Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

29
1 Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando o caso da Malásia Versão: maio de 2004 Fernando J. Cardim de Carvalho e João Sicsú 1. Introdução A proposta de remoção de controles de capital, isto é, a liberalização dos movimentos internacionais de capitais, defendida por vários economistas, alguns governos e, com certas ressalvas, pelo próprio FMI, se apóia numa premissa infundada a respeito dos benefícios desta medida – já que não existem trabalhos que apresentem resultados empiricamente sólidos que possam sustentar a defesa da liberalização financeira. O FMI, por exemplo, admite, de forma genérica, que controles, limitados e temporários, para certos tipos de economias, merecem mais estudo. Na verdade, mesmo após o FMI ter reconhecido (ao final da década de 1990) que a liberalização dos movimentos de capitais foi precipitada em muitos casos, defendendo que a remoção dos controles restantes seja feita após o seqüenciamento correto de reformas domésticas prévias, não é possível encontrar exemplos de países que tenham sido autorizados pela instituição a reinstalar controles para que aquelas reformas possam ser implementadas. O que o FMI defende hoje pode ser chamado de liberalização cautelosa, mas o viés em favor da liberalização permanece. A postura do FMI com relação a controles de capitais é ilustrativa da cambiante apreciação deste tipo de instrumento na comunidade de economistas, acadêmicos, de instituições privadas e com responsabilidade de governo. Como mostra Cooper (1999), controles de capitais não eram geralmente adotados antes da crise da década de 1930. Criados para ajudar a defender as economias da volatilidade econômica internacional, levaram anos para serem removidos. Mesmo países desenvolvidos, como na Europa ocidental, praticamente só vieram a eliminar barreiras formais à circulação de capitais nos anos 1990. Muitos bloqueios, na verdade, permanecem, vários dos quais sob a forma de restrições regulatórias (implícitas), mais do que barreiras explícitas. Do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Transcript of Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

Page 1: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

1

Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando o caso da Malásia

Versão: maio de 2004 Fernando J. Cardim de Carvalho e João Sicsú∗

1. Introdução

A proposta de remoção de controles de capital, isto é, a liberalização dos movimentos

internacionais de capitais, defendida por vários economistas, alguns governos e, com certas

ressalvas, pelo próprio FMI, se apóia numa premissa infundada a respeito dos benefícios

desta medida – já que não existem trabalhos que apresentem resultados empiricamente

sólidos que possam sustentar a defesa da liberalização financeira. O FMI, por exemplo,

admite, de forma genérica, que controles, limitados e temporários, para certos tipos de

economias, merecem mais estudo. Na verdade, mesmo após o FMI ter reconhecido (ao final

da década de 1990) que a liberalização dos movimentos de capitais foi precipitada em

muitos casos, defendendo que a remoção dos controles restantes seja feita após o

seqüenciamento correto de reformas domésticas prévias, não é possível encontrar

exemplos de países que tenham sido autorizados pela instituição a reinstalar controles para

que aquelas reformas possam ser implementadas. O que o FMI defende hoje pode ser

chamado de liberalização cautelosa, mas o viés em favor da liberalização permanece.

A postura do FMI com relação a controles de capitais é ilustrativa da cambiante apreciação

deste tipo de instrumento na comunidade de economistas, acadêmicos, de instituições

privadas e com responsabilidade de governo. Como mostra Cooper (1999), controles de

capitais não eram geralmente adotados antes da crise da década de 1930. Criados para

ajudar a defender as economias da volatilidade econômica internacional, levaram anos para

serem removidos. Mesmo países desenvolvidos, como na Europa ocidental, praticamente só

vieram a eliminar barreiras formais à circulação de capitais nos anos 1990. Muitos

bloqueios, na verdade, permanecem, vários dos quais sob a forma de restrições regulatórias

(implícitas), mais do que barreiras explícitas.

∗ Do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Page 2: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

2

Atualmente, a comunidade de economistas, em sua maioria, parece compartilhar a visão de

que controles de capital são danosos ou inócuos. Há, contudo, muitas vozes discordantes,

que apontam para a fragilidade dos argumentos teóricos em favor da liberalização e da

inconclusividade dos estudos empíricos que tentam mostrar que a remoção de controles de

capital aumenta a prosperidade econômica ou o bem-estar das sociedades. Entre os

economistas que defenderam os controles de capitais, certamente o mais conhecido foi John

Maynard Keynes, sob cuja influência a conferência de Bretton Woods, em julho de 1944,

decidiu recomendar aos signatários do acordo final a adoção de controles no caso de crises

de balanço de pagamentos devidas a fugas de capitais.1

Os países desenvolvidos, com poucas exceções, abandonaram apenas recentemente estes

controles.2 Nos anos 1990, contudo, fez-se enorme pressão sobre os países em

desenvolvimento, para que acompanhassem as tendências liberalizantes dos países

industriais. O apogeu desta pressão foi a aprovação, na assembléia anual do Fundo

Monetário Internacional de 1997, da iniciativa de mudança de seus estatutos para remover o

Artigo VI, que legitima a adoção de controles, substituindo-o pelo compromisso com a

conversibilidade da conta de capitais, a exemplo de outro artigo acordado em 1944,

estabelecendo a conversibilidade da conta corrente. Após a eclosão da crise asiática, esta

iniciativa foi, para todos os efeitos práticos, congelada.

Por ironia da história, a assembléia teve lugar em Hong Kong, quando sinais da crise que

explodiria na região pouco depois já se faziam perceber. A crise asiática (de 1997-8),

seguida pela crise russa, pela brasileira, e por várias outras acabaram por fazer o

movimento liberalizante perder o fôlego, ainda que não o revertesse. A pressão pró-

liberalização cedeu lugar à preocupação com os requisitos necessários para que a abertura

financeira pudesse ser concretizada. No ínterim, o Fundo passou a reconhecer que a

manutenção de certos controles poderia ser tolerada. Contudo, estes controles deveriam ser 1 Cooper (1999) observa que Keynes, na verdade, apresentou uma proposta mais forte em favor de controles de capitais, pelos quais os países signatários reconheceriam como ilegais quaisquer contratos que violassem leis domésticas de restrição ao movimento de capitais. Os Estados Unidos, contudo, apoiaram a inclusão nos estatutos do Fundo (Articles of Agreement), do artigo VI, que veda o uso de recursos do Fundo para solucionar problemas de conta de capitais, cabendo ao país atingido decidir pela adoção dos controles que julgar cabíveis, desde que não discriminatórios.

Page 3: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

3

temporários, limitados e utilizados apenas enquanto se promovessem as reformas

necessárias para que a liberalização pudesse ser retomada mais adiante. Diante de

argumentos apenas teóricos e vagos, o balanço de custos e benefícios da remoção de

controles tornou-se, portanto, uma necessidade.

Os controles de capitais são instrumentos de política econômica. Enquanto tais, devem ser

examinados não apenas de acordo com princípios teóricos mas também, e talvez

principalmente, neste debate, de acordo com sua eficiência operacional. Assim, não nos

interessa apenas estabelecer o argumento teórico supostamente favorável à utilização de

controles, mas também avaliar a eficácia das principais formas como foram implementados

na prática.

O exame da experiência no uso de controles de capitais no período do pós-Segunda Guerra

mostra que há uma enorme profusão de instrumentos. Deste modo, a seleção de um

determinado conjunto de medidas de intervenção depende da definição das metas a se

alcançar por parte dos policy makers, dos custos e benefícios de cada alternativa, do

horizonte temporal em que se planeje manter os controles em operação, do aparato

institucional à sua disposição para aplicar os controles, etc. Tudo isso precisa ser

observado, estudado, investigado e analisado.

Neste debate, em que os defensores da liberalização desprezam as conclusões do exame da

evidência empírica, da história, inclusive a mais recente, é necessário desenvolver estudos

de casos para que o embate teórico seja apoiado pela experiência efetiva com controles de

capitais ou com sua eliminação. Há um caso que é absolutamente necessário ser estudado: a

imposição de controles sobre a saída de capitais adotados pela Malásia em 1998-9. Esse

caso é especialmente relevante porque, primeiro, controles sobre a saída (em oposição aos

controles sobre a entrada) de capitais são aqueles que sofrem os maiores ataques por parte

dos economistas, instituições e governos liberalizantes. Segundo, porque quando foram

adotadas as restrições, a comunidade financeira internacional prognosticou o seu rotundo

fracasso. E, terceiro, porque a comunidade liberalizante não só previu seu goro como

2 Veja-se Wyplosz (2001).

Page 4: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

4

efetivamente agiu contra a Malásia. No entanto, a despeito de previsões frustradas e ações

adversas dos liberalizantes, os controles foram muito bem sucedidos.

Este artigo visa não só recuperar o debate teórico recente sobre controles de capitais, com

vistas a avaliar a conclusão mencionada favorável ao que chamaríamos de liberalização

cautelosa, mas também avaliar as experiências recentes de adoção de controles de capitais

com vistas a enriquecer o debate meramente abstrato. Buscamos desafiar o aparente

consenso em favor da estratégia liberalizante em diferentes níveis, apresentando

alternativas e problemas que impõem conclusões cautelosas com relação à conveniência da

liberalização. Para tanto, na seção seguinte, examinamos o debate teórico em torno da

liberalização; na seção 3, tentamos encarar a dificuldade, que é a classificação adequada de

controles de capital, indicar o objetivo de cada instrumento e sua eficiência; a seção 4

apresenta uma visão geral sobre os controles adotados em diversos países no pós-Segunda

Guerra; a seção 5 apresenta uma análise da experiência recente da Malásia, dando ênfase

aos controles sobre a saída de capitais. A seção 6 resume as principais conclusões do artigo.

2. O Debate Teórico sobre Controles de Capitais

i. Argumentos favoráveis à liberalização dos movimentos de capitais: a superioridade do

mercado de capitais

Duas ordens de argumentos, na verdade contraditórias entre si, são levantadas normalmente

contra a utilização de controles de capital. A primeira apóia-se na tese de que os ganhos da

liberalização dos movimentos de capital são de mesma natureza que os ganhos da

liberalização comercial.3 Por esta linha de pensamento, criar obstáculos à livre

movimentação de capitais distorce a alocação de recursos fazendo com que os capitais,

especialmente nas economias em desenvolvimento, onde eles são mais escassos, sejam mal

utilizados. Acreditam os proponentes desta visão que a liberdade de movimentação permite

aumentar a eficiência com que opera a economia, mesmo que se trate de capitais de curto

Page 5: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

5

prazo, que circulam pelo mundo em busca de oportunidades de arbitragem de taxas de

juros. Por isto, controles de capital distorcem a alocação e pioram a situação das economias

que os aplicam.

A segunda ordem de argumentos não questiona diretamente a desejabilidade de controles,

mas sua eficácia. Alega-se que controles de capitais são, no mais das vezes, inócuos,

implicando desperdício de energias e de recursos em atividades fadadas ao fracasso.

Naturalmente, embora alguns críticos não pareçam percebê-lo, não se pode usar os dois

argumentos ao mesmo tempo, já que, fossem os controles inócuos, eles não poderiam

causar danos, ou, alternativamente, apenas causariam danos se fossem efetivos. Nesta

seção, daremos atenção apenas à primeira ordem de argumentos, já que a questão da

efetividade dos controles só pode ser proficuamente examinada à luz de mecanismos

específicos em situações específicas, o que será examinado nas seções 4 e 5.

Defensores da liberalização financeira e da remoção de controles argumentam que a livre

movimentação de capitais permitiria uma alocação internacional de capitais mais eficiente,

o que seria particularmente benéfico a países em desenvolvimento, já que os capitais

deveriam fluir dos países mais ricos, onde sua produtividade seria menor, para os mais

pobres, onde a escassez deste fator lhe permitiria obter altos retornos. Colocada diretamente

em termos do interesse de países em desenvolvimento em promover a liberalização

financeira, a remoção de barreiras à circulação de capital deveria levar a um aumento da

poupança disponível para investimento nesses países, acelerando seu crescimento.

Benefícios adicionais, que recebem maior ou menor ênfase dependendo do autor de que se

trate, seriam os derivados da maior eficiência da operação dos sistemas financeiros

domésticos, sob pressão de competidores estrangeiros; redução da corrupção, sob a

hipótese de que investidores e instituições estrangeiras seriam mais resistentes do que os

locais; maior estabilidade sistêmica, seja pela diversificação de fontes de recursos para os

países, seja pela maior diversidade de opções oferecidas aos investidores. Acreditam alguns

que a liberalização financeira permitiria ainda a melhora na qualidade da administração

pública, disciplinada que seria pela ameaça permanente de saída de capitais quando as 3 Os ganhos da liberalização comercial são aceitos com muito menos reservas entre economistas. Uma

Page 6: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

6

perspectivas futuras daquela economia se vissem ameaçadas por políticas consideradas

irresponsáveis.4

Exemplos desta visão abundam na literatura. Tomemos apenas um exemplo representativo,

extraído de trabalho de Stanley Fischer, o número dois do Fundo Monetário Internacional à

época em que o comentário foi redigido, quando se debatia a conveniência de se promover

a mudança no estatuto do Fundo tendente a estabelecer a conversibilidade da conta de

capitais:

O segundo, e mais forte, argumento em prol da liberalização é o de que os benefícios potenciais ultrapassam os custos.5 Colocado em abstrato, movimentos livres de capitais facilitam a alocação global eficiente de poupanças e canalizam recursos para seus usos mais produtivos, aumentando assim o crescimento econômico e o bem-estar. Da perspectiva do país individual, os benefícios tomam a forma de aumentos no conjunto de fundos para investimento e no acesso de residentes domésticos aos mercados estrangeiros de capital. Do ponto de vista da economia internacional, contas de capital abertas apóiam o sistema de comercio multilateral ao alargar os canais pelos quais os países podem financiar o comercio e o investimento e atingir níveis mais altos de renda. Fluxos internacionais de capitais expandem as oportunidades para diversificação de portfolio, oferecendo assim a investidores tanto nos países industriais como nos em desenvolvimento o potencial de se alcançar taxas mais altas de retornos ajustadas pelo risco. (Fischer, 1998, pp. 2-3)6

exceção a este quase consenso é dado por Rodrik e Rodriguez (2000). 4 Para um exemplo de entusiástica expectativa de que a liberalização da conta de capitais promova uma melhoria da qualidade da política econômica doméstica, veja-se Dornbusch (1998). 5 O primeiro argumento de Fischer é que a liberalização “é um passo inevitável no caminho do desenvolvimento, que não pode ser evitado e deveria ser abraçado. Afinal, todas as economias mais avançadas têm contas de capital abertas.” (cit., p. 2) À parte o curioso determinismo histórico abraçado por Fischer, cabe notar o argumento falacioso, que o autor usa com freqüência, de que a liberalização deve ser adotada porque é o que um país desenvolvido faz. É difícil de se acreditar que um autor como Fischer desconheça que a liberalização financeira se deu, em praticamente todos os países industriais, depois que o desenvolvimento tinha sido alcançado e não como instrumento de desenvolvimento. Na verdade, esta é uma informação tão trivial e tão conhecida (veja-se, por exemplo, Wyplosz, 2001) que é impossível não alimentar dúvidas quanto às intenções do autor ao propor falácia tão grosseira. Sobre a tendência comum a organismos internacionais a propor a países em desenvolvimento remédios que os desenvolvidos se recusaram a tomar, veja-se o levantamento feito por Chang (2002). 6 Outros inventários muito semelhantes das vantagens teóricas da liberalização podem ser encontrados, por exemplo, em Johnston e Tamirisa (1998) e Edison, Levine, Ricci e Slok (2002). Cooper (1999) oferece uma lista de vantagens ainda mais extensa, embora o autor seja um crítico da liberalização e tente mostrar que muitas destas vantagens são improváveis ou se dão em graus irrelevantes, face aos custos ou riscos acarretados pela remoção de controles.

Page 7: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

7

O estilo casual de Fischer na apresentação dos argumentos favoráveis à liberalização é

típico da literatura recente sobre controles de capital. Os defensores da liberalização se

apóiam, na verdade, na sabedoria convencional corrente da comunidade de economistas (e,

sob sua influência, dos tomadores de decisão) que reconhece nos mecanismos de mercado

eficiência superior em promover bem-estar do que a de quaisquer mecanismos alternativos,

especialmente aqueles que envolvem alguma intervenção do estado. Tornou-se quase

natural supor que a intervenção do estado é sempre inferior à ação privada livre, por um

lado porque viola uma delicada (e mal conhecida) rede de incentivos criada pelo mercado e

por outro porque estimula as atividades dependentes de monopólio (rent seeking) que,

mesmo que temporariamente, resultam da ação estatal. Assim, tem sido freqüente a

apresentação das potenciais vantagens da liberalização financeira como auto-evidentes,

assumindo-se que a simples listagem do ganho possível é evidencia de sua própria

realidade.

Na verdade, não há argumentos específicos oferecidos em apoio da remoção de controles

de capitais em si. Como se vê no texto de Fischer, defende-se a liberalização financeira

externa pelas mesmas razões que se defenderia a liberalização doméstica: a melhor

alocação de recursos e maior diversificação de carteiras, permitindo administrar riscos de

forma mais eficiente. Se mercados financeiros domésticos livres são eficientes para

promover a alocação ótima de recursos, prossegue o raciocínio, não há porque supor que o

mesmo não se dê quando se pensa nos mercados financeiros internacionais.

Deste modo, se não há razões para que se defenda a liberalização internacional que não

sejam fundamentalmente as mesmas que se usaria para defender a liberalização doméstica,

qual seja o princípio de que mercados financeiros livres são eficientes para alocar a

poupança, ou o capital, disponível da melhor forma possível, a crítica a esta posição tenderá

a assumir postura semelhante. Com se verá em seguida, os argumentos mais importantes a

sustentar a cautela na remoção de controles ou mesmo a indesejabilidade da liberalização

alem de um certo grau também se apóiam em proposições teóricas a respeito de mercados

financeiros, sem importar se são domésticos ou internacionais. Deste modo, a defesa da

Page 8: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

8

permanência de controles de capital será semelhante à defesa dos instrumentos de regulação

financeira doméstica.

ii. Argumentos em favor dos controles de capitais: a incerteza e o intervencionismo

governamental

A perspectiva liberalizante é criticada de forma radical por autores que consideram a

incerteza fundamental que cerca as decisões dos agentes em uma economia de mercado.

Para esta escola, que se inspira em Keynes, o futuro é incerto porque é construído pela

decisão livre dos agentes econômicos. Nesta abordagem, uma economia de mercado é

marcada pela dependência de trajetória (path dependency) e não há mecanismos que a

façam convergir para uma posição pré-determinada, mesmo que esta posição de equilíbrio

pudesse ser definida. Ações são orientadas por expectativas que apenas em parte são

influenciadas por dados objetivos. Estados de confiança e animal spirits são igualmente

importantes quando se trata de tomar decisões. Em mercados financeiros, as incertezas são

ainda mais importantes na tomada de decisões, já que, ao se negociar ativos, negocia-se, na

verdade, recompensas futuras, a serem usufruídas sob condições que também só se

revelarão no futuro. A precariedade do conhecimento sobre o futuro abre espaço para uma

imensa influencia de variáveis subjetivas, como o estado de confiança, e para

comportamentos que talvez fossem irracionais em outras circunstancias.7

Nesta visão, mercados não podem ser eficientes para revelar uma realidade subjacente.8

Mercados podem ser eficientes para coordenar comportamentos, mas para tanto devem

7 A preferência pela liquidez e o comportamento convencional, ambos definidos por Keynes (1964) são exemplos destes comportamentos, cuja racionalidade só é reconhecível se nos lembramos que a concepção de mundo de Keynes se apóia na importância da incerteza não-probabilística no processo de tomada de decisões. O conceito de incerteza proposto por Keynes é explorado no capitulo 12 da sua Teoria Geral, “The state of long-term expectation”. Veja-se também Keynes (1973). Sobre o conceito de incerteza proposto por Keynes, veja-se Carvalho (1988). 8 Em Cardim de Carvalho & Sicsú (2004), os autores enfatizaram no debate teórico os argumentos de que possíveis incompletudes dos mercados e assimetrias de informação não permitiriam que os mercados financeiros fossem eficientes como esperado pelos proponentes da liberalização, e que o movimento abrupto

Page 9: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

9

estar apoiados em regras e instituições que promovam a coordenação e canalizem as

expectativas, limitando as possibilidades que o futuro abre de modo a diminuir a dispersão

das expectativas. Nem sempre isso é possível, e controles e regulações têm de ser definidos

para reforçar a coerência desta economia. A incoerência e a crise são possibilidades sempre

presentes9 e a intervenção extra-mercado se faz necessária para conter as tendências

imanentes à desagregação intrínsecas a economias de mercado, e a mercados financeiros

em particular.

Não deve ser surpreendente, assim, que esta visão também favoreça a manutenção de

controles de capital. Como mostra Davidson (1998), sob incerteza, um atributo muito

importante de qualquer ativo é seu prêmio de liquidez, isto é, sua capacidade esperada de

conversão em moeda, com variações limitadas de valor, se e quando sua venda for

necessária. Um ativo é tanto mais líquido, quanto mais firme for a expectativa de que

poderá ser vendido em um mercado secundário a um preço fixado dentro de um intervalo

previsível. Este atributo do mercado, seu grau de ordenação (orderliness), depende deste

mercado não estar sujeito a variações bruscas e dramáticas de oferta e demanda. Em

mercados domésticos, isto é permitido pela existência de market-makers. Em transações

internacionais, envolvendo diferentes moedas, a ordenação dos mercados seria obtida pela

imposição de controles de capital:

O uso judicioso de controles de capital pode promover a eficiência ao restringir qualquer mudança súbita na demanda por liquidez que afetasse adversamente a economia real. … A função dos controles de capital é impedir que mudanças no balanço entre ursos e touros10 atropelem os market-makers e induzam mudanças rápidas nas tendências de preços [dos ativos] pois tal volatilidade pode ter conseqüências reais devastadoras. (Davidson, 1998)

Como a incerteza do futuro pode ter profundos impactos reais, prejudicando em particular

decisões que exigem um comprometimento maior de empresários, como a decisão de

de capitais gera externalidades negativas (para aqueles que não estão envolvidos diretamente com o evento) o que sugeriria, portanto, medidas a favor dos controles. 9 Cf. Minsky (1980) e Kregel (1980). 10 Ursos são os agentes de mercado que esperam que o preço do ativo de que se trate caia no futuro, colocando-o à venda no presente, com o que efetivamente pressionam seu preço para baixo. Touros são os agentes que entretêm a expectativa oposta, de que os preços do ativo subirão no futuro e tentam comprá-lo no presente, em antecipação a um ganho de capital. Quando ursos predominarem, o mercado estará em baixa, quando os touros predominarem, o mercado estará em alta.

Page 10: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

10

investir em ativos reais, por exemplo, uma sociedade se defende contra ela também através

da ação de política econômica do governo. Na verdade, Keynes tornou-se particularmente

conhecido por sua visão ativista do papel do governo em uma economia de mercado em

função de sua preocupação com o que chamava de efeitos adversos “das negras forças da

ignorância”.11 Nestas condições, a liberdade de um país em implementar no momento

adequado as políticas que julgasse necessárias para fazer frente às dificuldades que viesse a

enfrentar era de grande valor. Em particular, Keynes preocupou-se com os limites que um

governo pudesse enfrentar para promover políticas de pleno emprego, que implicassem

menores taxas domésticas de juros e expansão de gastos públicos. Controles de capital

foram propostos por Keynes para dar a um país a autonomia para adotar as políticas de

juros que fossem necessárias. Este foi o principio que o levou a insistir na inclusão do

direito, ou mesmo a obrigação, de um país adotar controles de capitais quando sofresse

problemas na conta de capitais nos estatutos do FMI, durante a conferência de Bretton

Woods. Em suas palavras:

Eu compartilho da visão de que o controle de movimentos de capital, tanto para dentro quanto para fora, devem ser um traço permanente do sistema do pós-guerra, - pelo menos no que nos concerne. ... A meu ver, toda a administração da economia doméstica depende da liberdade de se ter a taxa de juros apropriada sem referencia às taxas prevalecentes em outros lugares do mundo. (Moggridge, 1980, pp. 86, 149)

Na verdade, embora a preocupação central de Keynes fosse com a liberdade de se adotar

políticas monetárias expansionistas no sistema de câmbio fixo que se criou em Bretton

Woods (em contraste com o sistema anterior de taxas fixas, o padrão-ouro), também os

desequilíbrios causados pelo excesso de entradas de capitais deveriam ser evitados pelos

controles:

Não há país que possa, no futuro, permitir com segurança a fuga de fundos por razões políticas ou para evadir-se aos impostos domésticos ou na expectativa do proprietário tornar-se um refugiado. Igualmente, não há país que possa com segurança receber fundos fugitivos, que constituam uma importação indesejada de capital, que não possa ser usada com segurança para investimentos fixos. (Moggridge, 1980, p.185)

11 Para uma discussão do papel da política econômica para Keynes, veja-se Carvalho (1997).

Page 11: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

11

Isolar uma economia de choques externos e dar autonomia para a política econômica

doméstica se tornarão as duas principais metas a serem propiciadas pela existência de

controles de capital. A segunda meta se contrapõe diretamente a uma das vantagens

apontadas pelos defensores da liberalização, que consiste exatamente na redução dessa

autonomia, submetendo, ao contrário, o processo de decisão de política econômica

doméstica à disciplina de mercado. A autonomia da política doméstica seria reduzida

porque os detentores de riqueza poderiam opor-se a qualquer medida, simplesmente

transferindo seu capital para outro lugar. Assim, defensores e críticos dos controles de

capital concordam em um ponto decisivo: controles de capital dão autonomia à decisão

política local. O que os opõe é o julgamento da desejabilidade deste resultado.

Especialmente quando referido a países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, o

julgamento implícito no argumento em prol da remoção de controles é o de a autonomia

dada por estes seria usada de forma irresponsável e que, portanto, o bem-estar destas

mesmas economias seria maior em uma situação onde o mercado fosse capaz de impedir

aventuras políticas.12

Em suma, o debate central sobre controles de capital reproduz em linhas gerais os

argumentos em discussão das duas grandes correntes do pensamento macroeconômico

(uma, pró-mercado e anti-estado e outra, reguladora do mercado), que se desenvolve pelo

menos desde a publicação original da Teoria Geral de Keynes, em 1936, há quase setenta

anos.

3. Controles de Capital: tipos, objetivos e eficiência

Os controles de capitais englobam, mesmo na sua acepção mais estreita, uma ampla gama

de instrumentos. Portanto, pode ser útil estabelecer certas diferenças entre tipos de

controles que permitam não apenas descrever o leque de opções à disposição de uma

12 Para aqueles que propõem que em economias de mercado existe apenas uma posição de equilíbrio, para a qual a economia converge inexoravelmente, qualquer política econômica é inócua ou danosa. Se a política apenas confirmar o movimento rumo ao equilíbrio, ela será inócua; se ela se contrapuser à tendência à posição de equilíbrio, ela distorcerá incentivos e causará danos à economia. Este é o raciocínio que fundamenta os chamados teoremas de ineficácia de política que proliferaram nos anos 1980 na teoria econômica ortodoxa.

Page 12: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

12

economia a qualquer momento, mas também proceder à avaliação da eficiência de cada

classe de instrumentos.

Inicialmente, pode-se distinguir entre controles que atuam através de incentivos ou

desincentivos de mercado em contraste com restrições quantitativas diretas. No primeiro

caso, temos como exemplo a exigência de impostos sobre fluxos de capitais ou a cobrança

de impostos diferenciados segundo as características do fluxo de capitais que se deseje

privilegiar. Um exemplo destas disposições foi dado pelos controles estabelecidos em 1999

na Malásia em substituição às restrições diretas impostas em 1998. Pelas disposições de

1999, as saídas de capitais seriam taxadas por alíquotas inversamente proporcionais ao

período de permanência daqueles capitais no país. Deste modo, incentivou-se a

permanência de capitais no país sem que se proibisse a saída daqueles que preferissem fazê-

lo (como na primeira fase da imposição de controles naquele país, em 1998). Nesta

categoria enquadram-se também os controles de entrada chilenos, que ao estabelecer

depósitos compulsórios como frações dos fluxos de entrada, a serem resgatados apenas

após um período mínimo de permanência estabelecido pelas autoridades nacionais,

incentivavam a vinda apenas daqueles capitais que contemplassem a permanência por

períodos mais longos.

Em contraste, restrições quantitativas diretas, ou controles administrativos como são muitas

vezes conhecidos, simplesmente vedam a possibilidade de entrada ou saída de capitais

mesmo se seus detentores estejam dispostos a pagar custos maiores para manter suas

opções abertas.

O balanço de vantagens entre os dois tipos de controles é estabelecido em linhas

semelhantes aos que são definidos para outras atividades em que escolha semelhante esteja

disponível. Assim, por exemplo, contrasta-se o uso de instrumentos diretos de política

monetária aos indiretos. Os primeiros englobam controles administrativos como a fixação

de tetos de crédito, tabelamento de juros, etc. Os segundos atuam através do mercado, como

as operações de mercado aberto.13 Argumenta-se que instrumentos indiretos são mais

13 Veja-se IMF (1995).

Page 13: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

13

eficientes porque são desenhados para alinhar os interesses de mercado com os objetivos da

autoridade monetária, enquanto os controles administrativos vão de encontro ao que

desejam os agentes privados. A mesma lógica sugeriria que controles de capital via

mercado seriam mais eficientes do que as medidas administrativas porque permitiriam a

adesão, ao invés do confronto, do mercado.

A questão da eficiência relativa dos instrumentos, contudo, não pode ser examinada apenas

em termos das condições de adesão dos agentes privados. Em certas circunstancias, como a

ocorrência de uma crise de balanço de pagamentos, por exemplo, a incerteza a respeito da

eficácia de controles criada pela possibilidade de não-adesão voluntária do setor privado

pode ser intolerável. Instrumentos administrativos podem não ser eficazes no longo prazo,

quando os agentes privados tiverem tempo para aprenderem como contorná-los, mas no

curto prazo podem diminuir a incerteza com relação ao impacto dos controles. Isto implica

que o exame dos tipos de controles de capital possíveis não pode ser feito sem se considerar

outras duas distinções intimamente aparentadas à precedente. Por um lado, controles podem

ser pensados como instrumentos temporários ou permanentes. Por outro, podem ser

instrumentos de administração de crises de balanço de pagamentos ou servir para dar

autonomia a políticas econômicas domésticas. Na prática, muitas vezes pode ser difícil

distinguir entre as duas dicotomias, ainda que conceitualmente não sejam idênticas.

A primeira dicotomia se refere ao papel reservado aos controles de capital na estratégia de

desenvolvimento do país.14 A restrição ao grau de integração financeira entre uma

economia nacional e o resto do mundo pode ser uma decisão vista como permanente por

esta economia, se os ganhos esperados da integração forem avaliados como inferiores às

perdas ou aos riscos que ela acarreta. Em contraste, controles podem ser temporários,

adotados enquanto as condições ideais para a integração ainda não estiverem dadas. Este é

o sentido da aceitação da hipótese de controles de capital pelo FMI. É claro que a duração

14 Estamos tomando a expressão “estratégia de desenvolvimento” na sua acepção mais ampla, não limitada a países em desenvolvimento apenas. Países industriais também adotam estratégias de desenvolvimento no sentido de que fazem escolhas fundamentais a respeito dos caminhos a serem trilhados por cada um. Parte importante destas escolhas é o grau de integração com a economia mundial que cada um defina como desejável. Neste sentido, países industriais também têm que decidir se usam ou não controles, como, aliás, o fizeram em Bretton Woods.

Page 14: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

14

do intervalo “de transição” pode mesmo ser indefinidamente longa, mas é importante notar

que, neste caso, controles são vistos como um mal necessário, um meio menos desejável de

defender a economia, enquanto meios mais eficientes ainda não estão ao seu alcance.

Controles, portanto, neste caso, são remendos mais que opções legitimas de política, a

serem abandonados assim que possível, isto é, assim que as pré-condições estejam dadas.

Como visto na seção 2, a noção de que controles sejam um remendo aceitável enquanto se

gestam as condições necessárias para a adoção de uma alternativa superior se apóia numa

concepção particular, ainda que hoje predominante, da operação dos mercados financeiros,

que supõe sua capacidade de refletir eficientemente os chamados fundamentos desta

economia.

A visão oposta entende que controles sejam instrumentos de utilização permanente, para

dar autonomia a políticas domésticas. Ao contrário da anterior, esta abordagem assume que

mercados financeiros, domésticos ou internacionais, são marcados por imperfeições que

não só reduzem drasticamente sua eficiência em refletir os fundamentos da economia como

também os transformam em canais privilegiados de instabilidade para as economias

nacionais. Neste caso, controles são vistos como um instrumento permanente de proteção

das economias nacionais. Seu papel é precisamente bloquear canais de integração entre

mercados domésticos e externos, autonomizando o mercado interno em relação ao que

ocorre em sua contraparte externa. Assim, controles podem ser usados, por exemplo, para

permitir a uma economia manter taxas de juros diferentes daquelas que seriam impostas se

fossem livres os movimentos de capitais.

Aparentada a esta dicotomia, mas diferente no seu escopo, é a distinção entre controles

desenhados para permitir a administração de crises e aqueles adotados para sustentar a

autonomia de decisões de política econômica doméstica. Uma dada economia pode adotar

controles como uma forma de limitar o efeito de certas características de situações críticas,

como por exemplo o overshooting cambial resultante de comportamentos de rebanho

durante uma crise, ainda que não considere a adoção de controles como uma característica

desejável em si mesma. Neste caso, não é sequer uma questão de se adotar controles

temporariamente, como na dicotomia anterior, porque controles são instrumentos

Page 15: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

15

visualizados apenas para situações de anormalidade. Deste modo, esses instrumentos não

serão utilizados para dar tempo à construção de outros canais mais sólidos de integração

financeira. Em outras palavras, eles nem são pensados para durar o tempo necessário para a

mudança institucional necessária à definição de outros instrumentos, nem deixarão de ser

usados tantas vezes quantas forem necessárias para enfrentar novas crises. Em outras

palavras, controles de capital como instrumentos de administração de crises não são

entendidos como instrumentos inferiores, a serem abandonados quando possível, mas como

parte de um arsenal de emergência, a serem acionados sempre que julgado conveniente.

A visão contrária a esta seria próxima à alternativa aos controles temporários. Controles de

capital seriam necessários para dar autonomia à tomada de decisões doméstica. Políticas de

juros já foram usadas como exemplo. Políticas industriais seriam outro exemplo. Políticas

de redistribuição de renda por via fiscal também poderiam enfrentar episódios de fuga de

capitais, na ausência de controles. Neste caso, controles seriam permanentes, ou, pelo

menos, duráveis, não para que se possa construir seu substituto, mas para que se possa

implementar políticas que poderiam ser ameaçadas por movimentos de capitais adversos.

Em termos mais operacionais, distinguem-se ainda controles sobre a entrada e a saída de

capitais, dependendo da definição, naturalmente, de qual operação seria objeto de controle.

Também nesta linha, distinguem-se controles sobre operações de residentes e de não-

residentes. Estas distinções são muito importantes, mas principalmente por razões

operacionais e, por isso, serão discutidas e avaliadas nas duas próximas seções.15

4. Uma Visão Geral sobre Experiências Recentes com Controles de Capitais16

Como já foi dito, o Acordo de Bretton Woods deu legitimidade ao emprego de controles de

capitais ao determinar ao FMI que não concedesse ajuda financeira a países que estivessem

sofrendo de déficits em seus balanços de pagamentos originados em desequilíbrios na conta

de capitais. Ao final da segunda grande guerra, a adoção de controles de capitais foi 15 Para uma introdução aos variados instrumentos utilizados para controles de capitais, veja-se Neely (1999).

Page 16: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

16

extensiva no mundo desenvolvido, com a exceção de Estados Unidos e Alemanha, que

preferiram seguir uma orientação mais liberalizante. Apesar desta orientação, adotaram

pontualmente medidas restritivas aos movimentos de capitais. O principal intuito era

manter a estabilidade das taxas de câmbio, conforme definido na conferência de Bretton

Woods. Para tanto, foram utilizados amplamente controles tanto de entrada quanto de saída

de capitais, especialmente na Europa ocidental e no Japão. Os controles eram calibrados de

acordo com as pressões do momento, consistindo na maioria das vezes de instrumentos

administrativos. Assim, a França adotou medidas de controle do mercado de câmbio e

restrições administrativas à saída de capitais, valendo-se do sistema bancário como agente

implementador dessas medidas (a falta de cooperação do sistema bancário levou tentativa

semelhante na Alemanha ao fracasso). Estes controles foram bastante estritos

especialmente na seqüência dos acontecimentos de maio de 1968 e da turbulência política

que se seguiu.

O Japão nos anos 1970 também recorreu a controles tanto de entrada como de saída para

estabilizar a taxa de câmbio no imediato pós-colapso do sistema de taxas de câmbio fixas

acordado em Bretton Woods. Controles de entrada de capitais eram intensificados quando a

oferta de recursos externos era abundante, cedendo lugar aos controles de saída quando

havia a ameaça de fuga de capitais. Entre os instrumentos de controle de entradas utilizados

estavam o desestímulo a adiantamentos de receitas de exportações pelo sistema bancário, a

restrição à compra de papéis japoneses por não-residentes e a imposição de depósitos

compulsórios sobre contas de não-residentes em bancos japoneses. Os instrumentos de

controle de saída eram a proibição de compra de papéis de curto prazo estrangeiros por

residentes e a manutenção de contas bancárias de residentes em moeda estrangeira. Além

disso, como é comum naquele país, a adesão voluntária a exortações do governo tornavam

eficazes também restrições a investimentos em papéis estrangeiros por parte de investidores

institucionais japoneses, assim como restrições à concessão de financiamento, por parte dos

bancos japoneses, a investimentos no exterior.

16 As principais fontes de informação usadas nesta seção são Bakker e Chapple (2002) e Aryioshi et al (2000).

Page 17: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

17

Enquanto França e Japão fornecem exemplos do uso de restrições de natureza

administrativa à circulação internacional de capitais, os Estados Unidos, apesar de sua

postura geralmente liberalizante, oferece pelo menos um exemplo de controles através de

incentivos de mercado. Em 1963, para estancar uma fuga de capitais para a Europa,

motivada principalmente pelo diferencial entre as taxas de juros mais altas naquele

continente e as taxas mais baixas no mercado americano, o governo americano criou o

Imposto de Equalização de Juros. Este imposto cobriria a diferença, para os capitais

tomados emprestados nos Estados Unidos por aplicadores na Europa, entre as duas taxas de

juros, de modo a desestimular a tomada de empréstimos no mercado americano para

investimento no mercado financeiro europeu. Não se adotou nenhuma restrição quantitativa

à saída de capitais, apenas tentou-se remover o incentivo a esse movimento.

Controles sobre saída de capitais também foram utilizados na Espanha quando da crise do

sistema monetário europeu, em 1992. A adoção de controles na Espanha foi explicada por

razões semelhantes às que levaram a Malásia, em 1998, a fazer o mesmo: evitar a alta da

taxa de juros doméstica que seria necessária para fazer reverter fugas de capitais. No caso

espanhol, as medidas de controle adotadas tentavam focalizar operações específicas,

particularmente aquelas envolvendo capitais especulativos. O instrumento usado foi a

imposição de depósitos compulsórios sobre as posições em moeda estrangeira dos bancos

espanhóis e sobre empréstimos desses bancos a não-residentes. Também foram impostos

depósitos compulsórios sobre posições dos bancos espanhóis em agências no exterior.

Dentre os instrumentos utilizados por países em desenvolvimento, encontramos também,

com muita freqüência, medidas de natureza administrativa. O exemplo talvez mais

conspícuo da adoção de controles de capitais é o da República Popular da China, onde

transações de capitais são simplesmente dependentes de autorização específica. Em outras

palavras, não são as restrições que são especificadas, mas, ao contrário, as exceções. As

operações financeiras com o exterior, de entrada ou de saída, são examinadas em detalhe,

com apoio em exigências estritas de documentação. Também no outro exemplo citado com

freqüência, a Índia, apesar de movimentos na direção de alguma liberalização, predomina a

utilização de restrições de natureza quantitativa e administrativa a transações de capitais.

Page 18: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

18

Já países que seguiram uma estratégia mais definidamente liberalizante tendem ou a

suprimir controles ou a adotar instrumentos amigáveis ao mercado. Neste caso, não se

proíbem ou se limitam transações de tipos determinados, mas, como no caso americano

citado acima, tenta-se desestimular certas formas de movimento de capitais. O exemplo

mais citado é o chileno nos anos 1990, que foi seguido de perto por outros países, inclusive

o Brasil em torno da implementação do Plano Real, pela Colômbia entre 1993 e 1998, pela

Tailândia no período entre 1995 e 1997 e pela Malásia em 1994. Na década de 1990, o

principal problema a levar ao emprego de controles não era a possibilidade de fugas de

capitais (ainda que estas tenham ocorrido de tempos em tempos), mas a superabundância de

liquidez no sistema monetário internacional. Esse excesso de liquidez dava origem a

amplos movimentos de entradas de capitais em países em desenvolvimento, valorizando a

moeda local (prejudicando, com isso, as exportações do país) e pressionando a oferta

doméstica de liquidez (muitas vezes, como nos casos latino-americanos, em países que

tentavam adotar planos de estabilização de preços). A alternativa à restrição de entrada de

capitais nesses países seria a colocação de grandes volumes de dívida pública no mercado

doméstico para absorver o excesso de liquidez. Os limites desta estratégia eram dados, no

entanto, pela necessidade de evitar-se sobrecarregar-se as finanças públicas com o serviço

de uma dívida crescente.17

O instrumento usado em todos os países listados no parágrafo anterior foi a imposição de

depósitos compulsórios, geralmente não remunerados e resgatáveis depois de um período

variável de país a país, mas sempre relativamente longo, sobre entradas de capitais

estrangeiros (a Malásia, tal como será visto na próxima seção, adotou também instrumentos

de controles administrativos). No caso chileno, os depósitos tinham de ser feitos sobre

entradas de capitais de todos os tipos. Esperava-se que isto favorecesse os capitais de longo

prazo, nos quais o custo de manutenção de reservas seria diluído no tempo, o que as

evidências indicam ter sido obtido.

17 Cuidado que, na verdade, não foi tomado no Brasil, especialmente no primeiro governo F.H. Cardoso, levando a um crescimento explosivo da dívida pública.

Page 19: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

19

As experiências citadas não foram, de modo algum, únicas ou excepcionais. Na verdade,

numa perspectiva temporal mais longa, a liberalização alcançada atualmente é mais

excepcional, desde o início do século passado, que a adoção de controles de capitais. De

modo geral, construiu-se uma tecnologia de controle, pela qual entradas excessivas de

capitais podem ser evitadas por instrumentos amigáveis ao mercado, como a imposição de

requisitos de reservas sobre esses fluxos, enquanto saídas parecem ser mais eficientemente

controladas por restrições de natureza administrativa, como proibições e imposição de

limites quantitativos.

5. Controles de Capitais na Malásia18

Mais recentemente, houve dois períodos em que a Malásia adotou controles sobre o fluxo

de capitais. No início de 1994, introduziu controles sobre a entrada de capitais, já que a taxa

de juros doméstica e a expectativa de apreciação da sua moeda, atraíam volumosas quantias

de capitais de curto prazo para a sua economia. Aplicações de prazos mais longos também

eram atraídas, já que o país apresentava sinais de estabilidade macroeconômica duradoura

associada a uma forte perspectiva de crescimento. As medidas adotadas foram as seguintes:

(1)-os residentes foram proibidos de vender ativos financeiros para não-residentes com

prazo de maturidade inferior a um ano;

(2)-os bancos comerciais foram proibidos de realizar certas transações financeiras com não-

residentes;

(3)-o endividamento bancário no exterior foi limitado e

(4)-parte das aplicações de bancos estrangeiros em ativos domésticos era não-remunerada.

No final de 1994, as medidas foram relaxadas já que os seus objetivos foram alcançados:

houve a redução do fluxo do capital de curto prazo e a expansão monetária decorrente desse

fluxo foi, portanto, contida. Houve, no segundo semestre daquele ano, uma forte redução no

passivo externo dos bancos, enquanto que o fluxo de capitais de prazos mais longos não foi

Page 20: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

20

afetado. Os controles, dessa forma, se mostraram efetivos em reduzir o volume, assim

como em alterar os prazos de permanência dos capitais. Assim, as pressões sobre o

mercado cambial foram dissolvidas.

O segundo episódio, e mais interessante como experiência a ser analisada de controles, foi

o da saída de capitais da Malásia, durante a crise asiática de 1997-8, em que o ringgit, a

moeda malaia, se desvalorizou de aproximadamente 2,50 para 4,20 por dólar americano

desde o final do primeiro semestre de 1997 a agosto de 1998 – apesar da economia da

Malásia apresentar sólidos fundamentos (Aryioshi et al, 2000, p.100)19. A Malásia tem uma

característica muito especial. Sua moeda possuía um forte mercado offshore (fora das

fronteiras), especialmente, em Cingapura, uma cidade-país localizada próximo à Malásia.

Portanto, bancos no estrangeiro recebiam a moeda malaia (inclusive na forma de depósitos)

e podiam convertê-la em moeda estrangeira, ou seja, o mercado offshore podia se

transformar numa porta para a fuga de capitais e, então, era um mercado que, em algum

grau, podia ter influência sobre a taxa ringgit-dólar. Sendo assim, o controle sobre o

movimento de saída de capitais na Malásia ocorreu também sobre o movimento de ringgit

através das fronteiras malaias.

No dia primeiro de setembro de 1998, foi imposto um amplo conjunto de instrumentos de

controles sobre a saída de capitais para reduzir a pressão latente de desvalorização da

moeda doméstica. Os investimentos diretos estrangeiros e as transações internacionais

comerciais ficaram isentos. No segundo semestre de 1997, a fuga de capitais tinha atingido

cifras consideráveis e o nível de reservas do Banco Central estava muito baixo (no início de

1997, suas reservas somavam mais de 27 bilhões de dólares; no início de 1998, somavam

menos que 21 bilhões). Os controles e medidas adotadas visavam desmontar o mercado

offshore de moeda doméstica, reduzir a atividade especulativa contra o ringgit, impedir a

fuga de capitais e alongar o perfil das aplicações de não-residentes na Malásia, sem recorrer 18 As principais fontes de informação usadas nesta seção são Aryioshi et al (2000), Tamirisa (2004) e Kaplan & Rodrik (2001). 19 A economia malaia apresentava, então, dados relativamente seguros. O seu PIB cresceu, em 1996, 8,6%, em 1997, cresceu 7,5%. Sua inflação nesse período era inferior a 3%, o desemprego também. Era reconhecido que o aumento da renda era dividido de forma equilibrada entre os diversos grupos sociais e

Page 21: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

21

a elevações da taxa de juros que estrangulassem a economia malaia, a exemplo do que

ocorreu com os países asiáticos que seguiram as políticas propostas pelo FMI. Três blocos

de medidas foram adotados.

O primeiro bloco de medidas visava desmontar o mercado offshore de ringgit e,

simultaneamente, reduzir a oferta de moeda doméstica para aqueles que especulavam

contra o valor em dólares do ringgit. A medidas foram as seguintes:

(1)-repatriação obrigatória de todos os recursos legalmente mantidos em ringgit fora do

país por parte de residentes; os bancos malaios foram proibidos de transacionar com ringgit

no exterior (antes, existiam limites para essas transações);

(2)-limites foram impostos sobre o carregamento de recursos em ringgit por parte de

viajantes residentes ou não-residentes (antes, não existiam limites);

(3)-os bancos malaios estabelecidos no país ou no exterior foram proibidos de realizar

certas transações financeiras específicas que possibilitavam a fuga de capitais em ringgit (o

que antes existia eram limites para essas transações);

(4)-residentes foram proibidos de conceder e de obter crédito em ringgit de não-residentes

(antes, existiam limites para essas operações);

(5)-todas as transações comerciais com o exterior foram obrigadas a se realizar em moeda

estrangeira;

(6)-medidas legais foram reativadas com o objetivo de proibir que ações de empresas

malaias fossem negociadas em Cingapura (tais negociações eram em ringgit).

O segundo bloco de medidas objetivava impedir a saída de capitais de residentes e de não-

residentes:

(1)-necessidade de aprovação, para não-residentes, de conversão de moeda doméstica

depositada em bancos malaios no exterior em moeda estrangeira, salvo se tal operação

fosse para comprar ativos malaios (anteriormente, não existia qualquer restrição dessa

natureza);

étnicos. Havia investimentos elevados em educação. Somente uma variável não era positivamente avaliada pelos mercados financeiros e o FMI, a relação dívida/PIB: era um pouco menor que 60%.

Page 22: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

22

(2)-não-residentes ficaram impedidos de repatriar recursos obtidos com a venda de ativos

financeiros da Malásia por doze meses, a contar da data da transação de venda

(anteriormente, não existia qualquer restrição dessa natureza);

(3)-necessidade de aprovação prévia para realização de investimentos no exterior além de

certos limites por parte de residentes, independentemente da forma da transação (antes tal

medida era aplicada somente a empresas residentes endividadas internamente);

(4)-a quantidade de remessa de recursos de dólares ao exterior por parte de residentes foi

limitada de acordo com a quantidade de recursos trazidos para a Malásia por não-residentes

(antes, era necessário a aprovação de operações de exportação de moeda estrangeira, mas

não havia qualquer limite).

O terceiro, e último, bloco de medidas, adotado em 15 de fevereiro de 1999, objetivava

desencorajar os investimentos em portfolio de curto termo e, ao mesmo tempo, permitir a

saída de capitais de forma não-abrupta. As medidas foram as seguintes:

(1)-para investimentos feitos antes de 15 de fevereiro daquele ano - alíquotas regressivas de

imposto (relativas ao tempo de permanência) sobre a saída de capitais de não-residentes

oriundos da venda de investimentos financeiros (ações, títulos públicos e outros papéis)

foram estabelecidas – 30% se o principal fosse repatriado menos que sete meses depois da

data de entrada, 20% se fosse repatriado entre sete e nove meses, 10% para a saída de

capitais que permaneceram nove a doze meses e não havia alíquota para a saída de recursos

de duração superior a doze meses (não havia imposto sobre a remessa de lucros, juros,

dividendos e aluguéis);

(2)-para investimentos feitos depois de 15 de fevereiro - alíquotas regressivas de imposto

(relativas ao tempo de permanência) sobre a saída de capitais de não-residentes oriundos

dos ganhos de venda de investimentos financeiros (ações, títulos públicos e outros papéis)

foram estabelecidas (os investimentos feitos antes de 15 de fevereiro eram tributados sobre

o principal; aqueles feitos depois eram tributados sobre a variação do capital) – nenhuma

taxa era cobrada sobre a saída de recursos na forma de remessas de juros, dividendos e

aluguéis – as alíquotas cobradas eram de 30% sobre os ganhos de capital obtidos em menos

que doze meses e 10% sobre os ganhos obtidos após doze meses.

Page 23: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

23

Embora essas últimas medidas adotadas objetivassem explicitamente reduzir a velocidade

de saída dos capitais, a taxação dos ganhos obtidos sobre os capitais que entraram depois de

15 de fevereiro tinha o efeito potencial também de reduzir a entrada de capitais de curto

prazo. O investidor ao comprar um lote de ações já descontaria do ganho esperado a

alíquota de 30%, no caso de realizar um investimento de curto termo, ou de 10%, no caso

de realizar um investimento de maturidade superior a um ano. Embora a taxação somente

ocorresse na saída, era um fator inibidor à entrada de capitais voláteis que se dirigiriam

particularmente à Bolsa de Kuala Lumpur.

Mediante a apresentação dos documentos necessários, os bancos comercias (por delegação

do Banco Negara, o banco central malaio) realizavam diversas transações referentes ao

controle de capital – todas as transações com seus respectivos documentos eram

apresentadas de forma freqüente ao Banco Negara. Não foram estabelecidas penalidades no

caso das medidas de controles serem burladas; entretanto, os bancos eram monitorados com

certo cuidado pelas autoridades que utilizavam também o seu poder de convencimento e

pressão para reforçar o cumprimento dos controles.

Os controles sobre a saída de capitais foram estabelecidos em uma situação de crise com

objetivo de superá-la e de recuperar a autonomia sobre a política monetária que teria que

manter as taxas de juros em patamares elevados para conter a fuga de capitais, dissolver a

pressão especulativa sobre a taxa de câmbio e reduzir a perda de reservas por parte do

Banco Negara – tal como confirmado por um técnico do FMI: “o principal objetivo das

medidas [de controle] era recuperar a independência da política monetária...e estabilizar os

fluxos de capitais de curto termo” (Ötker-Robe, em Aryioshi et al, 2000, p.96). A

introdução das medidas de controles foram acompanhadas da fixação da taxa de câmbio

(que estava sob um regime flutuante), da redução da taxa de juros acompanhada de medidas

de ampliação do crédito e da manutenção da política fiscal de gastos, iniciada nos primeiros

dias de 1998, que tinham o objetivo explícito de estimular o crescimento econômico.

Page 24: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

24

Os resultados dos controles foram extremamente positivos. O mercado offshore de ringgit

foi eliminado. Os controles foram efetivos, isto é, não houve fugas significativas por canais

legais ou ilegais. Não surgiu, de forma significativa, qualquer mercado paralelo de dólares.

Não houve subvalorização das exportações, nem sobrevalorização das importações (é o que

mostra um relatório do Banco Morgan Stanley citado no estudo de Aryioshi et al, 2000,

p.99, nota 100) O mercado legal futuro de dólares se manteve. Assim, o fluxo de saída de

capitais iniciado no segundo semestre de 1997 foi contido. A pressão especulativa foi

dissolvida e o câmbio se manteve fixo. Emergiram, então, as condições favoráveis para que

fossem mantidas as políticas monetária e fiscal expansionistas.20

Apesar da eficácia dos controles e da manutenção das políticas expansionistas, o PIB no

ano de 1998 contraiu-se em 6,7%. Contudo, a recuperação foi rápida, e as reservas no início

de 1999 já alcançavam um patamar superior a 29 bilhões de dólares – essa rápida

recuperação das reservas também pode ser explicada pela queda das importações devido à

queda da demanda no ano de 1998 e o retorno da confiança do investidor financeiro na

estabilidade do ringgit, esvaziando planos especulativos. O sucesso das medidas de

controles na Malásia pode ser atribuído em grande parte: (1)-à abrangência dos

instrumentos de controles que evitaram truques legais ou ilegais que poderiam burlar as

regras estabelecidas – não existiam exceções às regras; quando elas existem, os capitais

podem tomar a forma das exceções e fugir e (2)-ao esforço do Banco Negara em ampliar a

transparência e o entendimento das medidas adotadas para reduzir as resistências.21

A reação externa, contudo, não foi favorável às medidas. As agências de avaliação de risco

(Moody’s, Thompson Watch e Fitch) reduziram o rating de crédito soberano da Malásia

justificando que as medidas de controles representavam uma ameaça às transações

comerciais com o exterior e aos investimentos diretos – que eram as mais importantes

variáveis que explicavam o rápido desenvolvimento econômico do país. A Malásia foi

retirada do índice do Morgan Stanley de investimentos em mercados emergentes que

20 Em recente estudo econométrico do FMI, Tamirisa (2004) concluiu que os controles sobre a saída de capitais facilitaram a redução da taxa de juros na Malásia durante a crise. 21 O Banco Negara fazia reuniões e seminários para investidores com o objetivo de dirimir dúvidas sobre as medidas de controles adotadas e, posteriormente, emitiu notas de esclarecimento e press releases que foram compilados na publicação A Guide to the Exchange Control Rules.

Page 25: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

25

orienta os administradores dos grandes fundos internacionais. O Morgan Stanley anunciou

que a retirada tinha sido para sempre e que a inclusão da Malásia no índice anteriormente

tinha sido uma aberração (ver Aryioshi et al, 2000, p.104, nota 112). Assim, o custo de

captação externa por parte do governo, bancos e empresas aumentou. O FMI também

encontrou uma fórmula para tentar enfraquecer as medidas. O Fundo promoveu uma

imediata averiguação local para determinar se as medidas estavam de acordo com o Artigo

VIII dos estatutos da instituição que se refere às “obrigações gerais dos membros”.22 Por

fim, o FMI considerou que o conjunto de medidas estava em conformidade com o Artigo,

mas avaliou que sua implementação deveria, ainda assim, ser mantida sob

acompanhamento.

O apoio doméstico às medidas de controles foi rapidamente conquistado. A queda da taxa

de juros e a estabilidade cambial foram vistos pelo empresariado malaio como algo

extremamente positivo. Os empresários sob aquelas condições poderiam planejar receitas,

custos e compromissos de dívidas futuros. A comunidade financeira internacional relaxou

as suas restrições já em 1999. A Malásia voltou ao índice de referência para investimentos

financeiros publicado por bancos e instituições privadas (inclusive do Morgan Stanley). O

spread de juros cobrados sobre os títulos soberanos caiu de aproximadamente 10% ao final

de 1998 para menos que 2% no segundo trimestre de 1999.

Em estudo bastante conhecido, Kaplan e Rodrik (2001) constataram que a recuperação da

crise de 1997-8 pela Malásia foi mais rápida e com menos custos quando comparada com a

da Tailândia e Coréia que seguiram os programas de recuperação/empréstimos do FMI. Os

autores compararam a situação desses países um ano depois de terem adotado controles de

capitais (no caso da Malásia) ou programas orientados pelo FMI (no caso dos outros dois

países). A recuperação malaia foi, de fato, impressionante. A indústria cresceu 8,5%, em

1999, e o PIB cresceu neste ano 5,4%; em 2000, cresceu 7,8%, e em 2001, 7,0%. A

inflação que em 1998 foi de 5,3%; em 1999, foi de 2,8%, em 2000, de 2,2% e em 2001, de

2,8%. A relação dívida/PIB que era a única variável mal avaliada pelo FMI e a comunidade

financeira em 1996 quando atingiu um patamar próximo a 60%, se manteve em trajetória 22 O artigo VIII afirma que os membros do Fundo não podem impor restrições ou práticas discriminatórias ao

Page 26: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

26

ascendente do período da crise aos dias de hoje em que está em um patamar superior a

70%.

Por último, cabe ser ressaltado que a Malásia fez exatamente o oposto do que sugere o

receituário padrão do FMI para o enfrentamento de crises de fuga de capitais que se

transformam em crises cambiais. O FMI propõe a flutuação da taxa de câmbio, a Malásia

fixou a taxa de câmbio. O FMI sugere a elevação da taxa de juros, a Malásia a reduziu. O

FMI receita a redução dos gastos públicos para estabilizar (isto é, reduzir) a relação dívida

pública/PIB, a Malásia aumentou os gastos públicos e impôs uma trajetória ascendente para

esta relação. Mas tudo isto somente foi possível porque a Malásia neutralizou, através da

adoção de controles, os possíveis impactos que a plena mobilidade de capitais poderia ter

causado na sua economia. Sem a adoção de controles de capitais, a estratégia malaia

expansionista de enfrentamento da crise não teria sido possível. Na ausência de controles,

somente restaria a opção de adoção da estratégia recessiva do FMI.

Importante ainda ser mencionado é que se o mercado financeiro ameaçar com um novo

ataque contra o ringgit, poderá ser punido novamente com a perda de liquidez das suas

aplicações, então, será certamente mais cauteloso neste país. Portanto, os controles

adotados no passado ainda são hoje um valioso ativo nas mãos da Malásia. O lastro desse

ativo, além da experiência bem-sucedida de 1998-9, é o Artigo VI dos estatutos de

fundação do FMI.

6. Conclusão

Controles de capitais têm sido objeto de intensa crítica de economistas liberais,

especialmente na última década. Alega-se que tais controles desestimulam investidores

externos e, com isso, contribuem para manter elevadas as taxas de juros domésticas nos

países que se recusam a abrir suas contas de capitais. Estes argumentos, como mostrado

amplamente na literatura sumariada neste trabalho, são não apenas falsos, mas

pagamento de compromissos correntes.

Page 27: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

27

profundamente irresponsáveis. Mesmo defensores da conversibilidade das contas de

capitais, jargão do FMI para a abertura financeira, têm sido incapazes de demonstrar seus

benefícios. Por isso mesmo, concedem, ainda que com mal-disfarçado desgosto, que o

assunto deve ser mais estudado, para que as virtudes da liberalização possam ser

eventualmente descobertas. Outros, como Stanley Fischer e alguns economistas brasileiros,

preferem a via teológica: simplesmente crêem que estas virtudes existem e se os estudos

empíricos não conseguem encontrá-las, pior para os estudos empíricos.

Neste trabalho mostramos que a evidência disponível é amplamente favorável à adoção de

uma atitude no mínimo cautelosa quanto à conveniência de países em desenvolvimento

eliminarem restrições sobre a movimentação internacional de capitais. Mostramos que

mesmo países desenvolvidos apenas muito recentemente convenceram-se da desejabilidade

de contas de capitais abertas. Muitos mantém mesmo várias restrições, ainda que sob

mantos variados, como o da regulação financeira doméstica de natureza prudencial. Mais

relevante para países em desenvolvimento é a experiência de países como a Malásia, que

administrou uma grave crise de balanço de pagamentos através da imposição de controles, e

que hoje é amplamente apontada como um exemplo de sucesso, até mesmo pelos círculos

que previram sua descida ao inferno quando da adoção daqueles instrumentos. O exemplo

da notável prosperidade chinesa e, em menor escala, indiana, países que não se deixaram

levar pelo canto de sereia da liberalização tornou-se quase um clichê.

A lição da experiência, até o presente, é clara. A eliminação de controles de capitais expõe

as economias a turbulências, cujos benefícios são muito pequenos, provavelmente

inexistentes. A crença profunda e ilimitada na sabedoria espontânea dos mercados é matéria

para culto, não para a prática de política econômica.

Referências A. Aryioshi, K. Habermeier, B. Laurens, I. Otker-Robe, J. Canales-Kriljenko e A. Kirilenko, Country experiences with the use and liberalization of capital controls, Washington: IMF, Occasional Papers 190, 2000. A. Bakker e B. Chapple, Advanced country experiences with capital account liberalization, Washington: IMF, Occasional Papers 214, 2002.

Page 28: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

28

F. Carvalho, “Keynes on probability, uncertainty and decision-making”, Journal of Post Keynesian Economics, 11 (1), Fall 1988. F. Carvalho, “Economic policies for monetary economies”, Revista de Economia Política, 17 (4), out/dez 1997. F.Carvalho e J. Sicsú, Controvérsias Recentes sobre Controles de Capitais, Revista de Economia Política, 24(2), abr/jun 2004 H.-J. Chang, Kicking away the ladder. Development strategy in historical perspective, Londres: Anthem Press, 2002. R. Cooper, “Should capital controls be banished? “, Brookings Papers on Economic Activity, 1999: 1. P. Davidson, The case for regulating international capital flows, trabalho apresentado ao Seminario sobre a Regulação dos Movimentos de Capitais, Social Market Foundation, Londres, 17/11/1998. R. Dornbusch, “Capital controls: an idea whose time is past”, Essays in International Finance, n. 207, Princeton, 1998. H. Edison, R. Levine, L. Ricci e T. Slok, International financial integration and economic growth, IMF WP/02/145, 2002 S. Fischer, “Capital account liberalization and the role of the IMF”, Essays in International Finance, n. 207, Princeton, 1998. International Monetary Fund, The adoption of Indirect Instruments of Monetary Policy, IMF Occasional Paper 126, 1995. R. B. Johnston e N. Tamirisa, Why do countries use capital controls?, IMF WP/98/181, 1998. E. Kaplan e D. Rodrik, Did the Malaysian Capital Controls Work?, NBER Working Paper n.8142, 2001. J.M. Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1964. J.M. Keynes, “The general theory of employment”, em D. Moggridge (ed), The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 14, Londres: MacMillan, 1973. J. Kregel, “Markets and institutions as features of a capitalistic production system”, Journal of Post Keynesian Economics, 3 (1), Fall 1980.

Page 29: Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando ...

29

H. Minsky, “Money, financial markets, and the coherence of a market economy”, Journal of Post Keynesian Economics, 3 (1), Fall 1980. D. Moggridge (org), The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 25, Londres: MacMillan, 1980. C. Neely, “An introduction to capital controls”, St Louis Federal Reserve Bank Review, 81 (6), nov/dez 1999. D. Rodrik e F. Rodriguez, “Trade policy and economic growth: a skeptic’s guide to the cross-national evidence”, ksghome.harvard.edu/~.drodrik.academic.ksg/skepti1299.pdf, 2000. N. Tamirisa, Do Macroeconomic Effects of Capital Controls Vary by their Type? Evidence from Malaysia, IMF WP/04/3, 2004. H. Edison, R. Levine, L. Ricci e T. Slok, International financial integration and economic growth, IMF WP/02/145, 2002 C. Wyplosz, “Financial restraints and liberalization in postwar Europe”, em G. Caprio, P. Honohan e J. Stiglitz (orgs) Financial Liberalization, How Far, How Fast, Cambridge: Cambridge U Press, 2001.