Teoria Do Signo Ensaio

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Ensaio sobre Francesca Woodman: o arquétipo universal de um mito particular Ana Júlia Carvalheiro Costa RA:148321 Disciplina CS201:Teorias do Signo Prof. Mauricius Martins Farina Unicamp Universidade Estadual de Campinas “Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê? isso de vida e morte, esses porquês “ Hilda Hilst, A obscena Senhora D. Introdução Para este ensaio escolhi tratar do processo de criação da fotógrafa Francesca Woodman fazendo um recorte mais preciso em uma fotografia, da série “Angels, calendar notebook” que não foi publicado. Antes de analisar a fotografia, sobrevôo sua produção procurando o que a torna singular e única. Parto do princípio que o processo de criação para a fotografa é como a construção da própria mitologia, em que as imagens são construídas por simbolismos particulares. Assim, entro no surrealismo em que se usa o automatismo simbólico com produção de textos e de imagens, e transito desse para a questão da imagem inconsciente vista por Jung como arquétipos que são descobertos através da pesquisa comparada e dos paralelos mitológicos. E contextualizo sua produção dentro da arte e fotografia contemporânea. Francesca Woodman (1958-1981) nasceu em uma família de artistas, seu pai George Woodman, era pintor e fotografo e sua mãe Betty Woodman era escultora. Em Rhode Island School of Designer foi onde começou seus estudos sobre fotografia, morou também em Roma onde realizou sua primeira exposição na galeria Libreria Maldoror especializada em surrealismo. Em 1979 muda-se para Nova Iorque, e aos 22 anos comete suicídio, dando fim ao sua intensa produção. A fotógrafa americana em seus trabalhos recorre ao auto-retrato como meio de expressar a melancolia, a impotência sobre o mundo e a sensação da passagem do tempo. Assim como, constrói através da imagem feminina o gesto performático que carrega influências da arte contemporânea, em que o corpo é também um meio de expressão efêmero, e a fotografia é um material da arte, não só usado como registro da performance, mas como valor simbólico material. Algumas de suas fotografias compõem séries, que ela os transformou em cadernos de artista, “Angels, calendar notebook” é um desses cadernos. Nele vê-se o uso da narrativa, tanto visual como textual, tratando a foto como “relíquia”, isto é, como objeto não-funcional que

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Texto sobre Francesca Woodman

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Ensaio sobre Francesca Woodman: o arquétipo universal de um

mito particular

Ana Júlia Carvalheiro Costa

RA:148321

Disciplina CS201:Teorias do Signo

Prof. Mauricius Martins Farina

Unicamp – Universidade Estadual de Campinas

“Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes,

tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios,

nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo

absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia

vou compreender, Ehud compreender o quê? isso de vida e morte, esses

porquês “

Hilda Hilst, A obscena Senhora D.

Introdução

Para este ensaio escolhi tratar do processo de criação da fotógrafa Francesca Woodman

fazendo um recorte mais preciso em uma fotografia, da série “Angels, calendar notebook” que

não foi publicado. Antes de analisar a fotografia, sobrevôo sua produção procurando o que a

torna singular e única. Parto do princípio que o processo de criação para a fotografa é como a

construção da própria mitologia, em que as imagens são construídas por simbolismos

particulares. Assim, entro no surrealismo em que se usa o automatismo simbólico com produção

de textos e de imagens, e transito desse para a questão da imagem inconsciente vista por Jung

como arquétipos que são descobertos através da pesquisa comparada e dos paralelos

mitológicos. E contextualizo sua produção dentro da arte e fotografia contemporânea.

Francesca Woodman (1958-1981) nasceu em uma família de artistas, seu pai George

Woodman, era pintor e fotografo e sua mãe Betty Woodman era escultora. Em Rhode Island

School of Designer foi onde começou seus estudos sobre fotografia, morou também em Roma

onde realizou sua primeira exposição na galeria Libreria Maldoror especializada em

surrealismo. Em 1979 muda-se para Nova Iorque, e aos 22 anos comete suicídio, dando fim ao

sua intensa produção.

A fotógrafa americana em seus trabalhos recorre ao auto-retrato como meio de expressar a

melancolia, a impotência sobre o mundo e a sensação da passagem do tempo. Assim como,

constrói através da imagem feminina o gesto performático que carrega influências da arte

contemporânea, em que o corpo é também um meio de expressão efêmero, e a fotografia é um

material da arte, não só usado como registro da performance, mas como valor simbólico

material.

Algumas de suas fotografias compõem séries, que ela os transformou em cadernos de

artista, “Angels, calendar notebook” é um desses cadernos. Nele vê-se o uso da narrativa, tanto

visual como textual, tratando a foto como “relíquia”, isto é, como objeto não-funcional que

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carrega em si o valor simbólico de uma história particular que se amplia através de arquétipos

universais.

Objetos e espaços

As fotos de Francesca Woodman são mensagens, é de forma performática que ela cria

com o espaço, o corpo e os objetos seu próprio sistema de comunicação. Suas fotografias

causam estranhamento, provindo do deslocamento dos objetos e características que costumavam

ser familiares, mas são colocadas em outra situação e resignificadas. Como pode ser visto na

foto abaixo, em que a porta está posta de maneira diagonal na sala, e parte de um corpo nu

aparece entre coberto por ela.

Fig.1-Francesca Woodman, Untitled. 1975-80

Os objetos e os cenários em sua materialidade são retratados com paredes descascadas,

salas e lugares inóspitos em que se revela e acentua a presença do corpo e o diálogo com o que o

cerca. A atmosfera fantasmagórica e surreal provem dessa relação com o próprio estado físico

dos objetos, que estão obsoletos ou inutilizáveis. O uso dos objetos antigos carrega consigo o

valor de historicidade, ou seja, ao invés de representar a funcionalidade ele nos remete ao

tempo.

Para Baudrillard o valor simbólico do objeto antigo é como o mito da origem, através dele

o ser se identifica com a situação original de sua essência. Esses objetos antigos, também

chamados objetos marginais, por estarem deslocados do seu tempo tornam-se excêntricos na

imagem, carregando consigo essa característica arcaica. Eles carregam signos anteriores, que se

tornam sincréticos a outros signos da sociedade industrial.

Por sua vez, o processo criativo da fotografa cria uma mitologia própria, em que os

objetos e os corpos possuem significados particulares, enquanto representação do passado o

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objeto significa a dimensão do vazio temporal, e enquanto regressão individual é como se a

fotografa ao representar o presente projetasse o passado, em um vazio do ser.

Fig.2-Francesca Woodman- On being an angel, Spring 1977

A fotografia contemporânea: narrativas e performance

“Eu estou na fotografia? Eu estou dentro ou fora dela?

Eu posso ser um fantasma, um animal ou um corpo morto, não

apenas uma garota parada em um canto”

Francesca Woodman

A fotografia de Francesca Woodman traz acentuados traços da arte e fotografia

contemporânea. O uso dos objetos como símbolo de memória, dessa consciência do tempo e da

rememoração através da construção da imagem, é recorrente na contemporaneidade, em que a

“arte dos pequenos relatos infra-ordinários”(Rouille), substitui a necessidade da arte moderna de

ir contra o passado. Mas a memória e o tempo em suas fotos são representações efêmeras, com

o tempo de exposição maior , os corpos aparecem como fantasmas em um jogo de presença e

ausência.

A “fotografia é, ao mesmo tempo, paradigma e um dos materiais, com tempo e corpo”

(Rouille). Além de se fotografar, Francesca possuí uma característica , que a aproxima mais da

arte-fotográfica, reunir fotografias em livros de artista. Um livro de artista é um recurso

expressivo que dá força a narrativa da série fotográfica “Angel, calendar notebook”, atrás de

algumas fotos ela costuma escrever frases. Como na figura 2, atrás da fotografia está a frase “On

being a Angel” do mesmo ano em que foi produzindo a série “Angel, calendar notebook”. Essa

narrativa trabalha com a ideia de referenciação dentro da obra em si, como o recurso da isotopia,

que será debatido no outro tópico.

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O corpo é ao mesmo tempo sombrio e erótico, neste jogo de sumir e desaparecer na

fotografia, o nu desempenha um papel de questionamento sobre o próprio conhecimento e

limites em relação ao espaço que a cerca. O surreal aparece neste contato do mundo humano e

inumano, a figura do inumano trará a presentificação da ausência, em que Loyard diz estar a

divagação sobre o tempo. Qual o tempo da fotografia? Qual o tempo da realidade? E da

fantasia? E nós estamos presentes em qual dos tempos?

As asas, o arquétipo universal de um mito particular

Considerando que seu processo criativo seja uma forma de criar uma mitologia própria,

analiso a figura 3 da série “Angels, calendar notebook” por meio da transitoriedade entre o

arquétipo universal e o mito particular que neste caso se configura no anjo.

Nas fotografias da série Francesca Woodman e uma amiga aparecem em posições que

remetem a anjos, seja pela abertura dos braços, pela forma como se curvam e mostram as costas

como se ali estivessem ocultas asas. Na imagem escolhida ela aparece em primeiro plano

pulando, a câmera captura a imagem de um vulto com o tronco nu,usando uma saia rota,

trêmula pelo movimento, que dá a impressão de um vôo e ao mesmo tempo transparece uma

vontade de desaparecimento da imagem. Em segundo plano, os olhos se deparam com um lugar

que pode ser um prédio abandonado, inabitável. Do teto saem penduradas duas asas de anjos,

feitas de pano que recebem a luz da janela fazendo um jogo lúdico de luz em que as asas

parecem transluzir entre o material e o imaterial.

O arquétipo dessa foto é o anjo. No livro de Nise da Silveira “Imagens do Inconsciente” os

símbolos coletivos, os arquétipos, parecem distantes e estranhos, pois tem características

arcaicas. A autora situa o simbolismo pelo método de pesquisa comparada realizada por Jung,

essa repetição de unidades semânticas será chamada de isotopia por Greimas e Courtés,em que

o discurso se constrói por meio da repetição de referências. O anjo é uma figura limiar e arcaica,

que transpõem limites entre espaços diferentes, permitindo a construção da narrativa da série

“Angels, calendar notebook”.

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Fig.3 Francesca Woodman: From Angel series, Rome, 1977

O pulo e as asas feitas à mão nos remete a outro símbolo mitológico: a queda de Ícaro.

Relembrado na pintura de Pieter Bruegel , “Paisagem com a Queda de Ícaro”, o mito grego de

Ícaro que foge da prisão com ajuda de seu pai Dédalo, que era inventor, e arquitetou asas com

cera de abelha e penas de pássaro. Dédalo dá as recomendações ao filho, para que uma vez

voando não se aproxime muito do sol e nem fique perto de mais do oceano. Ícaro deslumbrado

pela possibilidade de voar, quer ir cada vez mais alto e não mede as conseqüências de seu ato.

Aproxima-se do sol, e então as asas derretem com o calor, ele cai e se afoga no mar.

O mito se aproxima da história de Francesca Woodman, as asas que foram um presente

para Ícaro, são para Francesca a representação da liberdade que ela enxerga em sua arte, uma

forma de libertar-se da angustia da vida. Não sabendo lidar com essa liberdade, a saída que

encontra é a morte. Em sua obra é recorrente a referência ao suicido, como podemos ver pela

fotografia (fig.4) que foi tirada no ano de sua morte. Outra fotografia semelhante que antecede

Francesca Woodman é “Salto no Vazio” de Yves Klein que teve um trabalho influente sobre

performance além do conhecido estudo sobre o azul.

Através do estudo comparado, foi possível realizar uma análise simbólica, entre as

fotografia de Francesca Woodman, e outras referências externas (imagéticas e mitológicas) que

convergem sobre a representação na arte e fotografia. Expressando o sentimento

contemporâneo - e ao mesmo tempo antigo- da presentificação da ausência, da dupla existência

da realidade e da ficção, em que o ser psíquico e social sofre metamorfoses dentro de sua

produção artística.

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Fig4. Francesca Woodman,Untitled.1981 Fig5. Yves Klein, Salto no vazio.1957

Referências

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. 5. ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 2009. 230 p.

ROUILLE, Andre. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo, SP:

SENAC São Paulo, c2009. 483 p.

SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente: com 272 ilustraçoes. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ:

Alhambra, c1981. 346 p.

CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill D.; FLOWERS, Betty Sue (org.). O poder do mito. 28.

ed. São Paulo, SP: Palas Athena, 2011. 242 p.

BARTHES, Roland. Mitologias. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, 2006. 256 p.

CALIANDRO,Stefania. O anjo na arte contemporânea. Iconologia de uma presença da

ausência.Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol7.n.2, dezembro de 2009.12p.

Internet:

CATCHPOLE James,Fluid Radio Experimental Frequencies. Disponível em

<http://www.fluid-radio.co.uk/2013/05/in-memory-of-francesca-woodman/> Acessado em 17

de Setembro de 2013.

Imaginei-me Dentro de ti.Disponível em

<http://imagineimedentrodeti.com/paixoes/francesca-woodman/> Acessado em 25 de

novembro de 2013.