel chamaria de thos constitucional nos seguintes termos: depois que um consenso constitucional est em vigor, os grupos polticos so forados a participar do frum pblico de discusso poltica e dirigir-se a outros grupos que no

compartilham sua doutrina abrangente. Esse fato torna racional para eles se afastar do crculo mais restrito de suas prprias vises e desenvolver concepes polticas em cujos termos possam explicar e justicar suas polticas preferidas a um pblico mais amplo, de modo a reunir uma maioria sua volta 38 . 36. Frank R. Ankersmit (1997: 47). Contudo, Ankersmit termina dizendo que o que torna a representao superior democracia direta o fato de que, uma vez que inexiste uma proposta para a ao poltica da parte das pessoas representadas, seria equivocado esperar que as pessoas pudessem fazer propostas; precisamos da representao para que sejamos capazes de denir estas propostas mesmas. Minha viso da representao como um processo de circularidade e circuito (entre as instituies e a sociedade) ambiciona no ser um neo-elitismo. * No original: the bullet and the ballot *NT.+. 37. A respeito da relevncia do sistema de crenas na formao das preferncias dos eleitores e do partido como um plo de identicao, ao invs de uma simples mquina eleitoral, ver Adam Przeworski (1998: 143-144). 38. John Rawls (excerto retirado da edio brasileira, 2000: 212 [N.T.]).O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 218 Os partidos polticos articulam o interesse universal a partir de pontos de vista perifricos. Eles so associaes parciais-contudo-comunais e pontos essenciais de referncia que possibilitam aos cidados e representantes se reconhecerem uns aos outros (e aos demais) e formarem alianas

e, alm disso, situarem ideologicamente os compromissos que esto prontos a estabelecer 39 . Mas, de fato, uma das caractersticas mais importantes do governo representativo sua capacidade para a resoluo das demandas conitantes das partes, com base em seu interesse comum no bemestar do todo 40 . A dialtica entre as partes e o todo explica a funo complexa do arranjo legislativo em um governo representativo, como um rgo mediador entre o Estado e a sociedade 41 . A representao a instituio que possibilita sociedade civil (em todos os seus componentes) identicar-se politicamente e inuenciar a direo poltica do pas. Sua natureza ambivalente social e poltica, particular e geral determina sua ligao inevitvel com a participao. A representao poltica transforma e expande a poltica na medida em que no apenas permite que o social seja traduzido no poltico; ela tambm promove a formao de grupos e identidades polticas. Acima de tudo, ela 39. Z. A. Pelczynski(1964: 91). 40. Pitkin, 1967: 217. Friedrich sugeriu que enfatizar o vnculo da representao com a sociedade ao mesmo tempo em que se separem as atividades polticas informais dos cidados da autorizao eleitoral implica em inuncia ao invs de participao: Falamos advertidamente de inuncia em vez de participao ou

controle, j que a maior parte dos cidados no est propensa a participar na ou efetivamente controlar a ao governamental atravs da representao poltica; Carl J. Friedrich(1968: 278). 41. Esta concepo foi pregurada em sua totalidade por Burke e Hegel, que usaram quase as mesmas palavras para descrever a funo mediadora das instituies representativas, embora o ltimo tenha enxergado melhor do que o primeiro o papel dos partidos polticos no governo constitucional e destacado a distino crucial entre faces e partidos; veja-se, respectivamente, Burke, Speech on Economical Reform (1999: 160), e Hegel, The English Reform Bill (1964: 295-330).Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 219 modica a identidade do social, uma vez que, no momento em que as divises sociais se tornam polticas ou adotam uma linguagem poltica, elas adquirem uma identidade na arena pblica de opinies e tornam-se mais inclusivas ou representativas de um espectro mais largo de interesses e opinies. Isso necessrio para que elas conquistem uma maioridade numrica. Todavia, a estratgia apenas uma explicao parcial. prprio ao processo poltico de representao ltrar e dar conta da parcialidade irredutvel das identidades sociais e culturais, tornando-as matrias de alianas e programas polticos. Isso faz dele precisamente o oposto da representao corporativista, advogada por tericos da participao de grupo, e da democracia do gerenciamento pluralista 42 . A pressuposio implcita de

um modelo de democracia na forma de pequenas unidades descentralizadas (individuais ou coletivas) buscando representao direta na arena poltica a idia de que a co-presena dos sujeitos em proximidade deve puricar a poltica da manipulao ideolgica levada a cabo pelos partidos. O resultado, entretanto, que, ao se passar por cima do mundo mediado da voz e do gesto, do espaamento e da temporalidade, a poltica afastada ao invs de puricada 43 . Mas o partido poltico traduz as vrias instncias e particularidades em uma linguagem que geral e tenciona representar o geral. Nenhum partido diz representar apenas os interesses daqueles que a ele pertencem ou o apiam. O partidarismo uma manifestao ativa do geral em vez de 42. Duas tradies formam a raiz da mistura de democracia com representao corporativa: a teoria da democracia forte e a teoria do socialismo de guildas e da democracia pluralista. Para um panorama crtico destas duas tradies veja Frederick M. Barnard (2001). 43. Iris Marion Young (1990: 233). J desde James Madison, a idia de que grupos partidrios so constitutivos da democracia representativa tornou-se um tpos na teoria e na cincia polticas.O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 220 uma apropriao do geral por um particular; o oposto do

patrimonialismo. Por isso pde Hegel escrever que a representao traz o dissenso para a poltica porque, ao politizar a esfera social, ela traz a pluralidade e a diferena para dentro do pblico, e Weber pde acentuar que o aspecto poltico do voto reside na chance que tm os cidados de transcender seu ser social pelo seu prprio fazer, o que equivale a dizer que agem independentemente de sua identidade social e tornam-se eles mesmos representantes de sua comunidade poltica 44 . Pode ser til recapitular o diagnstico presciente de Tocqueville sobre as duas formas de associaes democrticas que os cidados tendem a criar: associaes civis, que renem (e dividem) os indivduos de acordo com seus interesses ou opinies especcos e, a maior parte do tempo, unidimensionais; e associaes partidrias, que renem (e dividem) os cidados ao longo das linhas de suas interpretaes avaliativas de problemas que so gerais, ou de igual importncia para todas as partes do pas. As primeiras produzem uma fragmentao ad innitum sobre questes de detalhe que raramente conseguem ser de alcance geral, uma vez que a vida das associaes civis depende do relativo fechamento de seus limites. As ltimas interrompem a fragmentao, no, contudo, pela imposio de uma homogeneidade ou ocultao da diferena (que coloque a sociedade inteira na imagem de um partido), mas pela criao de novas formas de diferena entre os cidados. O partidarismo poltico tanto congrega as pessoas quanto as separa 44. George Wilhelm Friedrich Hegel (1967, 303); Max Weber (1994: 57-59).

Da Franco ter escrito que Hegel exibe uma ambivalncia similar a Burke no tocante representao, certas vezes argumentando que o dever do representante defender [...] o interesse nacional, em outras sustentando que preservar os verdadeiros interesses de seu eleitorado em oposio s suas opinies efmeras (Franco, 1990: 327). Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 221 com relao a questes que so gerais em suas riqueza e implicaes 45 . A funo dos partidos vai muito alm daquela instrumental, de provimento de organizao e recursos para a alternncia dos quadros polticos e a resoluo pacca dos pleitos por sucesso. Sua funo acima de tudo aquela de integrao da multido, unicando as idias e interesses da populao e tornando o soberano permanentemente presente como um agente de inuncia e superviso extra-estatais 46 . Est alm do escopo deste artigo analisar o papel da forma partidria de participao na democracia moderna, sua transformao de uma organizao de notveis, passando por uma instituio de massas e totalizadora, unicada por um credo poltico de tipo religioso, at um maquinrio eleitoral que conta com a mdia, os analistas polticos e o dinheiro privado 47 . O questionamento crtico dos problemas que a liderana de grupo coloca para a democracia e a discusso

do argumento weberiano de que a poltica representativa enseja a proletarizao da massa por uma elite organizada e organizacional requereria um tipo de pesquisa bastante diverso. suciente notar aqui que a declarao da crise da ideologia e a decorrente virada cognitivista que a teoria do 45. Alexis de Tocqueville (1969: 174-175). Antecipando a distino de Max Weber entre o partido ideolgico e o partido de funcionamento eleitoral, Tocqueville distinguiu os grandes partidos polticos dos partidos pequenos e sugeriu que, enquanto os ltimos agregam interesses sem credo poltico, os primeiros unem os cidados por meio de princpios e interpretaes acerca do destino geral do pas. Tocqueville no sustentou que os interesses privados operem apenas em partidos pequenos, embora tenha notado que em grandes partidos polticos os interesses escondem-se por baixo do vu do interesse pblico. Similar diviso de Tocqueville e uma antecipao da de Weber foi a distino de Hegel entre hommes dtat e hommes prncipes, a qual pregurava duas formas diferentes de partidos (Hegel, 1964: 325; Weber, 1994: 152-154). 46. Friedrich(1963: 509-523). 47. Para um panorama histrico e analtico dos partidos (em oposio s faces e democracia de massas como uma agregao atomista) na poltica moderna, veja Leon D. Epstein (1986, caps. 1-3).O que torna a representao democrtica? Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 222 discurso conferiu democracia so largamente responsveis pelo silncio e pela miopia da teoria poltica contempornea a respeito do lugar do partido e do partidarismo na poltica democrtica 48

. Todavia, a crise dos partidos ideolgicos como os da Guerra Fria mostrou que a fragmentao pr-eleitoral candidatos sem partidos pode ser a origem de espcies ainda mais endmicas de radicalismo ideolgico ao invs de sinal de uma participao mais democrtica e livre de preconceitos. Livres das antigas identicaes ideolgicas, os eleitores podem se achar capturados por e sob o extraordinrio poder de outros tipos de potentados, tais como tribos tnicas e comunidades religiosas, magnatas da mdia privada e liaes comunitrias que, em vez de auxiliarem na deliberao, no se misturam ou criam compromissos arraigados 49 . Mas a seleo de candidatos na condio de competidores isolados, sem um partido ou liao a um grupo poltico, no pode ser considerada um ideal de representao democrtica, na medida em que pode inclusive se tornar um afastamento dos princpios do governo representativo 50 . Na realidade, se a eleio fosse de fato uma seleo entre e de candidatos isolados entre e de nomes individuais ao invs de nomes de grupos polticos a representao iria 48. Sem dvida alguma, Habermas o principal autor da verso cognitivista da deliberao e da liberdade democrtica. Em uma crtica muito perspicaz a alguns de seus trabalhos, Quentin Skinner discutiu a forma como Habermas afasta-se das teorias clssicas da existncia social como uma fonte da ausncia de liberdade

individual (de Weber at Foucault), ao atribuir a responsabilidade por nossa perda de liberdade no primariamente a foras coercitivas externas, mas a ns mesmos, ou porque nos falta conhecimento ou porque somos detentores de uma racionalidade distorcida ideologicamente (Skinner, 1982). 49. Muitas das diculdades, recentemente atribudas ao sistema representativo, de levar em conta os pontos de vista dos innitos grupos com posicionamentos no-uniformes (Roberto Gargarella, 1998: 271) podem ser vistas como diculdades relacionadas ao declnio da presena associativa do partido dentro da sociedade. 50. Manin (1997: 220), que julga que esta seja uma mudana em vez de um afastamento ou uma nova forma de seleo de elites.Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 223 desaparecer, porque cada candidato(a) concorreria por si solitariamente e se tornaria, com efeito, um partidrio de seu prprio interesse. O arranjo legislativo seria uma agregao de vontades individuais, mais ou menos como a assemblia na democracia direta - incapaz de tomar decises por meio de um processo deliberativo estendido -- e, ao nal, no-representativo, j que apenas as idias e opinies (ou seja, o juzo em um sentido amplo) podem ser politicamente representveis, no os indivduos. Tambm por esta razo, a representao na esfera legislativa no corresponde simplesmente ao resultado das eleies. Melhor dito, ela o resultado das eleies na medida em que ocorram dentro de um contexto poltico que envolva programas e idias que sejam mais ou menos organizados e gerais, mas certamente capazes de atrair e unir os interesses e as idias dos cidados (quer dizer, os seus votos). Votar no Sr. Smith sempre implica votar

tambm no que o Sr. Smith diz e acredita, e assim, inevitavelmente, naquilo em que acreditamos e que defendemos 51 . 51. Norberto Bobbio (1996: 119-124); Kari Palonen (2004, n. o 3: 114). Portanto, no convincente que uma democracia ps-partidria ou democracia de auditrio seja um estgio mais libertador. A ascenso da mdia popular, no-partidria, tem uma conseqncia importante: quaisquer que sejam suas preferncias partidrias, os indivduos recebem a mesma informao do que todos os demais sobre um dado assunto. Os indivduos certamente ainda formam opinies divergentes sobre os assuntos polticos, mas a percepo do prprio assunto tende a ser independente da informao partidria do indivduo (Manin, 1997: 228-229). Contudo, a democracia de auditrio exibe uma imagem um tanto diferente: aquela de uma reestruturao e remodelamento da forma partidria de acordo com objetivos e critrios que so menos, no mais, democrticos. No pas que tornou o vdeo-populismo um poderoso desao, contrrio ao sistema partidrio tradicional -- a Itlia -- o Sr. Silvio Berlusconi foi capaz de conquistar uma maioria estvel apenas quando criou seu prprio partido, endossou uma identidade ideolgica forte e deu a seus eleitores a certeza de que eles pertenciam a um partido, no simplesmente a um comercial de televiso. Na superfcie, a democracia de auditrio parece sintetizar um sistema de representao que uido, aberto, caracterizado pela indeterminao e disputado por candidatos individuais em vez de membros partidrios homologados. Uma anlise mais detida, entretanto, revela que esse sistema menos hierrquico, rgido e homologado do que seu antecessor, com a notvel (e pejorativa) diferena de que neste caso o unicador a pessoa do lder diretamente e o poder subliminar da mdia indiretamente.O que torna a representao democrtica?

Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 224 A representao poltica atesta o fato de que, embora a democracia possa ser explicada em termos de regras do jogo, a participao dos cidados no um jogo neutro, mas uma forma concreta de se promover concepes e de se identicar com aqueles que as apiam ou fazem alegaes convincentes em sua defesa 52 . por isso que a representao problemtica quando analisada em relao democracia. Ela problemtica porque no pode nunca ser corroborada por e concebida nos termos de representantes que saibam efetivamente o que as pessoas desejam, e porque as expectativas das pessoas e as realizaes de seus representantes jamais iro corresponder com exatido 53 . Ao mesmo tempo em que desaa o cognitivismo, a representao democrtica depende de muito mais do que simplesmente procedimentos eleitorais. Ela requer robustas autonomia local e liberdade de expresso e associao, bem como certa igualdade bsica de condies materiais. Demanda tambm uma cultura tica de cidadania que possibilite que tanto os representados quanto os representantes vejam as relaes partidrias como no irredutivelmente antagonistas e sua defesa no como uma promoo incondicional de privilgios sectrios contra o bem-estar de todos.

, portanto, apropriado dizer que a compreenso da representao como uma instituio democrtica, ao invs de um recurso ou uma segunda alternativa, coincide com a reabilitao de uma dimenso ideolgica inevitvel da pol52. Da ter George Kateb (1983: 130-142)observado que enquanto o indivduo a unidade da obrigao legal, o(s) grupo(s) poltico(s) so as unidades que criam o consentimento em relao lei. 53. Isso torna a accountability [prestao de contas dos governantes sobre seus atos (N.T.)] (dos representantes para com os eleitores) uma demanda estruturalmente tica e poltica. Os tericos do minimalismo democrtico usam esse argumento para concluir que a nica instituio verdadeiramente democrtica a eleio, pois os votos so os mais conveis dados pblicos a nosso dispor e a votao o nico meio formal que tm os cidados para punir e ameaar seus governantes. (Przeworski, 1999: 34-35)Nadia Urbinati Lua Nova, So Paulo, 67: 191-228, 2006 225 tica. Isso porque a poltica, no contexto da representao, envolve um processo complexo de unicao-e-desunio dos cidados, que os projeta para uma perspectiva orientada para o futuro. A poltica mantm o soberano em moto perptuo, por assim dizer, ao passo em que transforma sua presena em uma manifestao de inuncia poltica complexa e delicada. Nadia Urbinati professora do Departamento de Cincia Poltica da Universidade de Columbia Bibliograa ANKERSMIT, Frank R. 1997. Aesthetic Politics: Political Philosophy beyond Fact

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