Teoria do Desenvolvimento: considerações sobre os ... · da dominação política e cultural,...

14
1 Teoria do Desenvolvimento: considerações sobre os Cepalinos e Breve Análise do Perfil de Inserção Externa Brasileira - A Existência de Caminhos Alternativos Autor: Volney Aparecido de Gouveia “Se fundássemos na razão nossas verdadeiras escolhas, não haveria escolha, tudo estaria predeterminado”. Celso Furtado Introdução O padrão de desenvolvimento entre nações segue trajetória distinta. Cada processo se configura como único na medida em que as experiências econômicas, sociais, políticas, culturais e históricas de cada país sobrepujam proposições de modelos de desenvolvimento único aplicáveis a todos os países indistintamente, sem a devida análise de suas idiossincrasias históricas. O Brasil, a partir dos anos 30, inicia um processo de industrialização que passa a transformar a dinâmica econômica do país e a colocar em evidência os seus problemas associados, notadamente o perfil da industrialização, caracterizada por restrições externas e mecanismos de concentração de renda. O presente artigo procura apresentar a abordagem teórica da Cepal e de alguns pioneiros (Singer, Kelechi, Prebisch e Furtado) sobre a teoria do desenvolvimento econômico e as nuances desse desenvolvimento no Brasil especificamente. Há um pano de fundo histórico sobre o qual os autores vão se apoiar para refutar os diagnósticos tradicionais que se baseiam na perspectiva da realidade dos próprios países ricos, e suas influências no pensamento mainstream brasileiro. Também são discutidos brevemente alguns dos aspectos do subdesenvolvimento na visão dos pioneiros e alguns elementos da tese-síntese de Prebisch sobre a dinâmica centro-periferia. Em seguida são feitas algumas considerações sobre a participação da indústria no PIB brasileiro no período 1962- 2016 de forma a identificar o perfil de sua evolução e traçar alguns paralelos com algumas concepções dos pioneiros. Por último é discutido o padrão de inserção externa do Brasil a partir de um quadro comparativo de exportações e importações. A ideia é identificar se o país avançou na diversificação de seus produtos comercializáveis ou se continua na “degradação secular” dos termos de troca, conforme proposto por Prebisch. Nesta mesma oportunidade são elencadas algumas alternativas de políticas de desenvolvimento que podem contribuir para a superação do quadro de restrições econômicas e sociais internas a partir das

Transcript of Teoria do Desenvolvimento: considerações sobre os ... · da dominação política e cultural,...

1

Teoria do Desenvolvimento: considerações sobre os Cepalinos e Breve Análise do Perfil de Inserção Externa Brasileira - A Existência de Caminhos Alternativos Autor: Volney Aparecido de Gouveia

“Se fundássemos na razão nossas verdadeiras escolhas, não haveria escolha, tudo estaria predeterminado”. Celso Furtado

Introdução

O padrão de desenvolvimento entre nações segue trajetória distinta. Cada

processo se configura como único na medida em que as experiências econômicas,

sociais, políticas, culturais e históricas de cada país sobrepujam proposições de

modelos de desenvolvimento único aplicáveis a todos os países indistintamente,

sem a devida análise de suas idiossincrasias históricas.

O Brasil, a partir dos anos 30, inicia um processo de industrialização que

passa a transformar a dinâmica econômica do país e a colocar em evidência os seus

problemas associados, notadamente o perfil da industrialização, caracterizada por

restrições externas e mecanismos de concentração de renda.

O presente artigo procura apresentar a abordagem teórica da Cepal e de

alguns pioneiros (Singer, Kelechi, Prebisch e Furtado) sobre a teoria do

desenvolvimento econômico e as nuances desse desenvolvimento no Brasil

especificamente. Há um pano de fundo histórico sobre o qual os autores vão se

apoiar para refutar os diagnósticos tradicionais que se baseiam na perspectiva da

realidade dos próprios países ricos, e suas influências no pensamento mainstream

brasileiro. Também são discutidos brevemente alguns dos aspectos do

subdesenvolvimento na visão dos pioneiros e alguns elementos da tese-síntese de

Prebisch sobre a dinâmica centro-periferia. Em seguida são feitas algumas

considerações sobre a participação da indústria no PIB brasileiro no período 1962-

2016 de forma a identificar o perfil de sua evolução e traçar alguns paralelos com

algumas concepções dos pioneiros. Por último é discutido o padrão de inserção

externa do Brasil a partir de um quadro comparativo de exportações e importações.

A ideia é identificar se o país avançou na diversificação de seus produtos

comercializáveis ou se continua na “degradação secular” dos termos de troca,

conforme proposto por Prebisch. Nesta mesma oportunidade são elencadas

algumas alternativas de políticas de desenvolvimento que podem contribuir para a

superação do quadro de restrições econômicas e sociais internas a partir das

2

reflexões dos pioneiros, mais especificamente de Celso Furtado. Ao final são

apresentadas algumas considerações finais.

1. A Questão do Desenvolvimento para a CEPAL

Até meados do século XX não havia uma preocupação com uma “teoria do

desenvolvimento” porque não havia uma preocupação com o tema. A partir de

então, a análise econômica passaria então a compreender os processos de

elevação da produtividade social e suas formas de financiamento. Singer (1950), um

precursor da teoria do desenvolvimento, apontava que “desenvolvimento se faz em

casa”, ressaltando em sua obra a necessidade de intervenção governamental para

redirecionar a economia para um maior nível de emprego.

A taxa de crescimento da economia é resultado de um esforço de acumulação

e da eficácia no uso dos recursos produtivos. O acúmulo de capital depende da taxa

de poupança, que depende de decisões políticas. O trabalho seminal da CEPAL

sobre desenvolvimento, notadamente o da América Latina, surge em 1948 com a

publicação do trabalho “O desenvolvimento econômico da América Latina e Alguns

de Seus Problemas”, de Raúl Prebisch. Nele, conforme apontaria Furtado

posteriormente, estão as questões sobre a industrialização que buscavam

estabelecer os padrões objetivos e desafiadores para garantir a transformação

produtiva (financiamento e recursos para acumulação) e a obtenção de

equipamentos para garantir a oferta num tempo requerido para aumentar a própria

produção. Para Prebisch e Furtado, mudança de comportamento dos consumidores,

a partir do aumento da renda, ocasionaria alterações nos preços relativos e exigiria a

identificação de coeficientes de importação de cada setor da economia para se

estruturar a oferta global e evitar, assim, pressões inflacionárias por exemplo. Assim,

o ponto de partida para a acumulação estaria no comércio externo, que permitiria

aumentar a produtividade sem a necessidade de acumulação prévia. O aumento da

renda obtido poderia ser o ponto de partida do processo de acumulação. Mas o

aumento da renda não poderia se concentrar em poucas mãos, pois isto tiraria

dinamismo do desenvolvimento e aprofundaria as formas modernas de consumo das

classes mais ricas.

Neste sentido, a estratégia de atuação governamental no planejamento do

desenvolvimento deveria seguir as seguintes etapas, segundo Furtado: 1) realizar

3

um diagnóstico da situação econômica do país; 2) estudar as técnicas de

propagação e 3) organizar e planejar o desenvolvimento. Furtado (1989, p. 135)

1.1. Influência de Keynes e a Crítica à Ortodoxia

As interpretações acerca da realidade, apesar do reconhecimento de que ela

é dinâmica, sempre são concebidas estaticamente. Para Furtado (1989, p. 225), “o

conhecimento econômico é de natureza científica, mas o campo que ele explora é

delimitado por motivações ideológicas”. Furtado parece delimitar o campo de

discussões da teoria econômica tentando não enquadrá-la em modelos previamente

definidos, exatamente porque os resultados econômicos são resultados das diversas

inter-relações entre atores (firmas, consumidores, governos, entidades, etc). Neste

sentido, Furtado ressalta a importância dos elementos políticos nas decisões

econômicas. Diz ele: “A obra de economia que se extravia do terreno delineado

pelas preocupações políticas de sua época não é boa nem ruim, é simplesmente

irrelevante” Furtado (1989, p. 225). O que Furtado quer dizer é que não se pode

interpretar a realidade econômica a partir de premissas que não consideram a

própria dinâmica da sociedade, o que exige dos cientistas sociais uma compreensão

muito além daquela simplificada que retrata o pleno emprego como resultado da

interação entre oferta e demanda, como a preconizada pelo pensamento ortodoxo.

No âmbito no desenvolvimentismo e da nova interpretação centro-periferia,

Furtado ressaltava a confluência do pensamento econômico às ideias keynesianas,

e esta “devolvia a visão global dos processos econômicos” e se opunha ao

“espontaneísmo implícito do pensamento neoclássico”. Ao pensar o

desenvolvimento brasileiro, Furtado fugiu à ideia de oferta e demanda, que carregam

uma conotação de equilíbrio, e utilizou o conceito de oferta potencial (ideia implícita

da Lei de Say). O planejamento da industrialização poderia, assim, determinar a

oferta potencial a partir da análise das elasticidades-renda da demanda (o quanto

que aumenta a demanda quando ocorre uma variação da renda), pois o aumento do

emprego eleva a exigência de importações de artigos de consumo imediato e

duradouro e de matérias primas e de bens de capital, exigindo formas de atuação do

Estado na transformação da matriz produtiva e sua reorientação para um padrão de

menor dependência externa.

4

1.2. O Derrotismo Congênito

As proposições da CEPAL vão encontrar fortes reações nos meios

acadêmicos mainstream. Furtado, fazendo referência a um artigo do prof. Eugênio

Gudin Filho (Ministro do Governo Café Filho) intitulado “O Caso das Nações

Subdesenvolvidas”, já mostrava o tom derrotista e de subserviência intelectual às

alternativas de desenvolvimento proposta pelos cepalinos. Gudin apud Furtado

(1989, p. 157) dizia: “são compreensíveis a irritação e a impaciência dos países

pobres porque, por mais que se esforcem, não conseguem sair do atoleiro da

pobreza”. E complementava que não seria necessário políticas econômicas novas e

nem novos enfoques teóricos. Furtado ainda cita uma reunião na qual participava

com vários economistas americanos para tratar da temática “desenvolvimento”,

quando diz: “ao calor da lenha que queimava como era possível que aqueles jovens,

educados em universidades norte-americanas, tivessem um horizonte de

preocupações limitado. A maioria pensava em buscar trabalho nos Estados Unidos,

caso a CEPAL não perdurasse” Furtado (1989, p.55).

A cultura do país de não pensar seu próprio desenvolvimento chamou a

atenção até do economista americano Hirschman (1958), que criticaria o hábito dos

políticos e acadêmicos de países pobres em “importar” conselhos de política

econômica de países ricos, cujas teses vinham com ares de “validade universal”.

Numa outra conversa entre Furtado e o sociólogo mexicano José Medina

Echavarria, este fala sobre a França quando perguntado a respeito das discussões

de ideias sobre desenvolvimento: “o que importa lá [França] é que pensar vale, é

uma forma de agir; por aqui é simples ato gratuito” (Echavarria apud Furtado, 1989,

p.117).

As relações históricas entre centro e periferia produziram nos países

subdesenvolvidos a mentalidade de “verdade universal” sobre as coisas vinda dos

países ricos. A CEPAL se propôs a romper com isto, procurando explorar o real

significado do subdesenvolvimento.

2. O Subdesenvolvimento e sua Superação

O subdesenvolvimento é caracterizado pelo desperdício de mão de obra em

função da insuficiência de capital e dos baixos níveis de produtividade dos fatores

(Furtado, 1989). Para o autor, o desafio é compor uma oferta de bens de consumo

aderente às preferências da coletividade. A diferença essencial entre países

5

desenvolvidos e subdesenvolvidos, segundo o autor, está no fato de que os

problemas de acumulação dos países ricos se concentram na acumulação de

“novos conhecimento e sua aplicação”; ao passo que nos países pobres é um

problema de “assimilação da técnica prevalecente na época”, que é dada por

deficiência na utilização de fatores decorrente da escassez relativa de capital

(Furtado, 1989, p. 150).

Para Kalechi, o problema nos países subdesenvolvidos passa pela superação

da ampliação da capacidade produtiva e da renda nacional, pois não se trata apenas

de subutilização da capacidade instalada, mas sobretudo da sua insuficiência. O

mais importante é obter progressivo aumento da produtividade média, otimizando a

utilização do capital a partir das limitações proporcionadas pelo comércio externo,

pelo baixo nível de poupança, pelo ingresso de capitais e pelos padrões de consumo

da sociedade.

Já nos anos 80, a teoria do subdesenvolvimento, que ganha impulso neste

período no âmbito da CEPAL, sugere que os países subdesenvolvidos deveriam

completar a industrialização e corrigir suas disparidades regionais. Haveria um

desajuste estrutural no qual países pobres absorveriam técnicas simples de

produção, provocando desemprego e perpetuando a dependência, pois se antes a

dependência estava associada às desvantagens nos termos de troca, agora ela está

associada à dependência externa. Esta dependência associa-se ao padrão de

consumo emulado das camadas mais ricas da população1, que acaba por estimular

a concentração de recursos na produção de bens de luxo, cujos investimentos são

intensivos em capitais e “poupadores” de mão de obra. Estaria assim este padrão

produzindo tendências ao desequilíbrio por meio de crises do balanço de

pagamentos (importação de bens de luxo e remessa de lucros às matrizes

multinacionais) e inflação (baixa oferta de alimentos em razão dos desvios de

investimento para setores intensivos em capital).

A alternativa para reverter o quadro de dependência estaria então na

execução de reformas estruturais, modificando os padrões de consumo e dando

maior flexibilidade para a oferta de bens. Esta modificação implicaria na alteração

da dominação política e cultural, exigindo alterações das forças políticas internas.

1 Trata-se do chamado “consumo conspícuo”, já explorado por Thorstein Veblen em sua clássica obra

Teoria da Classe Ociosa, de 1899.

6

Prebisch (1963) destacava a importância da reforma agrária e da progressiva

distribuição da renda como formas de garantir a robustez do “sistema dependente de

desenvolvimento”.

O conjunto de proposições também seria defendido por Kalechi (1968), que

propunha a intervenção do governo planejando o volume e estrutura dos

investimentos, a realização de reformas institucionais (modificações na estrutura

fundiária) e a tributação das parcelas mais ricas da sociedade. Diz o autor: “quando

o investimento está aquém do nível necessário para manter a demanda efetiva, a

lacuna é coberta pelas despesas governamentais” (Kalechi, 1968, pag. 130). A

tributação adequada, segundo este autor, deveria ser de caráter progressivo, ainda

que nos países subdesenvolvidos este caminho fosse mais difícil, porque o nível de

sonegação seria grande.

De todo modo, todos estes autores reconheciam a importância da

industrialização, mas assinalavam os seus limites. Para levá-la adiante se requeriam

poupança e divisas, sem o que as pressões inflacionárias seriam prováveis.

2.1. A Dinâmica do Sistema centro-periferia

A realidade de dependência econômica da América Latina no pós-guerra,

aliada às necessidades de recuperação econômica dos países do Leste Europeu,

fez surgir nova interpretação sobre o padrão dependente dos países pobres. Como

apontou Prebisch, “a realidade está destruindo na América Latina aquele velho

sistema de divisão internacional do trabalho” (Prebisch apud Furtado, 1989, p. 60).

Prebisch (1948) desenvolve sua teoria central quando estabelece os termos

da dinâmica centro-periferia. A tese da “degradação secular” dos preços relativos,

defendida por Prebisch, Singer e outros, seria o ponto de partida de uma nova

interpretação. Tratava-se de conceito estrutural porque o surgimento do progresso

técnico impactou negativamente nos países pobres na medida em que havia

inadequação da tecnologia dos países ricos à dotação de recursos da periferia.2

Dado que o progresso tecnológico era irreversível, a alternativa seria absorvê-lo,

mas não de modo passivo. Adicionalmente, Furtado aponta os processos de

mudanças culturais, sugerindo que os países pobres sofrem influência dos padrões

2 Vale descrever a reação de Furtado à circunstância do acesso ao primeiro texto de Prebisch sobre o

desenvolvimento latino americano: “A linguagem agora era a de um manifesto que conclamava os países latino-americanos a engajar-se na industrialização“ (Furtado, 1989, p.60)

7

de consumo dos países ricos, o que altera o seu coeficiente de importação e os

mantém historicamente dependentes, exigindo esforços contínuos de produção e

exportação de produtos agrícolas para gerar divisas que serão utilizadas na

aquisição dos bens de consumo elaborados (Prebisch apud Furtado, 1989, p. 149).

Para superar o subdesenvolvimento, dever-se-ia estabelecer um

protecionismo transitório de tal forma que pudesse gerar um desenvolvimento

industrial e utilizar as exportações para financiar as importações. O capital externo

teria uma função de “ajuda transitória" (impulso) na promoção do desenvolvimento,

não devendo os países fechar suas economias por meio de políticas exclusivas de

substituição de importações3. Já Singer (1950), apontava que a especialização das

nações subdesenvolvidas em produtos primários não tinha efeitos positivos no

desenvolvimento, pois havia desvio dos países subdesenvolvidos das atividades

produtivas mais complexas, com tendência desfavorável aos exportadores de bens

primários.

Surge assim a doutrina da industrialização orientada para a substituição de

importações (PSI), baseada na ideia de que os padrões de consumo entre centro e

periferia são distintos e, portanto, tornava-se necessária uma ação dos países

subdesenvolvidos para produzir internamente o que antes era importado, devendo-

se utilizar do próprio comércio externo para o fomento à industrialização. Como

aponta Furtado (1989, p. 79):

“...a propagação do progresso técnico à periferia requer ação deliberada, pois a dinâmica do sistema é insuficiente para impulsioná-la. Se a absorção da sobra de mão de obra requer medidas protecionistas, a tendência ao desequilíbrio exige a aplicação de critérios seletivos de importação” Furtado (1989, p.79).

Ainda segundo Furtado, “a maior dificuldade para levar adiante uma política

de industrialização está na insuficiência de poupança interna e na excessiva

propensão a consumir dos grupos de altas rendas no Brasil” Furtado (1989, p.62).

Para se evitar desequilíbrios externos e internos, o desenvolvimento requeriria uma

política preventiva, qual seja a de promover modificações na composição das

importações. No entanto, as contradições do PSI promoveram a concentração de

renda, e a industrialização, per se, não foi capaz de superar a pobreza. Seria

3 Para Prebisch, os países pobres deveriam aproveitar o comércio exterior para extrair “os elementos

propulsores do desenvolvimento econômico” (Prebisch, 2000, pag. 73).

8

necessário requalificar a inserção externa do país. O problema estaria no fato de

que o aumento das importações crescia a um ritmo maior que a capacidade de

diversificação das exportações, o que produzia dificuldades de financiamento das

importações. O dilema associava-se ao fato de que o avanço do PSI produzia

maiores dificuldades na capacidade de importar.

2.2. A Estratégia Bem Sucedida da (des)Industrialização e o Brasil Recente

No ranking de maiores economias publicado pelo Banco Mundial, o Brasil já

ocupava, em 1960, a décima posição, uma classificação favorável. Tal fato devia-se

em parte ao êxito das políticas de industrialização adotadas pelo país desde os anos

30, quando o então presidente Getúlio Vargas decidiu trilhar o caminho da

industrialização para fazer frente ao ambiente hostil de fortes oscilações do mercado

internacional dos preços dos produtos primário-exportadores. O país, no contexto de

dependência agrícola, iniciava um processo de industrialização cujo objetivo era

reduzir a dependência de divisas estrangeiras para atender à demanda interna por

produtos importados. Pode-se dizer que houve uma tentativa de ao menos se

conhecer as especificidades do país e suas potencialidades. Por exemplo, no âmbito

da criação do Plano SALTE, lançado no governo Dutra em 1948, Furtado afirma

que:

“o diagnóstico era tradicional, mas justo: o país havia acumulado considerável atraso em investimentos de infraestrutura e algo devia ser feito de imediato para melhorar os padrões de alimentação e saúde, o que requereria concentrar investimentos na agricultura voltada para o mercado interno e em engenharia sanitária”. Furtado (1989, p.43)

Nos anos 50, o retorno de Getúlio Vargas ao poder e o projeto dos “50 anos

em 5” de Juscelino Kubitschek foram experiências que aprofundaram o processo de

industrialização do país. O empreendimento contou com a participação do capital

nacional, estatal e estrangeiro, sendo o setor automotivo aquele que mais recebeu

investimentos (38% do total) (Caputo & Melo, 2009). É neste período que se amplia

a presença do capital estrangeiro no país, aumentando o poder econômico e político

das multinacionais4. O gráfico 1 mostra a evolução da participação percentual da

4 A Instrução 113 da SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito), aprovado por Gudin no

Governo Café Filho, visava essencialmente estimular as importações de bens de capital para dar continuidade à industrialização do país sem, no entanto, promover desequilíbrios do balanço de pagamentos (falta de divisas).

9

indústria de transformação brasileira em relação ao PIB desde 1947. No período de

1952 a 1961, houve forte expansão da indústria, elevando-se em 5,5 pontos

percentuais no período de 10 anos.

Gráfico 1 : Evolução da Participação da Indústria de Transformação Brasileira no PIB (1947-2016)

Fonte: DEPECON-FIESP (2017)

Por outro lado, apesar do processo de industrialização ganhar novo impulso a

partir de 1964, chegando a indústria a representar 21,8% do PIB em 1985, tal

processo se deu basicamente por meio de endividamento externo e forte processo

de concentração de renda, desvirtuando-se das propostas originais da CEPAL, que

propunham o avanço da industrialização com a diminuição das disparidades

regionais e das desigualdades sociais. O próprio Furtado aponta que o período de

50 ao fim dos anos 70 a industrialização apoiou-se no processo de concentração de

renda (Furtado, 2004).

A partir de 1990, sob o domínio das ideias do Consenso de Washington, a

abertura comercial abrupta e não criteriosa das importações levou a um processo de

redução da participação da indústria e o resultado foi “a desarticulação do mercado

interno e do parque industrial, acuando alguns milhões de brasileiros a buscar

sobrevivência no trabalho informal”5.

Em sua última reflexão antes de seu falecimento, Furtado apontava os

equívocos políticos do país em aderir ao Consenso de Washington e criticava as

5 Furtado, C. Para Onde Caminhamos. Jornal do Brasil, 2004.

10

elevadas taxas de juros praticadas pelas autoridades monetárias a partir dos anos

2000 para justificar as baixas taxas de crescimento da economia. Sua critica

centrou-se na lógica de se remunerar o capital estrangeiro para atraí-lo e garantir o

financiamento do crescimento. Mas tal caminho implicava em aumentar

vigorosamente a dívida e agravar a concentração de renda.

2.3. Indicadores do Brasil e Perfil de Inserção Externa

Em 2016, segundo o Banco Mundial, o Brasil ocupava a nona posição de

maior economia do mundo. Em 1960, a posição do país era a décima. Ou seja, nos

últimos 56 anos o país avançou pouco no ranking, sugerindo que no decorrer deste

período o país manteve sua economia relativamente estagnada comparativamente

às 218 nações do mundo. Outro indicador, a renda per capita, também mostra que o

país piorou sua posição relativa, caindo da 59º posição em 1960 para a 76º posição

em 2016. No período de 1960 a 2016, o país ocupava a 61º posição em termos de

taxa percentual acumulada (216% no período), contra, por exemplo, 3.500% da

China.

Os dados acima sugerem duas interpretações possíveis: o copo está meio

cheio ou meio vazio. Numa perspectiva pessimista (copo meio vazio), a posição

relativa (renda per capita) e absoluta (PIB) do país frente a outras nações pouco

mudou nestes últimos 56 anos. Na perspectiva positiva (copo meio cheio), o país

tem mantido uma posição acima da intermediária considerando a comparação com

quase 218 nações. Ou seja, estamos no grupo de 30% dos países que tiveram as

maiores taxas de expansão da renda per capita do mundo.

A experiência de industrialização do Brasil, se não produziu a necessária

independência e a aproximação tecnológica com os países ricos, também não

aprofundou a condição de economia agrário-exportadora. Houve relativa

diversificação do parque produtivo e ampliação na participação do comércio externo.

A figura 1 apresenta um comparativo do perfil das exportações e importações

brasileiras em 1962 e 2016. As exportações aumentaram 147 vezes em termos de

valor exportado (US$ 200 divididos por US$ 1,36) e as importações aumentaram

102 vezes (US$ 145 divididos por US$ 1,42). Se na pauta exportadora houve uma

relativa diversificação dos produtos vendidos, na importação permaneceu o padrão

de compra de produtos de maior valor agregado. A experiência de industrialização

do país a partir dos anos 60 produziu efeitos de longo prazo, como a própria

11

diversificação do perfil das exportações e a ampliação do comércio de produtos

exportáveis. A manutenção do perfil das importações tem relação com o próprio

perfil das exportações: o aumento das exportações exigiu a incorporação de

insumos não produzidos pelo país, exigindo-se sua obtenção no mercado externo.

Figura 1 : Comparativo do Perfil das Exportações e Importações do Brasil (1962 e 2016)

Exportações (1962) – US$ 1,36 bi

Importações (1962) – US$ 1,42 bi

Exportações (2016) – US$ 200 bi

Importações (2016) – US$ 145 bi

Fonte: Atlas da Complexidade (2018) – Elaboração do autor

Ao resgatarmos a definição de subdesenvolvimento explorada pelos pioneiros,

qual seja a de uma economia dependente da exportação de bens primários e da

importação de produtos manufaturados, percebe-se que as desvantagens nos

termos de troca, segundo a interpretação de Prebisch, foram em parte superadas

pela diversificação do parque produtivo. A ação do Estado a partir dos anos 60, com

forte papel indutor focado na industrialização, se não modificou as condições

históricas da dependência, também não produziu um retrocesso que levasse o país

às formas coloniais de relação centro-periferia. Outro elemento que deve ser

considerado é que tal processo de industrialização foi catapultado pelo Estado à

custa da concentração fundiária, regional e de renda.

12

Os indicadores sociais continuam ruins e os problemas regionais, como o

inchaço urbano e a decorrente piora na qualidade de vida da maioria da população,

são os grandes desafios da atualidade. Sua superação dependerá do

reordenamento de algumas políticas de Estado que podem ser assim resumidas:

1. Gerar excedente de poupança (Furtado, 1989): tributação progressiva de

setores de maior renda via tributos (renda e patrimônio) e operações

financeiras (fundos de investimentos, viagens internacionais, operações de

créditos associados à financiamento de bens de luxo, etc).

2. Reordenar a pauta de comércio externo (Prebisch, 1948) e garantir autonomia

produtiva: estimular a agregação de valor às exportações e substituir

gradativamente os produtos importados por produção interna. Esta alternativa

pressupõe:

a. Mapear as cadeias de valor e entender a forma como elas se integram.

Por exemplo, para produzir determinada quantidade de bens

alimentícios, necessita-se aplicar recursos na agricultura e na indústria

de fertilizantes.

b. Alinhar e integrar os currículos escolares às cadeias de valor para

formação de profissionais direcionados. Por exemplo, se o país

pretende ter autonomia na produção de eletroeletrônicos, devem-se

coordenar os investimentos do Estado (sistema educacional e

financiamento) com os do setor privado, estimular as sinergias com os

institutos de pesquisa e universidades (públicas e privadas) e lançar

programas abrangentes de resgate da educação fundamental.

3. Executar amplo programa de investimento em infraestrutura urbana (moradia,

saneamento e transportes) para recuperar, em curto prazo, as taxas de

crescimento econômico e de geração de emprego e melhorar os indicadores

sociais em longo prazo. O montante de recursos captado pelo Estado deve

13

ser injetado nas obras de infraestrutura que tenham correspondência com

outros setores, de tal forma que seja de fato reprodutivo.

A busca por um novo caminho deve contemplar investimentos públicos e

privados de forma a que sejam complementares (o público entra onde o privado não

tem interesse). Deve-se garantir um crescimento adequado da oferta de bens

essenciais de consumo, integrando os setores estratégicos no cumprimento de

metas, e buscar alternativas de modos de produção mais sustentáveis e de inclusão

socioeconômico. Existem caminhos para o avanço na agenda do desenvolvimento.

Considerações Finais

Como sugere Singer (1950), “desenvolvimento se faz em casa”. A

experiência de desenvolvimento industrial brasileiro foi relativamente exitosa na

medida em que permitiu ao país alcançar posições de destaque nos rankings

econômicos internacionais. Esta trajetória de industrialização foi seguida porque

decisões políticas – e não forças exclusivas do livre mercado – foram tomadas com

o intuito de modificar a estrutura produtiva nacional. É verdade que este processo foi

permeado de restrições: perfil de consumo supérfluo das classes mais ricas

restringindo o dinamismo econômico, concentração de renda via salários reais

deprimidos e inflação como forma de poupança forçada, restrições externas no

financiamento das políticas de substituição de importações e, mais recentemente,

políticas econômicas de caráter ortodoxo baseadas no tripé taxa de câmbio

flutuante, juros elevados e superávit fiscal.

A trajetória de industrialização do país acompanhou o processo ocorrido em

diversas outras nações, mas esbarrou em restrições políticas internas (ruptura

institucional, articulação do setor produtivo e financeiro) e externas (financiamento e

crises de balanço de pagamentos), que bloquearam os avanços sociais mais

profundos. É possível observar, todavia, que o país mantém-se como uma das

economias mais industrializadas do mundo e que, se bem pensadas e

implementadas as políticas de desenvolvimento, esta condição pode se fortalecer.

As alternativas de desenvolvimento estão dadas e devem ser levadas adiante,

dentro das perspectivas apresentadas pelos pioneiros (autonomia, projeto de

industrialização, combate às desigualdades regionais e de renda), ainda que num

contexto histórico distinto (forte financeirização da economia e ortodoxia de políticas

14

econômicas). É preciso evitar a todo custo o sentimento de “fracassomania”, como

apontado por Hirschman (1958).

Referências

Caputo, A. C., Melo, H. P. A industrialização brasileira nos anos de 1950: uma análise da instrução 113 da SUMOC. Estudos Econômicos, 2009. Disponível em <<

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612009000300003>> Acessado em 06 de maio de 2018. Fiesp. Panorama da Indústria de Transformaçao Brasileira, 2017. Disponível em <<http://www.fiesp.com.br/arquivo-download/?id=236253>> Acessado em 06 de maio de 2018. Furtado, C. A. “A Fantasia Organizada”. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro: 1989. Furtado, C. A. “Para onde caminhamos”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: 2004. Harward University. Atlas da Complexidade. Disponível em <http://atlas.cid.harvard.edu/> Acessado em 07 de maio de 2018. Kalecki, M. “A diferença entre os problemas econômicos cruciais das economias capitalistas desenvolvidas e subdesenvolvidas” em Kalecki, Coleção Grandes Cientistas Sociais, Miglioli, Jorge (org.), Editora Ática, ([1968] 1980). Prebisch, R.. “Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico” em Bielschowsky, R. (org.), Cinquenta anos de pensamento da CEPAL, Rio de Janeiro: 1963 (2000). Singer, H. W. “O mecanismo do desenvolvimento econômico”. Publicado pelo Banco Mundial. Oxford University Press, 1984 World Bank. All Countries and Economies. Disponível em: <<https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD?view=chart&year_low_desc=true> >Acessado em 06 de maio de 2018.