Teorias e Práticas de letramento

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Teorias e práticas de letramento

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Teorias e práticas de letramento

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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

Reitor

Rui Getúlio Soares

Vice-Reitora de Graduação

Eliane Lucia Colussi

Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Carlos Alberto Forcelini

Vice-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários

Cléa Bernadete Silveira Netto Nunes

Vice-Reitor Administrativo

Nelson Germano Beck

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASILLuiz Inácio Lula da Silva

MINISTRO DA EDUCAÇÃOFernando Haddad

SECRETÁRIO EXECUTIVOJosé Henrique Paim Fernandes

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISASEDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP)Reynaldo Fernandes

DIRETORIA DE TRATAMENTO E DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES EDUCACIONAIS (DTDIE)Oroslinda Maria Taranto Goulart

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Lia ScholzeTania M. K. Rösing

(Org.)

2007

Brasília-DF

UPF

Teorias e práticas de letramento

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Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicações (CGLP)Lia Scholze

Coordenadora de Produção EditorialRosa dos Anjos Oliveira

Coordenadora de Produção VisualMárcia Terezinha dos Reis

Editor ExecutivoJair Santana Moraes

RevisãoMaria Emilse LucatelliLiana Langaro BrancoSabino Gallon

CapaRaphael Caron Freitas

Projeto gráficoSirlete Regina da Silva

Diagramação e Arte finalNiepson Ramos Raul

Tiragem: 1.000 exemplares

Este livro, no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzi-do por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora.

Editoria Inep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo I, 4º Andar, Sala 418, CEP: 70047-900 – Brasília-DF – Brasil Fones: (61)2104-8438, (61)2104-8042 – Fax: (61)2104-9812 – [email protected]

Distribuição Inep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio TeixeiraEsplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo II, 4º Andar, Sala 414, CEP: 70047-900 – Brasília-DF – Brasil Fone: (61)2104-9509 – [email protected] – www.inep.gov.br

A exatidão das informações e os conceitos e opiniões emitidos são de exclusiva responsabilidade dos autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

Teorias e práticas de letramento / organização, Lia Scholze, Tania M. K. Rösing. –Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007.297 p.

ISBN 978-85-75154-07-6

1. Letramento. 2. Leitura. 3. Escrita. I. Scholze, Lia. II. Rösing, Tania M. K. III. Universidade de Passo Fundo IV. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

CDU 372.415

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PrefácioAndré Lazaro.............................................................................7

ApresentaçãoA escrita e a leitura: fulgurações que iluminamLia Scholze e Tania M. K. Rösing..............................................9

Acesso social, práticas educativas e mudançasteórico-pedagógicas ligadas ao género textualAna Maria Raposo Preto-Bay...................................................17

A escrita e o outro/interlocutor no dizer das criançasCancionila Janzkovski Cardoso...............................................37

Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade de processos de ensino-aprendizagemda linguagem escritaCecília Goulart.........................................................................61

Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referência de Literatura e Multimeios – Mundo da LeituraEliana Teixeira........................................................................83

O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafiosJosé Luiz Fiorin........................................................................95

Pela não-pedagogização da leitura e da escritaLia Scholze............................................................................117

Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?Ludmila Thomé de Andrade .................................................127

Para ler a narrativa literáriaMárcia Helena Saldanha Barbosa........................................145

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Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?Maria do Rosário Longo Mortatti..........................................155

Letramento na Maré: uma proposta metodológicade ensino da leitura e da escrita para jovens e adultosMarlene Carvalho.................................................................169

A leitura literária e o hipertexto na sala de aula:do centro à periferiaMiguel Rettenmaier...............................................................191

O professor e o erro no processo de alfabetizaçãoNatália Duarte.......................................................................221

Literatura infantil e introdução à leituraRegina Zilberman..................................................................245

Estética da recepção: a singularidade do leitore seu papel de co-produtor do textoRosemari Glowacki................................................................255

Letramento: conhecimento, imaginação e leiturade mundo nas salas de inclusão de crianças deseis anos no ensino fundamentalSilviane Barbato....................................................................273

A leitura do texto teatral na escolaTania M. K. Rösing.................................................................289

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O presente trabalho, organizado primorosamente pelas professoras Lia Scholze e Tania M. K. Rösing, é uma reflexão sobre o conceito de letramento e suas práticas e mostra-se oportuno na medida em que vem se somar à discussão que o Comitê Nacional do Livro e Leitura do MEC está promovendo internamente, visando à constituição de uma política de leitura para o país.

Assim como o processo do letramento é complexo e abrangente envolvendo diversas práticas políticas e sociais, além da aquisição da competência da leitura e da escrita, o processo da construção das diretrizes do plano em elaboração também exige uma visão mais abrangente. Os eixos principais para iniciar a discussão sobre uma política de leitura, tendo em vista o “Plano Nacional do Livro e Leitura”, não podem deixar de contemplar aspectos como a democratização do acesso da informação científica, didática ou cultural em diferentes suportes; a formação de leitores, incluindo mediadores de leitura, gestores e educadores; pesquisa e avaliação sobre leitura e a produção de materiais científicos, didáticos e culturais e de leitura, como a obra ora apresentada.

O PNLL é um conjunto de projetos, programas, atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas em desenvolvimento no país, empreendidos pelo Estado (em âmbito federal, estadual e municipal) e pela sociedade. A prioridade do PNLL é transformar a qualidade da capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia do brasileiro.

A interlocução, portanto, entre as instâncias acadêmicas e institucionais – aqui representadas pela Universidade de Passo Fundo e pelo MEC/Inep – é pertinente e necessária na medida em que a universidade, formadora de recursos humanos, encontra no MEC o espaço para a disseminação desta reflexão.

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Prefácio

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A presente obra consegue reunir a reflexão de pensadores de várias instituições em caráter multidisciplinar e contempla diferentes olhares sobre a questão do letramento.

André LazaroSecretário Executivo do MEC e coordenador

do Comitê Nacional de Leitura do MEC.

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A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam

Eis que uma fulguração me ilumina. O que acontece diante de mim – uma mulher que lê notícias de mares distantes para duas crianças, sentadas tranqüilamente numa calçada – é uma linda e comovente aula. Em plena rua, ela ensina a ler, ensina a entender o que se lê, ensina a sentir as emoções escritas, anuncia a aflição de viver e os perigos da vida, prenuncia, enfim, que a vida inclui a morte.

Alcione Araújo, “Notícias de mares distantes”, de Escritos na água

O contato com o texto escrito é, em essência, um ato repleto de vida, como nos faz crer a epígrafe deste texto. Está, ou deveria estar, no cotidiano de todos, nas práticas diárias de comunicação e nas bases do conhecimento de toda a sociedade. Saber ler e escrever é, para o indivíduo, uma garantia de existência política e cultural num país, que, por sua vez, se pretenda letrado e, assim, desenvolvido.

Nesse sentido, alicerçadas na diversidade de situações de vida e na pluralidade de circunstâncias comunicativas, em mais de um tipo de demanda e em mais de um espaço social, a leitura e a escrita deixam de se associar à mera habilidade de reconhecimento e de manipulação das letras do alfabeto. São instrumentos para se inserir na realidade, para compreendê-la e, também, para alterá-la, como ferramentas do entendimento. Ler e escrever não são apenas habilidades estabelecidas em torno da decodificação; muito mais do que isso, saber ler e escrever significa apropriar-se das diversas competências relacionadas à cultura orientada pela palavra escrita, para, dessa forma, atuar nessa cultura e, por decorrência, na sociedade como um todo.

A educação, no que diz respeito a esse ato de inclusão, que é letrar – mais do que alfabetizar –, tem uma função

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Apresentação

mediadora. É pela ação educativa, na sala de aula ou em outros contextos, além do escolar, que se promovem a aquisição e a utilização crítica da leitura e da escrita. E essa ação transformadora, tanto do indivíduo quanto da sociedade da qual ele faz parte, é, acima de tudo, um processo em constante avaliação. Em uma de suas facetas, esse processo se coordena articulado ao mundo, numa prática que habilita os sujeitos a dialogarem com as complexidades do texto escrito; em outra, de forma contínua, reorganiza-se politicamente, viabilizando aos sujeitos envolvidos, pela leitura e pela escrita, a reflexão e a atuação no que tange às dinâmicas sociais; em outra, ainda, esse processo examina repetidamente os próprios métodos e conceitos, à medida que tanto os indivíduos quanto o mundo se transformam. De alguma maneira, o letramento, tanto como estado ou condição de um indivíduo ou de um grupo, quanto como conceito, estabelece-se num processo sem fim, num caminho com pontos provisórios de chegada, de partida, de redirecionamentos... Este livro é mais um passo nesse processo de reflexão sobre o letramento, sobre as suas teorias, sobre suas práticas.

Contando com estudos de diversos teóricos, a obra articula-se, primeiramente, com o artigo de Ana Maria Raposo Preto-Bay. Em seu texto, a pesquisadora aborda o tema da literacia relacionado à questão do gênero textual. Para a autora, “saber ‘ler’ não significa ‘saber ler’”. Em sua concepção, a leitura e sua interpretação encontram-se problematizadas pelos diferentes contextos em torno da produção e da recepção dos textos nos diferentes gêneros aos quais podem pertencer. Por isso, há a necessidade de uma pedagogia ao gênero, a fim de que “os aprendentes tenham a oportunidade, no contexto educativo, de explorar relações sociais e a forma como estas se desenrolam e constituem através dos textos”. Cancionila Janzkovski Cardoso, em “A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças”, discute o ato de escrever como um procedimento que, simulando uma situação imediata de comunicação, envolve em suas especificidades, “um enunciador – o escritor – em situação de comunicação que o distancia de seu interlocutor – o outro/leitor”. Tal aspecto exige, no caso da criança que aprende a escrever, um melhor controle sobre esse funcionamento psicológico específico, no qual a recepção se encontra fora de seu “aqui” e “agora”. Mediante tal perspectiva, a pesquisadora

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A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam

apresenta uma pesquisa realizada com alunos na 4ª série de ensino fundamental na qual procurou investigar “os níveis de reflexividade e de deliberação sobre o processo de escrita já desenvolvidos por crianças”.

Cecília Goulart, em “Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade de processos de ensino-aprendizagem da linguagem escrita”, pretende refletir sobre modos de alfabetizar na perspectiva do letramento social, na escola. Seu estudo, numa pesquisa concluída recentemente com crianças de quatro e cinco anos de uma creche universitária, pretende refletir sobre a importância que a noção de letramento pode ter para dar novos sentidos aos processos de aprendizagem da leitura e da escrita na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Eliana Teixeira, por sua vez, apresenta em seu artigo as práticas leitoras multimidiais no contexto do Centro de Referência de Literatura e Multimeios da Universidade de Passo Fundo (o Mundo da Leitura), as quais objetivam a formação do sujeito-leitor, a partir do contato com diferentes tipos de textos, nos mais diversificados suportes, embora com destaque ao texto literário.

Diante da constatação de que maioria dos estudantes termina o ensino médio com dificuldade para ler um texto de média complexidade e para redigir adequadamente textos, José Luiz Fiorin, em seu estudo, pretende mostrar os principais problemas do ensino de língua portuguesa nos níveis fundamental e médio, os quais se estabelecem, principalmente, na fundamentação em noções equivocadas a respeito do funcionamento, da estrutura e das funções da linguagem humana e, dentre outros importantes fatores, no ensino da leitura e da redação não fundamentado em teorias do discurso e do texto. Em “Pela não-pedagogização da leitura e da escrita”, Lia Scholze propugna a linguagem como representação de pensamentos, idéias, sentimentos do sujeito em uma dada cultura. Nesse sentido, o uso da linguagem, fora do propósito da escola, configura-se como um movimento incessante de incorporação de novas formas de expressão e de organização. Nessa nova ordem, segundo a estudiosa, cabe à escola, pela leitura, assumir a ampliação da imaginação criadora, desenvolvendo sujeitos questionadores e críticos dos arranjos da sociedade. Segundo a pesquisadora, “criadas as condições para a sua produção, seremos surpreendidos pelas

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Apresentação

crianças e pelos adolescentes que esperam por estes desafios e nos darão respostas consideradas inesperadas por aqueles que não costumam escutá-los”.

Perante a questão “Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?”, Ludmila Thomé de Andrade pretende apresentar uma reflexão sobre as condições de letramento de professores da escola básica que lidam com a linguagem. Nesse caminho, investiga as práticas de ensino de leitura e de escrita na formação dos professores, tomando como campo de pesquisa um curso universitário de formação continuada oferecido aos professores de séries iniciais de escolas públicas. Suas conclusões apontam para a necessidade de se repensar as trajetórias de letramento docente: “Se queremos formar alunos leitores na escola básica, é preciso considerar processos possíveis para os professores se verem antes como produtores de linguagem”. No que se refere à narrativa literária, para Márcia Helena Saldanha Barbosa, investir no letramento é proporcionar ao sujeitos uma experiência de leitura em que o encadeamento das ações que compõem a história e, também, a conexão entre todos os elementos do texto sejam percebidos e reconhecidos. É assim, segundo a pesquisadora, que as potencialidades da narrativa se concretizam e que a trama se atualiza na interação do texto com o leitor. Ilustrando essa concepção, Barbosa analisa o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis.

Em “Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?”, Maria do Rosário Longo Mortatti avalia o histórico recente do ensino da leitura e da escrita no Brasil, segundo os três modelos principais que orientaram esse ensino, a saber: o construtivismo, o interacionismo e o letramento. Para a autora, embora estabelecida em bases teóricas distintas, a prática pedagógica, ao tentar, com muita freqüência, conciliar esses modelos, tem incorrido, forçosamente, na combinação de elementos incompatíveis entre si, numa opção problematicamente eclética. Marlene Carvalho, em

“Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura e da escrita para jovens e adultos”, apresenta e avalia o Programa de Alfabetização desenvolvido por professores, estudantes e funcionário da UFRJ na Maré, “uma ampla área geográfica à margem da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, próxima do Aeroporto Internacional do Galeão e da Universidade Federal do Rio de Janeiro”.

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A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam

Em “A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia”, Miguel Rettenmaier propõe uma leitura hipertextual na mediação da leitura literária. Para isso, vale-se da leitura das mídias impressas nos textos jornalísticos para discutir temáticas atuais da sociedade, como a convulsão de violência ocorrida em maio de 2006 em São Paulo, e para introduzir, criticamente, as possibilidades interpretativas do texto literário. Nessa perspectiva, alicerça a leitura do literário à chamada “literatura marginal”, pretendendo rediscutir os conceitos sobre o que seja a leitura e o que pode se considerar literatura. Em outra ordem, mas na mesma problemática relacionada ao ensino da leitura e da escrita, Natália Duarte, em

“O professor e o erro no processo de alfabetização”, apresenta um diagnóstico que evidencia o fracasso da alfabetização no Brasil, discorre sobre as principais propostas de alfabetização atuais e fixa-se na alfabetização pós-construtivista. Em seu artigo, a autora propõe uma nova relação do professor com o “erro” do aluno, entendendo-o como fruto indispensável do diálogo entre sujeitos e o conhecimento, principalmente na aprendizagem da leitura e da escrita: “O ‘erro’ do aluno na escrita desvela o esquema de pensamento e hipótese que o aluno está vivenciando. É ele que possibilita apoiar a aprendizagem dos alunos, desde que o professor reoriente seu trabalho pedagógico para provocar e alimentar os esquemas de pensamento em construção”.

Em “Literatura infantil e introdução à leitura”, Regina Zilberman trata sobre o conceito de letramento associado à leitura literária infantil. Nesse âmbito, para a estudiosa, “a admissão ao mundo da literatura depende e ultrapassa a alfabetização e o letramento. Depende da alfabetização, enquanto envolve o domínio das técnicas de leitura e de escrita, e do letramento, na medida em que as práticas de leitura e escrita estão presentes em cada etapa da experiência do sujeito”. No trabalho de alfabetizar e de apresentar a literatura às crianças, Zilberman apresenta obras de escritores consagrados, como Erico Verissimo, Cecília Meireles, Mario Quintana e Ziraldo, os quais assumiram o desafio de recriar com qualidade estética as cartilhas de alfabetização. Rosemari Glowacki, por sua vez, pretende refletir sobre a teoria da estética da recepção, de Hans Robert Jauss, observando nessa corrente a descoberta do leitor co-produtor num processo de interlocução texto/leitor. Para a pesquisadora, as orientações

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Apresentação

teóricas dessa nova perspectiva sobre o leitor devem ter implicações na escola: “Segundo a Estética da Recepção, o contato com os livros, se o objetivo for construir leitores conscientes e felizes, deve ser iniciado o mais cedo possível, não só pelo manuseio dos textos, como também pela história contada, pela conversa ou pelos jogos rítmicos, no sentido de fazer amar a leitura, para que o leitor se sinta o protagonista do seu aprendizado, numa ponte que ligue a teoria e a prática, entre o universo estético e o universo real”.

Silviane Barbato, em “Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas de inclusão de crianças de seis anos no ensino fundamental”, reflete sobre as práticas de letramento no processo de alfabetização, considerando o desenvolvimento das crianças de seis anos que entram no primeiro ano do ensino fundamental e as metodologias de alfabetização no ensino de língua materna. Norteia suas considerações a condição de que as práticas de alfabetização sejam consideradas segundo a concepção de que “o processo de ensino-aprendizado é uma negociação entre o que se espera atingir em termos de objetivos, as habilidades de acordo com a série e as demandas das crianças em desenvolvimento”. Nessa negociação se integra uma pedagogia do diálogo, na qual, segundo Barbato, “a construção de significados é deslocada do eu e do tu para o inter, passando a abarcar também os instrumentos utilizados no processo de ensino-aprendizado e os procedimentos, inclusive discursivos, da interação nos modos comunicativos orais, escritos e visuais”. Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, ao final da obra, contrastando com várias décadas de desvalorização do texto teatral no meio escolar e nos cursos de letras, expõe, em “A leitura do texto teatral na escola”, as lacunas que se ampliam na formação humanista de jovens e adultos quando não têm acesso à leitura de textos da dramaturgia, ou, o que é ainda pior, a espetáculos teatrais. Para a pesquisadora, “a decisão de ler o texto teatral é uma atitude firme em direção ao entendimento da condição humana pela ampliação do imaginário.”

Teorias e práticas de letramento, pelo número de pesquisadores envolvidos e pela diversidade de olhares sobre as questões relativas à leitura e à escrita, é uma reunião de vozes não rigorosamente unidas por um referencial teórico monológico. O letramento, como conceito e, mesmo, como palavra ainda é lugar de discussões. Seus sentidos e suas

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A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam

aplicações dentro e fora da sala de aula não nos conduzem a definições, mas ao diálogo contínuo. Restará ao leitor, assim, ao fim e ao cabo do contato com cada um dos artigos deste livro, não a constatação inequívoca de um entendimento estabelecido, mas um convite à reflexão que cerca as complexidades pertinentes às dinâmicas da cultura escrita e a inserção, na escola ou além dela, dos sujeitos, nessa cultura. Restará, sobretudo, talvez, a certeza de que o contato com o mundo da escrita e da leitura é sempre uma fulguração a nos iluminar, pois guarda sempre em si a capacidade de um maior entendimento das coisas da vida.

Lia ScholzeTania M. K. Rösing

(Organizadoras)

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Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas

ligadas ao género textual

Ana Maria Raposo Preto-Bay*

Uma abordagem com base na literacia representa um estilo de ensino que os educadores devem considerar se querem preparar os aprendentes para uma participação completa em sociedades que progressivamente exigem competência em nível multilinguístico, multicultural e multitextual (Kern, 2000, p. 16).

Embora ainda não saibamos exactamente o que o termo “globalização” significa e quais as suas implicações e repercussões na vida da população mundial a curto e a longo prazo, o facto é que o seu uso é presentemente tão comum que já se tornou quase banal. A realidade que procura descrever é a realidade do início do século XXI – uma realidade difícil de descrever dada a sua complexidade e ambiguidade. A constante movimentação de pessoas e produtos, a falta de estabilidade dos mercados de trabalho em nível mundial e local, a diversificação e rápida restruturação de organizações e empresas e a reconfiguração de tarefas e responsabilidades que requerem adaptação a qualquer momento, todas elas intensificam esse sentido de incerteza a vários níveis.

Paralelamente, e não surpreendentemente, o acesso real aos meios de produção, consumo e participação social estão cada vez mais ligados à capacidade de adaptação a essas rápidas mudanças. Os avanços tecnológicos, de que quase

* Doutora em Psicologia Educativa e Tecnologia na área da aquisição lingüística. Leciona na Brigham Young University em Provo, Utah, nos Estados Unidos da América. Licenciada pela Universidade Clássica de Lisboa, faz investigação na área dos sistemas educativos e da literácia, entre outros.

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Ana Maria Raposo Preto-Bay

todas as comunidades humanas alargadas agora dispõem para a realização de intercâmbios sociais, culturais, económicos e políticos, requerem um nível de sofisticação que é, na realidade, responsável por uma ainda maior exclusão social daqueles que a eles não têm acesso. A participação social e laboral é, no século XXI, mais complexa. Enquanto, por exemplo, a economia industrial dependia de trabalhadores manuais, cujas qualificações se limitavam quase somente à capacidade de realizar uma mesma tarefa repetidas vezes, a nova sociedade e economia requerem dos seus participantes, entre outras, a capacidade de rápido pensamento crítico, resolução de problemas, argumentação e negociação e, talvez, acima de tudo, altos níveis de literacia.

A idade da informação é não só definida pelo acesso e controle de tecnologias e redes-chave, mas também pela livre circulação de grandes quantidades de dados, os quais são quase sempre codificados, catalogados e circulados pelo meio escrito. Neste sentido, a produção e o consumo de textos revelam-se progressivamente como catalisador social de participação e acesso a fontes de conhecimento e, consequentemente, de poder. Trata-se não só de saber ler e escrever, de saber registar e decifrar os aspectos linguísticos de um texto, mas, principalmente, de compreender e saber estabelecer relações sociais através desse mesmo texto.

Como artefactos sociais e culturais, os textos escritos são produzidos e, até certo ponto, produzem as estruturas sociais das comunidades em que existem; são mapas para o entendimento das relações entre membros das várias comunidades e, por conterem indícios reais dessas relações sociais, permitem-nos acesso aos valores e princípios de cada comunidade. Por esse motivo, a nossa familiaridade com textos escritos constitue verdadeira evidência da nossa participação legítima em comunidades culturais, políticas, religiosas e laborais e é, ao mesmo tempo, um ponto de acesso a comunidades a que ainda não pertencemos. Assim sendo, o acesso social a estruturas e comunidades a que desejamos pertencer é, em larga escala, mediado pelo uso efectivo e competente do processo literato da leitura e da escrita nas suas vertentes não só cognitivas, mas também sociais e culturais.

Podemos, assim, argumentar que a literacia é um dos aspectos fundamentais da participação social e que, ao activarmos os mecanismos necessários em nível educativo,

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Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...

é possível, até certo ponto, diminuir os níveis de exclusão e desigualdade sociais responsáveis por altas taxas de pobreza, por exemplo, via um maior nível de actividade literata que emana dum sistema educativo eficaz. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “quando se observa que pessoas com distintos atributos produtivos recebem distintos rendimentos, considera-se que o mercado de trabalho revela uma heterogeneidade preexistente na força do trabalho, gerada no sistema educacional” (TD 1000). Embora possa parecer não só ambicioso como também injusto justapor o sistema educativo, a literacia e a participação social numa relação causal na mesma linha de argumento, a realidade é que esse é verdadeiramente o “chamado” das pessoas e dos sistemas ligados à educação. Posicionados como janelas para o mundo, os sistemas educativos têm, muitas vezes e infelizmente, as cortinas fechadas. Geralmente preocupados com a aquisição e transmissão de conhecimentos no contexto escolar, muitos educadores em todos os níveis recriam ciclicamente uma forma de incesto intelectual ao duplicarem estruturas antigas de reprodução de saberes para consumo interno em vez de prepararem os aprendentes para acção inteligente e auto-afirmante nas comunidades a que pertencem, naquelas a que querem ter acesso e no mundo em geral.

Se o sistema escolar é, por um lado, um veículo sui generis de transmissão do conhecimento acumulado durante a história da humanidade, é também, por outro lado, um contexto privilegeado para a preparação para o presente e futuro dessa mesma humanidade.

Quando o sistema educativo exclue ou inclue só parcialmente, pelas suas limitações pedagógicas e logísticas, aqueles que mais poderiam se beneficiar da sua existência e funcionamento, o processo de desenvolvimento social é estancado. É, por esse motivo, vital que a escola assuma o seu papel social e providencie os meios através dos quais os aprendentes se possam cientizar do valor intrínseco das comunidades a que pertencem e da sua capacidade de participação em novas comunidades sociais, culturais, laborais e políticas. Esse sentimento de pertença e de valor próprio pode ser fomentado pela participação activa no processo escolar, tornando, assim, o sistema educativo uma verdadeira ferramenta para a inclusão e participação dos aprendentes nas sociedades a que pertencem.

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Ana Maria Raposo Preto-Bay

O processo contínuo de desenvolvimento e transformação social e cultural inerente a todas as comunidades reside na participação legítima dos seus membros (Lave e Wenger, 1991). Esta legitimidade está ligada ao acesso a recursos através dos quais os participantes podem desenvolver o seu potencial. Na comunidade educativa, os aprendentes precisam ter acesso a estruturas que facilitam o seu desenvolvimento pessoal não só sob o ângulo vocacional, mas também nas áreas de enriquecimento pessoal, lazer e auto-actualização. O lugar que a literacia ocupa neste processo é indiscutível. Cummins (1989) sugere que é necessário que se faça uma “análise das habilidades e atitudes que esta geração vai precisar para participar tanto numa sociedade democrática como numa comunidade globalizada” (p. 21) e, segundo ele, uma delas é o

“uso activo da língua para comunicação genuína no contexto de uma tarefa com a qual os alunos se sentem intrinsicamente comprometidos” (p. 33).

Alfabetização literária

Apesar de, através dos séculos, a maioria das pessoas ter tido um acesso limitado à língua escrita, os textos sempre desempenharam um papel vital na história humana não só em termos do conteúdo, mas também da forma. A escrita revela a natureza das relações sociais na comunidade e cultura que os produz e usa como aspecto fundamental dessas mesmas relações. A natureza de um texto religioso no século XIV revela a estrutura social, cultural e religiosa da época. O mesmo acontece com uma mensagem de e-mail enviada entre colegas de trabalho numa companhia de seguros. Segundo Nystrand (1989), “a comunicação escrita é um acto fiduciário entre autores e leitores no qual ambos se tentam orientar continuamente visa-vis um estado anticipado de convergência entre si” (p. 75). De certa forma, todos o textos são “escritos” tanto pelo escritor como pelo leitor.

A possibilidade de comunicação via textos é mais do que a capacidade de leitura de símbolos linguísticos numa página. O que um texto simplemente diz e o que comunica socialmente podem ser realidades e ideias completamente distintas. O intercâmbio real entre um autor e um leitor é baseado num passado social e cultural partilhado. Ler um texto e interpretálo são duas realidades e experiências diferentes. Saber “ler” não

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significa “saber ler.” Sem a interpretação contextualizada no tempo e espaço, a comunicação ocorre somente num nível superficial, se de todo. A menos que o termo e conceito de alfabetização venham a ser alargados para se referir também a um tipo de alfabetização cultural e social, este termo não pode ser considerado sinónimo de literacia, porque, segundo Kern (2000):

A literacia é o uso de prácticas situadas no contexto social, histórico e cultural que nos permite criar e interpretar significados através do uso de textos. (Por esse motivo a literacia) presupõe pelo menos o conhecimento das relações entre as convenções textuais e os contextos em que são usadas e, idealmente, a capacidade de reflectir de forma crítica sobre essas relações. Como está ligado a objectivos claros, a literacia é dinâmica – não estática – e varia de uma comunidade discursiva e cultural para outra. (A literacia) chama a si uma grande variedade de aptidões cognitivas e conhecimentos da língua escrita e falada, do conhecimento de géneros e de conhecimento cultural (p. 16).

Os símbolos linguísticos que nos permitem registar conteúdos são prerequisitos essenciais para a literacia, não são, contudo, o seu expoente máximo. Kern afirma que, embora ligada ao uso da língua escrita, “a literacia tem que ver, acima de tudo, com a linguagem e o conhecimento da forma como é usada, e só secundariamente com os sistemas da escrita” (2000, p. 23).

Cada indivíduo tem um discurso primário, aquele que aprendeu na sua cultura familiar e no grupo em que se insere. Além desse sistema familiar e comunal do seu discurso primário, cada um geralmente aprende discursos secundários ligados às instituições sociais em que se movimenta – escola, local de trabalho etc. Cada discurso dentro de cada comunidade é sempre ideológico e resiste à crítica interna enquanto, ao mesmo tempo, se opõe a outros discursos e atribui valor a certas coisas a custo de outras, estando, assim, “ligado à distribuição de poder e à hierarquia estrutural da sociedade” (Gee, 1996, p. 53). Quando uma pessoa, embora participe numa comunidade primária e tenha um discurso primário, se encontra à margem da organização social mais lata, tal sentido de falta de poder limita a sua capacidade de participação literata nessa mesma sociedade. Como “domínio [efectivo] dos discursos secundários” (Gee, 1996, p. 56), a literacia é, por isso mesmo, uma forma real de participação social alargada.

Por óbvias que as afirmações prévias pareçam, na realidade, só recentemente se começou a conceber de forma

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coerente a natureza verdadeiramente generativa e social dos textos, especialmente no que se refere ao seu ensino e didáctica. O conceito de alfabetização – anterior ao conceito de literacia e teoricamente ligado a conceitos comportamentalistas e cognitivos de independência de acção do aprendente no processo de aprendizagem – tem sido “executado” através do ensino dos processos línguisticos irredutíveis da leitura e da escrita. Independentemente da esfera social onde circula e existe, e sem esse entendimento, a aprendizagem torna-se um processo alienatório para muitos dos aprendentes. Segundo Silva e Colello (2003):

Tradicionalmente, a didatização das atividades para o ensino da leitura e escrita na escola cristalizou-se como uma linguagem estranha aos alunos, falantes nativos da língua portuguesa que nem sempre percebiam as práticas pedagógicas como extensão ou possibilidade efetiva do seu dizer. Longe de atender as necessidades do indivíduo, de desenvolver e ampliar os seus modos de expressão e interação, ou ainda, de alimentar o desejo de aprender, ensinava-se uma língua que, de fato, não era a dele; impunha-se uma relação como as letras incompatível com o seu mundo, e, portanto, a revelia do próprio sujeito (p. 7).

Sem o entendimento e valorização das comunidades e discursos primários dos aprendentes, e porque não assenta naquilo que eles já conhecem rumo àquilo que podem vir a conhecer, a aprendizagem das letras é vazia e conduz a situações de rejeição por parte dos aprendentes, os quais se tornam, então sim, resistentes a esforços de alfabetização no seu sentido mais básico.

Em vez disso, a aprendizagem da literacia pode e deve ser feita com as literacias primárias dos aprendentes – formas legítimas de expressão social do seu repertório, sejam elas quais forem – como ponto de partida. A escola é somente um dos muitos aspectos da participação social. Os alunos têm as suas vidas próprias fora do contexto da escola em que muitos desempenham já papéis muito relevantes nas suas comunidades primárias. Shaughnessy (1998) diz que os professores, em vez de tentarem “converter os nativos” e

“abrir as comportas da verdade”, a qual, condescendentemente, partilham com os seus alunos, devem, sim, tornar-se observadores atentos e tentar, de facto, conhecer os alunos a quem querem ensinar. Quando a escola se integra primeiro no sistema social dos alunos e os ajuda a analisar e entender os seus discursos primários, a possibilidade de ensinar práticas literatas da sociedade alargada aumentam significativamente.

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O género como vertente teórico-pedagógica da literacia

Todos nós reconhecemos um editorial no jornal da manhã, uma receita médica, um anúncio de uma casa à venda, um roteiro de um cruzeiro às Bahamas ou um relatório sobre a qualidade de vida de homens encarcerados num estabelecimento prisional como formas válidas de comunicação escrita contendo um certo conteúdo, formato e função social. Se cada um deles tem ou não a ver com a nossa vida pessoal, é uma questão de quem somos, onde vivemos, o que fazemos profissionalmente, qual é o nosso estatuto sócio-económico etc. Embora, pessoalmente, a autora gostasse de admitir familiaridade com roteiros de férias nas Bahamas, tal não acontece. Estamos naturalmente mais familiarizados com certas formas de escrita do que outras. Provavelmente, já fomos ao médico e recebemos uma receita; por outro lado, não é de surpreender que poucos, ou nenhum, de nós já tenham tido acesso a um relatório do tipo mencionado. Todos esses textos pertencem a géneros textuais diferentes e realizam funções sociais diferentes.

Os géneros textuais contêm, como marca da sua produção, os termos do contracto social estabelecido através deles. Da mesma forma que a “literacia é uma colecção de processos culturais dinâmicos e não um grupo de atributos psicológicos estáticos e monolíticos” (Kern, 2002, p. 23), o género, como veículo histórico-cultural e didáctico, é também um conceito aberto, fluido, em permanente evolução, dada a natureza generativa e evolutiva dos indivíduos que o usam na sua comunicação. Apesar disso, o conceito de género mantém, ao mesmo tempo, uma estrutura base, um tipo de infraestrutura conceptual através da qual nos podemos orientar tanto na produção como na recepção de textos escritos. Segundo Freedman (1993), “os géneros são acções, eventos, e/ou respostas a situações recorrentes ou contextos com relações complexas de substância, forma, contexto e motivo ou intenção. A reocurrência de contextos específicos conduzem a acções sociais que se tornam ritualizadas, por isso os géneros podem ser concebidos como ‘acções retóricas-tipo baseadas em acções reocurrentes’” (Chapman, 1994, p. 351).

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Os autores experientes geralmente iniciam o processo de comunicação por escrito usando um plano de referência mútuo entre leitores e autores e uma calibração do tópico através da escolha de temas, tom e metadiscurso. Podem fazê-lo porque, ao longo do tempo e com experiências repetidas, criaram um tipo de heurística do género, ou seja, as linhas de base dos elementos que todos os autores bem-sucedidos usam implícita ou explicitamente quando escrevem. Estes aspectos são, ao mesmo tempo, parâmetros comuns a todos os géneros e a base na qual os géneros diferem entre si. Através de decisões feitas no nível do conteúdo, das expectativas dos leitores, do vocabulário e do registo linguístico, do tipo de formato e das fontes usadas, entre outras, o autor consegue desenvolver o texto de forma socialmente adequada. As escolhas da forma como o texto é contextualizado e elaborado em termos do tópico, nível de explicação e da natureza do género são todas produto não só da experiência e do saber linguístico do autor, mas também do conhecimento sócio-cultural e histórico da comunidade a que se dirige por escrito.

O ensino da literacia a aprendentes principiantes ou inexperientes através do género textual requer, por isso, que se façam ajustamentos em nível teórico e prático. Por um lado, o sistema educativo em geral e o professor em particular precisam adoptar os conceitos de que a aprendizagem e o uso da leitura e da escrita são um processo social, que a literacia é a compreensão e produção de discursos secundários, ou seja, as formas de comunicar por escrito em vários contextos sociais alargados, e que a escola é, de facto, o ponto de partida para os processos de acesso e participação social. Essa postura teórica direcciona o ensino para uma acção responsável, sabendo que “como aspecto da prática social, a aprendizagem envolve as pessoas na sua globalidade... [o que] implica não apenas uma relação com actividades específicas, mas uma relação com comunidades sociais – implica tornar-se participante, membro, um tipo de pessoa (identidade)” (Matos [s. d.], p. 67). Antes que possamos falar dos aspectos práticos da didática da leitura e da escrita via género, impõe-se que aceitemos as dimensões teóricas da literacia e do género como ponto de partida e alicerce da nossa prática.

Por outro lado, a adopção teórica da importância do ensino da literacia nas suas vertentes cognitivas e sociais implica uma prática pedagógica comprometida em que

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o ensino da literacia abandona a noção de “escrever por escrever” (Colello; Silva, 2003, p. 12). Em vez disso, procura encontrar meios através dos quais o que acontece na sala de aula reflecte esta noção de que a escrita acontece num contexto sócio-cultural mais lato do que o contexto escolar e só pode ser compreendida e ensinada de forma eficaz sob essa perspectiva. Uma vez que os alunos são já participantes dentro de comunidades discursivas primárias, a função do sistema educativo no seu todo é a de alargar a capacidade de acesso dos alunos a outras comunidades através da leitura e da escrita, uma responsabilidade que reside na escola, sendo esta muitas vezes a comunidade de discurso secundário com a qual os alunos têm o seu primeiro contacto.

Usando o conceito de género textual, o ensino da literacia pode ser feito com base no reconhecimento de que todas a comunidades e discursos, incluindo a comunidade e o discurso primário de cada aluno, têm valor intrínseco, mas que a participação efectiva a vários níveis dessas comunidades requer que cada um venha, pelo menos em parte, a conhecer o conjunto de valores e formas de interação que essas comunidades, quer sejam culturais, políticas ou laborais privilegiam. Tal como pessoas que transitam entre dois mundos e precisam aprender os seus diferentes valores e contractos sociais, os alunos precisam ser ensinados explicitamente sobre quais são as características dessas novas comunidades e aprender a navegá-las através dos processos da escrita.

Não se pretende com este argumento menosprezar a função da alfabetização ao seu nível mais básico e vital – o processo de aprendizagem do código linguístico – e sem o qual seria impossível sequer pensar em termos de literacia. No entanto, importa reafirmar que até mesmo no processo de aquisição da língua escrita o contexto da aprendizagem deve sempre visar ao que há de social em toda a linguagem humana, ou seja, o processo de comunicação de algo a alguém. O código linguístico não é um fim em sim mesmo, mas o meio através do qual, de forma socialmente adaptada, comunicamos efectivamente e dessa forma nos tornamos membros ou mantemos a nossa afiliação literata nas comunidades de que fazemos ou queremos fazer parte. Segundo Colello (2004),

“na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua:

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alfabetizar letrando” (p. 6). Resta-nos agora repensar a nossa prática pedagógica de forma a tornar real os princípios teóricos apresentados até aqui.

A pedagogia aplicada à aprendizagem da literacia através do género textual

Os anos 80 marcaram o início do ensino da escrita através do processo. Além de ser revolucionário no sentido que criou, pela primeira vez, a possibilidade de verdadeiramente ensinar aos escritores inexperientes o processo seguido pelos escritores experientes (Preto-Bay, 2005), a pedagogia do processo da escrita permitiu, ao mesmo tempo, desmascarar falsas ideias que se pensou estaram associadas à produção escrita, nomeadamente a noção de que só algumas pessoas têm o dom da escrita e que esta já existe de forma acabada na cabeça do escritor antes de chegar ao papel. Basicamente até à pesquisa realizada por Flower e Hayes (1981), a qual documentou o processo sofisticadado da escrita seguido por autores experientes, não havia ensino da escrita segundo a concepção que temos presentemente. Em vez disso, no contexto escolar, a escrita era avaliada como produto acabado sem ser verdadeiramente ensinada. Através do processo, a escrita começou a ser vista e ensinada como parte de um método de desenvolvimento e aprendizagem a que todos têm acesso. Deixou de se pensar que algumas pessoas nunca poderão se comunicar adequadamente por meio da escrita e passou a pensar-se em termos da responsabilidade pedagógica que a escola tem de ensinar esse processo.

Se, por um lado, a psicologia cognitiva nos deu acesso aos processos mentais dos escritores e nos permitiu pensar na escrita como um processo passível de aprendizagem, por outro, a psicologia social tem-nos remetido, mais recentemente, para noções da língua e da sua natureza social. Entramos, assim, numa segunda fase da pedagogia da escrita ligada, desta vez, não somente aos aspectos da produção escrita mas também do ensino da sua função social. Assim, nascem o conceito de género textual no contexto escolar e a necessidade de desenvolver uma pedagogia para o seu ensino. Embora o ensino do processo da escrita ajude os escritores a sistematizar as fases e passos da codificação dos textos, este não garante, por si só, que o autor inexperiente leve em linha de conta os

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aspectos sociais, culturais e históricos da produção dos textos de modo a que esses textos sejam eficazes comunicativamente no âmbito social.

De acordo com Johns (1997), “no caso do discurso escrito, há muitos factores que são determinados na e pela cultura onde os textos são produzidos ... incluindo os objectivos e a função dos textos, os papéis e as relações entre os autores e os leitores, o contexto em que o texto é produzido e lido, as características formais do texto, o uso do conteúdo e até mesmo o nome dado ao texto” (p. 196). Para desenvolver uma pedagogia do género precisamos, pelo menos, pensar em termos (1) das experiências prévias dos alunos, (2) da aprendizagem situada na sala de aula e do que os alunos aí podem experenciar e aprender, bem como (3) da transferência desses saberes para novos contextos que o aluno virá a encontrar na sua prática social, pois naturalmente que no contexto escolar não é possível ensinar a miríade de géneros textuais que as múltiplas comunidades discursivas usam como forma de comunicação.

Avaliação das experiências prévias, necessidades e interesses dos alunos

O sistema de design de instrução mais conhecido e mais

usado, o chamado modelo ADDIE, propõe que o design de sistemas inclua cinco fases sequenciais: a análise, o design, o desenvolvimento, a implementação e a avaliação. Apesar de esse processo ser geralmente usado para o design de sistemas instrucionais em larga escala, podemos aplicá-lo ao design da instrução ao nível do ensino da literacia na sala de aula. O primeiro passo nesse processo é a análise, a qual inclue três aspectos principais: a análise do problema a ser resolvido através da instrução, o estabelecimento de objectivos para a instrução e, não menos importante, a análise das características dos alunos. Não faz sentido fazer design, desenvolvimento ou implementação de um sistema de instrução sem, primeiro, saber quem são os alunos, quais as suas experiências educativas, culturais e sociais prévias, quais os seus objectivos para a aprendizagem e quais as suas características em geral. Surpreendentemente, na maioria das situações de instrução, o ensino é feito como se essas experiências e características não tivessem qualquer impacto no processo de aprendizagem.

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Sem conhecer os alunos de perto, as suas situações de vida, as suas ambições e objectivos, é difícil verdadeiramente ensiná-los. O tipo de experiência que os alunos têm fora da escola, nas suas comunidades e discursos primários, tem um impacto directo na sua aprendizagem de discursos secundários e da literacia em geral. Ao tentar “proteger a torre de marfim” (Shaughnessy, 1998) e as suas teorias pré-fabricadas de quem os alunos são e o que podem ou não aprender, ou que metas pessoais e sociais podem ou não atingir, os professores tornam-se, em parte, pactuantes com uma visão determinística e pessimista das possibilidades na vida dos seus alunos.

Ao repensar a sua abordagem e atitude perante cada cada aluno individualmente e cada novo grupo de alunos, o professor pode “[1] conceber o papel dos alunos como agentes inteligentes no processo de aprendizagem ... [2] ter em consideração a variedade de recursos que venham a ser necessários para atingir objectivos de aprendizagem e [3] incluir explicações de processos de aprendizagem específicos no contexto de descrições mais alargadas das estrutura cognitivas através das quais as pessoas se adaptam a vários contextos para atingirem as suas metas pessoais” (Bereiter, 1990, p. 619).

Dessa forma, quando o professor reconhece que os aprendentes têm um “conhecimento inadequado dos recursos necessários para desempenhar a tarefa [e que o] seu depositório de conhecimento do mundo, das estruturas retóricas e linguísticas ...[é] insuficiente” (Wenden, 1991, p. 318), pode, assim, respeitando e incluindo as experiências prévias dos alunos, orientá-los na aquisição do desenvolvimento de discursos secundários, ou seja, da literacia em geral.

A sala de aula como comunidade linguística

Ao permitir uma experiência social alargada necessária ao desenvolvimento social dos alunos, a sala de aula torna-se uma comunidade sócio-retórica, uma zona em permanente construção, onde os alunos se apercebem que o seu discurso primário é um ponto de partida para o entendimento e aprendizagem das práticas literatas de outros, as quais podem ser aprendidas e perante as quais não necessitam se sentir intimidados. Uma vez que toda a aprendizagem ocorre de

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forma situada socialmente, a criação de uma comunidade de prática na sala de aula permite que os alunos trabalhem os textos como autores e leitores e, nessa reciprocidade, aprendam a avaliar a situação retórica. O contexto escolar torna-se, assim, uma primeira comunidade alargada para os alunos e, se gerida de forma a explorar o seu potencial real, pode tornar-se uma ponte para o mundo à medida que “tal como outras instituições sociais ... providencia prática no uso de ferramentas específicas e tecnologias para resolver problemas específicos... [a escola obedece assim] a princípios que definem objectivos importantes a ser atingidos, problemas significativos a ser resolvidos e abordagens sofisticadas a ser usadas para resolver problemas e atingir metas” (Rogoff, 1990, p. 191).

As relações sociais que se estabelecem na sala de aula, particularmente no que se refere à posição do professor como mentor e mestre em relação a um aprendente, dão ênfase ao conceito da aprendizagem através de participação activa e progressivamente mais competente numa comunidade de prática específica (Atkinson, 2002). Assim, através da participação orientada pelo professor, a literacia desenvolve-se como uma actividade completa e complexa, em que as metas comunicativas e sociais da escrita são comunicadas e practicadas.

Embora se fale com frequência da zona de desenvolvimento próximo como um conceito individual, Moll (1989) propõe que se repense este conceito como participação colectiva. Diz-nos: “O objectivo é ajudar ... [os aprendentes] a criar significados através da participação em diversas actividades literatas. O objectivo é [ajudá-los] ... a se aperceberem de forma consciente de que estão a usar o processo literato e ajudá-los a aplicar tal conhecimento para reorganizar experiências e actividades futuras... [Através de estratégias que] obtiveram através do uso e análise da linguagem para moldar as suas próprias actividades e criar textos mais sofisticados e claros” (p. 132).

Esse tipo de desenvolvimento pessoal e social dos alunos não acontece, contudo, sem ser cuidadosamente planejado, desenvolvido e apoiado de forma intencional.

Uma vez que o desenvolvimento dos aprendentes ocorre a longo prazo, é necessário que esses tenham oportunidade de reorganizar as suas formas de pensar de modo

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a, progressivamente, atingirem um nível de entendimento, habilidade e perspectiva sobre a comunidade a que pertencem para usarem esse entendimento e crescimento pessoal na sua relação com instituições sociais alargadas e com outros membros da comunidade. Para que tal aconteça os alunos devem ter acesso à participação social orientada pelo professor, a qual inclui:

• planeamento e estruturação de actividades;• calibração de tarefas difíceis;• participação conjunta em tarefas de resolução de

problemas;• discussão de metas e objectivos gerais;• atenção à resolução de partes de problemas que levam

à resolução de problemas mais complexos;• oferta de apoio e estrutura;• providenciamento de rotinas a serem usadas em

actividades ou situações mais complexas;• participação orientada;• transferência de responsabilidades do professor para o

aprendente de acordo com a avaliação que o professor faz das capacidades deste último;

• ajuste do apoio dado com base nas necessidades do aprendente;

• aumento de responsabilidades e expectativas à medida que o aprendente se torna mais capaz (Rogoff, 1990).

Paralelamente, através da reflexão, na sequência das discussões na sala de aula e da própria natureza da atmosfera da aula, os alunos começam a desenvolver não só os seus próprios processos e experiência, mas também uma arquitectura de significados e relações que são o produto da comunidade linguística que a sala de aula constitue, bem como das relações estabelecidas entre os alunos em si e entre o professor e estes mesmos alunos.

Na aprendizagem da literacia não se pode dar demais importância às relações pessoais estabelecidas entre o professor e os alunos. Quando os alunos sentem que têm o respeito e atenção do professor e que o objectivo do professor é o de os ajudar, muitos respondem de forma positiva. Segundo Cummins (1989), a interação estabelecida na aula entre alunos e professores e entre os alunos em si é vital para o desenvolvimento da literacia desses mesmos alunos. Algumas das suas sugestões incluem:

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• diálogo genuíno entre o professor e o aluno tanto oralmente como através da escrita;

• orientação e apoio;• colaboração através do diálogo entre os alunos;• uso significativo da língua escrita em vez de atenção

às estruturas superficiais da comunicação escrita;• aspectos do desenvolvimento linguístico integrados

em todo o conteúdo curricular;• ênfase dada às habilidades de análise e resolução de

problemas;• apresentação de tarefas de forma a engendrar motivação

intrínseca nos alunos.

Essa forma de pensar e estruturar a sala de aula e as relações nela existentes cria, de certa forma, um sistema modelo através do qual os alunos podem explorar outras relações sociais alargadas na sua experiência presente e futura.

Pedagogia aplicada ao género–um processo social estável e generativo

O que se pretende com o ensino aplicado do gênero textual a serviço da literacia é que os aprendentes tenham a oportunidade, no contexto educativo, de explorar relações sociais e a forma como estas se desenrolam e constituem através dos textos. Didacticamente, o nosso objectivo não pode ser, obviamente, o de ensinar todos os géneros textuais que os alunos vão encontrar no seu percurso de vida. Em vez disso, podem usar-se experiências com a leitura e a escrita de textos específicos como exemplos situados e partir daí para o entendimento de que, em contextos diferentes e para fins diferentes, os textos assumem características diferentes. O género precisa ser apresentado sob a perspectiva de que é variável e que nos ajuda, ao mesmo tempo, a perceber e a modificar o mundo, uma vez que, embora tenha um conjunto de características de base estáveis, é, acima de tudo, uma actividade generativa.

Johns (1997) sugere um curso de acção que envolva a discussão do que pode ser considerada uma análise comparativa de géneros. Como ponto de arranque, os aprendentes começam

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por examinar textos com que já se encontram familiarizados nas áreas do conteúdo, forma, intento comunicativo e das forças sociais em geral que determinam a sua construção e interpretação. Com base neste tipo de pensamento crítico e atitude de análise, o professor pode, então, apresentar outros textos pertencentes a outras comunidades discursivas com os quais quer que os aprendentes se familiarizem. À medida que vários textos vão sendo analisados, os alunos vão começando a produzir textos visando leitores em comunidades diferentes.

A experiência didáctica que visa à familiarização com vários leitores e às suas comunidades pode, inicialmente, ser tão simples como pedir que os alunos escrevam um parágrafo descrevendo um acontecimento das suas vidas, tal como um hipotético acidente de carro, a leitores diferentes: aos pais, ao seu melhor amigo, ao chefe da polícia e ao namorado ou namorada, por exemplo. A análise de tal exercício escrito revelará, certamente, uma escolha de palavras e ênfase de acontecimentos que se adaptam às expectativas do leitor e à forma como o autor quer ser visto e entendido. Dependendo do nível educativo dos alunos, este parágrafo pode não só ser diferente em termos do conteúdo, do registo e do tom, mas também assumir um formato diferente. Dessa forma, os alunos começam a perceber o conceito de leitor no seu sentido mais restrito e de comunidade discursiva no seu sentido mais lato. Actividades didácticas bem mais avançadas requerem que os alunos leiam um texto com o qual não estão familiarizados e daí deduzam os valores e relações sociais entre os leitores e autores desses textos. O que se pretende é que os aprendentes

“façam perguntas aos textos, aos contextos e aos membros experientes dessas comunidades – e a si próprios” (Johns, 1997, p. 92).

Nesse processo de desenvolvimento da literacia, o professor, como mentor e autor mais experiente, pode orientar o aprendente ao ajudá-lo a identificar e analisar as características dos géneros, as acções retóricas que os autores experientes usam para atingir os seus objectivos e as escolhas linguísticas que fazem, entre outras. A sala de aula pode tornar-se, assim, um lugar de convergência de pessoas e textos, um lugar onde os aprendentes podem (1) analisar géneros discursivos vários e aplicar o novo conhecimento a novos contextos da escrita; (2) rever e actualizar as suas próprias teorias do que são os géneros textuais; (3) desenvolver estratégias para lidar com

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situações de escrita e leitura novas no contexto social; (4) aprender a analisar activamente e criticar de forma construtiva as várias funções sociais, os textos e os contextos; (5) adquirir uma metalinguagem para discutir os textos; (6) reflectir nas suas experiências literatas passadas e presentes (Johns, 1997).

Como comunidade linguística, contudo, a sala de aula não precisa ser uniforme. Quando escrevem, os aprendentes não têm que escrever todos no mesmo género textual. Com base na sua experiência prévia e interesses futuros, esses podem tornar-se pesquisadores etnógrafos das comunidades em que estão interessados em participar – este tipo de prática num ambiente acolhedor permite que os alunos experimentem ideias e processos que podem parecer intimidantes fora do contexto educativo, mas que nesse contexto transformam a sala de aula num verdadeiro laboratório social de práticas literatas:

“O tipo de ensino que envolve e desafia os aprendentes em tarefas com significado também ajuda os alunos a serem capazes de correr riscos, apoia a colaboração entre eles, revê de forma propositada as abordagens que faz e anticipa a natureza a longo-prazo e contínua da aprendizagem. Este tipo de pedagogia é boa para todos” (Zamel; Spack, 1998, p. XI). Através deste processo aberto e generativo, os alunos podem começar, verdadeiramente, a ter experiências que vão além da realidade da comunidade discursiva a que pertencem e inferir esses princípios para futuros textos que venham a escrever e contextos em que venham a participar numa rede social mais alargada.

Considerações finais

Os estudiosos nas várias áreas do conhecimento preocupam-se com aspectos multifacetados da experiência e desenvolvimento humanos. Embora vivamos num período da história do mundo em que se torna necessário compartimentalizar os vários ramos dos conhecimento, importa, ainda assim, estabelecer relações entre eles de forma a ter uma visão mais abrangente do que é possível. Certamente, o tema da literacia através do género textual como forma de desenvolvimento da qualidade de vida dos seres humanos pode ser considerado como uma minúscula contribuição para este fim. No entanto, como o relatório do Ipea sugere, “vê-se que mesmo pequenas diminuições no grau de desigualdade

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poderiam reduzir a pobreza significativamente” (TD 1000). Porque a natureza da sociedade e de todo um conjunto de problemas é multifacetada, torna-se necessário que as soluções apresentadas também o sejam. Colello (2004) afirma que “a desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização – o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógicas e a negação do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as tensões, negociar significados e construir novos contextos de inserção social” (2004, p. 11). Essa é, certamente, uma das possibilidades que nos são dadas através da ênfase no desenvolvimento da literacia através do género textual.

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

Cancionila Janzkovski Cardoso*

Vivemos no Brasil, a partir da década de 1980, profundas mudanças no processo de ensino da língua materna. O avanço de várias ciências correlatas da educação, em especial das ciências lingüísticas, deslocou o centro do ensino da gramática normativa tradicional para o texto como unidade de ensino. Especialistas da área da linguagem, pesquisadores, professores formadores têm feito um enorme esforço para divulgar/vulgarizar uma concepção de linguagem como interação, como trabalho, como discurso, como prática sócio-histórica, na qual as práticas de leitura e escrita são ressignificadas.

Esse movimento se fez sentir, igualmente, no processo de alfabetização. Por um lado, novas concepções sobre como a criança apreende o sistema de escrita – a psicogênese da escrita – e, por outro, a ampliação do conceito de alfabetização trouxeram muitas modificações para o ensino e a aprendizagem do ler e do escrever. É nesse contexto que ganha visibilidade um novo fenômeno: o letramento. Autores brasileiros como Tfouni (1988, 1995), Kleiman (1995), Soares (1995, 1998, 2002, 2003), Masagão (2003), Mortatti (2004), entre outros, têm constituído uma importante produção acadêmico-científica sobre esse novo fenômeno e, portanto, sobre o novo conceito que veio a denominá-lo no interior da ciência pedagógica, buscando explorar diferentes aspectos e problemas nele envolvidos, a partir de diferentes perspectivas teóricas.

* Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

1 Texto apresentado no 14o. Cole. Campinas, 2003, modificado e ampliado.

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Cancionila Janzkovski Cardoso

É, pois, no contexto de profundas alterações científicas, tecnológicas, políticas e sociais que se propõe a formação de um novo leitor e escritor. A alfabetização escolar, por si só, já não basta; é necessário que os indivíduos aprendam a ler e produzir textos, para além daqueles produzidos no contexto escolar, textos que remetam às mais variadas práticas sociais de leitura e escrita.

Alfabetização e letramento, gradativamente, estão sendo entendidos como dois processos interdependentes, complementares, cada qual com especificidade própria. A mudança na compreensão do processo de alfabetização colocou, portanto, os usos sociais da escrita, materializados em textos, no centro das atividades de ensino. O desafio que se coloca hoje para a prática alfabetizadora é alfabetizar letrando. Para Soares (2003, p. 90), ao mesmo tempo em que o aluno deverá se apropriar do sistema de escrita alfabético e ortográfico, ou seja, da “tecnologia” da escrita, deverá conquistar habilidades e atitudes de uso dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita. O primeiro processo chama-se

“alfabetização”; o segundo, “letramento”. Ambos devem ocorrer simultaneamente.

Assim, os processos de alfabetização e de letramento escolares envolvem, fundamentalmente, a apropriação e o uso competente da leitura e da escrita de textos variados, com significado e relevância social. Com base nesse pressuposto, este texto discute um aspecto importante da aprendizagem da escrita: a adaptação do texto a um interlocutor determinado.

O ato de escreverEscrever um texto pressupõe a simulação de uma

situação: prever um destinatário e os efeitos de forma e de conteúdo do texto sobre ele. Desse modo, a aprendizagem da escrita, diferentemente da aprendizagem da fala, requer da criança uma dupla abstração: por um lado, ela deve lidar com uma linguagem que não conta com os aspectos sonoros em sua realização, restringindo-se ao plano das idéias veiculadas pelas palavras; por outro, deve trabalhar considerando a ausência do interlocutor na situação imediata de sua produção (Vygotsky, 1987/34, p. 122).

Assim, o texto escrito supõe, fundamentalmente, um enunciador – o escritor – em situação de comunicação que

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

o distancia de seu interlocutor – o outro/leitor – e, por isso, exige um trabalho de organização textual que busque a explicitação dos significados para esse interlocutor ausente. O processo de construção do texto escrito exige que seu autor ajuste, antecipadamente, o seu dizer a um determinado interlocutor. Numa palavra, o texto escrito exige a construção de um interlocutor, ou, como sugere Bakhtin, a consideração de um auditório social. Assim, globalmente, pode-se dizer que o problema da aprendizagem da escrita é o de a criança conseguir um melhor controle sobre sua própria atividade de linguagem: aprender a planejar um texto, a desenvolvê-lo em função da situação, adaptá-lo a um destinatário. Encontra-se aqui, portanto, aquela característica importante da atividade de produção de textos escritos já mencionada por Vygotsky: seu caráter consciente.

Para Schneuwly (1988, p. 50), do ponto de vista psicológico, trata-se de fazer funcionar e dominar, nas diferentes situações de comunicação escrita, dois processos: a) o planejamento autogerado do texto; b) a instauração de uma relação mediata em relação à situação material de produção. No que concerne ao primeiro, é necessário compreender que o controle e a gestão da produção não se ancoram mais na análise da produção de linguagem na situação, na qual o interlocutor dá pistas e participa conjuntamente da construção do discurso; é necessário desenvolver uma instância de controle e de gestão autônoma, permanente, que funcionará durante toda a produção do texto. Igualmente, o outro processo implica que o cálculo e a criação das origens textuais (temporais, espaciais, argumentativas) funcionem independentemente da situação particular. No nível psicológico, trata-se de um funcionamento que exige a criação de novas instâncias de cálculo, de gestão e de controle, que já se encontram, de maneira rudimentar, nas situações ligadas ao uso da oralidade. Para esse autor, trata-se de um processo de planejamento monogerado,2 que exige uma reflexão mais deliberada e consciente sobre a língua.

2 No modelo de produção do discurso, desenvolvido por Bronckart (1985) e Schneuwly (1988), existem dois grandes tipos de planejamento no nível dos planos de textos ou de modelos de linguagem: o planejamento poligerado, que corresponde, em geral, a uma ancoragem implicada, e o planejamen-to monogerado, de ancoragem autônoma. Como exemplo de planejamento monogerado, poderíamos pensar numa narrativa ficcional escrita na qual a representação do destinatário é mediatizada pela representação interna do enunciador.

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Cancionila Janzkovski Cardoso

Os procedimentos da pesquisa

As particularidades elencadas sugerem que o processo da escrita possui um funcionamento psicológico específico cuja característica principal é a adoção por parte do escritor de uma relação “metatextual” com seu texto, tomando-o como objeto de atenção para o comentar, o estruturar, o modificar, o clarificar.

Tendo como objetivo apreender os níveis de reflexividade e de deliberação sobre o processo de escrita já desenvolvidos por crianças, realizei uma pesquisa com 14 sujeitos, alunos da 4a série do ensino fundamental, que tinham, em média, dez anos de idade.3 Os procedimentos envolviam entrevistas individuais nas quais a criança era convidada a falar sobre seus processos mentais, suas opiniões sobre a língua, exigências formais do texto, tarefas escolares, leitores em potencial, possibilidade de revisão textual etc., três ou quatro dias após a produção do texto. Os sujeitos ficavam muito à vontade, dado todo um conhecimento já construído com a professora/pesquisadora e com o equipamento de gravação. O objetivo foi mostrar como a criança vê o seu próprio texto na interação oral sobre ele, evento que denominei “entrevista de explicitação”. A entrevista de explicitação, que sempre começava com a leitura do texto, proporcionou momentos de reflexão meta (metalingüística, metapragmática, metatextual, metadiscursiva) em que as crianças puderam discutir sobre as formas de enunciação de seu pensamento para o outro, apontar o que perceberam como limites na materialização do texto e, ainda, sugerir formas alternativas de tratamento das unidades apontadas como inadequadas. Para efeitos de análise, as entrevistas foram transcritas e recortadas em unidades, que denominei “seqüências enunciativas”. Nos limites deste trabalho, discutirei apenas parte dos resultados, notadamente aqueles que tratam da percepção das crianças relacionada ao seu interlocutor/leitor.

3 Este foi um dos objetivos de uma pesquisa mais ampla, de caráter longitudi-nal, na qual acompanhei/analisei quatro anos de escolarização desses sujei-tos. Grande parte dessa pesquisa já se encontra publicada em duas obras: a) CARDOSO, Cancionila J. Da oralidade à escrita: a produção do texto narrati-vo no contexto escolar. Brasília/Cuiabá: co-edição Inep/Comped e EdUFMT, 2000, e b) CARDOSO, Cancionila J. A socioconstrução do texto escrito: uma perspectiva longitudinal. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2003.

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

O interlocutor/leitor em cena

Bakhtin aponta como índice substancial, constitutivo do enunciado, o fato de ele se dirigir a alguém, de estar voltado para o destinatário. Para o autor, “as formas e concepções do destinatário se determinam pela área da atividade humana e da vida cotidiana a que se reporta um dado enunciado. A quem se dirige o enunciado? Como o locutor (ou o escritor) percebe e imagina seu destinatário? Qual é a força de influência deste sobre o enunciado? É disso que depende a composição e, sobretudo o estilo, do enunciado” (Bakhtin, 1979/1992, p. 321).

Assim, a avaliação do locutor sobre o que está dizendo, mesmo quando aparentemente não se faz presente, e o seu julgamento, com respeito a quem está se dirigindo, moldam o seu discurso, determinam a escolha das unidades de linguagem, lexicais ou gramaticais e, ainda, a escolha das unidades de comunicação, tais como o estilo de uma fala ou os gêneros discursivos empregados. O interlocutor é, portanto, também definidor da configuração textual.

No processo de socioconstrução da língua escrita, quando alunos dos anos iniciais do ensino fundamental escrevem, o quanto está concretizado esse outro, seu leitor em potencial?

Algumas seqüências enunciativas poderão elucidar tal questão:4 [Quadro (1)].

4 Tendo como principal interesse as concepções das crianças sobre a escrita, optei por transcrever as entrevistas de explicitação da forma mais legível e simples possível, ortograficamente, apontando apenas as pausas mais evidentes:- uso de sinais de pontuação (exclamação, interrogação);- uso de dois pontos (..) para assinalar pausa menor (semelhante a ponto ou vírgula na escrita);

- uso de reticências (...) para assinalar uma pausa maior – hesitação, reflexão;- uso de chave ( [ ) para assinalar falas concomitantes;- uso de aspas (“ ”) para assinalar segmentos lidos;- uso de duplo parênteses (( )) para assinalar comentários;- entrevistadora identificada pela inicial K (Kátia Cancionila);- criança identificada pela inicial do nome.

Caíse demonstra, por meio de uma reflexão metapragmática, ter consciência de que a sua produção textual é determinada pela percepção que ela tem de seus destinatários. Num contexto pedagógico mais distenso, é possível produzir um texto

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Cancionila Janzkovski Cardoso

(1)

Caíse - 25.11.96 –

Título do texto:“Kátia e

Edilma, as engraçadinhas”

(Obs. Esse texto é extremamente sarcástico com as personagens, que são a pesquisadora e sua auxiliar)

Anexo 1

K- agora me fala uma coisa .. quando você produziu esse texto.. que ocê teve essa idéia de produzir um texto parecido com o do Continho.. você não ficou pensando.. não ficou com medo de que eu e a Edilma não gostássemos?

C- ah eu fiqueiK- ficou com medo? ((rindo))C- aí depois eu falei assim.. “ah também se elas não

gostar.. eu faço outro”K- eu faço outro... não... e se a gente além de não gostar

a gente ficasse braba com você?C- ((risos)) mas é que vocês não iam ficar brava.. vocês

iam é riK- porque que você acha que eu não ia ficar brava?C- ah porque você sempre foi alegre.. você não briga

com a gente.. lá.. se não fosse assim.. vichi eu nem ia colocar

K- o quê?C- se você fosse de mau humor eu nem ia fazer esse

texto.. ia fazer outroK- ah tá.. você seria capaz de fazer um texto desse

falando da professora?C- ãh ãh ((negativa))K- não? por quê? o que que ocê acha?C- porque ela é muito brava.. muito chataK- ela é brava e poderia ficar brava com você? C- é...K- e se eu tivesse ficado brava... hem?C- [aíK- [assim brava.. nervosa

mesmo... “que absurdo que essa menina escreveu”.. e aí hem?

C- aí eu ia pegar rasgar e fazer outro.. só que não de vocês.. de outras pessoas

K- de outras pessoas... mas ocê ia fazer um texto pareci-do com esse de novo?

C- não.. ia fazer outro .. sem ser desse... é .. pôr de uma historinha... não engraçada igual essa daí..

sarcástico, mesmo envolvendo as professoras como personagens, pois ela sabe/pressente/antecipa a reação: mas é que vocês não iam ficar brava .. vocês iam é ri. O mesmo texto não seria escrito em um contexto mais formal, em que a concepção que ela tem de seu destinatário a leva a hipotetizar uma recusa ou censura. Essa concepção, determinada por uma área de atividade humana – o contexto escolar – pode não refletir a realidade, mas é, para Caíse, legítima. A fala da criança parece também revelar uma percepção ampla das possibilidades dos gêneros de textos, adequados a situações e interlocutores determinados, na medida em que ela responde

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

que, para escrever sobre outras pessoas, ia fazer outro .. sem ser desse... é .. pôr uma historinha.. não engraçada igual essa daí.

A vivência nas práticas escolares de leitura e produção textual reafirma, constantemente, um destinatário quase exclusivo para os textos das crianças. Ao longo de sua escolarização, elas vão constituindo uma concepção de interlocutor – o professor/leitor – que tem expectativas bem definidas com relação à sua produção escrita: ensinar, corrigir, avaliar. Juliany traduz um conhecimento relativo à função do texto escolar, seu interlocutor, seu destino, seu objetivo: [Quadro (2)].

Essa reiteração do interlocutor tem sido apontada como sendo extremamente prejudicial. Trata-se, como salientou Geraldi (1991, p. 143), de um grande problema, especialmente porque as “redações” dos alunos (não sua “produção textual”) têm sempre como leitor a função-professor, não o sujeito-professor. A via de mão única para a produção infantil, em termos de destinatário, pode gerar inseguranças como a expressa por Juliany: quando pode, quando seu leitor não é

Juliany - 25.11.96

Título do texto:

“Os gnomos”

(Obs. Texto muito criativo,

permeado de inter-

ertextualidade com histórias

infantis e propaganda

de TV)

Anexo 2

K- hum.. mas Ju.. quando vo.. por exemplo esse dia que você tava escrevendo esse texto aqui.. você sabia que esse texto era pra quem.. quem ia ler?

J- vocêK- cê sabia que era pra mim né.. pra mim e pra Edilma

né.. e aí.. você.. quando cê tá escrevendo você pensa em mim.. você fica imaginando.. ah quem vai ler é a professora Kátia.. ou não.. nem pensa nisso.. só pensa no texto?

J- pensoK- pensa? e lá na sala de aula.. quando você tá

escrevendo.. você também pensa na professora ?J- hum humK- que tipo de pensamento que vem na sua cabeça

assimJ- não porque lá.. ela vai olhar as pontuações bem

certinha tem que fazer tudo bem certo.. porque depois ela olha.. se tiver errado...

K- o que acontece?J- o que acontece? Você me pergunta?K- é ..eu te pergunto!J- ela manda a gente fazer tudo de novoJ- de novo? mas ela mostra onde tá errado?J- mostra.. por sinal ela só manda apagar e corrigir

(2)

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Cancionila Janzkovski Cardoso

(3)Juliany - 25.11.96

Título do texto:

“Os gnomos”

Anexo 2

K- é... quando você escreve Ju.. você pensa.. alguma vez você já pensou em quem vai ler?

J- jáK- como é que é isso.. conta pra mim como é que é issoJ- eu não gosto muito de .. assim.. nem minha mãe

assim eu gosto muito que fica perguntando (...).. eu fico com vergonha

K- por quê?J- ah.. sei láK- porque que você tem vergonha?J- achar o texto da gente ruim.. ou senão ... ah sei lá..

eu tenho vergonha de mostrar.. aí chegando em casa assim.. não sei porque a minha mãe assim eu não deixo ver.. mas as minhas colegas assim que é bem íntima até que eu deixo

compulsório, essa criança diz selecionar quem pode ler seus textos, apontando para uma vergonha de que seu leitor possa achá-los de má qualidade: [Quadro (3)].

A reiteração, no entanto, não impede que as crianças

desenvolvam idéias sobre um interlocutor fictício, eventualmente outra pessoa que não o professor. É no interior dessas mesmas práticas sociais de leitura e escrita que se pode, timidamente, abrir uma perspectiva de maior socialização do texto escolar das crianças.

No interior das situações vivenciadas e discutidas naquele momento pelas crianças, Diego é capaz de perceber funções diferenciadas em seus interlocutores, aliadas a expectativas distintas: o texto elaborado em situação escolar é, essencialmente, exercício de estilo, aplicação de conhecimentos gramaticais e estéticos, isso porque a função principal de seu leitor é ensinar e o escritor/aluno deve mostrar que aprendeu. O texto elaborado em situação periescolar5 distingue-se do primeiro em virtude de ter um interlocutor cuja função principal é estudar. Destinos também diferentes: um fica no caderno, ao passo que o outro será analisado, valorizado e, quem sabe, virará livro. [Quadro (4)].

5 Para esta pesquisa, “situação escolar” é entendida como aquela na qual os sujeitos produziam seus textos escritos como tarefas corriqueiras desenvol-vidas pelo currículo escolar. “Situação periescolar” é entendida como um contexto social de produção distinto do primeiro, embora ainda escolar, em que os sujeitos eram reunidos para participar de aulas desenvolvidas pela pesquisadora, envolvendo a produção textual.

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

6 A investigação longitudinal foi desenvolvida em forma de pesquisa participati-va em dois momentos: quando as crianças freqüentavam a 1ª e a 4ª série.

7 Para uma análise cognitivista do problema das relações intralingüísticas en-tre os signos e seu contexto lingüístico (domínio metatextual) ver Gombert (1990).

(4)

Diego – 9.9.96

Título do texto:

“Olimpíadas 96 no Futebol

Brasileiro”

Anexo 3

K- me fale uma coisa .. O que que você sente quando a professora manda fazer um texto.. e quando eu mando fazer um texto?

D- eu faço rápidoK- pois é.. é diferente ou não fazer um texto pra professora ..

e fazer um texto pra mim?D- é diferenteK- porque que ocê acha que é diferente?D- ah.. pra eu fazer um texto pra você .. você vai estudar

sobre o texto né.. você vai fazer.. como é que é... um livro.. né.. que nem você fez aquela vez com nós quando nós estava na 1ª série.. e a professora ... quando ela manda fazer um texto é pra gente aprender a fazer estética e aprender a pontuação mais bem.. e aquilo fica no nosso caderno.. e quando nós faz um texto fica pra você

Esse grupo de crianças teve, pelo menos, dois leitores empíricos em, também, pelo menos, dois momentos do seu processo de escolarização, ou seja, na 1a e na 4a série.6 A entrevista procurou extrapolar esses dois conhecidos leitores empíricos, criando um leitor virtual, insistindo e puxando a idéia de fazer a criança pensar num interlocutor hipotético. Nesse contexto, é o mesmo Diego que fornece outros índices de uma reflexão sobre esse leitor/interlocutor virtual e suas possíveis exigências para a recriação de um contexto, no intuito de haver uma boa recepção do texto. Para Diego, o texto não se basta por si só. A compreensão requer um “entendimento” sobre o assunto em pauta; requer uma familiaridade com o jeito de se falar daquele assunto. Há que se fazer algumas relações para que se estabeleça um sentido, ou, melhor dizendo, “a compreensão do todo do enunciado é sempre dialógica” (Bakhtin, 1979/92, p. 354). Aspectos profundos como contextualização/descontextualização, auditório social/esferas sociais, temática/enunciado podem ser identificados na opinião metatextual7 dessa criança: [Quadro (5)].

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Diego - 9.9.96

Título do texto:

“Olimpíadas 96 no Futebol

Brasileiro”

Anexo 3

K- alguém.. digamos assim uma pessoa que mora bem longe.. que não assistiu as Olimpíadas.. tá?.. que não escutou nenhuma notícia.. éé.. uma pessoa que mora lá na zona rural.. digamos

D- [humK- [se essa pessoa ler o seu texto.. você

acha que ela entende tod.. toda a sua história?D- ((não com a cabeça))K- é? por quê?D- porque não tem.. não tem é.. não tem entendimento..

sobre.. sobre as o.. o negócio.. tem que ter um entendimento sobre as Olimpíadas

K- hum... mas e aí as coisas que estão escritas aqui não são suficientes para entender?

D- eu acho que nãoK- não?D- nãoK- fala mais sobre isso.. vamo ver como é que ocê tá

pensando issoD- não.. eu tô falando assim ó .. que nem aqui.. que tô

falando assim nas Olimpíadas.. que nem a minha tia.. uma tia minha mora lá na .. no .. em Goiás na zona rural né.. aí ela não tem televisão lá.. ela tinha uma só que quebrou né.. aí ela .. ela gosta de ver novela assim.. aí se a gente falar de uma novela ela não vai saber o que que é.. ela vai pensar que é um filme.. só que é uma novela

K- hummD- aí ela não vai entender o que que éK- certo.. mas e se sua tia então.. digamos que ela não

tenha assistido as Olimpíadas.. néD-

[nãoK- ela tá lá.. ela.. se sua tia lesse o seu texto.. né.. você

acha que ela não vai entender ou ela vai entender?D- vai entender assim mais ou menosK- mais ou menos .. então tá bom..

(5)

Dessa forma, Caise, Juliany, Lucas e Diego mostram, cada qual a seu modo, que a imagem do leitor-interlocutor visado não só está presente como também regula o processo de produção.

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

O interlocutor/leitor construído/filtrado nas formas lingüísticas adequadas

Convidadas a refletir sobre a apropriação de seus textos para um determinado interlocutor, as crianças manifestaram-se de formas variadas. Algumas não apontaram qualquer problema em seu texto que pudesse impedir a compreensão do leitor; outras apontaram localmente problemas de letra ou de ortografia; outras, ainda, foram capazes de perceber distintos problemas nos aspectos organizacionais de seus textos e nas suas relações internas.

Scardamalia e Bereiter (1987), ao apontarem dois tipos de abordagem do conhecimento que o sujeito assume na tarefa de elaboração de textos, sugerem igualmente diferenças evolutivas no grau de consciência das operações implicadas no ato da escrita. Para os autores, o escritor iniciante assume uma abordagem de “relato de conhecimento” em que a tarefa da escrita consiste em anunciar o que se conhece, lembra ou quer dizer. O escritor constrói a representação do conteúdo temático e essa representação vai preponderar na tarefa de gerar o texto. Preocupado com o que vai dizer em seguida, não planeja deliberadamente as questões de coerência. Um escritor mais experiente assume a abordagem de “transformação do conhecimento”, em que a tarefa da escrita é entendida como solução de problemas que envolve tanto o plano dos constituintes temáticos quanto o dos princípios de organização do discurso.

A passagem de uma etapa à outra na forma como o conhecimento é abordado na linguagem envolve, provavelmente, um longo processo, em que as experiências em escrever e em pensar sobre como escreveu desenvolvem papel importante.

Assim, no processo de letramento da criança, penso ser de fundamental importância refletir sobre o papel, a clareza, a presença do interlocutor, seja ele real ou imaginário, da/para a escrita. A entrevista de explicitação proporcionou momentos de profunda reflexão e aprendizagem por parte dos sujeitos. Dessa reflexão é possível vislumbrar uma análise mais refinada e deliberada no uso das formas lingüísticas, tendo em mente o outro leitor/interlocutor para quem se diz. [Quadro (6)].

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(6)

Caíse – 25.11.96

Título do texto:

“Kátia e Edilma, as

ngraçadinhas”

Anexo 1

K- agora me fala uma coisa .. você acha que alguém.. uma outra pessoa que não me conheça .. não conheça a Edilma.. é quem.. uma outra pessoa aí de fora.. qualquer pessoa que ler o seu texto.. esse texto aqui.. ela vai entender o texto todo?

C- sei lá.. acho que vai.. não seiK- acho que vai? Porque que ocê ach.. bom dá uma

olhadinha.. vamo recordar um pouquinho o seu texto.. ocê acha que uma pessoa de fora.. qualquer pessoa lendo o texto.. ela entende todinho?

C- se não for pela letra eu acho que entendeK- ah.. a letra tá ótima.. sua letra tá linda.. não tem

nada contraC-

[engracadinha olhe euK- [ãhn?C- engracadinha engraçadinhaK- ah.. aí tem um um probleminha? mas você

colocou a .. a ..C- [ não.. foi o pinguinho no iK- ah esse é o pingo do i.. esse não é o cedilha não ..

engraçadinha..

Numa análise metalingüística, Caíse aponta duas ordens de problemas, ambos elementos de superfície textual: levanta, inicialmente, a hipótese de a letra ser ilegível, fato que não corresponde à realidade; depois, aponta a palavra

“engraçadinha” no corpo do texto grafada sem a cedilha (a mesma palavra aparece no título, escrita corretamente).

Outros sujeitos, como Lucas e Fábio, também apontam a legibilidade gráfica como fator importante para a compreensão.

Morlean é outra criança que, colocada para refletir sobre um interlocutor virtual, rapidamente percebe lacunas em seu texto e acaba por realizar uma análise metapragmática, adequando-o, por meio de uma maior explicitação, para um leitor virtual, não mais a professora/pesquisadora: [Quadro (7)].

O movimento interlocutivo dessa seqüência parece apontar para o fato de que, inicialmente, a criança procura descobrir aspectos referentes à interação, tais como qual é a concepção do adulto da definição da situação, a expectativa

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

(7)

Morlean - 9.12.96

Título do texto:

“A istória da minha vila”

(Obs. Texto bastante curto e com muitos

implícitos)

Anexo 4

K- agora me fale uma coisa Morlean.. alguém que não conhece a sua vila.. não conhece você.. tá.. outra pessoa.. outra pessoa de fora... se essa pessoa lê o seu texto.. aqui ó esse texto seu.. você acha que ela vai entender toda a sua história?

M- vaiK- vai? Você acha... você não gostaria de mudar alguma

coisa nessa história.. pra que a pessoa entendesse melhor?

M- que professora... que a senhora acha? ((gaguejando muito))

K- então.. eu to perguntando pra você.. se você acha assim que uma outra pessoa.. qualquer outra pessoa que não te conheça.. lendo seu texto se ela vai entender tudo.. ou se falta alguma coisa pra ela entender melhor...

M- ((silêncio))K- por exemplo eu fiquei sem saber Morlean onde era

sua vila... qual é a sua vilaM- ah.. vou por aquiK- não.. só fale pra mimM- a a minha vila ... é o Jardim AssunçãoK- Jardim Assunção... olha só você não pôs aqui o nome

da vila..M- esqueciK- então... eh... pensa aí.. dá uma olhadinha no seu texto

vê se tem mais alguma coisa.. que você mudaria.. que você colocaria agora no texto pra ele ficar mais... mais claro pra outra pessoa entender...

M- ((pausa)) o nome da ruaK- o nome da rua.. como que é o nome da rua?M- rua SergipeK- hum...M- o número da casaK- o número da casa.. aí você ia colocar essas coisas

também.. é? que mais? mais alguma coisa ou só isso?

M- só isso

dos papéis, o foco da discussão (empreitada na qual, diga-se de passagem, é bem-sucedida) (Perret-Clermont; Perret e Bell, 1993, p. 54). Desse modo, Morlean devolve a pergunta feita – “Você não gostaria de mudar alguma coisa nessa história.. pra que a pessoa entendesse melhor?” – dizendo: “O que você acha professora?”. A pesquisadora, então, insiste, recorta e sugere possível mudança no texto, uma complementação: “Lendo seu texto ela vai entender tudo.. ou se falta alguma coisa pra ela entender melhor”. Na ausência de resposta, a provocação continua com a apresentação de um exemplo, relacionado

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Cancionila Janzkovski Cardoso

com a localização espacial: “Eu fiquei sem saber onde era a sua vila”. De imediato a criança parece captar o sentido do discurso da entrevistadora e, após explicitar o nome de sua vila, no momento seguinte é ela própria quem aponta o nome da rua e o número da casa, como elementos importantes para a recepção de seu texto por aquele interlocutor fictício, do qual ambos falavam. Ressalta-se aqui o papel desencadeador de aprendizagem que teve a entrevista de explicitação junto a esses sujeitos, na medida em que a fala da criança só pode ser interpretada como uma construção conjunta de conhecimentos.

Os trabalhos em psicologia cognitiva sobre o controle da explicitação das mensagens verbais evidenciam que essa capacidade tem emergência tardia e está relacionada com o interlocutor: “A capacidade de produzir mensagens não ambíguas não é nada mais que um caso particular de adaptação ao destinatário; trata-se, de fato, de poder ter em conta sua perspectiva, seu estado de conhecimento” (Gombert, 1990, p. 137).

Morlean foi capaz de apontar o aspecto da explicitação como forma de refinamento de sua enunciação a partir de uma certa insistência por parte da pesquisadora. Outras crianças, no entanto, apontam de forma autônoma (ou quase), a partir da pergunta inicial da entrevistadora, diferentes anomalias em suas produções, revelando aspectos de uma análise da estrutura mais profunda do texto, em que foram capazes de identificar enunciados incompletos ou obscuros. Isso significa um esforço metatextual em que a criança precisa considerar a seqüência de enunciados nos seus aspectos organizacionais, tendo em vista a adequação ao leitor/interlocutor não presente

e a articulação de relações internas ao texto. [Quadro (8)].

A falta de algumas informações essenciais pode, na percepção de Lucas, prejudicar a recepção do texto. Para Lucas o problema da explicitação é traduzido pelo fato de que ele não escreveu tudo certinho.. tudo não.. não escrevi tudo com detalhes não. Desse modo, na hipótese de um leitor pouco habituado com a temática do futebol, a compreensão ficará a meio caminho: meio tudo não.. tudo não.. mas um pouquinho vai. Cita, então, algumas informações que seriam importantes para o enriquecimento do texto e sua maior autonomia, tais como o número de jogos e de pontos necessários para um time

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

(8)

Lucas – 25.11.96

Título do texto:

“Campeonato Brasileiro 96”

Anexo 5

K- me fala uma coisa .. é.. se uma pessoa que não conhece muito futebol.. que não... uma outra pessoa de fora.. ler o seu texto.. você acha que vai compreender tudo?

L- meio tudo não .. porque eu não escrevi tudo certinho.. tudo não.. mas um pouquinho vai

K- o que que cê não escreveu certinho.. por exemplo?

K- Ah eu não escrevi como é que ia ser o res.. como é.. quantos jogos tem pra se classificar.. não não falei quantos pontos eles precisavam pra se classificar

K- [hum

L- não escrevi isso tudo com detalhes nãoK- não escreveu tudo sobre o quê?L- detalhesK- ah detalhes! quer dizer que faltaram alguns

detalhes que talvez fossem importantes?L- é

se classificar. Sua análise é metatextual, implicando o nível mais profundo da configuração do texto.

Como analisa Reuter (1996, p. 135), a modalidade de funcionamento textual explicitação/implicitação “é uma dimensão particularmente importante dos textos – qualquer que seja seu tipo – na medida em que ela está diretamente referida ao destinatário, à construção de saberes e de suas expectativas, à elaboração do efeito a produzir [...].”

Trata-se, portanto, de uma dimensão bastante valorizada na escola. Perceber essa modalidade exige da criança uma capacidade de descentração para selecionar os conteúdos e organizá-los em função de um leitor/interlocutor (processo de planejamento) e para textualizar e revisar em função desse destinatário (melhor explicar tal passagem, precisar os implícitos, explicar as referências, melhorar um argumento).

Na seqüência seguinte, Juliany fornece várias explicações que testemunham o grande avanço em seu conhecimento sobre a geração de um texto, o planejamento e o replanejamento conscientes: [Quadro (9)]

O discurso que acompanha o raciocínio de Juliany não é simples. Nessa atividade metalingüística, seu discurso centra-se em aspectos diversos da escritura e da reescritura. Inicialmente, ela aponta um problema de escolha lexical: no texto, aparece a expressão “exame de corpo”, que a

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Cancionila Janzkovski Cardoso

(9)

Juliany - 9.9.96

Título do texto:“Inventando uma

estória”

(Obs.: Texto muito criativo que conta a história de um sonho, em que a

autora se vê como uma pediatra que perdeu a

filha no parto e a reencontra anos

depois)

Anexo 6

K- agora me fale uma coisa.. se uma pessoa.. como eu por exemplo eu não conhecia a história.. ou a sua mãe.. qualquer outra pessoa.. lendo o seu texto.. ãh? ocê acha que essa pessoa vai entender todinha a sua história?

J- não seiK- por quê? Por que não sabe?J- aqui no meio eu fiz uns errosK- onde por exemplo?J- olhe aqui.. quer ver .. aqui exame de sangue .. eu fiz

“exame de corpo” K- ãhnJ- eu erreiK- ocê errou?J- hum humK- então ocê mudaria.. se fosse.. se fosse pra você mudar

alguma coisa pra.. pra essa pessoa.. qualquer outra pessoa que fosse ler o seu texto.. entender direitinho.. então ocê mudaria esse pedaço aí

J- hum humK- que mais cê mudaria.. você mudaria mais alguma coisa

ou não?J- mudariaK- que mais?J- ((lendo)) aqui tambémK- o quê?J- “Levei ela para minha casa e contei tudo para ela”..

mudariaK- por que que ocê mudaria aí?J- e aqui também.. quer ver.. hum.. aquiK- humJ- “- Que morava na rua” aqui não.. “e que estava com muita

febre e um rapaz lhe trouxe até aqui”.. esse pedacinho aqui eu mudaria

J- [não.. até aquiK- aonde?J- “e um rapaz lhe trouxe até aqui”K- ãhnãhn.. e o que que cê mudaria aqui nesse pedaço

então?J- eu colocava de outra maneira.. que ela.. tivesse vindo

sozinha ou que o rapaz encontrasse ela mas.. acho que aqui ficou errado

K- o que será que ocê acha que ficou errado aí nesse pedacinho?

J- é “e um rapaz lhe trouxe até aqui”K- sim mas porque que ocê acha que tá errado esse pedaço?J- “até aqui” agora não sabe se.. se foi até o hospital ou até

o lugar onde ela tavaK- ahrraaaa tá .. então é esse pedacinho só.. “um rapaz lhe

trouxe” esse “até aqui”.. quer dizer onde é esse “até aqui” né?

J- [ é..K- e aí ocê mudaria como?J- [no hospitalK- ahm sim .. cê colocaria...J- [no hospitalK- no hospital.. então você deixaria esse pedacinho mais claro

né?J- hum hum

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças

8 A frase toda é: “Levei ela para minha casa contei tudo para ela vesti ela calcei e tudo oque um boa mãe podia fazer”, apresentando, portanto, mais uma repetição do pronome.

criança identifica como inadequada, substituindo-a por “exame de sangue”. Em seguida, outro fragmento textual é mencionado: “Levei ela para minha casa e contei tudo para ela”. Afirmando que mudaria essa parte, Juliany demonstra entendê-la inadequada, mas não consegue localizar/explicar a inadequação. Uma hipótese possível é a de que essa criança tenha a percepção de que a causa do estranhamento é a repetição do pronome “ela”. Nesse caso, a criança teria identificado nesse segmento uma estratégia oral e que, portanto, poderia ser mais adequadamente elaborada na escrita. Mais que a repetição pura e simples, o uso dos dois pronomes em posição pós-verbal pode ter incomodado a criança (“levei ela/contei tudo para ela”).8 De qualquer forma, esse enunciado é apontado como tendo problemas com a clareza.

Continuando a análise, Juliany aponta outro enunciado que, em sua opinião, mereceria uma reescritura: “e que estava com muita febre e um rapaz lhe trouxe até aqui”. As perguntas da entrevistadora, desde o início, visavam dissipar a ambigüidade para o leitor. Na dinâmica interlocutiva que se segue, a criança insiste no enunciado que aponta como errado e a pesquisadora insiste nas perguntas de explicitação: “O que que ocê acha que ficou errado? por que você acha que tá errado esse pedaço?”. De início, a pesquisadora parece não entender a seleção feita pela criança. Esta, então, recorta o enunciado:

“e um rapaz lhe trouxe até aqui; fornece opções para ele: eu colocava de outra maneira.. que ela.. tivesse vindo sozinha ou que o rapaz encontrasse ela.. mas acho que aqui ficou errado”.

“Nesse jogo, novo recorte é feito pela criança e, finalmente, vem a explicação:” “até aqui.. agora não sabe se .. se foi no hospital ou até o lugar onde tava”. A surpresa da pesquisadora em verificar a sutileza da análise da criança fica patenteada:

“ahrraaaa tá .. então é esse pedacinho só.. um rapaz lhe trouxe esse “até aqui”.. quer dizer onde é esse “até aqui” né?” Juliany está falando de uma referência a um contexto extralingüístico não compartilhado com o leitor. O uso do dêitico (“aqui”) naquele enunciado é percebido como inadequado e, portanto, como elemento dificultador na recepção de seu texto. A solução encontrada é a substituição do dêitico pela definição de um lugar (“no hospital”). Entendo que a utilização do

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Cancionila Janzkovski Cardoso

dêitico sugere um modo de planejamento; sugere, ainda, que a criança se comporta como se o interlocutor/leitor estivesse presente e, desse modo, um certo número de informações que ela percebe, seja igualmente acessível a ele (“um rapaz lhe trouxe até aqui” supõe que o destinatário esteja no mesmo lugar que o enunciador).

Ao perceber a existência de uma unidade lingüística que exige uma maior contextualização, Juliany sugere sua substituição por outra unidade lingüística, tendo como objetivo proporcionar uma maior autonomia do texto em relação à situação de produção. Ganha o texto em autonomia, ganha o leitor/interlocutor em clareza, ganha Juliany em controle consciente de sua produção.

Enunciados com ambigüidade referencial também são apontados como problemáticos por Laila: [Quadro (10)].

Em resposta à questão da pesquisadora, a criança aponta, desde o início da seqüência, a ambigüidade envolvendo o uso do pronome anafórico: “olha professora eu entendo.. pode assim de uma pessoa em quem .. agora não sei se entende muito porque algumas palavras eu errei.. e eu não coloquei.. o que que aquela pessoa tava falando.. se era o filho.. se era a mãe.. ou se era o pai.” Numa clara distinção dos papéis de produtor/receptor, Laila argumenta que o texto, para ela, a autora, está claro, uma vez que foi ela quem escreveu (“pra mim eu entendo porque fui eu que escrevi”), mas há necessidade de determinar melhor, em algumas seqüências do texto, qual dos personagens fala ou age. Numa análise rigorosa, parágrafo a parágrafo (a partir do quarto até o décimo quarto), a criança vai lendo e apontando a ambigüidade relacionada ao uso do pronome anafórico.

Ao escrever um texto, o autor defronta-se com o problema da conservação/progressão das informações, quer dizer, como introduzir novos elementos, como retomá-los e como diferenciá-los entre si. Em lingüística estes problemas têm sido analisados pela rubrica coesão e coerência, “entendida a coerência como a configuração conceitual subjacente e responsável pelo sentido do texto, e a coesão como sua expressão no plano lingüístico” (Costa Val, 1991, p. 20). Dentre os mecanismos de textualização utilizados para garantir a coesão nominal encontram-se os pronomes anafóricos. Esses procedimentos de substituição lexical contribuem para dar um efeito de estabilidade e continuidade ao texto.

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(10)

Laila - 9.9.96

Título do texto:“O mundo azul”

Anexo 7

K- é e.. legal .. então tá bom.. é me fala uma coisa Laila.. olhando essa sua história.. você acha que .. uma pessoa.. como eu por exemplo.. eu não conhecia né.. uma outra pessoa que não conhece essa história .. lendo.. ela lendo o seu texto.. você acha que ela entende tudo?

L- olha professora eu entendo.. pode assim de uma pessoa em quem .. agora não sei se entende muito porque algumas palavras eu errei.. e eu não coloquei.. o que que aquela pessoa tava falando.. se era o filho.. se era a mãe.. ou se era o pai..

K- humL- aí eu não entendi.. aí eu coloquei.. mas pra mim eu

entendo porque fui eu que escreviK- você entende né? então tá .. então aqui nessas coisas que

ocê observou que ocê colocou uma hora.. a alguém que ocê não..

L- [éK- [não determinou bem quem era.. você mudaria

alguma coisa então pra essa pessoa entender?L- mudariaK- aonde? Vamo ver .. anote aí pra mim.. anota não.. a..

aponta pra mim .. aonde.. o que que ocê mudaria nesse texto.. pra essa pessoa entender melhor

L- olha igual aquel.. eu.. eu li bem ali né .. “Depois indiante ele não dormia com a luz apagada só de medo”.. então aqui eu colova “o filho”

K- ãhmmmL- o que eu não coloquei .. ó.. “E o pai” aqui eu já coloquei..

“Ele falava isso ao filho” porque esse aqui é o filho.. eu já sei que é o pai né

K- hum humL- então tá aqui .. aí eu mudaria assim.. “Depois disso aparecia

vários fantasma para passar um medo” .. agora eu não sei se é no filho.. se é na mãe.. a pessoa não entende se é no filho.. se é na mãe.. ou até no pai.. então aqui eu tinha que colocar .. o pai.. aí “Um dia apareceu o fantasma da Obra e todo mundo já conhecia esse nome”.. todo mundo já conhecia né.. por falar dele

K- hum.. tá certo.. bom aí o que mais?L- (...) “Ele tava dormino e apareceu o fantasma .. fantasma

.. Ele ficou até.. tranqüilo porque pensou que era sua mulher”.. só que aí é sua mulher.. que é o o pai né? “Só quando ele vio ele assustou tanto que até seus cabelos arrepiaram a coberta sobio e ele também”.. então aqui eu colocava o pai né.. porque foi o pai que subiu e que ficou com os cabelos arrepiados

K- hum hum...L- “Ele gritou e virou um deflége da cama e correu para o

quarto de seus filhos tremendo.. de seu filho”.. eu coloquei seu filho.. “tremendo de o queixo de medo”.. o pai né..

“depois de tudo isso ele contou tudo ao filho.. Olha filho eu te contei aquilo para te passar medo para eu não...”.. aqui até que vai.. aqui não tem nada não..

Schneuwly (1988, p. 131), revisando várias pesquisas sobre os procedimentos anafóricos utilizados por crianças, a partir de quatro anos, tanto em linguagem oral quanto em linguagem escrita, hipotetiza que “em torno dos 9 anos, as crianças aprenderam a utilizar o pronome anafórico como meio de criação de coesão, meio que serve para indicar ao

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Cancionila Janzkovski Cardoso

auditor que nada muda, que se continua com os mesmos atores ou elementos que antes. O pronome pessoal parece ser um paradigma particularmente produtivo e interessante para chegar ao domínio da coesão do discurso”.

Para esse autor, a apropriação dessa e de outras unidades lingüísticas que agem sobre um contexto lingüisticamente criado9 “funciona também como mediador tornando possível e impondo uma relação mais distanciada, mais reflexiva em relação ao próprio comportamento de linguagem materializado no texto” (Schneuwly, 1988, p. 131).

A análise de Laila, ao mesmo tempo em que torna evidente essa apropriação, testemunha que ela não se dá de uma só vez. O uso que essa criança fez do pronome anafórico na escrita mostra um “desvio de coesão” (Costa Val, 1991, p. 22), já que criou ambigüidade, porque havia mais de um termo que podia lhe servir de antecedente (o pai, o filho). No entanto, ao rever seu texto essa anomalia foi logo observada, o que supõe um processo em desenvolvimento. Essa análise expressa, mais uma vez, a capacidade dessa criança em se colocar no lugar do interlocutor/leitor e, a partir daí, avaliar seu próprio discurso, notando nele uma infração textual que poderia acarretar embaraços à leitura.

Considerações finais

À luz dos dados analisados, não é possível negar que os sujeitos desta pesquisa já se apropriaram de aspectos relevantes da construção do outro/interlocutor, mostrando comportamentos/observações extremamente sofisticados, relacionados com a dimensão reflexiva do ato de escrever.

No que concerne ao Outro/interlocutor, o leitor de seus textos, os sujeitos parecem querer dizer, tal como argumenta Geraldi (1991, p. 102): “O outro é a medida: é para o outro que se produz o texto. E o outro não se inscreve no texto apenas no seu processo de produção de sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição necessária para que o texto exista.”

Diante desses dados, como avaliar as pesquisas relatadas por Fayol e Schneuwly (1987) cujos resultados sugerem que “sujeitos de dez-onze anos corrigem mais facilmente ambigüidades referenciais nos textos dos outros que nos seus, ou ainda, nos sujeitos de dez a catorze anos, as avaliações

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se restringem ao nível “local”, os sujeitos não chegam a “diagnosticar” suas dificuldades?”

Pelo menos, há que se considerar, juntamente com a idade, o fator “prática social” ou “experiências de letramento”, nas quais são atualizadas diversas variáveis constitutivas das práticas discursivas escritas. Com efeito, a linguagem em funcionamento revela, ao mesmo tempo, aspectos referentes ao domínio do sistema lingüístico, de sua utilização em situação de discurso, da relação que o locutor mantém com essa situação e com o seu discurso, daquilo que ele pode/quer comunicar em tal situação. E isso vale, igualmente, para a situação de produção da correção ou revisão de textos e, portanto, deve ser considerado como um aspecto de influência nos resultados das pesquisas.

Tendo presente essa dimensão, pode-se observar que, do ponto de vista desenvolvimental os sujeitos desta pesquisa (que tinham, em média, dez anos, lembro o leitor) demonstram ter capacidade de aplicar operações textuais complexas visando intervir como enunciadores de um texto. Os problemas apontados por eles, sobretudo os relacionados com os implícitos, a ambigüidade referencial, a coesão, a coerência e a inadequação pragmática, testemunham a existência de diferentes níveis de desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever. São as “pistas” por meio das quais a criança antevê/constrói/filtra o seu leitor.

Assim, pode-se concluir que os comentários metatextuais dessas crianças atestam o desenvolvimento de critérios objetivos para pensar os seus textos e verificar as condições de aceitabilidade de seu discurso escrito. São essas importantes e indispensáveis capacidades lingüísticas, desenvolvidas no contexto do letramento escolar. O conhecimento dessas capacidades pelos professores alfabetizadores poderá fornecer alguns elementos de reflexão sobre o potencial das crianças de apreender a complexidade da trama textual, ajudando-os, portanto, em sua tarefa de alfabetizar em tempos de letramento.

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Cancionila Janzkovski Cardoso

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Processos de letramento na infância: aspectos

da complexidade de processos de ensino-aprendizagem

da linguagem escrita

Cecília Goulart*

Começando a conversa

Experiências vividas numa viagem de avião podem nos colocar questões interessantes em relação à vida, de um modo geral, e, por que não, em relação a processos de aprendizagem, levando-nos à reflexão sobre processos de ensino. Foi o que aconteceu comigo em viagem recente. Em certo momento, os passageiros foram avisados de que estávamos atravessando um espaço de muitas nuvens e que poderia haver turbulências.

Lá fora o branco-algodão dominava o cenário. Pus-me, então, a pensar no que é uma nuvem para quem a olha em terra firme e para quem se vê no interior de uma nuvem, dentro de um avião. Seria a nuvem aquela massa branca esfumaçada, sem contornos, vista de dentro do avião, ou seria aquela imagem desenhada e destacada no céu, com formatos ora regulares, ora irregulares, como quando olhamos para o céu? Seria a nuvem aquele desenho, aquela forma, ou aquele material que lhe dá consistência? O que é a nuvem para um

* Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense/(UFF). Integrante do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFF). Dou-tora em Letras/Lingüística Aplicada (PUC-Rio).Coordenadora do GT Alfabe-tização, leitura e escrita da Anped no biênio. Pesquisadora líder do grupo de pesquisa Linguagem, práticas educativas e cultura/Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Pesquisadora do Núcleo de estudos da argumentação/Di-retório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

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Cecília Goulart

físico? Para um astrônomo? Para um índio? Para uma criança? Para outra criança? Para um poeta?

Na mesma viagem, muito próximos à chegada ao aeroporto, questões semelhantes me tomam, quando o avião sobrevoa uma região, com uma extensa plantação de árvores, à margem de um rio: como vemos as plantações da janela do avião? E como vemos as plantações em terra firme? Aqui a visão se inverte. Do avião foi possível perceber contornos organizados geometricamente de muitos conjuntos de árvores de uma mesma espécie, arrumados em desenhos muito bem definidos. E a chegada a pé nesta plantação, como seria? Que visão teríamos da plantação, de sua extensão, de seus contornos? Veríamos as árvores individualmente, as distâncias entre elas, características de seus ramos, caule e folhas, o que não me era possível do avião. Veríamos o rio?

Utilizo-me dessas imagens alegoricamente para refletir sobre o aprendizado da linguagem escrita. Que experiências as crianças que chegam à educação infantil e ao ensino fundamental têm com a existência social e formal dessa modalidade de linguagem? Se a nuvem é a matéria que a constitui e também o desenho que se avoluma no céu e se a plantação de árvores é o conjunto de árvores, geometricamente organizado, e também as árvores com suas características mais visíveis, a linguagem escrita se constitui nas letras, na sua linearização no espaço e também no modo como seu “aglomerado” se organiza, produzindo sentido. Como as crianças a significam? Que experiências vivem com essa linguagem tão entranhada no universo social?

Cabe chamar atenção, entretanto, de que essa é uma reflexão de quem conhece bem a linguagem escrita e pode estabelecer relação desta com nuvens e plantações. Esse não é um dado circunstancial principalmente se tratamos de crianças e de seus processos de aprendizagem... Como as crianças percebem a linguagem escrita, observando-a no espaço social, em variados suportes, de variadas maneiras? Caracteres e desenhos soltos? Aglomerados de caracteres/desenhos? Destaca-se a linearização dos caracteres? Como pensam a organização dos caracteres? Que sentidos produzem? Cada criança, a seu modo e com suas possibilidades, deve se esforçar para compreender essa linguagem, que desde muito cedo passa a fazer parte da vida de quem nasce numa sociedade

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Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...

letrada. Crianças pensam sobre os objetos do mundo, vivem experiências, buscam relações entre elas, têm curiosidades...

A reflexão das crianças para a compreensão do funcionamento social da escrita e de sua organização formal pode ter muitas janelas de entrada, conforme algumas pesquisas vêm mostrando. O estudo sobre alfabetização envolve a discussão sobre modos de alfabetizar e, também, sobre a necessidade de organização de fundamentos teóricos e metodológicos que nos levem a arquitetar um arcabouço conceitual sobre a aquisição da linguagem escrita pelas crianças. Esse arcabouço pode se constituir em marco teórico para o debate teórico e para a discussão de métodos para o trabalho pedagógico, o que envolve definição de princípios, diretrizes, eixos, estratégias e de material didático, entre outros.

Não temos dúvida de que a exclusão histórica de grande parcela da população brasileira está vinculada estreitamente à organização político-econômica da sociedade brasileira, à má distribuição de bens de todo tipo, como muitos estudos encaminham. Essa constatação, entretanto, não justifica que se pare de investigar tanto o objeto escrita em si, quanto a história do ensino da escrita e também os processos de ensino-aprendizagem. Pelo contrário, precisamos cada vez mais trabalhar pela elaboração de uma teoria geral da aprendizagem da leitura e da escrita, seus princípios, parâmetros e especificidades. Essa tem sido uma grande motivação para os estudos que realizamos.

Nosso objetivo no artigo é refletir sobre modos de alfabetizar na perspectiva do letramento social na escola, ressaltando a importância que a noção de letramento pode ter para dar novos sentidos aos processos de aprendizagem da leitura e da escrita na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Venho pesquisando interessada em aprofundar a compreensão dos caminhos que as crianças percorrem para aprender a escrever na perspectiva da produção de textos. Ao fato de considerarmos a produção de textos (não de palavras e frases), já subjaz um pressuposto relevante: concebemos o processo de alfabetização no interior do processo de ampliação do conhecimento de mundo, com relevância para o sentido que a linguagem tem nessa ampliação, já que é constitutiva dos sujeitos sócio-históricos.

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Cecília Goulart

Aprender a linguagem escrita, além de um direito, constitui-se como um processo político de aprender a dizer o mundo na perspectiva discursiva da esfera social do conhecimento da cultura letrada, o que inclui novas formas de organização da linguagem verbal e de visão da sociedade. Os textos materializam diferentes discursividades. Então consideramos que a unidade lingüística básica do processo de alfabetização devam ser os textos orais que produzem o discurso entre alunos e professores na sala de aula e os textos escritos que vão sendo chamados a responder perguntas, desejos e necessidades que vão surgindo, criando novos discursos, novos textos, novas formas de agir no mundo.

Ressaltamos, entretanto, que o fato de ter os textos como ponto de partida não exclui que se trabalhe com as demais unidades lingüísticas, palavras, sílabas, fonemas e letras, na perspectiva das especificidades da aprendizagem da escrita. Ressaltamos também que o trabalho com essas unidades pede aproximações diversas e que as unidades se sobrepõem tanto na perspectiva de elaboração dos textos por qualquer pessoa quanto na perspectiva dos sentidos do texto em si. Desse modo a análise da língua escrita fica subordinada a seus sentidos e a seus usos e funções sociais, o que para nós tem implicações importantes para a qualidade da leitura e da escrita resultante. Assim, deixamos claro, ainda que de modo breve, os pressupostos que estão subjacentes ao nosso modo de conceber o processo de ensinar a ler e a escrever.

Apresentando e discutindo resultados de pesquisa

Desde 1992, realizando estudos com crianças de seis e sete anos de escolas públicas, venho observando modos como as crianças se apropriam da língua escrita. Os resultados vêm contribuindo para a reflexão sobre novas possibilidades de trabalho pedagógico com esta modalidade de linguagem. No estudo de 1992 (Pacheco, 1992, atual Goulart), analisando a produção escrita de crianças de sete anos orientadas por trabalhos pedagógicos distintos (o que equivale a conceber sujeito, apropriação do conhecimento, linguagem e texto dentro de uma determinada perspectiva), observo que as crianças elaboram questões relativas à produção do texto escrito de modos também distintos. Essas elaborações estão atravessadas

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pelas características do objeto em si, pelas características subjetivas de cada um, condicionadas pelo contexto cultural em que vivem e, também, pelas características do trabalho realizado nas salas de aula.

A análise realizada nesse estudo levou-me a perceber que as crianças estão procurando meios de organizar seus textos. A produção de textos envolve idas e vindas em que as crianças parecem estar continuamente reelaborando seus conceitos, dando algumas vezes a impressão de que estão retrocedendo em relação a conceitos já apresentados anteriormente. As crianças parecem ir refletindo sobre a produção de seus textos enquanto os escrevem.

Em Pacheco (1996), destaco procedimentos realizados pelas crianças durante a atividade de produzir textos escritos, caracterizando, assim, a reflexão epilingüística1 das mesmas. Essa atividade é realizada pelas crianças na busca da compreensão do modo como a linguagem escrita funciona. Esses procedimentos têm sido vistos na escola, de um modo geral, sumariamente como erros, mas podem ser compreendidos como soluções transitórias que as crianças elaboram no esforço de resolver os problemas que a complexa atividade de produção de textos escritos apresenta. Aos poucos, as crianças vão estabilizando padrões convencionais da modalidade escrita da linguagem (cf. Pacheco, 1994; Pacheco, 1995).

Considerando que, em geral, o trabalho estrito com métodos tradicionais de alfabetização (e os próprios métodos) caracteriza-se por um controle grande da produção escrita da criança, na medida em que as unidades lingüísticas são apresentadas de forma gradual, os métodos acabam por tentar conduzir a aprendizagem das crianças, obscurecendo de certo modo seus processos, seus modos de pensar. Um outro ponto que tem sido criticado em relação ao trabalho com os

1 Procedimentos epilingüísticos têm sido observados na construção de objetos lingüísticos. Caracterizam-se como hesitações, reelaborações, autocorreções etc., ou seja são operações espontâneas com a lingua-gem feitas pela criança numa atividade comunicativa, e resultam de sua progressiva tomada de consciência do objeto lingüístico (Silva, 1991).

“Chamamos de atividade epilingüística a essa prática que opera sobre a pró-pria linguagem, compara as expressões, transforma-as, experimenta novos modos de construção, canônicos ou não, brinca com a linguagem, investe as formas lingüísticas de novas significações”

(Franchi, 1987, p. 36).

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Cecília Goulart

métodos é que subjacente à sua aplicação está a crença de que a aprendizagem, primeiro, deve-se dar em nível de domínio da base alfabética da língua escrita (a língua escrita vista como código, geralmente) para, depois, então desejar que as crianças escrevam textos significativos, isto é, utilizem a escrita como linguagem. Isso quer dizer que primeiro se aprende a escrita, depois a linguagem escrita (cf. Rockwell, 1987; Ferreiro, 1994; Abaurre, 1985; Tolchinsky, 1991). Um reforço grande na relação da escrita com a fala também é observado nesses métodos. Essa dissociação (escrita/linguagem escrita) e esse reforço (escrita como transcrição do oral) têm sido diagnosticados como geradores de grandes dificuldades para que crianças, e depois jovens e adultos, tornem-se proficientes na redação de textos de vários tipos (cf. Pécora, 1983; Bastos, 1985; Lemos, 1995).

Em Pacheco, Borba et al. (1996), investigamos numa escola pública de Niterói a concepção de língua escrita que crianças de quatro e cinco anos têm antes de saberem ler e escrever convencionalmente, e observamos um crescente conhecimento pelas crianças da diferenciação entre o discurso oral e o escrito.

Tenho então observado a complexidade cognitiva envolvida no processo de alfabetização infantil, especialmente na perspectiva do processo de produção de textos escritos, mas, ao mesmo tempo, observo as complexas condições cognitivas que as crianças apresentam no esforço para aprender, principalmente quando nesse processo se consideram seus conhecimentos, seus modos de compreender o mundo, não só a escrita, e, cabe ressaltar, quando o trabalho para ensinar a linguagem escrita se dá no interior de um grande trabalho com a oralidade.

No trabalho de pesquisa de 1997 (Pacheco, 1997; 2000a; 2000b), acompanhei durante dois anos crianças de seis e sete anos na classe de alfabetização e na primeira série, numa turma liderada por uma experiente professora alfabetizadora, considerada pelas colegas como “nota dez”. Esta professora trabalhava a partir do universo discursivo das crianças e tinha o texto oral e escrito como ponto de partida da prática pedagógica. Dada a plasticidade da linguagem, foi possível dar visibilidade, nos textos produzidos pelas crianças, a movimentos discursivos no sentido de compreenderem o

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funcionamento da linguagem escrita. Esses movimentos foram vistos como indícios de manipulação e reelaboração do material lingüístico pelas crianças. Tais indícios, segundo Abaurre (1992), são marcas inequívocas de um sujeito da/na linguagem.

Por meio da análise dos textos, compreendemos que o conhecimento da língua escrita vai se construindo pelo agenciamento de estratégias diversas pelas crianças. Essas estratégias parecem se organizar como uma arquitetura móvel, instável e aberta que vai sendo construída e modificada, em razão da gradativa definição de pertinência ao sistema em questão e de novas necessidades. Aquela arquitetura então se faz e desfaz no processo de aprendizagem pela forma como as crianças administram as soluções a serem dadas aos problemas, sempre renovados, que surgem no contínuo processo de aprender a escrever textos. Os critérios de segmentação das palavras no texto, por exemplo, vão aos poucos se explicitando, evidenciando análises morfológicas que as crianças vão sendo capazes de realizar, aliadas ao desenvolvimento de um controle mínimo de características do próprio sistema de escrita e da linguagem escrita.

A atividade epilingüística das crianças na produção dos textos explicitou-se durante todo o período investigado. Essa atividade foi observada em nível ortográfico, morfológico, sintático-semântico, discursivo e também da própria organização espacial do texto no papel, evidenciada por meio de repetições, rasuras, inserções e também por recursos de configuração gráfica. Os indícios dessa atividade nos textos revelam as crianças pulsando na criação de seus textos, revelando, em síntese, a existência de sujeitos na/da linguagem.

A atividade epilingüística mostrou-se intrinsecamente atrelada ao processamento textual. Relaciona-se intimamente ao monitoramento recorrente que se dá durante o processo de escrita. A complexidade temático-discursiva dos textos, por sua vez, parece forçar as crianças a gerar recursos expressivos que foram observados por meio de uma riqueza de operações discursivas.

Além da quantidade, a qualidade dos aspectos lingüísticos envolvidos na atividade investigada também se acentuou nos textos analisados, por meio de oscilações, acréscimos,

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retificações, inserções, salvaguardas, esclarecimentos, ajustes e lapsos. Essa atividade incidiu predominantemente sobre: questões de natureza semântica, como a ordem das palavras na frase, a organização das referências no texto, a compreensão do significado de expressões e palavras e o aspecto verbal; e questões morfossintáticas, como a formação de combinações de preposições com artigos e outros elementos, a construção de verbos pronominais, a flexão de número, a coordenação de sintagmas nominais e oracionais.

Os resultados apresentados acima me levaram a concluir que o aprendizado de produzir textos está intimamente relacionado à construção do sentido dos textos. A atividade epilingüística das crianças, revelando-se em ocorrências de origens lingüísticas diversas, caracteriza o processo de produção de textos principalmente de dois modos: como um processo de contínua e recorrente análise e como um processo marcado pela presença do sujeito da/na linguagem em direção a um Outro.

O conhecimento lingüístico das crianças, no início do período investigado, era diverso; seus sistemas de referências em construção, com certeza diversos, dadas as suas origens socioculturais e familiares também diversas. O trabalho pedagógico de uma mesma professora determinou propostas de produção de textos iguais para todos. A garimpagem que realizei nos textos dessas crianças indicou que, mantendo diferenças e por caminhos diferentes, as crianças vão convergindo na construção de textos escritos, atraídas pelo caráter público das convenções. Foi possível observar que os processos das crianças fundam-se na escrita social e convergem para a escrita social por caminhos singulares.

As crianças de idades variadas formulam hipóteses em todos os níveis da língua – fonológico/gráfico, morfossintático e semântico/discursivo – de forma complexa, deixando visível parte da análise lingüística que vão aprofundando. Evidenciam, assim, uma reflexão sobre as necessidades e possibilidades que o sistema de escrita apresenta ao terem de solucionar as questões que a elaboração do texto demanda. Aprender a produzir textos, desse modo, envolve um intricado conjunto de conhecimentos que não se resumem a uma soma de conhecimentos lingüísticos; muito mais do que isso, essa atividade relaciona-se a um enredamento de conhecimentos

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em que muitos fatores estão em jogo – lingüísticos, situacionais, sociais, entre outros.

A pesquisa concluída em dezembro de 2005, com financiamento do CNPq, gerou o relatório “Processos de letrar e ser letrado na infância: modos de letrar e ser letrado na família e no espaço educativo formal” (Goulart et al., 2005). Seus objetivos principais foram identificar e caracterizar aspectos das orientações de letramento dos sujeitos selecionados e buscar relacionar características de orientações de letramento com os desempenhos das crianças em atividades sociais de fala, leitura e escrita. Trabalhamos com dez crianças de quatro e cinco anos da Creche UFF, filhas de funcionários e alunos da UFF, com renda mensal entre R$ 400,00 e R$ 3.000,00 (em 2003). Realizamos observações e entrevistas tanto no espaço da própria creche quanto nas casas das crianças. Procuramos observar o atravessamento da linguagem escrita na vida das crianças nesses dois espaços, entendendo tanto a intensidade e o modo a escrita já estava presente nessas vidas, e o que as crianças eram capazes de fazer com ela, quanto o que a própria linguagem escrita já interferia na vida das crianças e fazia com elas.

A análise dos dados, que evidencia as reflexões das crianças e seus conhecimentos, foi realizada de várias maneiras, nos registros de rodinhas, em entrevistas e em outras atividades na creche, e no registro das observações e entrevistas nas casas das famílias das crianças. Os dados foram discutidos e analisados com base, principalmente, em estudos sobre letramento e alfabetização (Soares, 1998, 2003; Goulart, 2003, 2005a), estudos da teoria da enunciação de Bakhtin (1988; 1992; 1998) e estudos sobre a relação entre oralidade e escrita.

O estudo tem relevância para a discussão sobre a relação entre os processos de letramento e de alfabetização e para a definição de propostas metodológicas de trabalho com a linguagem em espaços educativos de educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Como são muitas as conclusões do estudo, vamos apresentar aqui apenas as que se mostram mais pertinentes ao foco do presente artigo.

A pesquisa revela os contextos de letramento em que todas as crianças vivem principalmente decorrentes do nível de escolaridade dos pais, responsáveis e parentes próximos.

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A língua escrita está presente nas casas de variados modos e em atividades diversas; o interesse por atividades de leitura e de escrita manifesta-se de muitas formas entre as crianças. Observa-se também que as crianças ocupam posições diferentes nas famílias, sobressaindo-se em algumas famílias um papel de bastante destaque para suas posições. Um outro ponto a ressaltar é o investimento consciente de algumas famílias na escolarização das crianças e especialmente em aspectos ligados ao letramento.

Desde que iniciamos a análise dos dados, fomos observando a impossibilidade de separar modos de letrar e de ser letrado. Com essa perspectiva dialética, então, procuramos abordar os dados da pesquisa.

As crianças investigadas estão cercadas pela escrita de vários modos: são filhas de pais alfabetizados, com ensino superior, ou cursando a graduação, e outros, ainda, na pós-graduação ou pós-graduados; têm acesso a materiais escritos diversos, além de objetos, e participam rotineiramente de atividades com a escrita e/ou atravessadas pela mesma. Algumas crianças participam, também de modos diversos, de outras instituições sociais, além da família e da escola, ligadas de alguma forma aos pais ou responsáveis próximos, como espaço religioso, local de trabalho e de estudo, partido político. Algumas práticas discursivas orais familiares mostram-se como espaços de participação e reflexão das crianças sobre suportes de textos escritos, sobre a linguagem escrita e também sobre suas funções e usos sociais. Essa observação não é de todo coincidente com o maior poder aquisitivo das famílias, vale ressaltar. A intencionalidade de ações educativas das famílias, direcionadas ao letramento ou a um bom desempenho na escola, merece destaque.

Todas essas relações e espaços estão ligados a modos e perspectivas diferentes de interpretar a realidade e a presença forte da escrita na realidade social. Estão ligados, assim, a orientações valorativas diversas também. Pode-se observar que tais modos e perspectivas ora abrem mais chances de efetiva interlocução das crianças, ora abrem menos, ou seja, em determinadas situações familiares as crianças têm mais oportunidade, são mais convidadas a se expressar, a participar.

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A língua escrita está presente nas casas de variados modos e em atividades diversas; o interesse por atividades de leitura e de escrita e os conhecimentos sobre a escrita se manifestam de muitas formas entre as crianças. A maioria das crianças evidencia conhecimento significativo sobre aspectos das atividades de leitura e escrita, inclusive ao afirmarem não saber ler e escrever. A conseqüência do nível de consciência que as crianças vão desenvolvendo sobre a língua mostra-se também na oralidade, expressando, inclusive, a interiorização de controles sociais. Algumas crianças também se mostram capazes de realizar de modo contextualizado análises de unidades lingüísticas, como sílabas, letras e fonemas, entre outras. A maioria das crianças apresenta linguagem oral clara e articulada, o que possibilita a elaboração de explicações, entre outras formas complexas de organização do discurso.

Boa parte da produção relativa ao letramento dessas crianças apresenta-se neste momento por meio da oralidade. As linguagens sociais em que são envolvidas, os objetos que as cercam, os gêneros do discurso com que entram em contato, tudo fala a favor do conhecimento e pertencimento a uma cultura letrada. Vão aprendendo o funcionamento da escrita, discriminando e manipulando a relação entre sons e letras, entre outras discriminações. As crianças de quatro e cinco anos vão também, de modo complexo, fazendo leituras sociais do que vêem, ouvem e experimentam. As conclusões do estudo evidenciam o quanto a vida dessas crianças de quatro e cinco anos investigadas já está atravessada pela linguagem escrita de muitas e heterogêneas formas.

No registro de observações na creche há um momento em que a professora diz às crianças que uma das coordenadoras da creche trouxe uma história especial para ler. A coordenadora lê a história. Numa certa altura da história um dos meninos do grupo investigado pergunta: “Tá rimando, num tá, Priscila?”. E a coordenadora confirma a rima.

As crianças já demonstram em certo sentido um afastamento de algumas situações, textos e palavras que as capacita a produzir metaolhares, e, em alguns momentos, metalinguagem, como quando uma menina corrige a fala de uma das pesquisadoras, dizendo que o nome da professora é Andréa, não Andréia, com i. Uma observação como essa evidencia a qualidade da análise que a criança pequena é capaz de realizar, discriminando uma particularidade

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da relação entre a camada sonora e a camada gráfica da linguagem verbal: nem todos os fonemas expressados na fala são representados na escrita. Em outra ocasião, as crianças e a professora se encontram no pátio da creche e, ao chegar Valéria, uma funcionária da creche, Gabriel B diz a um colega: “Não chame ela de Varélia... ela chama Valéria.”

A professora ocupa-se de ações que promovam o conhecimento da linguagem escrita, das letras e de seus usos pelas crianças, com a garantia de um espaço para que elas façam tentativas de escrever. As intervenções se dão em contextos de atividades significativas mais amplas do que treinar as crianças para escrever. Nesse sentido, o movimento entre as crianças ganha sentido também. Como destaca Smolka (1991, p. 64), na prática pedagógica/discursiva analisada percebemos as relações da professora com objetos de conhecimento e com as crianças, e também a sua relação com o conhecimento, com a linguagem e com o próprio ato de ensinar, o que, afinal, é constitutivo do ato de aprender das crianças.

As crianças de quatro e cinco anos vão, de modo complexo, fazendo leituras do que vêem, ouvem e experimentam, como a reclamação que um menino faz de outro que havia escrito veado na sua cama, palavra de baixo calão, depreciativa da condição masculina na nossa cultura. Mostram com atitudes como essa a análise crítica que vão construindo do discurso falado e escrito.

Um outro menino, ao ver um exemplar de jornal em meio ao material trabalhado numa atividade desenvolvida por nós, diz que não sabe ler e que o pai Lê sem falar... lê sem falar assim, ó..., imitando o pai. Em seguida, diz que a mãe também lê sem falar. O menino demonstra que vai tomando conhecimento de modos legitimados de ler socialmente.

A conseqüência do nível de consciência que as crianças vão desenvolvendo sobre a língua mostra-se na escrita muitas vezes de forma bastante explícita. Para ilustrar, destaca-se uma ocorrência, ao final da atividade mencionada anteriormente. A pesquisadora escreve os nomes “Analice” e “Gabriel”; Analice acrescenta a letra “A” na palavra “Gabriel” e lê com satisfação

“Gabriela”, o nome de uma coleguinha da creche, também participante da pesquisa.

Na oralidade, do mesmo modo, observamos dados que evidenciam a análise do discurso acurada que as crianças

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já são capazes de realizar. Thais apresenta um olhar crítico a um modo não padrão de falar, parecendo expressar a interiorização de controles sociais, quando nos diz, em sua casa, que um funcionário do edifício em que mora fala algo como satirfeito, em vez de satisfeito. É interessante destacar que a mãe da menina corrige-a por duas vezes, quando ela fala a palavra satirfeito, parecendo preocupada com a repetição da forma errada da palavra. A atitude sugere que a mãe não percebeu a leitura contextualizada de característica marcante de uma linguagem social estigmatizada que a menina já era capaz de fazer.

Ligada ainda ao desenvolvimento da oralidade das crianças, merece destaque a explicação que algumas crianças elaboram sobre o que sabem, como a mesma Thais, que, em casa, explica o que está aprendendo na creche sobre processos de metamorfose de insetos. Pedro também, ao falar sobre o uso do computador, explica como se acessam alguns jogos e enuncia alguns endereços eletrônicos.

Um outro dado que, de certo modo, evidencia análise do material escrito por uma criança é observado numa rodinha. A professora lê uma história produzida coletivamente pelas crianças, e escrita pela professora, no dia anterior. Num dado momento, um dos meninos reconhece uma parte lida como a parte que ele havia sugerido para entrar na história. Parte do diálogo pode ser vista abaixo:

Andréa: – De repente ele encontrou uma caixa. E ele abriu ela.Lucas: – Eu que botei essa parte, né? Fala no meio da leitura da professora.

O reconhecimento pela criança da parte da história que havia sugerido no dia anterior implica sua atenção, percepção e também satisfação, ao fatiar o todo da história e depreender a sua contribuição. A leitura dessa história foi realizada repetidas vezes pela professora nesse mesmo dia, a pedido das crianças. A satisfação individual de Lucas, em destaque, parece estar ligada a um prazer coletivo das crianças de “lamberem a própria cria”, ouvindo seguidas vezes uma história escrita elaborada por elas mesmas.

O desempenho infantil mostrou-se dinâmico e variável de criança para criança, em momentos e situações diversas. O mundo da criança é muito heterogêneo; ela está em contato com várias realidades diferentes, das quais vai apreendendo

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valores e estratégias que contribuem para a formação da sua identidade pessoal e social.

O trabalho realizado na creche parece contribuir para atenuar os efeitos das diferenças sociais observadas nas famílias. Nossos resultados sinalizam também para a importância que tem o intercâmbio da creche com as famílias e o valor que estas dão ao trabalho realizado na instituição.

Os resultados do estudo evidenciam o quanto a vida das crianças de quatro e cinco anos investigadas já está atravessada pela linguagem escrita de muitas e heterogêneas formas: o conhecimento da própria escrita, a avaliação de suas capacidades de leitura e produção de escrita, o significado social dos objetos e de atitudes relacionadas ao uso dessa modalidade de linguagem. Observamos o modo como os conhecimentos, objetos, atividades, atitudes estão permeadas por valores sociais. Esses valores aparecem nas relações que as crianças estabelecem com as outras, com a família, com a professora e com todos os outros sociais, afirmando, explicando, negando, assumindo-se como sujeitos do discurso. Nesse movimento de enunciar e de serem enunciadas vão hibridizando a linguagem e a vida, tornando-se competentes para participar dos discursos da cultura letrada.

Refletindo sobre tensões atuais no campo da alfabetização e do letramento

Uma questão que tem me preocupado permanentemente em relação à alfabetização é a dislexia sígnica que se tem produzido numa parcela imensa da população brasileira (Pacheco, 1998). Agravada pela apresentação da linguagem escrita como um simulacro, revela-se um trabalho alfabetizador isolado das tensões discursivas e da historicidade, existentes em qualquer processo e em qualquer texto. Os alunos são considerados alfabetizados pela escola, no entanto não modificam, ou modificam muito pouco, a sua condição de pertencimento à sociedade letrada (Soares, 1998). Essa incapacidade de ler e escrever textos válidos socialmente gera nos alunos sentimentos de incompetência e de impotência que reforçam a sua “desqualificação” social (Moysés, 1985). Em suma, temos estado preocupados com a dislexia na leitura e escrita de palavras e frases, mas temos nos preocupado pouco

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com a dislexia social, que continua apartando do mundo da escrita um contingente enorme de pessoas.

Não temos dúvida sobre a relevância dos estudos lingüísticos, principalmente descrevendo a língua, para a compreensão da sua estrutura, de seus princípios e da relação entre oralidade e escrita. Sabemos, entretanto, que a análise da língua realizada pela criança para aprendê-la não é a de um pequeno lingüista, como se chegou a pensar no desenvolvimento de estudos da aquisição da linguagem oral (ver Peters, 1983). Muitos dos estudos estruturais de descrição lingüística são criticados, inclusive, por terem esquecido o processador da língua, ou seja, o sujeito falante, e a inserção social deste.

No caso da aprendizagem da escrita, historicamente algo semelhante acontece. Focalizam-se aspectos do objeto que não necessariamente serão os aspectos a merecerem a atenção das crianças “quando elas olham a plantação do alto ou conhecem a plantação em terra firme”. A complexidade do objeto e da aprendizagem é muitas vezes desconsiderada. A consciência fonológica, por exemplo, tem sido considerada por alguns autores como habilidade necessária à criança para se promover o processo de alfabetização, o que tem influenciado ações pedagógicas, documentos e propostas (ver Brasil, 2003). Tal consciência tem sido examinada e medida em crianças, principalmente, antes e durante o percurso do processo de alfabetização. Entendemos, de acordo com pesquisas realizadas por outros autores (Chomsky, 1971a, 1971b, 1979; Clarke, 1989; Pacheco, 1997), que são muitas as janelas lingüístico-discursivas que se abrem para as crianças no processo e no esforço de aprender a ler e a escrever. Algumas crianças são mais sensíveis a palavras e textos, como um todo, e outras, mais sensíveis a fonemas ou sílabas e, mesmo, a letras. O conhecimento sobre a língua e sua organização não pode ser transposto diretamente para a atividade didática.

Entendemos, e temos observado esse aspecto no acompanhamento dos processos de alfabetização de crianças, que a consciência fonológica possa se desenvolver na experiência de boas e significativas situações pedagógicas no percurso da aprendizagem da linguagem escrita, isto é, como um produto desse processo, e não precisa ser tomada como condição para a aprendizagem em questão, o que também

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tem sido mostrado por alguns autores (Read, 1971, 1975; Sulzby, 1987, 1992, entre outros). As crianças têm condição de apreender e aprender as múltiplas dimensões do objeto linguagem escrita, analisando-as, como temos observado e apresentamos na seção anterior deste artigo. A idéia de que se aprende do mais simples para o mais complexo, do menor para o maior, do mais fácil para o mais difícil, que está sendo questionada desde meados da década de 20 do século passado, parece continuar influenciando o ideário pedagógico (Colinvaux, 2005).

Muitos aspectos do ensino da escrita podem ser focalizados, considerando as reflexões e preocupações acima, na perspectiva do objeto de estudo em questão. Destacando apenas três, diria que o primeiro se refere à língua escrita trabalhada como uma transcrição do oral. Segundo a lingüista Ruth Monserrat (1986), “a maioria dos alfabetos “fonêmicos” atuais – tanto os das línguas com longa tradição escrita, como os das com escrita recente – são uma mescla de símbolos fonêmicos, morfofonêmicos e até logográficos. Em outras palavras, a essência atual da escrita no mundo tem caráter em grande medida convencional, embora ela tenha tido origem na representação parcial da fala.”

Se não podemos negar aspectos fonológico-ortográficos fundamentais na produção da escrita, não podemos desconhecer também a importante multiplicidade de outros aspectos, morfofonêmicos, logográficos e, inclusive, ideográficos, que estão presentes naquela produção, não como adereços ou elementos periféricos, mas carreando-lhe sentido, integrando o nosso sistema de escrita alfabético-ortográfico. Refletindo sobre as possibilidades da escrita no século XXI, Cagliari (2006) afirma:

A escrita alfabética está muito ligada à cultura Ocidental e, de certa forma, tem acompanhado o desenvolvimento cultural do Ocidente. Curiosamente, quanto mais se produziu em termos de uso da escrita alfabética, mais apareceram formas ideográficas no Ocidente. Basta abrir um jornal para se constatar isso. Há uma quantidade enorme de pictogramas, abreviaturas, siglas, números, fórmulas, gráficos, mapas, símbolos, grifes, logotipos, etc. Os jornais de oitenta anos atrás não só se utilizavam pouco desse tipo de material, mas usavam até poucas fotografias e desenhos. Nos últimos anos, a escrita ideográfica invadiu o mundo moderno, não só na comunicação externa de avisos e de informações, como até mesmo nos jornais [...]. Mas, uma coisa é certa: este uso atual revela uma tendência futura que,

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certamente, irá atingir uma dimensão que nós não somos capazes de imaginar hoje.

É num cenário em movimento de muitos sentidos e de muitos modos de expressão desses sentidos, portanto, que a escrita vive e faz parte de nossas vidas.

Um segundo aspecto se relaciona, por um lado, a estruturas sintáticas da língua escrita, ao léxico e aos conjuntos de sinais que contribuem para o sentido do texto, como sinais de pontuação e de acentuação, marcadores de paragrafação, de divisão das palavras em final de linha e também a disposição gráfica do texto, ainda que consideremos a relação oralidade-escrita como um continuum. Por outro lado, relaciona-se à discursividade dos diferentes gêneros do discurso escrito, implicando conhecimentos que são diferentes e/ou extrapolam os conhecimentos utilizados para falar.

O terceiro aspecto está vinculado aos modos de apropriação do objeto pelos sujeitos, envolvendo diferenças entre os processos, decorrentes das variações nos universos de conhecimentos, de experiências, de histórias de vida, de interesses, entre outras.

Quando se concentra o foco do trabalho de leitura e de escrita na chamada “relação fonema-grafema”, muitas outras informações relevantes ao objeto em estudo, que é um objeto cultural, são deixadas de lado. Além disso, no sentido estrito dessa visão de trabalho, os sujeitos da aprendizagem, em geral, não são considerados em suas relações concretas com o mundo em que vivem, que geram conhecimentos, afetividades, modos de ser e pensar, impregnando suas identidades.

A noção de letramento mostra-se bastante pertinente, no contexto educacional brasileiro para a compreensão da dimensão política das práticas de alfabetização, tanto na perspectiva de quem ensina como de quem aprende. As práticas sociais de letramento (Soares, 1998, 2001, 2003; Goulart, 2003, 2004, 2005a, 2005b, 2005c) podem se tornar o espaço para a aprendizagem da escrita em contextos concretos, como os escolares, condicionando a sua natureza e o tipo de relação que mantém com a cultura escrita (Viñao Frago, 2000).

No sentido do que colocamos em discussão neste artigo, a noção de letramento pode se constituir em horizonte ético-político para o trabalho pedagógico que se desenvolve na educação infantil e no ensino fundamental. As nuvens vistas de

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um avião e as nuvens vistas de terra firme são compreendidas como nuvens; as plantações de árvores observadas do alto e um passeio pela plantação revelam aspectos diferentes da plantação, mas ambas são visões/conhecimentos da plantação. Aquele que sabe sobre as nuvens reconhece-as de um lugar e de outro e aquele que conhece uma plantação de árvores também a reconhece de um lugar e de outro. A escrita e a linguagem escrita são dimensões da constituição da cultura letrada. Precisamos conhecer e reconhecer os dois conhecimentos como necessários para a inserção no mundo da escrita, para sermos conhecidos e reconhecidos social e politicamente. Assim, esses conhecimentos devem ser trabalhados na infância, desde a educação infantil – uma dimensão da cultura letrada não vive sem a outra.

E as crianças? De acordo com estudos, e também práticas pedagógicas que temos acompanhado e de outras que temos lido ou de que temos ouvido relatos, as crianças possuem condições complexas de aprendizagem desde que a escola seja voltada para a vida, para o sentido social do conhecimento, para alargar significativamente suas condições de pertencimento ao mundo. A sala de aula é um espaço de trabalho, em que se encontram diferentes linguagens sociais. Espaço de encontro, de desencontro, de disputa, de tensão, mas também de acordo, de acumulação, de distinção, de relação e, sobretudo, de compreensão do jogo de forças que se trava na sociedade, sendo a linguagem, como o sangue em nosso corpo, aquela que penetra em todos os momentos e meandros da vida

social, tonalizando-os (Bakhtin, 1992).

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Cecília Goulart

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Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro

de Referência de Literatura e Multimeios – Mundo da Leitura

Eliana Teixeira*

O Centro de Referência de Literatura e Multimeios – Mundo da Leitura da Universidade de Passo Fundo surgiu a partir da percepção de que, num mesmo ambiente, pode-se dispor de textos verbais e não verbais apresentados em diferentes suportes, colocando lado a lado o velho e o novo. Seus criadores não se deixaram persuadir pelo ufanismo gerado pelas novas tecnologias nem pela crítica costumeira de que os jovens leitores são leitores só da linguagem audiovisual e, portanto, desprovidos de interesse pelo texto escrito.

Um espaço dessa natureza pode ser considerado um hipertexto, com nós e elos que se tecem pela ação dos leitores em interação com as linguagens e com os monitores do Mundo da Leitura, elos imprescindíveis dessa teia.

Entende-se que a formação de leitores críticos exige que crianças e adolescentes convivam com os diversos suportes, desde o retroprojetor, o projetor de slides, o mural, o cartaz, o poster, a fita de áudio, a fotografia, o livro impresso, entre outros, até os suportes e tecnologias mais recentes, como o projetor multimídia, a fita de vídeo, o CD-ROM, o CD de áudio, o DVD e a internet. Do mesmo modo, é essencial que esse público tenha acesso às diferentes linguagens que circulam na sociedade, como a pictórica, a musical e a dramática, além da linguagem verbal. Compreender as especificidades das linguagens e os discursos que são veiculados por meio delas

* Mestre em Educação. Monitora do Centro de Referência de Literatura e Mul-timeios da Universidade de Passo Fundo.

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Eliana Teixeira

é pré-requisito indispensável para que se possa processar a crítica da realidade e, conseqüentemente, da sociedade atual.

O Mundo da Leitura foi criado em 1997 por professores do curso de Letras da Universidade de Passo Fundo, como fruto do seu empenho, os quais desde os anos 1980 vêm trabalhando no sentido de implantar uma política de leitura na área de abrangência da universidade.

A pesquisa e a extensão são os objetivos que norteiam o trabalho do Mundo da Leitura, que funciona como um laboratório do curso de Letras, além de atender os alunos das escolas da região e o público em geral. O Mundo da Leitura proporciona, durante todo o ano, visitas de turmas de escolas de Passo Fundo e região, oferecendo aos visitantes atividades programadas, as “práticas leitoras”.

A leitura – seja nos seus aspectos cognitivos, seja na sua dimensão social – tem envolvido um significativo número de profissionais de diferentes áreas, na busca por compreender o mistério do seu aprendizado e a sua incorporação na sociedade como um hábito cultural.

O escritor argentino Jorge Luís Borges, num de seus contos, apresenta a seguinte reflexão: “Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.”1

A fala do Minotauro nesse conto de Borges, sobre o ato de aprender a ler, é reveladora do quanto o aprendizado da leitura, pela decodificação do código escrito, é uma atividade

“enfadonha e trivial”. A leitura preconizada pela escola, muitas vezes desprovida de sentidos, acaba por matar nos jovens espíritos o prazer de ler. Essa alusão ao conto de Borges serve para se introduzir a questão da leitura, que tem suscitado por parte dos governos e de pesquisadores de instituições públicas e privadas ações em prol da constituição de uma “sociedade leitora”.

1 A casa de Asterion. In: BORGES, Jorge Luís. O Aleph. São Paulo: Globo, 1996.

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Sobre o tema da leitura têm surgido muitas pesquisas, as quais no Brasil se avolumaram nas últimas décadas (1980/90) do século XX. Essas pesquisas passam pelos aspectos cognitivos e pedagógicos da leitura, pelas políticas editoriais e de incentivo à leitura, pelos suportes de leitura, pela própria história da leitura e da literatura, por meio das suas práticas.

Entende-se por “leitura” toda atividade capaz de fazer sentido e de despertar o interesse do leitor, permitindo-lhe fazer relações com o que ele já conhece, não importando a natureza verbal ou não verbal do texto.

Leitura em outras linguagens

O ser humano, atualmente, relaciona-se com o conhecimento sobretudo por meio da linguagem oral ou escrita, mas nem sempre foi assim. Os homens, em outros tempos, usaram formas como a dança, os rituais – nas culturas antigas o xamã (indivíduo designado pela comunidade para desempenhar a função sacerdotal) personifica o conhecimento e a sabedoria – os desenhos nas cavernas e a música para afastar os maus espíritos.

Em Ciberespaço: um hipertexto com Pierre Lévy, Lévy (2000) apresenta quatro relações com o conhecimento, que, segundo ele, a humanidade desenvolveu ao longo dos anos:

• o saber, antes da escrita, ritual, místico e encarnado por uma comunidade viva;

• o saber ligado à escrita, o saber trazido pelo livro, fixado pela figura do comentador ou do intérprete;

• o saber após o advento da imprensa, configurado pela biblioteca, em cuja organização se destaca a figura do sábio ou erudito;

• o saber desterritorializado da biblioteca do hipertexto, encarnado novamente por uma comunidade viva enquanto espaço cibernético.

O ideal de saber trazido pelos livros está enraizado na cultura moderna de tal modo que, mesmo quando a linguagem escrita se materializa fora do suporte estático, por exemplo, na internet, ou mesmo em CD-ROM, tem-se a tendência a pensar que se está perdendo a fonte do conhecimento. Antes da descoberta do alfabeto, no século X a.C., as comunidades orais eram responsáveis pela transmissão do conhecimento

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Eliana Teixeira

às gerações que as sucediam e, só depois, a escrita alfabética tornou-se, por excelência, pelo menos no Ocidente, a forma de registro e transmissão do conhecimento.

No entanto a música, a dança e a pintura acompanham o homem desde que este começou a viver em grupos, relacionando-se culturalmente com a natureza. Quando, no século XIX e XX, o desenvolvimento tecnológico colocou em cena a fotografia, o cinema, o rádio, a televisão, o computador, entre outros, começou-se a pensar não só na linguagem verbal

– oral e escrita, mas também em diferentes linguagens ligadas a esses novos meios.

Pode-se dizer que muitas linguagens são transformadas em produtos de consumo em grande escala, como a linguagem televisiva e a radiofônica. Considerados como meios de comunicação de massa, esses produtos são freqüentemente criticados por seu caráter de mercadoria. O “mingau semiótico” em que a juventude está imersa necessariamente deveria ser decifrado, sob pena de ela ser devorada por ele.

A linguagem não é herdada biologicamente; é um produto social, fruto das experiências individuais e coletivas dos homens em sociedade. Ao longo da história da humanidade, as mudanças de suporte da escrita ocorreram imbricadas com o desenvolvimento socioeconômico e cultural.

Nas práticas leitoras apresentadas em diferentes suportes e linguagens no Mundo da Leitura, a mediação é fundamental. Na teoria do desenvolvimento e aprendizagem de Vygosty, o ser humano distingue-se dos animais porque possui o controle consciente do comportamento, isto é, o homem é capaz de pensar em objetos ausentes, de imaginar situações vividas, de planejar ações, enfim, de abstrair. Vygostsky chama essa capacidade humana de “mecanismos superiores de pensamento”. Chega-se aos mecanismos superiores por meio de dois níveis de desenvolvimento – nível de desenvolvimento real (conhecimento adquirido) e nível de desenvolvimento potencial (conhecimento a adquirir) –, intermediados pela zona de desenvolvimento proximal (ação sobre potencialidades a serem desenvolvidas).

A aprendizagem, para Vygotsky , é sempre mediada, o homem não se relaciona diretamente com o mundo. Os signos – por meio das diferentes linguagens (cinematográfica, coreográfica, verbal, plástica, teatral) – seriam formas de

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mediação. Dessa forma, Vygostky percebe que a internalização dos sistemas de signos produzidos culturalmente pelo homem no seu ambiente transforma o seu comportamento. Essa internalização é pontencializada pelo convívio da criança com adultos ou crianças mais experientes em ambientes ricos em materiais e situações diversificadas de leitura.

A criança, ao entrar na escola, possui um conhecimento elementar sobre o mundo que a rodeia: “A aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar”. Assim, o conhecimento prévio dos alunos deverá ser acionado em sala de aula, pois é com base nesse conhecimento que o aprendizado na escola fará sentido e contribuirá para o seu crescimento social e intelectual. Compreende-se, então, o letramento como o uso efetivo da escrita e da leitura no contexto social, oportunizando a assimilação dos diferentes usos da língua por meio das práticas sociais produzidas pelos grupos na sociedade.

Práticas leitoras multimidiais

As “práticas leitoras” são ações de leitura promovidas nas visitas agendadas de escolas. Desde 1997, são vivenciadas, por alunos e professores, experiências envolvendo diferentes linguagens (verbal, musical, dramática, entre outras), apresentadas em suportes diversos (impresso, CD-ROM, fitas de vídeo, internet, DVD, entre outros).

Num primeiro momento, entre 1997/1998, se optou por trabalhar as práticas a partir de datas comemorativas do universo escolar, relacionadas à literatura infanto-juvenil. Em conseqüência, se trabalhava um mesmo tema para todas as séries escolares, da educação infantil à educação superior. Foram abordados os seguintes temas: poesia, Monteiro Lobato, ecologia, arte, o Minotauro, o labirinto e a biblioteca; direitos da criança e dos adolescentes.

Em 1999, depois de se avaliar o trabalho desenvolvido e a pertinência de se trabalhar com temas comuns à prática escolar, surgiu a idéia de um tema gerador a ser desenvolvido durante todo o ano em diferentes séries, agrupando-as em duas ou três. Então, pensou-se numa prática para a educação infantil, outra para a 1a e a 2a séries do ensino fundamental e assim por diante.

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O tema “Censura e exclusão na literatura e em outras linguagens”, da 8a Jornada Nacional de Literatura, foi o escolhido para se iniciar essa nova experiência. Com efeito, as práticas leitoras, a partir desse novo formato com um tema gerador, proporcionaram uma avaliação mais consistente do trabalho, pois após um ano de sua aplicação permitiram-se ajustes no decorrer da caminhada.

No ano de 2000, não se poderia deixar de abordar o tema dos quinhentos anos do descobrimento. Dessa forma, as práticas leitoras priorizaram mostrar as raízes do povo brasileiro, sua história e sua cultura. Dividiu-se o tema em dois semestres: no primeiro foi desenvolvido o tema “500 anos de Brasil: memórias que nossa consciência não escolheu”; no segundo, o tema escolhido foi “500 anos: da carta de Caminha ao e-mail”, por meio do qual se buscou propor atividades que resgatassem o conhecimento já sistematizado pelos alunos e introduzir novos instrumentos para a compreensão das informações, estabelecendo uma relação menos fragmentária que a oferecida nas escolas e que se mostrasse coerente com a realidade atual, marcada pelas inovações tecnológicas.

Em 2001, ano em que se comemoraram vinte anos das Jornadas Literárias, nada mais pertinente do que se realizar uma odisséia no espaço, a exemplo de Kubrick. O tema das práticas foi o mesmo da 9a Jornada Nacional de Literatura e da 1ª Jornadinha Nacional de Literatura – “Uma jornada na galáxia de Gutenberg: da prensa ao e-book”. As práticas leitoras viajaram por universos distantes, mostrando como o homem desenvolveu diferentes formas de comunicação – dos desenhos das cavernas ao surgimento do alfabeto, do papiro ao livro eletrônico.

No ano de 2002, optou-se pelo tema “A representação do mundo através das artes”. A arte acompanha o homem desde a Pré-História e é por meio dela que o homem se reconhece e se sintoniza com o mundo e consigo mesmo. No livro Histórias em quadrões: pinturas de Mauricio de Sousa, o autor propõe a releitura de pinturas consagradas pela introdução dos personagens das histórias em quadrinhos da turma da Mônica. Esse livro foi a mola propulsora para se pensarem as práticas leitoras deste ano.

As práticas leitoras do ano de 2003, em sintonia com o tema da 10ª Jornada Nacional de Literatura e 2a Jornadinha,

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“Vozes do terceiro milênio: a arte da inclusão”, abordaram experiências de inclusão de diferentes segmentos da sociedade, esses marginalizados não só econômica e socialmente, mas também afastados cultural e tecnologicamente do mundo da informação, da comunicação e do conhecimento

Já em 2004, o tema “Cultura popular: ressignificando a identidade” norteou as práticas leitoras. Com o resgate das cantigas de roda, das brincadeiras com palavras, das lendas, dos contos populares, procurou-se valorizar o acervo pessoal e familiar de crianças, adolescentes e adultos envolvidos nas atividades de leitura.

No ano de 2005 foram elaboradas práticas leitoras sobre o tema da 11a Jornada Nacional de Literatura e da 3a Jornadinha Nacional de Literatura, “Diversidade Cultural: o diálogo das diferenças”.

Apresenta-se de forma sintética uma prática leitora aplicada para turmas de alunos de 3a e 4a séries do ensino fundamental nas visitas agendadas por escolas no ano de 2005.

Motivação: A partir da obra Goma arábica, de Carlos Urbim, e do tema da 11a Jornada e 3a Jornadinha Nacional de Literatura, “Diversidade cultural: o diálogo das diferenças”, fazer uma reflexão sobre a produção em massa de produtos de entretenimento dirigidos ao público infanto-juvenil, veiculados pelos meios de comunicação de massa, como integrante de uma estratégia multimídia que leva à compra de álbuns de figurinhas e cards de super-heróis, desenhos animados, games etc. Mostrar aos alunos e professores que as estratégias de consumo sempre existiram e que evoluem nas formas de atingir o público-alvo.

Tema: “Diversidade cultural: o diálogo das diferenças”Prática Leitora: O velho e o novo: álbuns de figurinhas X cards Leitores: Alunos de 3ª e 4ª séries do ensino fundamentalFinalidade: Apresentar aos alunos a influência dos meios de comunicação

de massa através das estratégias multimídias, do consumo de produtos de

entretenimento, como os álbuns de figurinhas e os cards.

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FerramentasLivro: Goma arábica, de Carlos Urbim;Revistas, cola, tesoura, folhas de oficio;Álbuns de figurinhas e cards diversos;Retroprojetor ou projetor multimídia.A prática passo a passo

-Apresentar o Mundo da Leitura e seus espaços, fazendo referência às diferentes linguagens e aos suportes diversificados; apresentar o tema da 11a Jornada e 3a Jornadinha Nacional de Literatura, “Diversidade cultural: o diálogo das diferenças; fazer a audição da música “Caminhos cruzados”.

-Convidar os alunos para ocuparem o espaço da arena.-Distribuir aos alunos álbuns de figurinhas e cards variados (Magic, Yu-gi-oh Pokemon etc.-Na seqüência, o monitor propõe que alguns alunos contem para os colegas a história da coleção, se serve para jogar, se o aluno faz outras coleções etc.

-Mostrar aos alunos o livro Goma arábica, de Carlos Urbim. Fazer um breve relato da obra e apresentar o autor e a ilustradora.

-Fazer a leitura coletiva a partir de lâminas ou, ainda, do Power Point, do texto “Outros álbuns”, que figura no início do livro Goma arábica, fazendo uma reflexão sobre a influência dos desenhos animados, filmes e games veiculados ou anunciados na TV na compra das figurinhas, tanto na época da infância do autor como nos dias atuais.

-O monitor deverá, à medida que for lendo a obra, contextualizar os fatos narrados pelo autor, fazendo um contraponto entre o velho (as lembran-ças do autor) e o novo (as vivências das crianças).-Analisar com os alunos a capa, as ilustrações internas, a existência dos espaços vazios para colar as figuras e a técnica da colagem utilizada pela ilustradora Maria Tomaselli.Trabalho finalCada grupo elabora um álbum de fotografias dos seus integrantes, utilizando a técnica da colagem ou da fotomontagem. Ao lado de cada “fotografia” o aluno deverá escrever como seria o seu nome, suas características (por exemplo, alegre, raivoso), suas habilidades (por exemplo, rápido, lento) etc.Mundo virtualSolicitar aos alunos que, em duplas, façam um comentário sobre o livro Goma arábica, de Carlos Urbim, no fórum da Pré-Jornadinha www.jornadadeliteratura.upf.br, ou, caso não utilizem computador, com freqüência utilizar no mundo virtual os CD-ROM de arte disponíveis no acervo.

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http://www.zaz.com.br/istoe/comport/141104.htmhttp://www.comtexto.com.br/artigorenataboutin.htmO autor:Carlos Urbim nasceu em Santana do Livramento em 1948. Desde bem pequeno lia tudo o que lhe caía nas mãos. Fazia coleções de gibis, que trocava depois nas portas dos cinemas. Transferiu-se para Porto Alegre, onde, desde 1968, atua como jornalista junto aos principais meios de comunicação sul-rio-grandenses. Em 2004, completou vinte anos de literatura. Sua primeira obra de ficção para crianças, Um guri daltônico, foi lançada na Feira do Livro de Porto Alegre de 1984. Com Saco de brinquedos, Urbim obteve o título de altamente recomendável da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Outras obras do autorDona Juana/Lata de tesouro - ProjetoDiário de um guriSaco de BrinquedosA obraA goma arábica, título da obra de Carlos Urbim, era uma substância utilizada para colar papéis. Segundo o autor, na sua infância não existia cola plástica branca nem em bastão, muito menos figurinhas auto-adesivas.A lembrança da goma arábica é o motivo encontrado pelo autor para trazer à tona recordações de cenas e fatos ocorridos na sua infância, nos anos 50 do século passado. Assuntos como as matinês de domingo, as temporadas de circo, as radionovelas, o material escolar novinho e as pandorgas acabam por divertir e ensinar a atual geração. Entre um relato e outro, Urbim insere dicas de leitura de outras publicações e autores – de Jane Tutikian e Sylvia Orthof a Monteiro Lobato e Drummond. Acompanha o livro um pôster com desenhos da artista plástica gaúcha Maria Tomaselli. Os desenhos devem ser recortados e colados nos 36 espaços em branco que aparecem nas páginas do livro.

A prática leitora intitulada “O velho e o novo: álbuns de figurinhas x Cards” demonstra a preocupação do Mundo da Leitura em oferecer vivências de leitura sintonizadas com as experiências de leitura dos alunos, com as novas tecnologias, com as outras linguagens que circulam no nosso meio e, especialmente, com o texto literário.

Ao pensarmos uma prática leitora, independentemente do público-alvo e do tema a ser desenvolvido, temos como preocupação introduzir informações que possam ir além

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dela própria, ou seja, que crianças, adolescentes e adultos desenvolvam competências para entender, analisar, criticar a imensidão de informações que estão presentes no seu dia-a-dia, mas que não fazem parte dos currículos escolares. Sabe-se das dificuldades da escola em trabalhar com outras linguagens que não a linguagem verbal oral ou escrita, no entanto crianças e adolescentes são bombardeados diariamente com desenhos animados, filmes, telenovelas, propagandas, outdoors, revistas de folhetim, video games, CD-ROM, internet. Busca-se com as práticas leitoras uma nova relação com o conhecimento, menos fragmentado, menos alienante e coerente com a realidade das inovações tecnológicas em que estamos vivendo.

É por meio da literatura e da arte que o homem toma conhecimento das inúmeras batalhas travadas na busca constante de conhecer os mistérios da vida. Ora os artistas nos remetem a tempos longínquos, mágicos, fantasmagóricos, oníricos, em meio a bruxas, fadas, ogros, ora nos transportam numa nave espacial para um futuro de guerras intergalácticas, raios laser, robôs, escudos magnéticos. Seja qual for o estilo narrativo, o tempo em que se localizam a ação e os suportes que veiculam as histórias, elas narram o mesmo percurso do homem na busca da compreensão da natureza humana.

A questão que se coloca, então, aos educadores de uma maneira geral é compreender essa trajetória e, sem temor, sintonizar-se com as novas formas de representar o mundo que emergem da produção artística e cultural contemporânea. Os educadores não devem, porém, estudar só as linguagens dessas novas formas de representação, mas, também, atentar para os suportes em que elas se manifestam, visto que suportes (como o televisor, o computador etc.) exercem grande fascínio sobre crianças e adolescentes.

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O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios

José Luiz Fiorin*

Lucian Goldmann (1972), discutindo as possibilidades de ação cultural por intermédio dos meios de comunicação de massa, mostra que o excesso de informação desorganiza a compreensão. Se isso era verdade quando o texto foi escrito, época em que não havia TV a cabo, não se dispunha dos atuais meios técnicos à disposição da indústria gráfica, não existiam os computadores pessoais nem se sonhava com a internet, muito mais verdadeiro o é num momento em que o acesso à informação atingiu níveis inimagináveis, praticamente ilimitados. Não se diga que na rede só se encontram vulgaridades e inutilidades. Isso é preconceito daqueles que temem a tecnologia. Quando o projeto de digitalização dos acervos das grandes bibliotecas realizado pela Google estiver terminado, teremos em nossa casa praticamente todo o conhecimento produzido pelo homem ao longo de sua história. Cada vez mais podemos acessar o acervo dos grandes museus, as inscrições gregas e latinas até hoje descobertas e assim por diante.

* Foi professor de português no ensino fundamental e médio por muitos anos e atualmente é professor do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filo-sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Além de inú-meros artigos em revistas especializadas e capítulos de livros, publicou, entre outros, os seguintes livros: Linguagem e ideologia; As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo; Elementos de análise do discurso; Para entender o texto; Lições de texto; Introdução à Lingüística I. Ocupou diversas funções, destacando-se a de representante da área de Letras e Lingüística na Capes, a de membro do Conselho Deliberativo do CNPq e a de membro da Comissão Nacional de Língua Portuguesa.

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José Luiz Fiorin

Com todas as possibilidades de aceder à informação, a escola deixou de ser sua única ou principal dispensadora. Seu papel precisa ser redefinido: ela deve preparar as pessoas para ter acesso às informações disponíveis e organizar sua compreensão. A informação é pontual e linear, ao passo que a compreensão exige a inserção e a organização das informações numa arquitetura conceptual, que permite a reflexão.

Nesse quadro, o ensino de línguas adquire um papel relevante. Ao contrário do que se dizia, não estamos caminhando para uma civilização da oralidade ou da visualidade. A escrita está ganhando um papel cada vez maior. É verdade que suas funções estão sendo redefinidas e que as linguagens sincréticas, aquelas que expressam os sentidos por meio de diferentes planos de expressão (verbal, visual e sonoro não verbal, por exemplo), vão adquirindo um relevo cada vez maior.

Diante desse panorama, o aluno precisa aprender línguas estrangeiras. Essa é a verdadeira precondição de democratização do acesso à informação disponível na internet. De outro lado, o ensino de língua materna, nos níveis fundamental e médio, deve ter como objetivo formar leitores eficazes e produtores competentes de textos, pois só dessa forma o aluno poderá compreender a informação disponível e organizá-la. Isso é condição necessária para o desenvolvimento de suas plenas potencialidades humanas, para o exercício da cidadania, para o prosseguimento dos estudos em nível superior e para a inserção no mercado de trabalho.

No Brasil, no entanto, as avaliações realizadas pelos diferentes órgãos oficiais têm demonstrado que a maioria dos estudantes termina o ensino médio com dificuldade para ler um texto de média complexidade e para redigir textos adequadamente.

O ensino de português deve ser reorganizado com vistas a levar o estudante a adquirir e ampliar progressivamente sua capacidade de compreender textos e de produzi-los. O ensino de língua deve sempre ter em vista que as formas da língua existem para produzir sentido.

Analisemos as práticas atuais de nossa escola para verificar quais são os mais importantes problemas do ensino de língua portuguesa. São quatro seus defeitos principais nos níveis fundamental e médio: fundamentação em noções

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O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios

equivocadas e estreitas a respeito do funcionamento, da estrutura e das funções da linguagem humana; ensino mais da metalinguagem que da língua-objeto; ensino das categorias da língua, sem que se considere seu papel no funcionamento da linguagem; ensino da leitura e da redação não fundamentado em teorias do discurso e do texto.

Fundamentação em noções equivocadas e estreitas

O primeiro problema de nosso ensino de português é que se funda sobre noções equivocadas e estreitas a respeito do funcionamento, da estrutura e das funções da linguagem humana. A concepção de língua que norteia o trabalho escolar é de uma língua unitária e fixa. Dela estão excluídas a variação e a mudança. Isso leva a gastar tempo no ensino de estruturas que não mais pertencem à norma culta real. Insiste-se, ainda, que os verbos “namorar” e “implicar” são transitivos diretos, quando todas as pessoas, mesmo em situação de uso da norma culta, dizem “Andréia namora com Pedro” e “Uma causa implica em uma conseqüência”. O ensino de uma norma artificial é inútil, porque só leva os alunos a dissociar a língua aprendida na escola da língua real. O ensino de português precisa ser visto como algo que diz respeito à língua usada por todos em todas as situações de comunicação.

Com isso, não se está dizendo que não se deva ensinar a chamada “norma culta” na escola. O uso lingüístico tem uma dimensão social, que implica, entre outras coisas, o uso de variedades em função do gênero utilizado. Para Bakhtin (1992, p. 279-288), o gênero estabelece uma conexão entre a linguagem e a vida, porque cada esfera de atividades cria gêneros, entre cujas características está o estilo, que é marcado, entre outros traços, pelo uso de uma dada variedade lingüística. Por isso, é constitutiva de todas as línguas a exigência da utilização de certas variedades em determinadas situações de comunicação. No entanto, o ensino da norma culta deve ser feito no quadro da variação. Isso significa que não se podem desqualificar as variedades populares, com afirmações como

“isso não é português!” Por outro lado, o ensino da norma culta é um imperativo de uma escola democrática, porque permite que o aluno seja uma voz autorizada em todos os gêneros do discurso.

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Outras concepções errôneas vão se difundindo na escola, muitas vezes por meio de vozes consideradas bastante dignas de crédito. Pasquale Cipro Neto, em entrevista dada à revista Veja de 10 de setembro de 1997, diz que os brasileiros importam palavras estrangeiras sem saber sequer seu significado. É o caso da palavra handicap com o sentido de

“vantagem”. Afirma ele que “os locutores vivem inventando umas expressões bobas como ‘correr atrás do prejuízo’, usada para o time que precisa virar uma partida”. Pergunta o professor: “Quem é o maluco que ‘corre atrás do prejuízo’?” Isso é desconhecer a mudança de sentido das palavras. Por que handicap não pode passar para o português com sentido diferente do que tem a palavra em inglês, se isso é um fato absolutamente normal na história da constituição do léxico das línguas? Por exemplo, veja-se o caso do termo “esquisito”, que, em português, hoje significa “extravagante, excêntrico”. É uma palavra que vem do latim exquisitu (formado de ex + quaerere = buscar fora), que quer dizer “refinado, raro, distinto, delicioso”. É o sentido que tem a palavra em francês, em italiano, em espanhol, que mantiveram o sentido positivo do latim. Pode-se, então, dizer que o sentido do português é um erro? Não, pois o português tomou, para o que está fora do padrão, o sentido negativo. Os sentidos mudam e as razões dessas mudanças são perfeitamente explicáveis. E o que dizer do verbo “embarcar”, que significava, na origem, “tomar lugar num barco”? É erro dizer “embarcar num ônibus” ou

“embarcar numa aventura”? Não, é ampliação de sentido. Pode-se considerar “suicidar-se” um erro, sob a alegação de que a palavra já contém o reflexivo latino sui, significando, portanto,

“matar-se”, sendo o “se” uma redundância viciosa? Não, pois a memória lingüística se esqueceu da formação original da palavra. “Correr atrás do prejuízo” quer dizer “reverter uma situação desfavorável”. Se isso não é possível, como se podem explicar expressões como “pessoa de idade”, com significado de “pessoa velha”, se todas as pessoas têm idade? A questão é que a significação de uma expressão não pode ser vista como a soma de cada uma das partes. O todo é mais do que a soma das partes. Só uma visão estreita da língua permite ir de dedo em riste contra expressões absolutamente aceitas por todos os falantes da língua. O supremo critério de validade das formas lingüísticas é o uso, como já dizia há séculos o poeta Horácio, em sua Arte poética (versos 71-72). E Lévi-Strauss, o grande

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antropólogo francês, dizia que “a língua é uma razão humana que tem suas razões” (1962, 300-301). Aplicar uma análise pretensamente lógica aos fatos lingüísticos é desconhecer as razões da língua.

No ensino de língua materna, o aluno deveria ser levado a compreender a natureza e a função da linguagem humana: as línguas variam, mudam, o uso de determinadas variedades lingüísticas são marcas de uma identidade social, a linguagem é uma forma de agir no mundo e assim por diante. Quando a escola se debruça sobre as funções da linguagem, em geral apresenta o esquema da comunicação proposto por Jakobson e, depois, fala rapidamente e de maneira muito estreita sobre as seis funções que o lingüista russo examinou: referencial, emotiva, conativa, fática, metalingüística e poética.

Em primeiro lugar, o trabalho da escola sobre as funções da linguagem é estreito, porque não se apreende todo o alcance das funções de que trata. Quando se estuda a função metalingüística, por exemplo, diz-se que a linguagem serve para falar do mundo exterior (seres, acontecimentos, estados etc.) e do mundo interior (sentimentos, emoções etc.) ou para falar dela mesma. No primeiro caso, temos a linguagem-objeto, aquela empregada para falar de acontecimentos, seres, sentimentos, emoções, paixões etc.; no segundo, temos a metalinguagem. Em seguida, exemplifica-se: quando dizemos frases como “A palavra cão é um substantivo”; “É errado dizer” ‘a gente viemos’”; “Estou usando o termo ‘direção’ em dois sentidos”; “Não é muito elegante usar palavrões”, estamos falando não de acontecimentos do mundo, mas estamos tecendo comentários sobre a própria linguagem. Em outros termos, estamos usando palavras para referir-nos a palavras. A atividade metalingüística é inseparável da fala. Mesmo quando falamos do mundo exterior e do mundo interior, intercalamos comentários sobre a nossa fala e a dos outros. Quando dizemos, por exemplo, “Desculpe a grosseria da expressão”, estamos comentando o que dissemos, estamos dizendo que não temos o hábito de dizer uma coisa tão vulgar como a que vamos enunciar. Todos os estudos sobre a linguagem são metalingüísticos. A gramática é, assim, a linguagem em função metalingüística. Observe-se que o que acabamos de dizer é o conteúdo de uma aula até significativa sobre a função metalingüística.

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No entanto, seria preciso ir mais longe. Seria a ocasião de ampliar a reflexão sobre a metalinguagem. As artes são linguagens e, portanto, quando elas falam da própria arte, temos também metalinguagem. A poesia que trata da poesia é uma metapoesia, o teatro que trata do teatro é um metateatro; o cinema que trata do cinema é um metacinema, e assim por diante. Uma reflexão sobre a metaarte alarga a visão dos alunos sobre a linguagem. Podemos trabalhar com a metapoesia (por exemplo, o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa); a metamúsica (por exemplo, “Samba de uma nota só” e “Desafinado”, ambas de Tom Jobim e Newton Mendonça); a metanovela de televisão (Espelho mágico, de Lauro César Muniz, apresentada, na década de 70, na rede Globo). As artes valem-se dos dois níveis de linguagem: falam do mundo e, assim, nos dão a conhecer os seres humanos, a história etc., e falam de si mesmas e, assim, nos revelam o próprio fazer artístico.

Isso é uma reflexão mais significativa sobre as funções da linguagem, pois amplia seu alcance e seu significado. Por outro lado, é preciso levar a pensar em outras funções da linguagem: ela permite apreender o mundo, possibilita criar novas realidades etc. Com isso, alarga-se o escopo das aulas de português, pois se leva o aluno a ver a linguagem como uma forma de categorizar o mundo, que não é um já dado anterior à linguagem, e possibilita-se compreender a linguagem como o lugar da criação, da invenção.

Não se deve pensar que apenas o ensino tradicional se baseia em noções equivocadas e estreitas a respeito do funcionamento da linguagem. Também certos fundamentos lingüísticos, considerados a última palavra em matéria pedagógica, estão sujeitos a esse problema. Depois que os Parâmetros Curriculares Nacionais estabeleceram que o ensino de português fosse feito com base nos gêneros, apareceram muitos livros didáticos que os vêem como um conjunto de propriedades formais a que o texto deve obedecer. O gênero é, assim, um produto e seu ensino torna-se, então, normativo. Sob a aparência de uma revolução no ensino de português está-se dentro da mesma perspectiva normativa com que se ensinava gramática. Ademais, retirando esse conceito do contexto teórico que lhe deu origem, essa noção é vulgarizada e empobrecida. E aí aparecem lições sobre gêneros de que a escola não precisa tratar, porque os alunos já os conhecem

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muito bem. Apresentam-se lições sobre gêneros que, numa perspectiva bakhtiniana, não poderiam ser considerados gêneros do discurso. E o ensino novamente cai na irrelevância e na insignificância.

Bakhtin (1992, p. 277-326) não vai teorizar sobre os gêneros, levando em conta o produto, mas o processo de sua produção. Interessam-lhe menos suas propriedades formais do que a maneira como eles se constituem. Seu ponto de partida é o vínculo intrínseco existente entre a utilização da linguagem e as atividades humanas. Os enunciados devem ser vistos na sua função no processo de interação.

Os seres humanos agem em determinadas esferas de atividades, a da escola, a da Igreja, a do trabalho num jornal, a do trabalho numa fábrica, a da política, a das relações de amizade e assim por diante. Essas esferas implicam a utilização da linguagem na forma de enunciados. Não se produzem enunciados fora delas, o que significa que eles são determinados pelas condições específicas e pelas finalidades de cada esfera. Esses domínios de atuação ocasionam o aparecimento de certos tipos de enunciados, que se estabilizam precariamente e que mudam em função de alterações nessas esferas de atividades. Só se age na interação, só se diz no agir, e o agir motiva certos tipos de enunciados, o que quer dizer que cada esfera de utilização da língua elabora tipos relativamente estáveis de enunciados.

Os gêneros são, pois, tipos de enunciados relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. Falamos sempre por meio deles no interior de uma dada esfera de atividade.

Eles estabelecem, portanto, uma interconexão da linguagem com a vida social. A linguagem penetra na vida por meio dos enunciados concretos e, ao mesmo tempo, por eles a vida introduz-se na linguagem. Os gêneros estão sempre vinculados a um domínio da atividade humana, refletindo suas condições específicas e suas finalidades. Conteúdo temático, estilo e organização composicional constroem o todo que constitui o enunciado, que é marcado pela especificidade de uma esfera de ação.

O gênero somente ganha sentido quando se percebe a correlação entre formas e atividades. Assim, não é um conjunto de propriedades formais isolado de uma esfera de ação, que se realiza em determinadas coordenadas espaço-

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temporais, na qual os parceiros da comunicação mantêm certo tipo de relação.

Ensino preponderante da metalinguagem

No ensino de português, ensina-se muito mais a metalinguagem do que a língua-objeto. Assim, toda atividade nas aulas de língua materna resume-se a um trabalho de etiquetagem das formas lingüísticas e à memorização de prescrições. Observe-se, por exemplo, o ensino da análise sintática. Seu objetivo último é segmentar o período em orações e classificá-las. Se um aluno é capaz de dizer que uma determinada oração de um período é uma oração subordinada substantiva completiva nominal reduzida de infinitivo considera-se que o ensino da análise sintática atingiu seu objetivo. No entanto, esse mesmo estudante escreve períodos em que não há oração principal ou frases em que faltam termos essenciais, como, por exemplo, o predicado. Isso significa que o estudo da análise sintática resultou inútil, porque seu objetivo deve ser o de montar períodos, não o de desmontálos.

Surge uma questão sempre problemática. Deve-se ensinar gramática na escola de ensino fundamental e médio? Depende. Se esse ensino se restringir à etiquetagem de formas e à memorização de prescrições, não. Se levar a uma compreensão da estrutura e do funcionamento da língua e, conseqüentemente, a um maior domínio da produção e da leitura, sim. A questão é do foco que se dá ao ensino da gramática. É preciso que esteja voltado sempre para a compreensão da produção de sentidos.

Um trabalho interessante de ser realizado na escola é o sugerido por Carlos Franchi, Esmeralda Vailati Negrão e Ana Lúcia Müller (1998). Como já dissemos, no cotidiano escolar, a tarefa de refletir sobre a linguagem transformou-se em uma tarefa meramente classificatória. Tendo-se transformado o trabalho de análise em exercício de reconhecimento de funções, o aluno passa a crer que as categorias e funções sintáticas são algo já estabelecido e o acerto ou o erro de seu trabalho passa a ser medido pela aproximação ou o distanciamento do que está dado. Ora, quando associamos uma unidade lingüística a uma função sintática, “estamos construindo uma hipótese a respeito da estrutura relacional da oração inteira”

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(p. 38). Essa hipótese deve basear-se em fatos da língua observáveis na expressão analisada ou em outras expressões correlatas, são esses fatos que devem funcionar como argumentos de suporte à hipótese estabelecida.

Os três autores mostram como fazer isso, partindo de uma frase ambígua como “Os alunos acharam fácil o caminho”, que pode ser parafraseada de três maneiras distintas: a)

“Os alunos consideraram o caminho fácil”; b) “Os alunos encontraram o caminho fácil (e não o difícil)”; c) “Os alunos acharam facilmente o caminho”. Não contribui em nada para o conhecimento da estrutura da língua simplesmente classificar o termo “fácil”, respectivamente, como predicativo de objeto, adjunto adnominal e adjunto adverbial de modo. O que é preciso é que o estudante busque fatos lingüísticos que permitam contrapor as três estruturas, na medida em que se correlacionam com uma delas e não com outras. Dessa forma, vai percebendo a função da ordem dos constituintes; o papel de seu deslocamento em processos como a apassivação, a topicalização, a interrogação; o sentido da pronominalização. A análise gramatical não é um exercício de classificação, nem a construção de uma hipótese para um fato lingüístico isolado. Precisamos sempre comprovar as hipóteses, avaliando-as em função de outros fatos lingüísticos. Para isso, no entanto, é necessário saber muita teoria gramatical, não simplesmente estar possuído de um furor classificatório.

Ensino das categorias lingüísticas sem considerar seu papel na criação de

sentidos

No ensino das classes de palavras ou de categorias lingüísticas, insiste-se no reconhecimento das formas e na sua memorização, sem que se considere que elas existem para criar sentidos. Assim, no estudo dos tempos verbais, a finalidade última não é compreender os sentidos criados pelos diferentes tempos, mas reconhecer que uma forma é pretérito imperfeito do indicativo, outra é presente do subjuntivo e assim por diante. Ao mesmo tempo, exige-se a memorização dessas formas. Isso resulta em nada se o estudante não for capaz de perceber os sentidos distintos criados por formas como:

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Encontrei-me com ele quando vinha de Santos para São Paulo;Encontrei-me com ele quando veio de Santos para São Paulo.

A diferença entre essas duas frases não é propriamente temporal, já que tanto o perfeito quanto o imperfeito indicam concomitância em relação a um marco temporal pretérito. A distinção é aspectual, já que uma indica o perfectivo e outra, o imperfectivo. No entanto, nosso ensino é tão pouco sofisticado que tudo entra na categoria de tempo.

É bem verdade que nossa nomenclatura gramatical muitas vezes dificulta a tarefa de compreender o valor de certas categorias gramaticais. Continuemos a exemplificar com a questão do tempo. Temos uma diferença entre tempos simples e compostos. Quando se diz que há um futuro do presente simples e um futuro do presente composto, o estudante é levado a pensar que ambos têm o mesmo valor temporal. Entretanto, o primeiro indica a posterioridade em relação ao momento da enunciação; o segundo, a anterioridade em relação a um marco temporal futuro. Como se observa, a forma simples é, de fato, futuro do presente; a composta é o pretérito do futuro.

Seria preciso partir de oposições para que o aluno fosse apreendendo a diferença de sentidos gerados pelo uso das categorias e, posteriormente, suas intuições poderiam ser sistematizadas. Antes de organizar os modos em sistema, seria necessário que o aluno percebesse a diferença de sentido em frases como:

Espero um carro que me leva para casa;Espero um carro que me leve para casa;Quero uma secretária que fala inglês;Quero uma secretária que fale inglês.

É interessante começar a ensinar o papel do artigo definido não por uma exposição de seu valor, mas pela observação da diferença de sentidos produzida em frases como:

A política é a arte de tornar o possível necessário.A política é a arte de tornar possível o necessário.

O método de observar diferenças é importante, mesmo quando se aprendem as funções sintáticas. Num anúncio publicitário da Nokia veiculado pela revista Veja (24/12/2003, p. 18-19) aparecem as seguintes frases:

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O homem separa o titânio dos demais elementos.O titânio separa o homem dos demais elementos.

Compreender o sentido dessas sentenças é perceber as funções sintáticas distintas que “homem” e “titânio” exercem em cada uma delas.

Todo ensino de categorias, classes e funções só tem propósito, quando se destina a conduzir o estudante a perceber os sentidos que criam. O reconhecimento, a classificação e a memorização como uma finalidade em si mesmos não têm nenhuma função num ensino de português que vise levar o aluno a um domínio crescente da língua. É preciso ressignificar o ensino de português, para que o aprendiz, ao enxergar com clareza que as formas criam sentidos, aproxime o que aprende na escola dos usos que faz da linguagem no dia-a-dia.

Ausência de fundamentação teórica no ensino de interpretação

e de produção de textos

As questões de interpretação de textos, em geral, não passam de solicitações para localizar informações na superfície textual. Nos livros didáticos, com raras exceções, não há questões que levem ao entendimento global do texto e à compreensão dos mecanismos de constituição de seu sentido.

O texto é um todo organizado de sentido, o que quer dizer que suas partes se inter-relacionam, ou seja, que ele possui uma estrutura. Além de ser um objeto lingüístico, é um objeto histórico. Isso implica que o sentido do discurso se constrói por meio de mecanismos intra e interdiscursivos, ou seja, organiza-se por meio de uma estruturação propriamente discursiva e pelo diálogo que mantém com outros discursos a partir dos quais se constitui. Paul Ricoeur (1986) dizia que o sentido do texto é criado no jogo interno de dependências estruturais e nas relações com o que está fora dele. Esses dois aspectos não se excluem, mas se complementam. O ensino do texto precisa fundamentar-se no estudo cuidadoso de mecanismos intra e interdiscursivos de produção de significados. Sem isso, ensina-se a ler um texto determinado, não a ler qualquer tipo de texto.

Como uma teoria científica não constrói “a” verdade e não explica a totalidade da realidade, mas propõe modelos

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e conceitos para explicar alguns aspectos de seu objeto, devemos tomar das diferentes teorias do texto e do discurso elementos que apresentem rendimento para compreender seja a organização interna do discurso, seja a relação que ele mantém com outros discursos. Não podemos ter no ensino uma concepção religiosa de ciência, aquela que pensa uma teoria como sendo uma explicação totalizadora dos fatos da linguagem. Só discurso religioso, a que se adere pela fé, tem a pretensão de explicar tudo: de onde viemos, para onde vamos, qual o sentido da vida etc. A ciência é uma construção contínua, porque nunca chega à verdade. Seus modelos, em função de determinados objetivos, explicam este ou aquele aspecto do objeto. Por isso, o ensino não está comprometido com uma só linha teórica dos estudos da linguagem, mas com elementos provindos de diferentes abordagens.

O aluno deve ser submetido a textos de diferentes esferas de circulação: o jornalístico, o filosófico, o científico etc. No entanto, não podemos esquecer-nos de que o texto mais importante na escola fundamental e média é o literário. De um lado, porque a literatura é uma forma de conhecer todas as possibilidades da linguagem humana e das línguas, já que nela se procura trabalhar a linguagem até o limite de suas possibilidades expressivas. De outro, porque a literatura é uma forma de conhecimento da realidade. Com efeito, ela nos leva a apreender as relações sociais, os modos de sentir e de agir numa determinada época, numa dada formação social e, mais que isso, não nos fala apenas do que existe, mas também do que poderia existir. Isso significa que a literatura (e as outras artes) tem uma função subversiva: leva-nos a perceber que a realidade em que vivemos não é natural nem é destino, mas é construção humana e poderia, portanto, ser alterada.

Depois de mostrar um mecanismo de produção do sentido num texto verbal, pode-se tomar um texto em que o sentido é manifestado por outras linguagens, para ampliar a capacidade interpretativa do estudante.

Vejamos dois exemplos do trabalho que poderia ser feito com o texto. O primeiro trata da questão das várias leituras do texto; o segundo, da constitutividade heterogênea dos discursos.

Umberto Eco, em seu livro Os limites da interpretação (1992), mostra que as teorias da leitura, criadas ao longo da história humana, pensam o ato de ler como a busca da intentio

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auctoris, da intentio lectoris ou da intentio operis. Para nós, a leitura não pode ser a busca da intenção do autor, dado que, de um lado, não podemos aceder à consciência de ninguém para perceber suas motivações, a não ser por meio daquilo que se externou lingüisticamente, ou seja, da obra; de outro, porque o sujeito não é o mestre do sentido, que controla, de maneira perfeita, a totalidade do significado produzido. Não podemos pensar a leitura como a busca da intenção do leitor, porque, nesse caso, estaríamos dizendo que o texto não tem sentido, a não ser aquele que o leitor nele coloca. No limite, o que se está afirmando, então, é que o sentido do outro não existe, só existe o meu sentido, já que o significado do texto produzido pelo outro é aquele que eu dou a ele. Só uma sociedade que levou a subjetividade e o individualismo ao extremo poderia conceber uma posição teórica de exclusão total do outro e de seus sentidos. Resta-nos, portanto, a intenção da obra. É preciso, pelo exame cuidadoso dos mecanismos inter e intradiscursivos de constituição do sentido, buscar apreender o que a obra nos diz. Isso significa que, quando um texto tem várias leituras, elas estão, de alguma forma, nele inscritas. É necessário, pois, levar o estudante a perceber os modos de inscrição de várias leituras no texto para poder lê-lo de uma maneira mais rica. Alguém poderia objetar dizendo que, pensando a leitura dessa maneira, ignora-se sua historicidade. Não é verdade. No século XX, faz-se, por exemplo, uma leitura sexual da obra da grande poeta mística espanhola Teresa d’Ávila. No entanto, pode-se mostrar que essa leitura já está inscrita virtualmente na obra. Nos séculos anteriores, não se percebeu isso, porque a sexualidade estava fortemente reprimida e sexo era tema de que não se tratava. Depois de Freud, a sexualidade ganha voz e apreende-se na obra da poeta, uma virtualidade de sentido que não se percebia antes.

Vamos exemplificar como se organizaria uma unidade com o objetivo de levar a compreender os mecanismos de inscrição das várias leituras num texto. Ater-nos-emos ao texto verbal, mas o ideal seria trabalhar, depois do estudo do texto verbal, também com textos visuais, por exemplo, uma pintura:

O asno e a carga de sal

Um asno carregado de sal atravessava um rio. Um passo em falso e ei-lo dentro da água. O sal então derreteu e o asno se levantou mais leve. Ficou todo feliz. Um pouco depois, estando

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carregado de esponjas às margens do mesmo rio, pensou que se caísse de novo ficaria mais leve e caiu de propósito nas águas. O que aconteceu? As esponjas ficaram encharcadas e, impossibilitado de se erguer, o asno morreu afogado.Algumas pessoas são vítimas de suas próprias artimanhas

(Esopo. Fábulas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997, p. 139-140).

A fábula é um gênero que se caracteriza pela seguinte forma composicional: uma história e uma moral. No exemplo acima, o primeiro parágrafo é a história e o segundo, a moral. Os dois dizem a mesma coisa. Assim, a principal característica da fábula é o fato de ela ser um gênero que explicita o tema da história que narra. Por outro lado, o assunto da fábula é sempre o comportamento humano. Por isso, embora suas personagens sejam, quase sempre, animais ou plantas, é uma história de gente, não uma história de bichos ou de vegetais. No nosso exemplo, o comportamento humano analisado é a esperteza que produz conseqüências ruins para as pessoas que dela se valem.

Como se sabe, porém, que a fábula é uma história de gente? Poder-se-ia responder, acertadamente, que se sabe disso porque a moral diz que se trata de uma história de seres humanos, uma vez que afirma que “algumas pessoas são vítimas de suas próprias artimanhas”. No entanto, se não tivéssemos a moral, poderíamos perceber, com base em certos elementos da história, que ela narra acontecimentos relativos a seres humanos, não a um asno? Sim, poderíamos inferir isso com fundamento no fato de que há nos textos uma reiteração de traços semânticos, que obrigam a ler o texto como uma história de pessoas.

Vejamos o que ocorre em nossa fábula. Inicialmente, temos um animal: o asno. Poderíamos, então, pensar que se trata de uma história de bichos. No entanto, atribuem-se a ele procedimentos e qualidades próprios dos seres humanos; “feliz”, “pensou”, “de propósito”. Essa repetição, essa recorrência, essa reiteração do traço semântico humano desencadeia um novo plano de leitura. O primeiro plano de leitura é história de animais. À medida, porém, que elementos com o traço humano se repetem, não se pode mais ler a fábula como uma história de bichos. Esses traços desencadeiam outro plano de leitura: o de uma história de homens. Nesse novo plano, o asno é o homem vitimado por sua tentativa de ser esperto e levar vantagem em tudo.

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A recorrência de traços semânticos é que estabelece que leituras devem ou podem ser feitas de um texto. Uma leitura não tem origem na intenção do leitor de interpretar o texto de uma dada maneira, mas está inscrita no texto como virtualidade, como possibilidade.

Lido de modo fragmentário, o texto pode dar a impressão de um aglomerado desconexo de frases a que o leitor pode dar o sentido que quiser e bem entender. Não é assim: há leituras que não estão de acordo com o texto e, por isso, não podem ser feitas. Mas poderia alguém perguntar: um texto não pode admitir múltiplas leituras? É verdade, pode admitir várias interpretações, mas não todas. São inaceitáveis as leituras que não estiverem de acordo com os traços de significado reiterados, repetidos, recorrentes ao longo do texto.

Há textos que possibilitam mais de uma leitura. Nele, as mesmas palavras têm mais de uma interpretação, segundo o plano de leitura em que forem analisadas. Para explicar isso, tomemos como exemplo o poema “Psicanálise do açúcar”, de João Cabral de Melo Neto.

O açúcar cristal, ou açúcar de usina,mostra a mais instável das brancuras:quem do Recife sabe direito o quanto,e o pouco desse quanto, que ela dura.Sabe o mínimo do pouco que o cristalse estabiliza cristal sobre o açúcar,por cima do fundo antigo, de mascavo,do mascavo barrento que se incuba;e sabe que tudo pode romper o mínimoem que o cristal é capaz de censura:pois o tal fundo mascavo logo afloraquer inverno ou verão mele o açúcar.

*

Se os bangüês que-ainda purgam aindao açúcar bruto com barro, de mistura;a usina já não o purga: da infância,não só depois de adulto, ela o educa;em enfermarias, com vácuos e turbinas,em mãos de metal de gente indústria,a usina o leva a sublimar em cristalo pardo do xarope: não o purga, cura.Mas como a cana se cria ainda hoje,em mãos de barro de gente agricultura,o barrento da pré-infância logo afloraquer inverno ou verão mele o açúcar.

(Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 356).

O poeta fala, no texto, do processo de fabricação do açúcar. Nele, o açúcar cristal, ou seja, “o açúcar branco submetido a

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alto processo de concentração e que se apresenta em pequenos grãos secos, alvos e brilhantes”, é feito sobre um fundo de açúcar mascavo, isto é, o “açúcar não refinado, cuja coloração vai do amarelo queimado ao barrento, e que resulta do maior ou menor resíduo de melaço aderido aos cristais de sacarose”. O açúcar cristal é bastante instável, pois o açúcar pode melar e o mascavo aflora, destruindo o cristal. Os bangüês (= engenhos de açúcar) purgam (= purificam fazendo escorrer as impurezas) o açúcar com o método tradicional, com uma mistura de barro. Já as usinas, mais modernas, não realizam a purificação por esse método. Com máquinas de metal, no vácuo, levam os cristais de açúcar à sublimação (= purificação de uma substância volátil pelo calor). Assim, elas não limpam o xarope escuro da cana (= purga), eliminam dele a cor escura (= cura). Apesar disso, como a cana ainda hoje é plantada e colhida (= cria) em mãos sujas de barro das pessoas que trabalham na agricultura (= gente agricultura), quando o açúcar mela, o barrento aflora fazendo desaparecer o branco.

Esse é a primeira leitura do poema. No entanto, há algumas palavras que não se integram ao plano de leitura proposto, o da fabricação do açúcar no bangüê pelo método da purga e na usina pela sublimação. Esses termos não podem ser explicados se a leitura se encerrar nesse primeiro plano. Quais são eles? São “censura”, “infância”, “adulto”,

“educa”, “enfermarias”, “pré-infância” e, principalmente, “psicanálise” (= “método terapêutico criado por Sigmund Freud, empregado em casos de neurose e psicose, que consiste, fundamentalmente, na interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e produções imaginárias de um indivíduo”). Todas essas palavras remetem ao universo dos seres humanos. Por isso, determinam a criação de um outro plano de leitura: o da criação de um indivíduo. Todas as palavras devem ser lidas agora também nesse plano.

O aparelho psíquico do ser humano tem um conteúdo constituído por normas morais inculcadas pela educação (o superego, na teoria psicanalítica), que recobre um fundo inconsciente onde estão os desejos e os impulsos recalcados (o id, na teoria psicanalítica). O psiquismo seria, segundo o poema, um conteúdo de pureza, de elevação, onde reside a censura aos impulsos básicos (o açúcar cristal), que recobre um conteúdo de maldade, de sujeira (o fundo do mascavo barrento). O primeiro é muito instável. Com muita facilidade,

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ele se rompe (mela o açúcar) e o fundo mascavo aflora. Nas sociedades tradicionais, simbolizadas pelos bangüês, havia a purga (a purificação, a expiação da maldade, da sujeira, por meio do sofrimento imposto como pena, castigo ou penitência); nas sociedades modernas, a das usinas, procura-se educar o homem na infância, levando-o a sublimar seus impulsos primitivos. A sublimação, na psicanálise, é “a modificação de um impulso ou sua energia, de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade”. Dessa forma, as sociedades modernas pensam que seja possível curar os impulsos do homem, não simplesmente expiá-los (= purgá-los). No entanto, o barro (a maldade, a sujeira) é um conteúdo da pré-infância, um conteúdo primitivo, que aflora com muita facilidade (quer inverno ou verão mele o açúcar). O homem não pode ser curado de seus impulsos básicos.

Como se vê, esse texto admite, pelo menos, duas leituras: a do fabrico do açúcar e a da criação do ser humano.

As anedotas, as frases maliciosas, de duplo sentido, os textos humorísticos jogam com dois planos de leitura. Neles, lê-se o que pertence a um plano em outro. Veja-se, por exemplo:

O cirurgião lava as mãos, antes da operação, e pede ao assistente:

– Álcool, por favor.O paciente ouve e entra em pânico:

– Ai, doutor! Não dá para o senhor beber depois da operação?(Sarrumor, Laert. Ainda mais mil piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 2000, p. 91).

Observe-se que, nesse texto, a palavra “álcool” tem dois sentidos: 1) substância química que serve para realizar assepsia; 2) bebida alcoólica. O pedido do cirurgião foi formulado com o primeiro sentido, que determina um plano de leitura: o da assepsia para a realização da cirurgia. Foi, no entanto, lida pelo paciente no segundo sentido, que gera outro plano de leitura: o da embriaguez.

Um texto pode ter várias leituras, bem como pode jogar com leituras distintas para criar efeitos humorísticos. Entretanto, o leitor não pode atribuir-lhe o sentido que bem entender. Ele contém marcas de possibilidade de mais um plano de significação. O primeiro mecanismo de inscrição de leituras no texto são as palavras com mais de um significado. Elas são chamadas “relacionadores de leituras”, pois apontam para mais de um plano de sentido. É o caso do duplo sentido

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do substantivo “álcool”. O outro são palavras ou expressões que não se integram no plano de leitura proposto e, por isso, desencadeiam outro plano de sentido. São denominadas

“desencadeadores de leituras”. No poema de Cabral analisado anteriormente, são “desencadeadores” as palavra “censura”,

“infância”, “adulto”, “educa”, “enfermarias”, “pré-infância” e “psicanálise”.

O segundo exemplo é o da constitutividade heterogênea do discurso.

O texto de que se parte é um cartaz publicitário de uma campanha contra o racismo publicado em Eurobest 4: the Annual European Advertising and Design Awards, p. 8. Nele, há quatro imagens de cérebros: três do mesmo tamanho e um bem pequeno. Sob os três cérebros de idêntico tamanho, aparecem as palavras “africano”, “europeu”, “asiático”. Embaixo do cérebro diminuto vem a palavra “racista”. A unidade poderia ser organizada assim.

Esse cartaz mostra que, do ponto de vista da inteligência, não há nenhuma diferença entre africanos, europeus e asiáticos e que os racistas, ao afirmar que uns homens são superiores aos outros, são pouco inteligentes. Esse texto, com grande sarcasmo, opõe-se aos discursos racistas, que afirmavam haver uma escala de capacidade intelectual entre as diferentes raças. Essa idéia era considerada verdadeira, mas a ciência moderna provou cabalmente que não passa de preconceito. Daí o cartaz considerar que os racistas têm cérebro muito pequeno.

Esse exemplo mostra uma propriedade fundamental da construção do discurso, a de se constituir a partir de outros discursos. Por isso, todos eles são atravessados, ocupados, habitados pelo discurso do outro. Por conseguinte, a linguagem é, fundamentalmente, constitutivamente, heterogênea. Um texto remete a duas concepções diferentes: aquela que defende e aquela em oposição à qual se constrói. O fato de o ponto de vista defendido num discurso constituir-se em oposição a outra perspectiva, de a maneira de ver um assunto gerar-se numa relação polêmica com outra é que faz de um texto um objeto heterogêneo. Nele, ressoam duas vozes, dois pontos de vista. Sob as palavras de um discurso, há outras palavras, outro discurso, outro ponto de vista social. Para constituir sua concepção sobre um dado tema, o falante leva sempre em conta a de outro, que, de certa forma, está, pois, também

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presente no discurso construído. No cartaz mencionado acima está presente o discurso anti-racista. No entanto, ele deixa ver também a existência de um discurso racista na sociedade, já que só tem sentido firmar uma posição anti-racista onde circula uma concepção racista. Esse ponto de vista racista não está marcado no fio do discurso, mas é apreendido pela memória discursiva.

Esses pontos de vista são sociais, são as posições divergentes que se estabelecem numa dada sociedade sobre uma determinada questão. Como uma sociedade é sempre dividida em grupos sociais com interesses divergentes, não há uma perspectiva única sobre um dado tema. Os indivíduos, em seus textos, defendem uma ou outra posição gerada no interior da sociedade em que vivem. O discurso é sempre a arena em que lutam esses pontos de vista em oposição. Um deles pode ser dominante, isto é, pode contar com a adesão de um número maior de pessoas. Isso, no entanto, não elimina o fato de que concepções contrárias se articulam sobre um determinado assunto. Um discurso é sempre, pois, a materialização de uma maneira social de considerar uma questão. Por isso, os discursos são sempre históricos.

Essa propriedade de um texto mostrar duas vozes aparece nos textos manifestados por quaisquer linguagens. Observe-se o quadro Guernica, de Picasso, cujos elementos plásticos representam o horror da guerra, com seu cortejo de destruições. Com ela desaparece a vida, desaparece a arte, desaparece a civilização. Essa pintura contrapõe-se às obras de arte que glorificavam a guerra, como o quadro Batalha de Alexandre em Isso, de Albrecht Altdorfer, em que se retrata de forma heróica a batalha em que Alexandre Magno venceu Dario.

A linguagem oral

Muito se tem falado do aproveitamento da linguagem oral no ensino de português na escola dos níveis fundamental e médio. Entretanto, é preciso ter clareza de alguns princípios: o professor de português trabalha com falantes nativos, que usam a língua para todas as suas necessidades da vida cotidiana. Portanto, não se trata de ensinar a falar uma língua. Por outro lado, é um equívoco pensar que falar bem conduz a escrever bem. Fala e escrita são duas modalidades distintas

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da língua, que se interpenetram em alguns gêneros, numa gradação que vai do escrito prototípico ao falado exemplar. A escola, em relação à linguagem oral, deve, de um lado, trabalhar com certos gêneros não muito freqüentes no cotidiano: o debate, a entrevista etc.; de outro, deve levar o aluno a tomar consciência dos mecanismos constitutivos do texto falado. Exemplifiquemos o trabalho de tomada de consciência desses mecanismos, discutindo a questão da polidez na conversação.

Eu e Pedro estivemos hoje na sala do Diretor, para discutir nossa festa de formatura.

Essa frase está absolutamente correta do ponto de vista gramatical, mas está inadequada do ponto de vista do princípio da polidez, que deve reger a troca verbal, uma vez que, na fala, o eu deve vir depois do ele. Assim como devemos permitir que os outros passem por uma porta na nossa frente, na fala o eu deve dar precedência ao tu ou ao ele.

A polidez são todos os comportamentos, sejam eles lingüísticos ou não lingüísticos, regidos por regras, cuja função é preservar o caráter harmonioso das relações entre as pessoas. São as maneiras de comportar-se à mesa, o uso de roupas adequadas a cada situação, mas também os modos de dirigir-se a uma pessoa, a arte da conversação. Aqui nos interessa apenas a polidez lingüística. Por isso, vamos tratar apenas dela.

Para entender bem a questão da polidez lingüística, é necessário ter presente que cada indivíduo, de um lado, tem um território da intimidade e, de outro, procura transmitir uma imagem positiva de si mesmo na interação verbal (por exemplo: a imagem de pessoa inteligente, esperta, bem informada ou com excelente desempenho sexual). O território da intimidade e a imagem positiva de si mesmo que ele transmite constituem o que se chama a “face do indivíduo”. No curso de uma conversação, produzem-se atos de fala que ameaçam a face do interlocutor: perguntas indiscretas buscam penetrar sua intimidade, que deve ser resguardada; críticas; insultos; injúrias; gozações; sarcasmos; reprovações; censuras tentam destruir a imagem positiva que o indivíduo transmite de si mesmo. Por outro lado, há atos de fala que valorizam a face do indivíduo, como o cumprimento, o agradecimento, o elogio etc. A polidez lingüística consiste em manter a face do outro, seja efetuando atos que valorizem a face do interlocutor,

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como elogios ou cumprimentos, seja evitando realizar atos que ameacem sua face, como perguntas indiscretas sobre assuntos da intimidade ou gozações.

O primeiro princípio da polidez é, pois, evitar atos que ameacem a face do outro. No entanto, se esses atos forem inevitáveis, é preciso atenuá-los. O segundo princípio é reforçar os atos que valorizam a face do outro. Esses atos devem ser intensificados: “Muitíssimo obrigado, serei eternamente grato”.

O exame dos atenuadores e intensificadores verbais, não verbais ou paraverbais dará ao estudante consciência dos sentidos obtidos na fala e, ao mesmo tempo, permitirá educá-lo para a necessária polidez na vida em sociedade.

Considerações finais

Os princípios que devem presidir ao ensino de português na proposta apresentada são os seguintes:

a) a linguagem humana deve ser vista em sua natureza heterogênea e dinâmica;

b) o ensino dos conteúdos gramaticais deve estar voltado para, de um lado, a compreensão do funcionamento do sistema lingüístico e, de outro, o aumento da consciência dos efeitos de sentido produzidos pelo uso das formas e dos mecanismos da linguagem;

c) a explicitação dos mecanismos intra e interdiscur-sivos de constituição do sentido do texto contribui para melhorar o desempenho do aluno no que con-cerne à compreensão e à produção do texto;

d) os mecanismos de produção do sentido do texto devem ser estudados não só na linguagem verbal, mas também em outras linguagens;

e) a compreensão dos mecanismos que regem a linguagem falada dão ao aluno consciência das realizações intuitivas, para que ele se torne mais atento aos sentidos produzidos na fala.

Propõem-se esses princípios porque se julga que o trabalho do professor de português é levar os alunos a aceder, por meio da palavra, às experiências culturais vividas pelo homem ao longo de sua história e, assim, nas palavras de Guimarães Rosa, tornar o homem humano, o que significa

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inconformado com uma realidade apresentada, seja como destino, seja como fenômeno natural. Ao mesmo tempo, é preciso levar a compreender que a linguagem não é algo burocrático. É preciso ensinar a estruturação da língua, para que o aluno possa mais facilmente subvertê-la. O princípio ético fundamental que deve reger a tarefa dos professores de língua materna é que a linguagem é o lugar de diversidade, da heterogeneidade e da alteridade e, por isso, seu trabalho, ao ensinar a linguagem, é levar a aprender a tolerância, o respeito pela diferença e, portanto, a democracia. Esses são os valores que orientam o ensino de português, liberdade, inconformismo e democracia.

Referências

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RICOEUR, Paul. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II. Paris: Seuil, 1986.

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Lia Scholze*

Com a chamada “virada cultural” (Hall, 1997; Culler, 1999), os estudos da linguagem deixaram de ser preocupação exclusiva dos lingüistas e dos teóricos da literatura. Fala-se hoje em “discurso” com a compreensão de que a produção de significados tem a ver não só com as escolhas semânticas, sintáticas e lexicais, como também com as relações que são estabelecidas em determinados tempos e espaços.

A linguagem é compreendida como um sistema de representação, isto é, é um dos “meios” pelos quais pensamentos, idéias e sentimentos, que são do sujeito, são representados em uma cultura; ela é central para os processos por meio dos quais é produzido o significado. A construção dos significados, porém, não está restrita ao campo da palavra, abrangendo também a imagem, ou seja, a semiótica cultural (Hall, 1997) entendendo-se que a imagem também é construída e constrói significados dentro de determinado campo de representações que pretendem aprisionar nossos sentidos ao propor papéis a serem vividos e/ou representados. Nesse sentido, pode-se dizer que o sujeito circula e, com ele, circulam a linguagem e a cultura. Elas estão em estreita ligação.

Hall, ao analisar a abordagem discursiva, considera os efeitos e as conseqüências da representação – sua “política”; não apenas como a linguagem e a representação produzem significados, mas “como o conhecimento produzido por determinado discurso liga-se ao poder, regula as condutas,

* Licenciada em Letras (UFRGS). Mestre em Teoria Literária (PUC-RS). Douto-ra em Educação (UFRGS), na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educa-ção. Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicações do Inep/MEC.

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Lia Scholze

forma ou constrói identidades e subjetividades, e define a forma como são representadas, refletidas, praticadas e estudadas certas coisas” (Hall, 1997).

Por outro lado, na análise que Foucault faz da sociedade, o autor identifica diferentes dispositivos de controle e regulação existentes, entre os quais inclui a escola. Ele chama a atenção para a tensão que se estabelece entre a busca de regulação da linguagem pela escola, que pode ser chamada

“tentativa de pedagogização” (ensinar a ler o certo e o errado, usar as melhores e mais bem aceitas formas de expressão) e a própria condição da linguagem, que é estar sempre em constante movimento de incorporação de novas formas de expressão e de organização.

Nessa perspectiva, a linguagem pode ser vista como um elemento de reflexão do indivíduo consigo, com o outro e com a sociedade, funcionando também como ligação entre esses indivíduos, num processo de intersubjetividade. Essa capacidade de reflexão pela linguagem produz conhecimento e, com ele, produz poder, como observou Culler ao refletir sobre a teoria de poder/saber de Foucault, que ele chama de

“poder/conhecimento”: “poder sob a forma de conhecimento ou conhecimento como poder. O que pensamos saber sobre o mundo – o referencial conceitual dentro do qual somos levados a pensar sobre o mundo – exerce grande poder” (Culler, 1999, p. 17).

Na sociedade moderna, a escola assumiu para si a mediação entre a família e a sociedade com a função de ensinar/transmitir/fazer circular/produzir conhecimentos (de acordo com as diferentes teorias pedagógicas), e o fez definindo, para si e para seus membros, regras de conduta e de moral visando a melhor ajustá-los às necessidades de uma sociedade produtiva.

A escola moderna constituiu-se como uma imensa maquinaria, cujos princípios proclamados apontaram cada vez mais para os ideais do iluminismo, cujas práticas estiveram sempre mais ou menos ajustadas ao funcionamento do mundo que estava sendo construído com base nesses ideais. Assim, ao invés de uma contradição, o que existe é uma articulação produtiva entre escola e modernidade, participando ativamente na construção/fabricação do sujeito moderno (assujeitado/controlado/analisado/confessante) junto com as demais

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instituições. Isso não significa que devamos nos conformar e simplesmente constatar uma realidade irrevogável.

Entre as práticas que se engendram na fabricação de determinado tipo de sujeito, podemos incluir as orientações de leitura praticadas principalmente na escola e na Igreja, e, de acordo com Culler (1999, p. 18), devemos, com base nos estudos de Foucault, nos encorajar a examinar como as práticas discursivas de um período, inclusive a literatura, podem ter conformado coisas que aceitamos sem discussão. Isso nos mostra o “quanto os discursos de médicos, cientistas, romancistas e outros, criam as coisas que afirmam apenas analisar” (Culler, 1999, p. 22).

Numa perspectiva neoliberal, o consumidor é visto como um homo manipulabilis, isto é, é alguém que pode e deve ser levado a se comportar dessa ou daquela maneira. A orientação para a leitura poderia ser considerada também nessa lógica. Porém, o que a leitura desenvolve é algo incontrolável – não governável, que pode levar o nome de imaginação criadora. Culler afirma que, historicamente, a literatura foi vista como perigosa: promove o questionamento da autoridade e dos arranjos sociais. Nessa medida, pode provocar novos arranjos de escrita, favorecendo a criação de novas soluções para as histórias a serem narradas. O sujeito – não mais iluminista/moderno, mas sujeito-consumidor (utilizando a linguagem do mercado) – ao qual se oferecem infinitos produtos, passa a ser, por meio da leitura, um cliente mais exigente, com maior capacidade de discernimento em relação ao efeito de seu consumo. Sujeito comprador de livros, ou freqüentador de biblioteca, é um sujeito que escapa à lógica do mercado, pois o efeito da leitura não é regulável, oferecendo para o consumidor possibilidades de novos agenciamentos e novos dispositivos de subjetivação.

Esse esquadrinhamento serve para que se perceba como essas relações são construídas e prospectar as fissuras, as linhas de fuga, as brechas para proceder a sua desconstrução e oportunizar a emergência de novas construções discursivas, que contenham as histórias de cada um e suas relações com o coletivo, seus pontos de convergência, suas permanências e descontinuidades. Essa preocupação é encontrada nos estudos desenvolvidos por Chartier (2001, p. 64) quando retoma as idéias de Kant na obra O que é o iluminismo, em relação à

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expectativa em torno da possibilidade de cada um ser capaz de produzir textos.

Já na sociedade contemporânea, a cultura passa a ter um papel central na definição da relação do sujeito consigo mesmo, com seus pares e com o outro. As tentativas de interdição da linguagem exercida pela escola ajudam a provocar a constituição de outras formas de expressão, sobretudo entre os jovens. As anotações nos diários e nas agendas são uma forma de escrita de si – reflexões sobre si mesmo – e são muito comuns na adolescência. Esse comportamento demonstra a existência de possíveis linhas de fuga, de resistência e de frustração dos projetos que pretendem regular suas vidas e seus corpos. São essas anotações que ajudarão os/as adolescentes a constituir suas histórias, que darão a si mesmos um lugar privilegiado. Na tensão estabelecida com as linguagens reguladas podemos questionar o escrito e sua relação com o “já dito” – o que é do social, o que circula na sociedade. Podemos perguntar sobre o que sobra para o sujeito se tudo já está dito. Qual o espaço para a criação do novo, para a instauração da singularidade?

Foucault (1984) propõe que sempre há uma possibilidade de completude – de vir-a-ser. Segundo o autor, o sujeito está sempre por se fazer e compreende que a relação com a linguagem é uma relação singular que exige um grau de intimidade com o próprio processo de sua constituição. Deve-se compreender que ela se constitui como um processo interior que vai sendo gestado e que precisa de um tempo e de condições favoráveis para aflorar. Porém, deve-se também compreender que o processo de produção pode ser estimulado por meio de exercícios principalmente com a utilização do texto literário. A criação (seja em qual campo for e também no campo da linguagem) precisa de um tempo para a intimidade, do sujeito consigo mesmo.

A crítica à escola é feita conjuntamente à crítica feita à pedagogização dos conhecimentos e práticas veiculadas nela. O domínio prático distingue-se da competência erudita (ou escolar), a qual, por ter sido adquirida nas situações do aprendizado escolar – onde a linguagem freqüentemente é tratada como letra morta, como simples objeto de análise, isto é, fora de toda a situação prática. Autoras como Marisa Lajolo (2001) e Josete Jolibert (1994), entre outros/as, demonstram em seus estudos preocupação em aproximar ao máximo as

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situações de aprendizagens às situações “reais” vividas pelos/as alunos/as.

Em geral, na escola, a produção do texto se dá de uma só vez, sem o tempo necessário para a organização das idéias, da definição do rumo que se vai dar ao escrito, sem a discussão e a troca com os pares e sem a reescritura, procedimentos normais nas produções de escritores experientes. Ao estudante é dado um determinado tempo, é-lhe solicitado determinado tema e é esperado que produza um texto dentro de um número determinado de linhas. E esperam-se dele clareza, concisão, progressão textual, criatividade etc., como se isso fosse muito simples. Não se trata o texto como resultado de um processo nem são dadas condições para que esse processo se estabeleça. Para Preto-Bay, “para que um texto possa ser escrito e produza o impacto que o autor deseja, o autor precisa, tanto da habilidade cognitiva para o produzir, de criar para si mesmo um processo de produção escrita que funcione, como da prática e experiência com os aspectos sociais e culturais necessários para adquirir e demonstrar tal conhecimento” (2005, p. 13).

Respondendo a esse tipo de questão, pensamos que as oficinas de leitura e escrita, utilizando principalmente textos narrativos, ajudam o adolescente a desenvolver desenvoltura de expressão escrita. Contar histórias é da natureza humana, e a história de si nos ajuda a nos situar no mundo e em relação a nossos pares.

Dessa forma, estaremos criando possibilidades para romper com certas práticas desenvolvidas na escola, que se esforça em interditar as formas espontâneas de linguagem1 e, também, em regular e controlar os fluxos do conhecimento. Nessa instituição, é muito comum o/a professor/a assumir o papel de intermediário/a e é ele/ela quem irá garantir que a ordem social estabelecida seja mantida. Isso se dá por meio de mecanismos de controle, aferição e avaliação, garantindo, assim, a formação dos “futuros” cidadãos, que irão reproduzir nos locais de trabalho, nas instâncias de poder onde irão atuar, a manutenção dessa mesma ordem. Aqueles que não

1 Para a Lajolo, “a escola é a instituição que há mais tempo e com maior efi-ciência vem cumprindo o papel de avalista e de fiadora do que é literatura” (LAJOLO, 2001, p. 19).

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se adaptarem às exigências não chegarão ao status de cidadão, pois esse status é fornecido junto com o diploma e aprovação concedidos pela escola. A escola assumiu, assim, a condição de mediadora, rito de passagem necessário e eficaz da sociedade moderna.

Na pós-modernidade, porém, o papel de mediadora de conhecimentos e valores vem sendo ocupado cada vez mais pela mass media. Outros são os agentes que ditam as condutas e os valores: a TV2 em especial, as revistas e as propagandas. E o texto também não tem mais como único suporte as páginas do livro e “vai pegando caronas e se derramando para fora dos livros, manifestando-se em textos reproduzidos pelas mais diferentes tecnologias” (Lajolo, 2001, p. 116). O suporte não é mais unicamente o papel, e o formato não é unicamente o códex, como é conhecido na nossa sociedade.3 Porém, uma questão mostra-se duradoura na modernidade ocidental: trata-se do papel que a escrita ocupou e ocupa na manutenção e alteração dos comportamentos da sociedade, ajudando a manter ou legitimar novos valores, comportamentos e relações, dando condições de pertencimento ou mantendo diferentes graus de exclusão social.

Aqueles/as que detêm a competência da leitura e da escrita poderão mais facilmente circular numa sociedade letrada, participando mais ativamente na produção dos considerados “bens culturais”.

Pode-se dizer que, nas aulas de leitura e escrita, os/as alunos/as aprendem mais do que o domínio dos códigos de textualização. Aprendem também a construir identidades a partir das representações de ser humano e de mundo presentes nos textos que lêem. Aprendem também, nas leituras e nas interpretações que são feitas, a ocupar um determinado lugar

2 Ver Rosa Maria Bueno Fischer, cujas pesquisas sobre o assunto enfocam a influência da TV no comportamento público: FISCHER, Rosa Maria Bueno. O estatuto pedagógico da mídia: questões de análise. Educação & Realidade, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 1, 1976; ____, Televisão & educação. Fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

3 Chartier desenvolveu pesquisas que nos mostram a evolução dos suportes da escrita e com ela os habitus das sociedades, assim como o valor dado à escrita, acompanhada de rituais de uso, permissões e interdições que irão sofrer alterações ao longo da história da humanidade. Ver CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília: UnB, 2. ed., 1999; Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: Artemed. 2001; Os desafios da escrita, São Paulo: Unesp, 2002; A aventura do livro do leitor ao navegador, São Paulo: Unesp, 1999.

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e reproduzem esses aprendizados nos textos que constroem, pois aprendem a desenvolver os mecanismos necessários para serem aceitos e aprovados. Aprendem a responder aos questionários de maneira “correta”; aprendem as escolhas semânticas, lexicais e sintáticas permitidas. Aprendem a abolir a linguagem local, as gírias, os conceitos de si e de mundo para incorporar aqueles que circulam como permitidos e estimulados, que tendem a estabelecer verdades comuns e a abolir as singularidades. Aprendem a copiar modelos de conduta e de expressões discursivas e a assimilar determinados conceitos e formas de manifestação. E esses aprendizados vão ajudando a constituir suas identidades.

Portanto, a identidade não é uma coisa com a qual nascemos, mas é formada no interior da representação colocada por meio de determinados significados. Segundo Hall, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente [...] a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (2002, p. 13). A identidade do/a jovem aluno/a será diferente de acordo com os espaços e os momentos, como, por exemplo, na danceteria, no momento de descontração no pátio da escola durante o recreio, no momento de convívio familiar, permitindo o estranhamento diante de atitudes que, por vezes, surpreendem professores /as desavisados/as, que pretendem “conhecer” muito bem seus/suas alunos/as.

Ao conviver com o trabalho desenvolvido em oficinas de leitura ou de produção textual encontramos a busca de outras possibilidades de trabalhar com a linguagem na perspectiva da experimentação. Nelas, o oficinando é estimulado a desenvolver suas habilidades sem a preocupação com a nota ou a correção por parte do professor. Nesse espaço, a correção do texto é substituída pela aceitação de criação de algo novo, inusitado. A diferença entre o texto escolar e o texto produzido em oficina tem a ver com as diferenças entre os dispositivos nos quais foram construídos, e me animo a dizer que eles exemplificam a afirmação de que diferentes dispositivos produzem diferentes singularidades. O texto escolar, em geral, é mais previsível, atende ao lugar-comum, é mais cheio de clichês, ainda que sempre haja um jeito de desobedecer ao script recebido e, a partir dele, improvisar e provocar rupturas maiores ou menores.

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A instituição escolar é sempre muito cuidadosa na manutenção do status quo e muito cautelosa em relação a eventuais propostas de mudança. A metodologia utilizada na oficina, por sua vez, permite um espaço privilegiado de criação e de expressão das singularidades, muitas vezes não encontrado no espaço escolar, pois os objetivos nesses diferentes espaços são diversos entre si. Considero possível propor novas práticas educacionais, como aquelas que estão se dando fora da escola (as oficinas de escrita proliferam e mostram resultados) e que estão operando no sentido de produzir novas subjetividades, tornando o trabalho com a linguagem na escola mais eficiente; criando mecanismos de ampliação para os textos, tornando-os mais eficientes, mais criativos, mais significativos para o aluno.

Insisto na idéia de que certas práticas pedagógicas são produtivas de um certo tipo de sujeito – de acordo com determinado projeto. Poderíamos dizer, então, que a escola moderna engendrou o homem moderno, ou seja, o sujeito submetido a práticas disciplinares que domesticam os corpos e as mentes, dentro de um determinado projeto de sociedade. Permito-me, porém, imaginar a reflexão sobre a estética da existência, como é encontrada em Foucault, Arendt, Ortega, Heidegger, numa volta do sujeito sobre si mesmo. Para isso precisamos nos perguntar: O que é voltar-se para si hoje? A escola pode auxiliar a construir novas formas de reflexão e produção de si numa perspectiva de uma nova estética?

Ao conceito de “biopoder” que contém a pergunta de Foucault “como é que nos constituímos sujeitos de determinadas verdades” e estabelece a discussão sobre a produção do sujeito e a subjetivação, eu gostaria de acrescentar: Quais discursos circulam na sociedade? Quais discursos são capazes de nos constituir como sujeitos singulares? Ou os discursos que circulam produzem efeito uniformizante, que nos quer iguais a todos, uma vez que são veiculados nos meios de comunicação que atingem a maioria da população, ainda que as audiências sejam diferenciadas. O singular de cada um acaba sendo um projeto de uniformização da linguagem, dos gestos, dos gostos, dos desejos.

Ao afirmarmos que a escola não contempla a singularidade e, em conseqüência, não pressupõe a pluralidade, podemos querer saber como as relações se deram desse jeito. Este como está

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dentro da linha de preocupação de Foucault (1996), na análise que ele chama de “antropológica”, visando analisar o conjunto de práticas instituídas no universo escolar e que dispensa à linguagem usada um cuidado extremo, pela escolha criteriosa dos termos, do estímulo à fala (confissão, principalmente das faltas cometidas) e do silenciamento imposto pela organização disciplinar instituída pelos regulamentos de horário, permissão de circulação, de interdição de espaços a serem ocupados, entre outros. Para o autor, o próprio discurso constrói. É uma forma muito mais sofisticada de exercer o poder – que pode ser muito mais eficaz.

Este voltar-se para si mesmo é um exercício que faz parte das tecnologias do eu, na perspectiva de positivar as minhas relações comigo mesmo. E a escola pode criar essa possibilidade e pode assumi-la como tarefa sua, por meio de uma nova postura em relação ao ensino da língua e da literatura. O que os alunos querem é ser produtivos, pois isso é da natureza humana. Criadas as condições para a sua produção, seremos surpreendidos pelas crianças e pelos adolescentes, que esperam por esses desafios e nos darão respostas consideradas inesperadas por aqueles que não costumam escutá-los. Devemos, como propõe Geraldi (1995), devolver a palavra ao aluno e teremos uma significativa e positiva alteração nos resultados.

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Que linguagem falar na formação

docente de professores de língua? Ludmila Thomé de Andrade*

Neste artigo, apresentamos uma reflexão sobre a formação continuada de professores da escola básica que lidam com a linguagem (alfabetizadores, professores do ensino fundamental, médio ou outras modalidades). Em nosso trabalho de pesquisa (Andrade 2004 e 2005), temos buscado problematizar a delicada posição de formadores na interlocução com os professores, a partir de uma visão da formação como interlocução entre agentes que não possuem as mesmas preocupações. Buscamos identificar em que medida as intervenções propostas pela formação de profissionais docentes - tomando como recurso formador o exercício da escrita docente - poderiam transformar os conhecimentos que têm a respeito de suas práticas de ensino de leitura e escrita na escola os professores.

Para nossas conclusões aqui apresentadas, tomamos por campo de pesquisa um curso universitário de formação continuada (curso de extensão), oferecido a professores de escolas públicas responsáveis por séries iniciais, em que se tratou do conteúdo do ensino da leitura e da escrita. Perguntamo-nos sobre os necessários ajustes a serem efetuados na relação entre formadores e formados. Quais serão os diálogos possíveis? As preocupações de cada um são equivalentes quando se trata da língua? Quais são as representações que cada um faz do outro, seu interlocutor? Que caminhos há ainda a ser trilhados para

* Doutora em Ciências da Educação. Mestra em Lingüística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Responsável pelo LEDUC (Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação) Universidade Federal do Rio de Janeiro/Faculdade de Educação.

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a formação docente sobre o ensino da língua? A utilização da escrita como instrumento de reflexão sobre o professor e pelo próprio professor apresenta ricas possibilidades para o seu desenvolvimento profissional. Ela permite uma consonância com princípios de uma formação docente que consolidem uma autonomia dos sujeitos professores, compreendidos como sujeitos ativos diante do conhecimento e transformadores de sua própria situação profissional.

O lugar da voz docente na formação

No cenário de políticas educacionais, em que se constata um crescente privilégio dado a ações de formação docente, implementadas por instâncias como secretarias de educação, ressaltam-se mais visivelmente as experiências com a formação continuada, indo assim ao encontro do que as numerosas pesquisas sobre formação profissional de professores vêm preconizando como mais adequado. Estas últimas vieram igualmente aumentando em quantidade e complexidade na produção do Brasil durante as duas últimas décadas. Neste contexto de pesquisa e de políticas, tornou-se um consenso a importância atribuída a se dar a voz aos docentes (neste caso na posição de discentes). Se a formação docente constitui-se essencialmente da transmissão de conhecimentos científicos, é preciso que tal transmissão, para que seja efetiva, não seja uma via de mão única, mas que seja permeada pela voz docente, que dá a medida da recepção dos conhecimentos.

Nesta configuração assim desenhada, os saberes universitários são situados em posição distinta da original, ganhando outras dimensões. Os conhecimentos produzidos pela pesquisa, tão legítimos (no sentido bourdieusiano do termo), transformam-se, ao entrarem neste processo de transposição didática. Na universidade, produzem-se conhecimentos que valem muito em qualquer espaço da sociedade. Quando estes migram para o espaço de qualquer instância da formação continuada para que possam ter entrada nesta comunicação formadora passam, porém, necessariamente por um processo de atravessamento, em que são permeados por outros saberes, trazidos da escola, pelos professores. Atravessados, eles não serão mais os mesmos: serão agora furados. Tais furos, necessários, não são aleatórios, como o de uma bala perdida. São furos achados, cada um um ponto exato a ser descoberto,

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resultado de uma busca. A vontade de transmitir a alguém o seu saber cria uma relação específica com o próprio saber e com o outro em questão. Há um desejo de se construir este interlocutor em seus moldes, de influenciá-lo, de argumentar na direção de fazer com que ele perceba que o conhecimento transmitido pode lhe alterar a visão de sua prática. Neste sentido, busca-se a medida exata na comunicação para que se produza no conhecimento os furos precisos, e preciosos, que serão constitutivos dos sujeitos na interação em questão.

Em nossa visão adotada sobre a formação, estes atravessamentos sofridos pelo conhecimento universitário constituem, neste movimento, mais consistentemente os formadores do que o faz a própria solidez do saber científico da pesquisa. Ao dialogarem entre pares em torno do saber sólido da ciência, falam de igual para igual e seu saber é comunicado de forma quase monológica. Distintamente, quando este conhecimento passa a ser um saber da formação, há diálogos. O conhecimento científico que revela capacidade de migrar para novos espaços e incorpora em si este tipo de furo ganha em valor de comunicação, em valor discursivo, marcando-se como histórico e social, ao se permitir ser dialógico.

Nos momentos em que a voz do professor é autorizada, nas situações de formação os formadores, que são os que ocupam a posição de maior poder nesta relação assimétrica, produzem a democratização do uso de alguns canais, anteriormente apenas usados por eles mesmos. A autorização do acesso dos docentes a momentos de expressão discursiva sobre a sua prática profissional torna-se um elemento fundamental na produção das condições de produção adequadas para o acesso aos conhecimentos científicos disciplinares escolhidos como importantes para a compreensão dos processos de ensino e de aprendizagem ocorridos na escola pelos alunos. Mas a decisão de dar a voz cabe ao formador. Os professores passam a ter o direito à voz, como docentes em formação, na posição de discentes. A valorização de sua expressão discursiva torna-se um dos ingredientes didáticos da formação continuada docente, mas é importante observar que tal lugar discursivo está sendo produzido por decisão. Este espaço de produção de linguagem passará a constituir ingrediente da situação de formação docente mas dentro de uma relação instaurada por decisão de um dos interlocutores, aquele que detém o poder de definir os limites da situação.

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As posições em jogo na formação

Na formação docente, assim como em qualquer situação didática, são aqueles que ocupam a posição de maior poder na assimetria das relações desta interação discursiva que são autorizados a falar predominantemente e a designar a quem cabem os turnos de fala. Sendo assim, compreender como se realiza o princípio de se dar voz aos professores, que passa a ser seguido, significa passar a observar as posições definidas dentro desta relação. Na situação em questão, as posições principais ocupadas pelos sujeitos são:

• professores universitários; • formadores; • professores da escola básica; • alunos.

A posição originalmente ocupada nas práticas sociais que definem os agentes presentes nesta cena enunciativa são transformadas, no interior da situação de formação. Professores universitários tornam-se formadores e professores da escola básica tornam-se alunos. Universitários serão professores para ensinar a professores a melhor desempenhar este papel. Professores tornam-se alunos de modo a poderem pensar melhor em como seus alunos aprendem na escola. Perguntamo-nos sobre as alterações discursivas possíveis que devem se dar em tal espaço assim construído. As mudanças de posição podem ser resumidas pelos seguintes deslocamentos:

• Professores => alunos • Pesquisadores => formadores• Professores de professores na formação inicial (gradua-

ção, licenciaturas) => professores de professores em formação continuada.

Os pesquisadores, ao ocupar a posição de formadores, não podem produzir o seu discurso tal e qual o enunciam em situações típicas universitárias, tais como a formação inicial e a pós-graduação, onde ocorrem momentos de comunicação entre pares. Como organizarão seu discurso? Não basta se tomar a decisão e decretar que será permitida a voz dos docentes no espaço da formação. Cabe ao formador que ocupa esta nova posição ter claro que seu saber estará deslocado, será interrogado, desafiado e posto em questão. Como organizar esta nova fala? Muitos fatores deverão estar implicados

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nesta mudança discursiva. Deve-se ainda perguntar sobre os professores: como se expressarão, ao terem a sua voz docente autorizada?

Para se compreender as novas posições que serão assumidas e os novos discursos que serão necessariamente produzidos, é preciso se perguntar como se vêem mutuamente os interlocutores, pois as representações que fazem um do outro são impregnadas de suas posições ocupadas sócio-historicamente. As expectativas mútuas calcam-se sobre as representações feitas em torno de ações com o saber: Os formadores esperam que os professores mudem a sua prática? Formadores e professores esperam que o discurso da formação aproxime os professores da pesquisa? Os professores acreditam que os formadores possam lhes ensinar alguma coisa? Quando vão a uma formação, a atitude dos professores é realmente de estarem aptos, propícios, sentem-se capazes, de mudar a sua prática em função dos conhecimentos que possam receber?

Concepção de linguagem e concepção de formação

Na situação aqui focalizada, tomam a cena comunicativa os conteúdos sobre a língua, portanto vindos da pesquisa em Lingüística ou em Literatura, selecionados como importantes para se pensar o ensino da língua escrita na escola, nos momentos da alfabetização, da leitura e da produção de textos. Em relação a outros conhecimentos disciplinares, o ensino da língua contém uma especificidade que o torna interessante. A experiência de aprendizagem teórico-reflexiva sobre o conteúdo da língua dá-se necessariamente dentro de uma experiência lingüística. Se tomarmos portanto a própria formação como uma experiência lingüística, será preciso considerar que seus modos de realização discursiva não deveriam ser contraditórios com o que é apresentado como conteúdo. Se assumimos uma concepção de linguagem bakhtiniana, na qual os interlocutores constituem-se mutuamente nos próprios atos enunciativos, em que as palavras devem ser tomadas como gestos significativos de ação entre interlocutores, então podemos situar a formação docente como um diálogo, no qual os saberes são comunicados entre interlocutores que ocupam posições sócio-históricas distintas, hierarquizadas assimetricamente. Desejando aproximar,

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espelhar e mesmo fazer se fundir completamente uma tal concepção de linguagem e uma concepção de formação que se quer defender, desenvolver e preconizar, deveríamos nos perguntar: se o dialogismo da linguagem contribui para uma concepção da formação, que discursos se produzem especificamente nas interlocuções acontecidas no dialogismo da linguagem da formação?

Bakhtin, em sua obra, critica as idéias instauradas no campo de estudos da linguagem (a Lingüística saussureana), que se permitem conceber a linguagem sem considerarem a palavra em seus usos, imersa em situações concretas de enunciação. A palavra é para Bakhtin por excelência um signo ideológico, expressão das relações hierarquizadas entre indivíduos vivendo em diferentes espaços sociais e institucionais e o discurso se tece de fios ideológicos, originários de fontes heterogêneas dentro do espaço social. Cada palavra utilizada nas interações é sempre palavra alheia, de interlocuções anteriores vividas por cada locutor, que traz para a interlocução esta experiência marcada por relações sociais. Ora, na formação, os interlocutores em questão são o formador e os professores-alunos. Estas identidades sociais em interação são portanto a fonte de compreensão para se entender esta ato comunicativo específico.

Uma reflexão sobre qualquer formação implica essencialmente em tomar por objeto as possibilidades de transformação a se operar nos conhecimentos prévios de formadores e de alunos (professores, em nosso caso em tela). Entretanto, ainda anteriormente a esta reflexão sobre tais transformações, pode ser interessante considerar as representações que estes interlocutores fazem sobre os conhecimentos trazidos por seus parceiros nesta situação comunicacional, especificamente no que diz respeito a seus saberes. Vejamos como os professores representam o conhecimento dos formadores e como os formadores representam o saber dos professores.

Representações mútuas de saberes e de conhecimentos

É a partir de idéias sobre o saber universitário presentes no horizonte profissional docente que os professores-alunos representam os formadores-professores. Tais representações

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construíram-se a partir da própria atuação recente da universidade em políticas de formação. Para ilustrar como se podem formar estas idéias a respeito da universidade, podemos citar um caso recente de intensivo esforço de difusão de conhecimentos da pesquisa no campo da formação. Trata-se das pesquisas sobre o modelo de aprendizagem do construtivismo piagetiano, que tiveram um importante efeito na formação docente durante os anos 80, especialmente no que diz respeito à alfabetização.

Os efeitos na prática pedagógica que um modelo psicológico de desenvolvimento cognitivo da criança possa ter devem ser considerados em função dos modos como sua difusão ocorreu. No caso da difusão do construtivismo ferrereano, os professores à época formados por este novo modelo de aprendizagem viram-se colocados em situação de depauperamento epistemológico. Lembram-se claramente do discurso da inovação sendo apresentado como o que vinha substituir as práticas conhecidas, rotuladas de tradicionais. Este é apenas um exemplo ilustrativo de como fulcram-se lugares discursivos com toda especificidade. Os modos como são implementadas as políticas de formação docente permitem que se constituam certas posições discursivas, dentro de espaços de interlocução. Tais lugares, ao serem efetivamente ocupados, ao terem sido realmente vividos em experiências de formação, geram processos individuais de aprendizagem.

As experiências dos sujeitos formadores ou em formação profissional inscrevem-se historicamente na política educacional brasileira levada à frente há quase duas décadas e meia, desde que se iniciaram as ações no período chamado de transição democrática e em que as secretarias de educação iniciaram a solicitação de colaboração da universidade. Discursos vieram se moldando e se modulando, no contexto das políticas federal, estaduais e municipais, das quais a universidade veio também ganhando seu lugar de interlocutora. Dessa forma, a legitimidade do saber universitário que, como já dissemos, é reconhecida socialmente, veio ganhando sentidos específicos e assim marcando-se historicamente, no contexto brasileiro.

Em cada contexto nacional, os acontecimentos de difusão de conhecimentos científicos vão ganhando significados contextuais na formação. Os significados que ganhou o construtivismo nas práticas alfabetizadoras no Brasil não equivalem àqueles que ganhou na França, por exemplo. Se

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houvesse a oportunidade de verificar os significados que a mesma teoria descritiva adquiriu nas salas de aula francesas e brasileiras, por exemplo, não encontraríamos os mesmos procedimentos didáticos. Quando os professores brasileiros sentem-se realizando ações construtivistas, não procedem da mesma maneira que os professores franceses sentindo-se imbuídos dos mesmos princípios epistemológicos. Entretanto, poderíamos supor que do ponto de vista da pesquisa a teoria de Emilia Ferrero permanece inalterada e que pares pesquisadores possam dialogar sobre ela, considerando-a como em seu estado puro original, científico, sem se ater às apropriações contextuais.

As considerações acima visam compreender que há representações sobre o conhecimento universitário que surpreendem os moldes propriamente universitários. A trajetória dos saberes na transposição didática não se limita ao que a universidade pode planejar, intencionalmente. E apenas importa-nos abordar tais representações do que pode significar a difusão do conhecimento de pesquisa feitas por docentes da escola básica porque esta difusão deixa marcas nos sujeitos a formar.

Do lado dos formadores, torna-se hoje uma responsabilidade incontornável a explicitação sobre a concepção de formação adotada, pois além do percurso histórico recente em que ocupou a posição de interlocutora, difundindo conhecimentos disciplinares junto a docentes da escola básica, a universidade também tem produzido paralelamente um meta-discurso de pesquisa sobre a formação, refletindo sobre estas modulações possíveis, sobre a própria formação. Vivemos um movimento fértil de pesquisas feitas sobre o professor, sobre os conhecimentos a serem transmitidos, sobre a própria universidade. Torna-se portanto incontornável, em qualquer ação de formação docente, a explicitação dos modos de representar o saber do professor. Estes acabam por revelarse, apresentando-se tacitamente no discurso do formador, nas suas formas discursivas adotadas que tomam em consideração seu interlocutor, pois no discurso da formação planejado e organizado pelo formador, seus conhecimentos (universitários) e os saberes (docentes) dos professores são confrontados uns em relação aos outros, e assim medidos em sua eficácia nos momentos de atualização enunciativa da formação.

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A efetiva formação acontece no eixo de tensão entre os conhecimentos da pesquisa a serem transmitidos e os saberes da prática pedagógica a serem expressos pela voz do professor. Neste sentido, ainda se torna pertinente retomar o conceito de saber docente, cunhado por Maurice Tardif. Ele permitiria que o universitário se perguntasse: O que sabe o mestre, aquele que ensina? O que este faz com o saber disciplinar? É na figura do professor da escola básica, realizador de suas ações pedagógicas, que o saber disciplinar, proposto pela pesquisa, se mescla, fundindo-se a outros saberes, tão importantes quanto neste contexto. Tardif desdobra o saber docente em categorias, que permitem relativizar a importância do conhecimento disciplinar, científico, em relação ao conteúdo a ser ensinado calcado conformemente no que a pesquisa propõe. Ele define as categorias de saber presentes para o professor no desempenho de suas funções docentes efetivas:

• saber curricular;• saber profissional (da formação);• saber disciplinar;• saber da experiência.

Tais saberes docentes não são nunca objetivados. Eles permitem ao professor conduzir as situações de interação, funcionando como princípios pragmáticos, mas constituem saberes na prática, da prática, e funcionam em plena realização das ações pedagógicas, sem chegar a existir como forma de conhecimento apresentada de modo materializado, organizada discursivamente. Tal e qual ocorre com a linguagem oral, eles existem sem a normatização pautada numa descrição científica.

Como a formação na figura do formador lidará com estes saberes inconscientes dos professores? Se o saber da prática não é normalmente explicitado e se a formação tem buscado mesclar o discurso universitário à voz do professor, nesta interlocução, parece que chegamos a poder afirmar que a formação continuada deveria poder vir a ser exatamente o momento de explicitar, de trazer à tona, o que já está lá, porém sem palavras. Após ter identificado as representações mútuas destes interlocutores, passamos agora às razões de cada um. Como lidam formadores com a formação de professores? Como lidam os professores com esta mesma (seria esta equivalente?) formação?

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Posições de cada um dos enunciadores

Como universitários, diante da tarefa da formação, frente a frente com os professores que querem atualizar seus saberes, podemos optar por permanecer ancorados na legitimidade dos nossos saberes acadêmicos, nos quais cremos piamente, pois somos feitos dele, somos dele produtores, somos dele reprodutores e produtores. Com a segurança da âncora, o barco circula num raio de limite determinado e chega até outras praias, um pouco mais longe do porto original, chega até à escola, onde encontra o professor.

Outro modo de se relacionar com a mesma tarefa pode ser ilustrado pela metáfora da exploração de outras terras, pois pode-se considerar que estar ancorado não permitirá chegar bem próximo do professor e então se decidir levantar a âncora e partir para visitar a ilha docente. Neste caso, conceberíamos a formação como uma visita ao espaço próprio ao professor. Consideraríamos que por este deslocamento de posição discursiva, em que formadores escutam o que têm a dizer os docentes, e não o contrário, ocorre uma experiência interna para os sujeitos dela participantes, a formação “acontece”. Em vez de nos ouvir, o professor vai falar do que lhe é conhecido, mostrar-nos a sua ilha, sua prática escolar, e nos servindo assim de guia turístico, assume uma voz sobre sua prática e fortalece-se como autor de um discurso docente enunciado em um espaço exterior à sala de aula, sobre a sala de aula. Por este gesto formador de doação da voz, permitindo ao professor dizer o que não lhe cabe normalmente dizer em seu tempo e lugar de trabalho, saímos do lugar de quem sempre diz e concedemos este espaço discursivo ao professor.

Talvez a justa medida não esteja nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Vejamos o lado dos professores, como concebem o olhar deste turista a sua ilha.

Entre representações ressignificadas e experiências de aprendizagem cotidianas

Em nossa recente experiência de formadores universitários atuando junto a professores de séries iniciais de escolas públicas da zona sul do Rio de Janeiro, temos seguido o princípio de dar voz aos nossos alunos-professores. Como pesquisadores, temos podido acompanhar de perto a prática

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formadora que propomos e assim temos buscado analisar a voz docente que tem emergido durante o curso, bem como a medida da autoria dos sujeitos nesta voz. A voz docente está presente tanto nos momentos presenciais, nas aulas, em que temos buscado ajustar os procedimentos didáticos a uma sintonia menos universitária, mais próxima do que passamos a considerar um produtivo burburinho reflexivo, em que constatamos modos específicos dos docentes receberem as informações. Em situações de formação, palestras, seminários, oficinas e em nosso caso específico aulas, uma evidente observação é a de que o docente se permite pensar alto e conversar com seu par ao mesmo tempo em que o formador fala. Inicialmente, produziu-se em nós um estranhamento quanto a este comportamento mas, analisando-o com mais rigor, chegamos à conclusão que se trata de um comportamento específico, muito diferente do universitário, porém muito produtivo, pois trata-se de um espelhamento imediato, revela uma compreensão ativa, uma releitura do que está sendo apresentado em voz alta, e não leitura silenciosa, como seria a atitude leitora típica de universitários.

Além desta oralidade autorizada durante as aulas presenciais, nossas ações formativas propostas enfatizam também a produção textual escrita dos professores como um meio de construir a visibilidade da voz docente. Os modos escolhidos pelos formadores de solicitação aos professores que produzam textos escritos foram analisados por nós como fundamentais para que compreendêssemos este produto. Ao ler o que escreviam, em resposta ao que havia sido solicitado por nós como tarefa de avaliação da recepção dos conteúdos da formação, relíamos a qualidade de nossa consigna pois, freqüentemente, identificávamos vários tipos de estranhamentos, causados pela quebra de alguma expectativa universitária. Eles escreviam como docentes e nós não (re)conhecíamos esta escrita. Neste vaivém entre formadores e docentes, em que informações acadêmico-conceituais-universitárias são apresentadas, textos escritos são solicitados e produzem-se escritas tipicamente docentes. Tais acontecimentos têm nos instigado a produzir nós também textos reflexivos sobre estes estranhamentos, o que temos podido fazer dentro do próprio tempo da interlocução. Nestes registros escritos (relatos das observações das aulas dos cursos, registros de nossas reflexões e atas de nossas discussões),

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temos buscado compreender os sujeitos professores como nossos interlocutores, que através de oralidade e escrita expressam os moldes em que deve se dar uma formação. Em seguida, mostraremos alguns aspectos desta reflexão sobre o sujeito professor.

Em relatos de memórias de sua infância, por exemplo, em que focalizam a sua relação com a linguagem escrita, os retratos que traça o professor de si como criança permitem ressignificar as ações pedagógicas a que foi submetido. Pode-se observar nos relatos seu olhar docente crítico sobre as práticas pedagógicas escolares e sobre os processos de aprendizagem infantis de sua época. Ressalta-se desta observação com muita evidência sua subjetividade, pois fica claro nestes textos o seu olhar de professor. Ao se desenhar como personagem, ele revela perceber a dimensão do aluno que sofreu a experiência e apresenta esta última como um retrato de sua experiência daquele momento. Simultaneamente, apresenta a sua posição de autor, daquele que constrói através deste flash de memória uma crítica, a partir de um posicionamento do atual professor que é. Vejamos dois exemplos:

Estudei numa escola próxima a minha casa chamada N. Acho que tinha quatro anos. Lembro-me que a professora contava histórias e as crianças desenhavam, utilizavam a pintura com guache, brincavam com massinha. Havia cantinhos com brinquedos na sala, jogos para construção, cantinho de boneca, aula de música. (...) Lá havia apresentação no auditório onde as crianças tinham que recitar versinhos e dramatizar para os pais (eu odiava), ficava nervosa, esquecia a fala ou repetia o texto sem entender, feito um papagaio. (...) (Professora-aluna de um curso de formação continuada na universidade) [grifos nossos]

Fiz todo jardim de infância em um colégio pequeno e aconchegante, no bairro em que meus avós moravam. Lá aprendi a escrever o nome, alguns numerais e essas coisas que eram exigidas na década de 70. (Professora-aluna de um curso de formação continuada na universidade) [grifos nossos].

Vemos se destacar destes dois trechos um olhar crítico sobre o que é descrito. Na vivência descrita pelos professores, além da evidente emoção provocada pela descrição bruta de trechos de sua memória, há um caráter argumentativo, de defesa ou crítica ao que foi feito com esta. Um olhar docente tal como este foi encontrado em quase todas as escritas de memórias, revelando o sujeito professor.

Este aluno-professor-formado que se revela um sujeito ativo e reflexivo, permite pensar o quão se torna fundamental que nós formadores nos perguntemos quem é nosso aluno,

3 Grifo meu.

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3 Grifo meu.

o professor, quando recebe, no espaço da formação, as informações por nós selecionadas para lhe formar. Este sujeito ativo, parte de que pressupostos para ali estar? Sua atividade discente, de aprendizagem, se constitui de que elementos? Ora, o professor é um profissional que convive cotidianamente com a dinamicidade das transformações que se operam pelas aprendizagens de seus alunos. O ofício docente tem por principal tarefa a constante busca de formas novas alternativas e inovadoras para que a aprendizagem se dê. O foco na aprendizagem é sua principal preocupação, o que faz com que sua profissão tenha por especificidade a intimidade com os processos discentes diante do objeto de conhecimento. Dentre todos os profissionais, pode-se talvez considerar que ele seja dos mais aptos à formação, a estar aberto à busca do novo, para ser transformador. Pode-se considerar que ele possa fazer a ponte, espelhando-se no que deseja que ocorra para seu aluno focalize-se a si mesmo, e se pense para poder aprender. Teríamos aí a rica possibilidade de uma formação ativa, do lado discente, supondo que por pensar constantemente a aprendizagem de seus alunos, ele está mais próximo de se inscrever ele mesmo em sua trajetória de aprendizagem.

É desta particularidade que devemos tirar modelos de formação. Se temos percebido que o professor gosta de se sentir visitado, em formação, que gosta de falar de sua prática, que há efetivamente esta sua necessidade de falar, devemos considerar e conjecturar sobre os porquês. Parece-nos que sua atitude espontânea tem sido a de ao sentir que os conhecimentos desembarcaram-lhe, foram entregues em sua ilha, ele começa imediatamente a desembrulhá-los e arrumá-los nas prateleiras que já possui, de sua casa (ilha) escola(r). Os conhecimentos então caem sob o crivo de seu olhar de sujeito ativo singularmente marcado pela profissão. E é este conhecimento assim olhado que deveríamos considerar.

Nosso olhar sobre os conhecimentos científicos não pode ser cruamente o olhar universitário. Ele deve receber uma camada do olhar que somente pode ser do professor.

Os caminhos pela formação universitária

Nos movimentos docentes relacionados a sua aprendi-zagem em formação, temos podido observar dois perfis:

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• atitude de diálogo com os saberes universitários. Vemos então alguns embates, questionamentos e desafios. Cada conhecimento disciplinar sobre a língua que é apresentado é imediatamente passado pelo crivo da prática docente;

• a procura pela pesquisa, a identificação imediata com o saber universitário, a decisão de se inscrever ou se preparar para um mestrado ou um curso de pós-graduação lato sensu.

É preciso notar que na segunda atitude acima descrita, o que ocorre é a saída dos professores de sua posição docente, em direção a outra posição, a de pesquisadores. Ora, ela não está em coerência com o que foi identificado como movimento espontâneo dos docentes em busca autônoma do conhecimento. Tampouco seria coerente com a formação continuada planejada de acordo com os princípios descritos ter por resultado a migração de professores para outro campo. Seria objetivo da formação dar visibilidade aos embates resultantes de constrastes entre modos de conceber os objetos de conhecimento, para tomá-los como efetivos desafios e haver como sua resposta a proposição de saídas para as dificuldades, a provocação de novas reflexões sobre a prática docente.

Dentre os eixos universitários de modalidades de trabalho, isto é, os da pesquisa, do ensino ou da extensão, ao caso da formação continuada, o último dos três revela-se como mais ajustadamente adaptado. A pesquisa funciona como fonte de conhecimentos disciplinares, no ensino (profissional no caso) os conhecimentos da pesquisa são didatizados e é finalmente na extensão que se criam os desafios da utilização, da funcionalidade, da aplicação possível dos conhecimentos do primeiro eixo.

Vemos assim se equacionarem de forma harmônica as três dimensões aqui analisadas:

Formação DocenteContinuada

Concepção Dialógica de Linguagem

ExtensãoUniversitária

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Conclusões sobre o letramento profissional docente

O que pudemos concluir a partir das reflexões acima expostas relativas ao processo instaurado no contexto de interlocução do curso de extensão de formação continuada é que as experiências docentes relacionadas à leitura e à escrita podem ser valorizadas no espaço da formação, e isto pode se dar de duas formas, ambas potencialmente produtivas. Primeiramente, como conteúdo a ser refletido, através de um trabalho didático focalizado na construção conceitual dos processos de leitura e de escrita a serem instaurados na escola. Trata-se de um trabalho de aprendizagem sobre a linguagem. Em segundo lugar, como forma, nos momentos em que os formadores solicitam textos a seus alunos-professores, o trabalho a leitura e a escrita podem ser constantemente revistos numa interlocução entre produtores-autores de texto e formadores-leitores, em que cabe a estes últimos devolver as observações-impressões de leitura destes textos aos seus autores. Este eixo de ação didática centra-se na linguagem como trabalho. O trabalho de formação inclui, simultânea e imbricadamente à apresentação de conteúdos teóricos, a ação constante de ler os textos dos professores-alunos e muito provavelmente surpreender-se com eles, avaliando as surpresas sempre na medida de poder devolver estas impressões e programar junto com o autor dos textos intervenções sobre a sua primeira produção.

Através da leitura dos textos produzidos, vimos aparecer práticas familiares e escolares de leitura, histórias individuais de leitores, registradas nos textos em que focalizaram suas próprias memórias. Vimos professores escrevendo como professores e decepcionando a expectativa dos formadores, num primeiro momento. Vimos também a oportunidade de aprimorarem sua experiência como produtores-autores de textos. A explicitação de sua relação com a linguagem, sua posterior abordagem e resgate, tornaram-se ferramentas práticas de reflexão-formação. A fórmula aqui testada e proposta como eficaz pode se resumir pela equação de que em se usando a ferramenta da linguagem, a experiência do uso permite que se compreenda melhor sobre a linguagem e assim fertiliza-se o campo de compreensão da linguagem enquanto

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conceito. Somente a partir de uma compreensão efetivamente conceitual que é resultado da experiência poder-se-á esperar que os professores passem a considerar a escrita e leitura de seus alunos como linguagem efetiva, constitutiva de sujeitos.

Consideramos que tais procedimentos planejados para a formação docente permitem-nos pensar numa construção de trajetórias de letramento docente. Se queremos formar alunos leitores na escola básica, é preciso considerar processos possíveis para os professores se verem antes como produtores de linguagem: leitores, escritores, escribas, autores, revisores e tantas outras posições possíveis. Concordamos com Cecília Goulart (ao se referir a alunos) é ter em vista que:

A formação destes sujeitos estaria intimamente relacionada à construção da autoria e da cidadania, na medida em que associamos estas condições à condição letrada, isto é, à inclusão e participação efetivas dos sujeitos no tecido social que se constitui com apropriação da chamada variedade padrão da língua e da linguagem escrita. Nesta perspectiva, sugerimos a noção de letramento como horizonte ético-político para a ação pedagógica nos espaços educativos. (GOULART, 2005:3)

Trabalhar os conhecimentos sobre a linguagem no âmbito da formação de professores de língua na dimensão do letramento docente permite portanto pressupor que se pode partir de fios ideológicos constitutivos da identidade do docente brasileiro, no contexto histórico e político educacional em que vivem seu cotidiano escolar. Dar acesso a esta voz e em seguida dar-lhe escuta, para dar visibilidade a estes fios. É neste cenário assim tecido que se inscreve a formação a ser planejada pelos formadores, para que esta venha a se constituir como acontecimento enunciativo.

Referências ANDRADE “Escrita, leitura e literatura na escola: professores em formação” Projeto de Pesquisa inscrito no Sigma/UFRJ, 2006.

ANDRADE Professores leitores e sua formação Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem São Paulo: Hucitec, 1992.

GOULART, Cecília “Letramento e modos de ser letrado: discutindo a base teórico-metodológica do estudo” trabalho apresentado na Anped, 2005.

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KLEIMAN, A. (org.) “Letramento e formação do professor: quais as práticas e exigências no local de trabalho?” in KLEIMAN, A. (org.) A formação do professor – perspectivas da lingüística aplicada Campinas, SP: Mercado de Letras 2001.

SIGNORINI, I. “A interação universitário/alfabetizador em programas de formação em serviço: ação entre díspares ou comunicação entre pares?” in Kleiman, A. e Signorini, I. (orgs.) O ensino e a formação do professor Porto Alegre, Artmed, 2000.

TARDIF, M. et allii. “Os professores face ao saber; esboço de uma problemática do saber docente”. Teoria & Educação, n. 4, p. 215-234, 1991.

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Para ler a narrativa literária

Márcia Helena Saldanha Barbosa*

Ao longo de sua existência, nas experiências cotidianas, inúmeras são as situações em que o ser humano assume a condição de narrador, para contar a outra(s) pessoa(s) uma história que vivenciou, como protagonista ou como personagem secundária, ou, ainda, um fato que lhe foi relatado por terceiros. E, uma vez na posição de narrador, o sujeito confere às ações uma determinada ordem, interligando-as, além de localizá-las no tempo, no espaço, e de apresentar as personagens envolvidas na história, mostrando a trama que entre elas se estabelece.

O modo como lida com todos esses elementos, por um lado, revela o distanciamento, ou não, e a perspectiva daquele que narra em relação aos fatos relatados; por outro lado, permite entrever o(s) interesse(s) do enunciador, no que se refere ao efeito ou à reação que ele pretende provocar em seu interlocutor. Esse interesse pode ser, simplesmente, o de despertar e manter a atenção de quem ouve, ou, então, o de sensibilizar esse indivíduo, conquistar sua cumplicidade e convencê-lo a adotar determinada atitude diante do caso que é narrado.

Quando não é no papel de narrador, lançando mão de estratégias narrativas, é no de ouvinte, procurando decifrar tais estratégias, que as pessoas participam desse jogo. Em geral, os indivíduos, em seu dia-a-dia, desempenham esses papéis de forma alternada. Ora, se essa situação é tão familiar e corriqueira no cotidiano, por que a análise e interpretação de textos de caráter narrativo, não raro, surgem para os alunos como um obstáculo, aparentemente, instransponível? O mais

* Doutora em Teoria da Literatura e professora do Programa de Pós-Graduação em Letras pela UPF.

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Márcia Helena Saldanha Barbosa

estranho é que não estão imunes a essa sensação aqueles que, fora da escola, já se dedicavam, e com satisfação, à leitura da narrativa literária. Esses, na sala de aula, sentem-se, muitas vezes, entediados e desapontados, como se houvessem desaprendido a ler, como se o contato com o texto literário não pudesse mais proporcionar-lhes qualquer tipo de prazer ou como se a literatura não fosse aquilo que, um dia, imaginaram.

Esse afastamento dos alunos em relação à narrativa literária torna-se compreensível e, até mesmo, previsível, quando se considera aquilo que, em grande medida, ainda continua ocorrendo no ambiente escolar. Pensando particularmente nas obras literárias de caráter narrativo, convém lembrar que, na sala de aula, de maneira geral, não são nem ao menos mencionadas as semelhanças existentes entre a intriga exposta nesses textos e as tramas que, na vida real, cada um constrói quando, por algum motivo, deseja contar um fato a alguém. É verdade que, de tão óbvias que são, essas semelhanças talvez não precisassem sequer ser explicitadas, se a narrativa literária fosse abordada de forma tal que permitisse ao aluno intuir a referida proximidade entre universo ficcional e realidade. Entretanto, em diversas ocasiões, essa via de acesso ao texto é inviabilizada pela abordagem de que este é objeto.

Não é exagero afirmar que a trama tão bem urdida pelo escritor se desfaz aos olhos dos estudantes, quando não é percebida – ou quando é desprezada – por aqueles que deveriam exercer a função de mediadores de leitura. Marisa Lajolo (1993, p. 41-51), ao refletir sobre o uso que a escola costuma fazer da poesia, explica que a literariedade, presente na obra em estado latente, depende, para se atualizar, “de certa interação do texto com cada um de seus leitores”. Faz-se necessário, conforme a ensaísta, que “a leitura se configure como literária para o leitor”. Assim, tendo em vista os pré-requisitos destacados por Lajolo para que a leitura de poesia se torne, de fato, uma “experiência poética”, é possível considerar que a percepção e o reconhecimento dos elementos peculiares à narrativa literária são imprescindíveis para que esta seja lida como tal.1

1 Para uma visão panorâmica acerca dos elementos que compõem a narrativa literária, consultar REIS (1995).

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Para ler a narrativa literária

Se em sala de aula, raramente, esse tipo de leitura tem lugar, é porque os alunos, com freqüência, são instruídos a classificar o(s) narrador(es) e as personagens, a identificar o tempo e o espaço da ação, a dividir o texto em unidades seqüenciais, observando, de forma isolada, cada um desses aspectos. Desse modo, a trama se desmancha, se desestrutura. Perde-se de vista que, na narrativa literária, não há apenas um encadeamento das ações que compõem a história, mas, também, uma conexão entre todos os elementos do texto.

Perceber esse encadeamento e essa conexão e propiciar que os estudantes os reconheçam parece ser o procedimento adequado quando se trata de estimular uma leitura em que as potencialidades da narrativa literária se concretizem, ou em que a trama se atualize por meio da interação do leitor com o texto. A necessidade de ver o texto como um todo – lição que, na prática, é tão repetida quanto ignorada – é o que se procurará demonstrar a seguir, mediante a análise do conto

“Pai contra mãe”. A narrativa em questão, de autoria de Machado de Assis,

foi publicada em Relíquias da casa velha (1906). No início do conto,2 o narrador convoca expressamente o narratário – por intermédio do qual pode atingir o leitor real –, a fim de situá-lo, fornecendo-lhe informações relativas ao contexto da época em que transcorre a ação a ser relatada:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. [...]

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. [...]Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro

2 Todas as citações de “Pai contra mãe” foram retiradas da seguinte edição: Machado de Assis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2. p. 659-667.

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por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: “gratificar-se-á generosamente”

– ou “receberá uma boa gratificação” (p. 659).

Feitos os esclarecimentos preliminares, o narrador conclui que “pegar escravos fugidos era um ofício do tempo”, um ofício que “não seria nobre”, mas que, “por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras”. Além disso, alerta para o fato de que “ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo”; os fatores que impulsionavam um homem a adotá-lo eram os seguintes: “a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via” (p. 659-660). Cabe observar que esta última alusão – ao “gosto de servir também, ainda que por outra via” – é carregada de ironia, como sói acontecer nos relatos de Machado de Assis, e sugere que o homem que se dedicava ao ofício de apanhar escravos era, ele próprio, por opção, uma espécie de escravo.

Tal é o trabalho a que recorre Cândido das Neves, Candinho para os familiares, depois de desistir de vários empregos que “não agüentava”, pois “carecia de estabilidade” (p. 660). A situação se agrava quando Candinho casa-se com Clara, moça órfã, que morava e cosia com a tia, Mônica. Clara logo engravida, e os lucros do marido, que passa a enfrentar concorrentes na “caçada” aos negros fugidos, começam a escassear, enquanto as dívidas aumentam. Quando Clara chega à “última semana do derradeiro mês de gravidez”, tia Mônica, vendo que também a comida passa a rarear, aconselha o casal a levar a criança que nascesse à Roda dos Enjeitados, pois, assim, ela seria bem criada e não viveria à míngua. A princípio, os futuros pais recusam a “solução” sugerida pela tia; em seguida, contudo, a situação se torna mais difícil. Eles são despejados da casa que alugam, por falta de pagamento, e vão morar, os três, nos quartos baixos da casa de uma senhora velha e rica, que faz esse empréstimo à tia Mônica.

Dois dias depois da mudança, nasce a criança, trazendo ao pai uma alegria enorme e uma tristeza, igualmente, imensa. Tia Mônica prontifica-se a levá-la à Roda dos Enjeitados, porém, como chove, Candinho vale-se dessa circunstância para ganhar tempo: promete desfazer-se do filho na noite seguinte. De manhã, vai em busca de uma escrava fugida pela qual era oferecida a maior gratificação, cem mil-réis, mas não a

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encontra. Então, após cogitar “mil modos de ficar com o filho”, nenhum deles viável, obriga-se a cumprir a promessa que fizera. Sai de casa com o filho nos braços, porém o sofrimento afrouxa-lhe o passo e determina a sua decisão de entregar a criança “o mais tarde que puder”. Assim, desvia-se da rua que o conduziria à Roda, entrando por um dos becos, ao final do qual avista a mulata fugida, de nome Arminda. Deixa o filho aos cuidados do dono de uma farmácia e segue a escrava até alcançá-la, atando-lhe os pulsos com um pedaço de corda. Ela suplica que ele a solte “pelo amor de Deus”:

– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! (p. 666).

Candinho não cede aos apelos, nem mesmo quando a mulher alega que o seu senhor era muito mau e que lhe mandaria dar açoites, um castigo que se tornaria ainda mais penoso no estado em que ela estava. Sem complacência, Candinho responde: “Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?” (p. 666). Note-se que tal afirmação soa como uma ironia, pois parte, justamente, de alguém que também fizera filhos e fugira depois. Premido pelas circunstâncias, Candinho fugira, primeiro, da responsabilidade de criar o filho; posteriormente, levado pela dor de separar-se daquele que amava, fugira da própria decisão de entregá-lo à Roda e, logo em seguida, fugira da criança, ainda que por algumas horas, deixando-a na farmácia, à espera dele, detalhe lembrado, nessa passagem, pelo próprio narrador.

O fato de viver, sob vários aspectos, uma situação semelhante à da escrava não estimula Candinho a mudar de atitude. Após muita luta entre ambos e uma última súplica por parte de Arminda, Candinho entrega a escrava ao seu senhor e ganha a gratificação prometida. Arminda, enfraquecida pelo medo e pela dor, no chão onde se encontra, ainda tenta lutar, mas acaba abortando, e o seu filho “entra sem vida neste mundo”. Candinho, “sem querer conhecer as conseqüências do desastre”, corre à farmácia e, lá chegando

– nova ironia –, o acaso prega uma peça àquele que havia afastado, definitivamente, a escrava de seu filho: ele encontra o farmacêutico sozinho, sem a criança que lhe havia sido entregue. Antes de esganá-lo, Candinho é informado de que

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a criança está “lá dentro” com a família do homem. De volta à casa em que mora de favor, Candinho é bem recebido, mesmo não tendo cumprido a promessa de desfazer-se do filho, uma vez que traz consigo cem mil-réis. Tia Mônica diz algumas palavras contra a escravidão, que havia motivado o aborto e a fuga. Todavia, a reação de Candinho contraria a atitude da tia de sua esposa:

Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração (p. 667).

Ainda que Arminda não tenha existido, é mediante a sua história que o cotidiano dos escravos é inventado, ou imaginado, e ressurge em imagens vívidas. A ação apresentada pelo texto adquire uma aparência de real, o que propicia aos leitores “a dor do espetáculo” ou o espetáculo da dor. Então, por obra da narrativa de Machado de Assis, o sofrimento humano deixa de ser apenas pensado em suas causas e conseqüências, ou transformado em datas e cifras, para ser visto, ouvido e sentido. Por isso, a expressão antes mencionada é repetida pelo próprio narrador, com variações, em duas ocasiões diferentes: na primeira, Candinho vê o filho que aguarda o momento de ser levado à Roda dos Enjeitados e mal consegue esconder “a dor do espetáculo”; na segunda, tem-se a passagem relativa ao aborto de Arminda, quando se afirma que o caçador de escravos “viu todo esse espetáculo”.

Desse modo, o narratário é convidado a assistir a tais cenas – convite que é, indiretamente, estendido ao leitor – e a sensibilizar-se com aquilo que é contado. O passado, assim imaginado, presentifica-se, torna-se palpável e infenso à desumanização. Essa oportunidade concedida a ambos

– narrador e narratário – vem confirmar a convocação feita ao segundo por parte do primeiro no início do conto: “O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai3 uma coleira grossa [...]” (p. 659 - grifo nosso).

Constata-se, ainda, que o texto literário em questão alerta para a naturalização da história e ajuda, até mesmo, a desmontar esse processo de naturalização. A frase dita por Candinho – “Nem todas as crianças vingam” – leva a pensar que a morte do filho de Arminda é obra de Deus ou fruto do acaso, constituindo-se num fato da natureza, desprovido de causas sociais. Porém, o contraponto oferecido pela fala

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da tia Mônica – embora não reproduzida no relato e, ao que parece, destituída de qualquer vibração –, a qual condena a escravidão, e, sobretudo, pelas palavras do próprio narrador, ao longo do conto, impede que os acontecimentos imaginados, prováveis ou verossímeis, tendo em vista o contexto a que se referem, sejam privados de sua origem histórica.

O desaparecimento trágico do filho de Arminda ocorre não só porque Candinho, casualmente, se depara com a escrava ou porque, em virtude do egoísmo que o caracteriza

– a despeito do nome e do sobrenome que recebera, ambos associados à inocência, à pureza – e da situação em que se encontra, decide devolvê-la ao seu proprietário. A ação também se torna possível porque as personagens vivem, no tempo da ação, sob um sistema social que consagrara o ofício de caçar negros fugidos, os castigos corporais e a troca de seres humanos por dinheiro, além de “acorrentar” os brancos, ao despertar neles “o gosto de servir”. É esse sistema que coloca um pai contra uma mãe, como diz o título do conto.

O olhar irônico do narrador se contrapõe à naturalização de um fato que, embora particular, individual, possui caráter social e histórico. Esse olhar está expresso nos próprios nomes das ruas por onde Candinho circula atrás da escrava. A princípio, ele sai “a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar segundo o anúncio” (p. 665). Note-se que os nomes dessas duas últimas ruas expressam, exatamente, aquilo que Candinho e o sistema social negaram a Arminda: a experiência do parto, através do qual ela daria à luz um filho, e que é substituído por um aborto, provocado pelo sofrimento físico e psicológico; a ajuda de que necessitava para preservar sua liberdade e a vida da criança que esperava.

Observe-se, ainda, que é pela Rua do Ourives que Candinho arrasta a escrava, a fim de receber a gratificação, e que ele se dirige à Rua da Alfândega, onde reside o senhor de Arminda. Alfândega é a repartição pública encarregada de vistoriar bagagens e mercadorias em trânsito e cobrar os correspondentes direitos de entrada e saída, e é numa rua com esse nome que a escrava fugida é trocada por dinheiro, como se fosse uma mercadoria. É através dessa mesma rua que seu filho “entra neste mundo” – cruza a alfândega –, pagando com a vida pela fuga que a mãe empreendera, na tentativa de

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passar da escravidão à liberdade, e pela resistência que ela oferecera à prisão.

Se a escravidão não é obra de Deus ou do acaso, também não o é o relato ficcional ou histórico. É isso que o narrador evidencia quando se mostra no decorrer da narração e, simultaneamente, expõe ou exibe, aos olhos do narratário, e do próprio leitor, a construção da narrativa, como um processo que implica escolhas e decisões decorrentes dos valores, da posição, da sensibilidade e do julgamento de quem conta. Assim, o narrador machadiano distingue-se de outros tipos de narrador onisciente, que se escondem do destinatário, que desejam ser esquecidos e que, para isso, recorrem a uma espécie de ilusionismo: uma voz que parece ser divina, não ter dono nem origem, e que finge ser a expressão da verdade.

No fragmento abaixo, o narrador revela que todo relato pressupõe uma opção, uma vez que cabe àquele que toma a palavra selecionar os fatos e aspectos a serem destacados ou omitidos. Se há trechos em que o narrador convoca o narratário a ver “a dor do espetáculo” em detalhes, há outros momentos em que ele procede à elipse de tais cenas, instando seu interlocutor a imaginá-las:

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos (p. 663).

E o narrador dá continuidade a esse procedimento quando, nas linhas subseqüentes, reproduz a fala do protagonista:

– Não, Tia Mônica! Bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!Foi na última semana do derradeiro mês que Tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos Enjeitados.

Verifica-se aí o sentimento do narrador e/ou a consciência que ele tem de que, às vezes, não narrar, hesitar em fazê-lo ou dizer que não se vai contar algo pode ser um gesto mais eficaz do que relatar um fato, quando o que se pretende é avivar a imaginação do narratário e, assim, provocá-lo, sensibilizá-lo. Logo a seguir, o narrador mostra ao narratário que não decide somente quais eventos ou fenômenos devem ser comentados ou omitidos; ele lembra a seu interlocutor que também

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escolhe as palavras a serem empregadas no relato, além de adverti-lo, de maneira indireta, de que essas palavras não são usadas ingenuamente. Nos vocábulos estão inscritos juízos de valor e a opinião de quem fala, e isso comprova que nomear é muito mais do que designar a realidade; é um ato de constituí-la. Leia-se a frase abaixo, dita a respeito de tia Mônica:

Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor – crueldade, se preferes (p. 664).

O conto machadiano alerta para algo que parece óbvio, mas que deixa de sê-lo, e se oculta, justamente porque está sempre revelado, imerso na sua obviedade, sem solicitar, por si só, o distanciamento e a atenção dos indivíduos. É óbvio que a história é vivida por seres humanos e que a narração das histórias, as reais e as possíveis, é obra humana, mas, porque isso é óbvio, não é percebido. É aí que entra a literatura para dizer aos leitores que a história é a história dos seres humanos, contada de modo diverso por diferentes narradores. E a narrativa analisada diz isso direcionando o foco para o próprio narrador, que, por vezes, passa da terceira para a primeira pessoa do singular; lembrando que há alguém que decide o quê e como relatar, tornando visíveis os procedimentos narrativos; em resumo, recolocando os andaimes que são retirados depois de erigido o edifício.

Além disso, no conto, o afastamento do narrador em reação àquilo que conta promove a conversão desse universo em espetáculo e faz aparecer o drama encenado pelas personagens. Assim, o texto em questão convida o narratário e, conseqüentemente, o leitor a revisitarem o passado e realizarem um exercício que bem poderia ser descrito por meio das palavras do eu-lírico de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa:

Procuro despir-me do que aprendi,Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos [...]. (Pessoa, 1995, p. 226)

Ao que parece, a literatura pode auxiliar os seres humanos nesse processo, na medida em que oferece outras formas de “lembrar” e em que traz de volta o tempo pretérito através da reinvenção do cotidiano vivido. É isso o que ocorre com o texto de Machado de Assis aqui examinado. O conto projeta na tela da imaginação de cada um o espetáculo da dor,

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tornando palpáveis os dados abstratos, animando as análises com um sopro humano e restituindo aos fenômenos sociais a plurissignificação que lhes é inerente. Assim, a literatura raspa a “tinta” com que foram “pintados” os sentidos dos indivíduos, como queria Fernando Pessoa.

Os comentários feitos, sobre “Pai contra mãe” mostram que a percepção da onisciência do narrador e só o primeiro passo para a interpretação do texto. Não há como separar a figura do narrador dessa outra entidade ficcional que é o narratário. O isolamento desses dois elementos impediria, entre outras coisas, que fossem revelados a atitude e o posicionamento ideológico do narrador em relação aos eventos por ele relatados e à conduta das personagens que participam da história. Da mesma forma, ignorar que esse narrador exibe o próprio processo de construção da narrativa seria desprezar um componente fundamental do conto.

Por fim, é preciso salientar que, nesse conto, estão de tal modo intrincados os espaços, o destino das personagens, as seqüências narrativas e a opinião do narrador sobre a ação relatada, que só existe uma maneira de examinar, adequadamente, tais aspectos, sem desfazer a trama em que o texto se constitui: percebê-los em conjunto; verificar a articulação ou o arranjo de que foram objeto por parte do escritor. Portanto, investir no letramento, no que se refere à abordagem da narrativa literária, significa propor uma análise interpretativa do texto capaz de evidenciar a conjugação dos elementos que o integram e, ao mesmo tempo, de estimular o leitor a refletir sobre a história de seus semelhantes, ali reinventada, e sobre o seu próprio lugar no mundo.

Referências LAJOLO, Marisa. Poesia: uma frágil vítima da escola. In: __. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. p. 41-51.

MACHADO DE ASSIS. Pai contra mãe. In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2. p. 659-667. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

REIS, Carlos. A narrativa literária. In: _____. O conhecimento da literatura; introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 1995. p. 341-377.

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Letrar é preciso, alfabetizar não basta...mais?

Maria do Rosário Longo Mortatti*

Minha mãe achava estudoa coisa mais fina do mundo. Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.Adélia Prado

Quero ser livre.A esperança é um dever do sentimento.

Ricardo Reis

Explicação necessária

No livro Os sentidos da alfabetização (Mortatti, 2000) abordo a história do ensino da leitura e escrita na fase inicial de escolarização de crianças no Brasil, com ênfase na situação paulista, desde o final do século XIX até os dias atuais, e proponho a divisão desse movimento histórico em quatro momentos que considero cruciais, cada um deles marcado por um “novo” sentido atribuído à alfabetização.

Nas décadas que antecederam a proclamação da República brasileira, o ensino inicial da leitura e escrita já começava a se tornar objeto de preocupação de administradores públicos e intelectuais. Foi somente, porém, a partir da primeira década republicana que as práticas sociais de leitura e a escrita se tornaram práticas escolarizadas, submetidas a organização metódica, sistemática e intencional, porque consideradas estratégicas para a formação do cidadão e para o desenvolvimento social, de acordo com os ideais do regime republicano.

* Professora Livre-Docente em metodologia do Ensino de 1º Grau junto ao Departamento de Didática e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – Campus de Marília. Doutora em Educação – Metodologia do Ensino pela Faculdade de Educação (Unicamp).

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Maria do Rosário Longo Mortatti

De lá para cá, saber ler e escrever tornou-se o principal índice de medida e testagem da eficiência da escola pública, laica e gratuita. E, com diferentes finalidades, de diferentes formas e com diferentes conteúdos, visando enfrentar as dificuldades de nossas crianças em aprender a ler e escrever, para , assim, responder mais adequadamente a certas urgências políticas, sociais e culturais do país, diferentes sujeitos foram atribuindo diferentes sentidos ao ensino inicial da leitura e escrita. Resultantes de disputas que têm sua face mais visível na “querela dos métodos”, ou seja, na disputa em torno do método de ensino inicial da leitura (e escrita), considerado

“novo” e melhor, em relação ao “antigo” e “tradicional”, em cada momento histórico cada “novo” sentido se tornou hegemônico, porque oficial, mas não único, nem homogêneo, tampouco isento de resistências mediadas especialmente pela velada utilização de “antigos” métodos e práticas alfabetizadoras.

O primeiro momento (1876 a 1890) caracteriza-se pela disputa entre os partidários do “novo” método da palavração e os dos “antigos” métodos sintéticos (alfabético, fônico, silábico); o segundo momento (1890 a meados dos anos de 1920), pela disputa entre defensores do “novo” método analítico e os dos “antigos” métodos sintéticos; o terceiro momento (meados da década de 1920 a final da de 1970), pelas disputas entre defensores dos “antigos” métodos de alfabetização e os dos “novos” testes ABC para verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita, de que decorre a introdução dos “novos” métodos mistos; o quarto momento (meados de 1980 a 1994), pelas disputas entre os defensores da “nova” perspectiva construtivista e os dos “antigos” testes de maturidade e dos “antigos” métodos de alfabetização.

Como o ano de 1994 indica apenas o encerramento daquela pesquisa, uma vez que este quarto momento da história da alfabetização no Brasil se encontra ainda em curso, em livro posterior (Mortatti, 2004) apresentei um ensaio de continuidade da abordagem das características mais recentes desse momento, incluindo os principais aspectos envolvidos na introdução, em nosso país, do termo

“letramento”. E é à abordagem desses aspectos que objetivo dar continuidade neste artigo, por meio da problematização das seguintes questões: como o termo “letramento” dialoga com as características deste quarto momento crucial na história

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Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?

da alfabetização no Brasil, em especial com as perspectivas construtivista e interacionista em alfabetização? Por que se tornou preciso letrar? A alfabetização não basta mais? Por quê? Que alfabetização?

Três modelos explicativos

A partir de meados da década de 1980, em decorrência de certas urgências políticas, sociais e culturais em nosso país, passou-se a questionar, sistemática e oficialmente, o ensino inicial da leitura e escrita, já que nessa etapa de escolarização se concentra(va) a maioria da população brasileira que fracassa(va) na escola. Relacionadamente a esses questionamentos, a partir de então foram engendrados ou adotados por pesquisadores brasileiros pelo menos três modelos principais de explicação para os problemas da alfabetização no Brasil, os quais podem ser denominados, sinteticamente e por enquanto, de

“construtivismo”, “interacionismo” e “letramento”.

Embora motivados por constatações semelhantes e apresentando certos aspectos comuns entre si, trata-se de modelos explicativos diferentes, porque fundamentados em diferentes perspectivas teóricas, formulados por diferentes sujeitos, com diferentes finalidades sociais e políticas e que tiveram diferentes ritmos de implantação, em diferentes modos e lugares de circulação. Além de serem modelos diferentes, deve-se considerar que foram objeto de apropriações didático-pedagógicas também diferentes entre si, demandando, nesse nível, pensarmos em construtivismos, interacionismos e letramentos. Apesar de seu caráter plural e das diferenças entre eles, em certas apropriações, esses modelos vêm sendo

“conciliados” de maneira eclética e apresentados como se fossem homogêneos e complementares entre si e como se todos pudessem ser entendidos, de forma redutora, como correspondentes a três novos “métodos de ensino”. Apesar dessas diferenças, ainda, e das ecléticas propostas conciliatórias, é possível constatar, por um lado, mais divergências do que diferenças e semelhanças entre construtivismo e interacionismo, assim como entre construtivismo e letramento; e, por outro lado, mais semelhanças do que diferenças entre interacionismo e letramento.

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Maria do Rosário Longo Mortatti

O construtivismo

A partir de meados da década de 1980, no âmbito do que denominei “quarto momento na história da alfabetização no Brasil”, logrou hegemonia, por meio de sua oficialização, o modelo resultante da perspectiva construtivista em alfabetização, ou simplesmente “construtivismo”, como ficou conhecido.

Como se sabe, o construtivismo apresentou-se como uma “revolução conceitual” e decorre das pesquisas desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emilia Ferreiro e colaboradores, divulgadas entre nós principalmente por meio do livro Psicogênese da língua escrita (Ferreiro; Teberosky, 1985). Os resultados dessas pesquisas se propõem a explicar a psicogênese da língua escrita na criança, ou seja, a forma como a criança aprende a ler e a escrever. Esse processo de aquisição/aprendizagem é entendido como predominantemente individual, resultante da interação do sujeito cognoscente com o objeto de conhecimento (a língua escrita). Trata-se de uma mudança de paradigma que gerou sério impasse entre o questionamento da possibilidade do ensino da leitura e escrita e sua metodização e a ênfase no modo como a criança aprende a ler e a escrever, ou seja, como a criança se alfabetiza. Do ponto de vista do construtivismo, portanto, “alfabetização” designa a aquisição, por parte de crianças, da lectoescrita. Assim, pode ser considerado alfabetizado aquele que conseguiu compreender (construir para si o conhecimento) a base alfabética da língua escrita (no caso do português).

Essa nova perspectiva teórica veio justamente questionar as concepções até então defendidas e praticadas a respeito desse ensino, em particular as que se baseavam tanto na centralidade do ensino e, em decorrência, dos métodos e cartilhas de alfabetização, quanto nos resultados dos testes de maturidade para o aprendizado da leitura e escrita. E, diferentemente do que supunham muitos alfabetizadores principalmente nos anos iniciais da divulgação, entre nós, dos resultados dessas pesquisas, o construtivismo não pode e não pretende ser nem um novo método de ensino da leitura e escrita, nem, portanto, comporta uma nova didática da leitura e escrita.

³ Grifo meu.

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O interacionismo

Apesar de o construtivismo em alfabetização ter-se tornado oficial, outros estudos e pesquisas foram ganhando destaque, também a partir de meados dos anos de 1980, no Brasil, como ocorreu com os fundamentados no interacionismo lingüístico e na “psicologia soviética” e desenvolvidos pelos pesquisadores brasileiros João Wanderley Geraldi e Ana Luiza Smolka.1

Como se sabe, desse ponto de vista interacionista, “alfabetização” designa o processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita entendidas como atividade discursiva, ou seja, quando se ensina e se aprende a ler e a escrever, já se estão lendo e produzindo textos (escritos), de fato, e essas atividades dependem diretamente das “relações de ensino” que ocorrem na escola, especialmente entre professor e alunos. Desse ponto de vista, portanto, “alfabetizado” designa o estado ou condição daquele indivíduo que sabe ler e produzir textos, com finalidades que extrapolam a situação escolar e remetem às práticas sociais de leitura e escrita, algo próximo à leitura e escrita “do mundo”, conforme proposta pelo educador brasileiro Paulo Freire, no âmbito da alfabetização de jovens e adultos.

A perspectiva interacionista propõe, portanto, uma forma de compreender como se ensina e se aprende a língua escrita e comporta uma nova didática da leitura e escrita, centrada no texto e na qual se relacionam os diferentes aspectos envolvidos nesse processo discursivo: por que, para que, como, o quê, quando, onde, quem, com quem ensinar e aprender a língua escrita.

O letramentoAinda neste quarto momento da história da alfabetização

no Brasil, em meados da década de 1980, o termo “letramento” foi introduzido em nosso país, em estudos e pesquisas

3 Texto corrigido: Esse país que nós vivemos é uma calamidade, mas mesmo assim é bom de se viver e trabalhar, porque não falta dinheiro, mesmo sendo salário mínimo, mas dá para comprar as coisas devagarinho.

1 Embora Geraldi não trate especificamente da alfabetização, na coletânea O texto na sala de aula, por ele organizada e com primeira edição em 1984, são apresentadas propostas para o ensino de língua portuguesa do ponto de vista interacionista, as quais contribuíram significativamente para reflexões posteriores, por parte tanto de Geraldi quanto de outros pesquisadores, en-volvendo a alfabetização como processo inserido no âmbito do ensino da língua portuguesa. A esse respeito, ver especialmente Mortatti, 1999.

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acadêmicos, sob influência do inglês literacy, que, até a década de 1990, era aqui traduzido por “alfabetização” e, mais recentemente, também por “alfabetismo”.

Os primeiros registros de uso do termo “letramento” no Brasil são creditados a: Mary Kato (1986), que o utiliza para salientar aspectos de ordem psicolingüística envolvidos na aprendizagem da linguagem, em especial sua aprendizagem escolar, por parte de crianças, e Leda Tfouni (1988), que estabelece um sentido para o termo, centrado nas práticas sociais de leitura e escrita e nas mudanças por elas geradas numa sociedade quando esta se torna letrada. Mas o termo passou a ser usado mais sistemática e extensivamente na década de 1990, a partir de publicações de Tfouni (1995), Kleiman (1995) e Soares (1995).

Além das constatações já mencionadas relativamente a meados dos anos de 1980, a posterior disseminação do termo “letramento” somente começou a ser possível quando novos fatos, como a condição de alfabetizado e a extensão da escolarização básica, começaram a se tornar visíveis, gerando novas idéias e novas maneiras de compreender os fenômenos envolvidos. Essas novas formas de compreensão apontaram para o esgotamento das possibilidades de o termo

“alfabetização” designar algo mais do que a “mera” aquisição inicial da técnica ou habilidade de leitura e escrita, ou seja, para designar a condição de pessoas ou grupos que não apenas sabem ler e escrever mas também utilizam a leitura e a escrita e seus usos e funções sociais, incorporando-as em seu viver e transformando, por isso, sua condição (Soares, 1995).

Inicialmente restrita ao âmbito dos estudos e pesquisas acadêmicos, a palavra “letramento” teve seu uso disseminado a partir de meados dos anos de 1990; já se encontra registrada num dicionário geral e em dois dicionários de lingüística, estando “popularizada” entre gestores, educadores e alfabetizadores, como se verifica, por exemplo, em títulos de cartilhas ou livros de alfabetização e de material para formação continuada de professores publicados nos últimos anos.

Entretanto, ainda não se abandonou “alfabetização” nem se criou consenso sobre o uso de “letramento”. Embora o letramento não seja conseqüência natural e direta da alfabetização, nem se restrinja aos resultados da aprendizagem inicial da leitura e escrita, e embora a escola não seja a único lugar em que pode ocorrer essa aprendizagem, o fato

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de, atualmente, no Brasil, o termo “letramento” já estar incorporado em discursos e práticas relativas ao ensino e aprendizagem da leitura e escrita na fase inicial de escolarização de crianças, impõe-se a necessidade de considerar tanto a relação de interdependência e indissociabilidade entre letrar e alfabetizar quanto as possíveis distinções entre letramento escolar e letramento social Tais relação e distinção vêm sendo apontadas como necessárias, uma vez que, como um conjunto de habilidades e conhecimentos específicos, a leitura e a escrita precisam ser ensinadas e aprendidas, e a escola continua sendo, neste país, uma das agências privilegiadamente responsáveis por esse processo de ensino-aprendizagem.

Talvez por essa razão, o fato de o termo “letramento” já se encontrar hoje bastante disseminado não implica coincidência de significados no que se refere a conceitos e correspondentes práticas pedagógicas, tampouco, implica estarem suficientemente esclarecidas as relações entre alfabetização e letramento. Para alguns, “letramento” deve substituir, definitivamente, “alfabetização”, ou se deve optar por um ou outro termo; para outros, trata-se de denominações distintas de duas etapas distintas e seqüenciais, devendo-se, primeiramente, alfabetizar para, depois, letrar; para outros, ainda, trata-se de alfabetizar, letrando, como dois momentos diferentes, mas complementares e simultâneos, no ensino-aprendizagem inicial da leitura e escrita.

Possíveis relações entre construtivismo, interacionismo e letramento (escolar)

Apesar das diferentes teorias do conhecimento subjacentes ao construtivismo, ao interacionismo e ao letramento e de suas diferentes implicações para a prática pedagógica, dada a relativa simultaneidade cronológica de introdução desses modelos nas pesquisas e propostas sobre alfabetização no Brasil, em certas apropriações que deles se fizeram e se divulgaram – como, por exemplo, as apresentadas nos documentos e orientações oficiais e operantes nas práticas docentes de alfabetizadores no Brasil –, buscou-se “conciliar” construtivismo e interacionismo, acrescentando-se, mais recentemente, o letramento. Dessas apropriações resulta um tipo muito eclético de opção didático-pedagógica, que pode

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ser assim formulada: no processo de alfabetização escolar, devem-se respeitar as “fases” de construção, pela criança, do conhecimento sobre a língua escrita, mediante “trabalho com textos”, para se atingir o objetivo de “letrar”’.

Considero, porém, que construtivismo e interacionismo não podem ser conciliados se se considerarem, rigorosamente, as teorias do conhecimento subjacentes a cada uma dessas perspectivas e suas relações com a prática pedagógica em alfabetização. Considero, ainda, que essa conciliação, característica das apropriações como as mencionadas acima, vem se mostrando pouco produtiva para alfabetizandos e para alfabetizadores.

Se o objetivo é desenvolver uma atividade didática coerente e responsável, no sentido de os alfabetizadores poderem se responsabilizar e responder por ela, trata-se de escolherem entre uma ou outra perspectiva. Se fizerem opção pela perspectiva interacionista, é incompatível conduzir sua atividade de ensino com base no que o construtivismo propõe a respeito da psicogênese da língua escrita, a saber: a aprendizagem resulta da construção, por parte da criança, do conhecimento sobre a leitura e a escrita, na interação com esse objeto de conhecimento (a língua escrita). A construção desse conhecimento ocorre de acordo com certas etapas, seguindo um processo de desenvolvimento de estruturas cognitivas que a criança “possui naturalmente”, sem depender de intervenções de ensino e de condições socioculturais.

Diferentemente, na perspectiva interacionista se considera que o processo de aprendizagem do sujeito depende essencialmente da interação com o “outro” e, sobretudo, das

“relações de ensino”, no caso da aprendizagem escolar. Trata-se, assim, de um processo social, porque acontece entre sujeitos, em situações reais de interlocução, nas quais a linguagem/língua tem função constitutiva, constituidora e mediadora. Quando se aprende a língua materna, já na modalidade oral e desde antes da alfabetização escolar, aprendem-se certos modos de pensar, sentir, querer e agir, que interferem no desenvolvimento de certas estruturas cognitivas dos sujeitos, propiciando-lhes produzir significados e sentidos para si, para o mundo e para a linguagem/língua. Esses significados e sentidos não estão “prontos”, mas dependem da aprendizagem na interação com muitos outros sujeitos. Essa é uma diferença que considero fundamental: o lugar da linguagem/língua e

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do “outro” no processo de desenvolvimento cognitivo e de aprendizagem escolar da língua escrita por parte do aluno (sujeito social e histórico). Esses são aspectos que a perspectiva construtivista não pode considerar como determinantes e essenciais, porque não “cabem” nessa teoria.

Devo lembrar, porém, que trato aqui de perspectivas relativamente objetivas e definidas no nível teórico, pois, no nível das apropriações didático-pedagógicas e mesmo em inúmeras pesquisas acadêmicas, dificilmente se constatam ocorrências e aplicações “puras” de uma ou outra perspectiva teórica; e que, além do construtivismo e do interacionismo, podem-se ainda observar, nas práticas alfabetizadoras, atividades didáticas baseadas nos “antigos” métodos de alfabetização: sintéticos, analíticos e mistos.

Trata-se, portanto, de fenômenos complexos, o que impede que o termo “alfabetização” tenha um sentido único. Por essa razão, o fato de se considerar que a introdução do termo/conceito “letramento” decorre também da constatação do esgotamento das possibilidades explicativas do termo/conceito

“alfabetização” demanda que se defina a qual sentido de “alfabetização” se refere essa constatação e, conseqüentemente, que se pense também em “alfabetizações”.

A idéia de esgotamento pode ser aplicada, por exemplo: à concepção de alfabetização subjacente aos “antigos” métodos sintéticos (alfabético, fônico, silábico) e analíticos (palavração, sentenciação, da “historieta”),2 entendida, portanto, como o ensino e aprendizagem de uma técnica ou habilidade como pré-requisito para o ler e escrever textos, de fato, característicos daqueles mencionados usos e funções sociais da língua escrita; ou à concepção de alfabetização decorrente do construtivismo, cujas principais características já expus. É em relação a concepções como essas que talvez se justifique a posição dos que defendem seja a substituição de “alfabetização” por “letramento”, seja a opção por um em detrimento do outro termo, seja a aplicação desses termos para designar duas etapas escolares distintas e seqüenciais, seja, ainda, a concomitância do “alfabetizar, letrando”

O mesmo, porém, não se pode aplicar à concepção de alfabetização como atividade discursiva, característica do

2 Para explicações detalhadas sobre esses métodos de ensino da leitura e escri-ta e suas concretizações no Brasil, ver especialmente Mortatti, 2000.

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modelo interacionista. Conforme também já expus, desse ponto de vista, quando se ensina e se aprende a ler e a escrever, já se estão lendo e produzindo textos (escritos), de fato, e essas atividades dependem diretamente das “relações de ensino” que ocorrem na escola, especialmente entre professor e alunos. Desse ponto de vista, portanto, “alfabetizado” designa o estado ou condição daquele indivíduo que sabe ler e produzir textos, com finalidades que extrapolam a situação escolar e remetem às práticas sociais de leitura e escrita.3

Relativamente à concepção interacionista de alfabetização, por isso, não cabe, pensar em esgotamento de suas possibilidades explicativas, até porque nem chegou a se tornar oficial, com utilização, se não em todas, pelo menos na maioria das escolas públicas brasileiras. E a essa concepção, portanto, não cabe exatamente contrapor o termo/conceito

“letramento”, em especial o de “letramento escolar”, o que, se ocorresse rigorosamente, implicaria concluir que se trata de modelos explicativos com muitas semelhanças entre si.

Qual alfabetização? Qual letramento?

Por estarem ainda em curso, as características deste quarto momento da história da alfabetização no Brasil, conforme as apresentei até aqui, indicam apenas as limitadas possibilidades de sua apreensão “no calor da hora”, impedindo conclusões definitivas. De qualquer modo, pensar sobre o presente é também uma forma de nele interferir, ao mesmo tempo em que se constata que o presente somente se deixa apreender como um passado recentíssimo que é, de fato.

A despeito dos diferentes modos de olhar e apreender este presente do ensino e aprendizagem da leitura e escrita em nosso país, porém, é ainda necessário perguntar a que alfabetização e a que letramento se referem as afirmações:

“alfabetizar não basta mais; é preciso (também) letrar”. Uma nova denominação, um novo esforço de mudança

de situação indesejada? Mudar para “letramento” pode significar apenas atribuir nova denominação a “antigos”

3 Nesse sentido, trata-se de concepção próxima à de “leitura (e escrita) do mundo”, conforme proposta do educador brasileiro Paulo Freire, no âmbito da alfabetização de jovens e adultos.

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modelos e práticas didático-pedagógicas, como nos ensinam muitos exemplos históricos. Mas pode também significar uma nova denominação, cuja função principal é trazer ao centro da cena algo que, embora antigo, é novo, porque ainda espera seu lugar.

Esse é o caso da perspectiva interacionista, que defendo como a que pode propiciar melhores e mais consistentes explicações e propostas para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa, processo que se estende ao longo da educação básica e no qual se insere, como uma etapa integrante, o ensino (inicial, do ponto de vista “cronológico”) da leitura e escrita, ou alfabetização.

Com base na perspectiva interacionista, é possível pensar em sentidos relativamente coincidentes para alfabetização e letramento, porque, dessa perspectiva, o texto é a “concretude” da língua e a “materialização” do discurso. Ler e escrever, ensinar e aprender a ler e escrever demandam tomar o texto como unidade de sentido e, portanto, como objeto de ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo em que como mediador desse processo. Mas trata-se aqui de texto entendido como

“configuração textual”, ou seja, como

o conjunto de aspectos constitutivos de determinado texto, os quais se referem: às opções temático-conteudísticas (o quê?) e estruturais-formais (como?), projetadas por um determinado sujeito (quem?), que se apresenta como autor de um discurso produzido de determinado ponto de vista e lugar social (de onde?) e momento histórico (quando?), movido por certas necessidades (por quê?) e propósitos (para quê?), visando a determinado efeito em determinado tipo de leitor (para quem?) e logrando determinado tipo de circulação, utilização e repercussão. É, portanto, a análise integrada desses aspectos que propicia ao investigador: reconhecer e interrogar determinado texto como configuração “saturada de agoras’’ e “objeto singular e vigoroso” e dele produzir uma leitura possível e autorizada, a partir de seus próprios objetivos, necessidades e interesses (Mortatti, 2000, p. 1).4

Porque a configuração textual é o mapa “que guarda sangue e tesouros” (Prado, 1991), é a certeza de que existe um território de destino, o sentido – “esse elemento de liberdade que transpassa a necessidade”, esse elemento constitutivo do

4 Para uma expansão do conceito de configuração textual e sua relevância para a análise e interpretação de material discursivo, ver especialmente Magnani, 1993; Mortatti, 2000.

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diálogo, que permite responder a perguntas (Todorov, 2003) – e as possibilidades de sua interpretação como exercício de liberdade. Professores e alunos são companheiros nessa viagem – que é o aprender e ensinar a ler e produzir textos – em busca do sentido.

E este é o ponto de vista que defendo: não há aprendizagem da leitura e escrita sem ensino, nem, portanto, sem professor competente para tal. E a escola é o espaço por excelência, hoje, para que se efetivem as relações de ensino-aprendizagem inicial da leitura e escrita, processo que já implica ensinar e aprender a ler e produzir textos não como se fossem instrumentos para “algo” e “no futuro”, mas compreendendo o texto como a unidade de sentido e o objeto de ensino-aprendizagem da língua escrita, em torno do qual se organizam os conteúdos específicos de ensino e aprendizagem (iniciais) da leitura e escrita e as atividades para seu desenvolvimento em sala de aula, na escola, envolvendo todas as necessidades da vida dos sujeitos, agora, também.

Em síntese, ensinar a ler e a escrever é ensinar a ler e produzir textos (orais e escritos) que permitam ao sujeito se constituir como tal no âmbito de uma sociedade letrada. O ensino visa, primordialmente, à aprendizagem e não pode prescindir da atuação competente do professor, no âmbito da escola. O ensino e a aprendizagem da leitura e produção de textos, como atividades especificamente humanas, visam, primordialmente, à formação do ser humano, e seu objetivo é

“simplesmente” a busca de sentido.

Como se pode observar, a perspectiva interacionista nos propicia compreender que o que está em jogo, quando se trata de ensinar e aprender a ler e escrever, não são apenas finalidades pragmáticas e de adaptação aos precários usos e funções sociais da língua escrita numa sociedade (semi-)letrada como esta em que vivemos. Para além dessas finalidades, o interacionismo propicia ousarmos pensar em ampliar as possibilidades de uso e funções sociais do ler e escrever, porque nos propicia pensar na contribuição dessas atividades especificamente humanas para o processo de constituição do sujeito (professor e alunos, no caso da alfabetização escolar), que se constituem também como leitores e produtores de textos como quem busca atribuir sentidos para a vida.

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Considerações finais

Neste artigo tratei de um tema atualmente tão repetido que pode parecer óbvio demais, levando os possíveis leitores a se perguntarem o que justificaria abordá-lo – e do modo como o fiz – numa publicação como esta. Penso, porém, que é justamente no que nos parece óbvio que podemos encontrar outros e, por vezes, surpreendentes sentidos, silenciados, seja pelo hábito e pela rotina de uso dos nomes que designam a

“coisa” e da “coisa” em si que esse nome designa, seja pelo sedutor equívoco de imaginar que o nome “cria” a “coisa” que até então não existia.

Por isso, o que apresentei aqui não é nenhuma messiânica boa-nova, apenas um outro modo de olhar e pensar o que vem sendo discutido em nosso país há mais de um século, em particular do modo como vem sendo discutido nas duas últimas décadas: O que é ensinar a ler e escrever? A quem compete esse ensino? Onde deve/pode ser realizado? A quem se destina? Ensinar a ler e escrever o quê? Como? Por quê? Para quê?

Talvez a maior contribuição da introdução do termo/conceito “letramento” no Brasil seja a de reapresentar sobre novas bases e nestas específicas condições histórico-sociais essas antigas perguntas, às quais também busquei responder ao longo deste artigo por meio da problematização dos aspectos envolvidos na formulação de seu título: “Letrar é preciso, alfabetizar não basta ...mais?”.

Mas, certamente, respostas melhores são as que os poetas nos podem sugerir: a coisa mais fina do mundo é o sentido, porque seu dever é a esperança de liberdade.

Referências

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KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

KLEIMAN, Ângela B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

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Maria do Rosário Longo Mortatti

GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1984.

MAGNANI, M. R. M. Em sobressaltos: formação de professora. Campinas: Ed. Unicamp, l993.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Uma proposta para o próximo milênio: o pensamento interacionista sobre alfabetização. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 5, n. 29, p. 21-28, 1999.

_______. Os sentidos da alfabetização: São Paulo – 1876/1994. São Paulo: Ed. Unesp, Brasília: MEC/Inep/Comped, 2000.

_______. Educação e letramento. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991.

SMOLKA, Ana Luiza B. A criança na fase inicial da escrita: alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed. Unicamp, 1988.

SOARES, Magda. Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas. Revista Brasileira de Educação, Anped, n. 0, p. 5-16, set./out./nov./dez. 1995.

TFOUNI, Leda Maria V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.

_______. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995.TODOROV, Tzvetan. Introdução. In: BAKHTIN. Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Letramento na Maré: uma proposta metodológica

de ensino da leitura e da escrita para jovens e adultos

Marlene Carvalho*

Chama-se Maré uma ampla área geográfica à margem da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, próxima do Aeroporto Internacional do Galeão e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Houve tempo em que muitas das moradias do local eram palafitas, casebres precários, espetados na lama. As zonas alagadas foram aterradas e hoje o espaço está ocupado por dezesseis favelas cujas condições de saneamento e habitação são heterogêneas. Em algumas comunidades, há grandes conjuntos habitacionais e construções de alvenaria de dois, três e mais pavimentos; em outras, casebres miseráveis. Há ruas largas e asfaltadas em algumas zonas, mas também becos, vielas, ruelas labirínticas (Varella; Bertazzo; Jacques, 2002). Há muito movimento de pedestres e veículos, mas são poucas as árvores e plantas e poucos os espaços livres para convivência. Em síntese, “é inegável o reconhecimento dessa localidade como um espaço proletarizado, com predomínio de populações nordestina e negra em condições sócio-profissionais subordinadas e com baixa escolaridade” (UFRJ, 2003).

O objeto deste artigo é a proposta metodológica de ensino da leitura e da escrita para alunos que freqüentam o Programa de Alfabetização desenvolvido na Maré por professores, estudantes e funcionários da Universidade Federal do Rio de

* Doutora em Ciências da Educação pela Université de l’Etat, Liége, Bélgica. Trabalhos acadêmicos: Três campanhas de educação de base no Brasil no período: 1947-1963: análise, crítica e comparação.

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Marlene Carvalho

Janeiro (UFRJ). O programa propõe-se a alfabetizar e letrar jovens e adultos, ou seja, torná-los usuários da escrita e da leitura para fins profissionais e sociais. O projeto de letramento subjacente ao programa baseia-se na concepção de Kleiman e Signorini (2001, p. 238), isto é, “[...] um conjunto de atividades que se origina de um interesse real na vida dos alunos, e cuja realização envolve o uso da escrita, isto é, a leitura de textos que, de fato, circulam na sociedade e a produção de textos que serão lidos, em um trabalho coletivo de alunos e professor, cada um segundo sua capacidade”.

Na primeira parte deste artigo são apresentados os eixos do programa, uma síntese da proposta metodológica e trechos de depoimentos de alfabetizadores. Na segunda parte, analisa-se uma amostra de textos produzidos, de setembro a dezembro de 2005, por alunos situados em vários pontos do continuum de letramento. Na terceira e última parte, apresenta-se um balanço preliminar da experiência nos anos de 2004 e 2005.

Primeira parteO que é o projeto

O Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos da UFRJ compreende três eixos: o projeto de extensão propriamente dito, a formação continuada e assessoramento dos estudantes de graduação que atuam como alfabetizadores e a pesquisa participativa (Carvalho, 2005a, 2005b, 2005c, 2004). Os principais objetivos do programa são alfabetizar e letrar jovens e adultos moradores da Maré e outros espaços populares; encaminhá-los, após a alfabetização inicial, ao sistema de ensino fundamental regular; oferecer formação continuada a estudantes de graduação e pós-graduação, sob supervisão e orientação de docentes universitários; desenvolver e difundir pesquisas sobre alfabetização de jovens e adultos (UFRJ, 2003).

Levando-se em conta que muitos dos jovens e adultos analfabetos da Maré já passaram pela escola e dela foram excluídos – após penosas tentativas de aprender a ler e escrever –, o programa de extensão propôs-se a desenvolver um currículo aberto, sem progressão predefinida, partindo dos conhecimentos dos alunos e de seus interesses e necessidades. Os pressupostos do currículo são o respeito

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Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...

pelo “conhecimento do mundo, saberes, experiências e valores dos alunos” (Freire, 2005); o reconhecimento das variantes lingüísticas do português por eles utilizados; a organização dos conteúdos pelo professor em unidades temáticas, de acordo com as características e necessidades das turmas; a integração das áreas de língua portuguesa, matemática e estudos sociais (realidade social / meio ambiente / saúde); a concomitância e interdependência das atividades de alfabetização e letramento; a perspectiva de estimular a continuidade de estudos após a alfabetização inicial. Neste artigo, os conteúdos de matemática e estudos sociais não são abordados; analisam-se apenas os aspectos relativos aos processos de alfabetização e letramento.

Adotando-se o ponto de vista de Kleiman e Signorini (2001, p. 19), entende-se letramento “como o conjunto de práticas sociais relacionadas ao uso, à função e ao impacto da escrita na sociedade, diferenciando esse conceito do conceito de alfabetização, o qual é mais restrito, em geral interpretado como processo de aquisição do código da escrita e domínio individual desse código”. Para alfabetizar e letrar, foram priorizados recursos didáticos “em que a leitura da palavra fosse precedida da leitura do mundo” (Freire, 1992), estimulando-se o diálogo sobre temas de interesse político, social e cultural abordados em textos de diferentes gêneros. Enfatizaram-se a leitura e escrita em situações sociais significativas, em oposição aos exercícios escolares tradicionais de leitura como decifração de palavras ou de fragmentos textuais, e de escrita meramente escolar, sem significado ou função social.

A formação inicial dos estudantes, com trinta horas de duração, versou sobre educação popular na perspectiva de Paulo Freire, noções de lingüística, de didática da alfabetização e da matemática e informações sobre a vida social na Maré. A seguir, veio a formação continuada, da qual participei em 2005, como professora aposentada da Faculdade de Educação da UFRJ, membro de uma equipe composta de docentes da mesma unidade, da Faculdade de Letras, da Escola de Serviço Social, do Instituto de Matemática e de funcionários técnico-administrativos da Pró-Reitoria de Extensão.

Realizada quinzenalmente, a formação continuada partiu também da perspectiva freiriana, enfatizando o diálogo entre docentes universitários e estudantes-alfabetizadores. Dali surgiram a discussão de alternativas didáticas, a

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problematização das práticas pedagógicas, a preparação coletiva de materiais de ensino e a análise dos problemas de sala de aula. Ao longo do trabalho, os alfabetizadores construíram

“saberes da experiência” (Tardif, 2002) e criaram metodologias híbridas,1 a partir do arcabouço teórico-metodológico de Paulo Freire (2005), cuja proposta didática foi sendo adaptada ao contexto urbano da favela e aos interesses, necessidades e avanços dos alfabetizandos.

Ao começar o programa, em fevereiro de 2004, foram formadas 25 turmas, sob a responsabilidade de 25 estudantes de graduação da UFRJ, oriundos principalmente dos cursos de Letras, Pedagogia e Serviço Social. Em número menor, havia estudantes de outros cursos. Matricularam-se no programa 504 alunos jovens e adultos, dos quais 74,80% eram mulheres e 25,20%, homens. Cerca de 72% dos alunos situavam-se na faixa entre 21 e 50 anos. Os mais jovens, entre 14 e 20 anos, eram 9% do alunado. Houve grande participação de pessoas entre 51 e 80 anos, ou seja, 111 pessoas nesta faixa etária, totalizando cerca de 25% do alunado.

Em 2005, a matrícula foi de 548 alunos. A participação masculina aumentou ligeiramente, passando a 33,94%, enquanto a feminina totalizou 66,06%. Trinta e quatro alunos de graduação da UFRJ assumiram as turmas. A participação de estudantes de letras, pedagogia e serviço social continuou predominante, mas houve também estudantes de história, ciências sociais, desenho, entre outros.

Cerca de 70% dos jovens e adultos estavam na faixa etária de 21 a 50 anos. Na extremidade inferior da escala, havia cerca de 6% de alunos de 14 a 20 anos. A participação de adultos entre 51 e 80 anos diminuiu sensivelmente: 46 pessoas, representando 8,61 do grupo.

Os avanços obtidos pelos jovens e adultos no processo de letramento são abordados na segunda parte deste artigo.

Alfabetizadores falam sobre a experiência

Da Maré, território híbrido, marcado por contradições, a mídia só divulga imagens de horror: guerra entre facções do

1 Chamamos “metodologias híbridas” aquelas inspiradas em determinada ma-triz metodológica, no caso, o método Paulo Freire, que sofreram adaptações didáticas por iniciativa dos alfabetizadores. Ver o tópico “Alfabetização e letramento” deste trabalho.

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tráfico de drogas, bandidos em fuga, balas perdidas. Contudo, ali coexistem trabalhadores e traficantes; banditismo e religiosidade, solidariedade e conflito; modernidade e atraso; conjuntos habitacionais futuristas e casebres precários; isolamento cultural e abertura para grupos que desenvolvem atividades esportivas, religiosas e culturais e promovem cursos de dança, fotografia, música, entre outros.

Uma das preocupações da equipe de formadoras dizia respeito à entrada dos estudantes no território da Maré: embora alguns poucos morassem ali mesmo, e outros, em bairros populares, igualmente proletarizados, a maioria jamais havia entrado numa favela. Fossem quais fossem seus locais de moradia, seriam os estudantes capazes de vencer a distância social que os separava dos habitantes da Maré? Como enfrentariam o medo da violência, das balas perdidas, das ameaças constantes à segurança?

Em entrevistas realizadas com alfabetizadores, eles revelaram suas primeiras impressões e descobertas sobre o contexto.O alfabetizador Joaquim, estudante de história, assim se expressou:2

Foi me trazendo assim, muita preocupação, eu ficava angustiado. Como é possível assim um povo tão perto de tanta riqueza e tá tão ferrado, tão, tão ruim assim de informações? Eu ficava angustiado com esse negócio, caramba! Como é que pode isso? Como é que funciona esse negócio?

A alfabetizadora Shirléia, estudante de sociologia, declarou:

O impacto inicial pra mim foi perceber o quanto as pessoas, não só lá na comunidade, mas às vezes você fala com a pessoa, convive com a pessoa e não percebe que ela não foi alfabetizada, e me dei conta de que eram pessoas... tipos que eu já tinha encontrado a minha vida toda, que eu não tinha me dado conta de que tanto a cozinheira, a moça do cafezinho, a moça que vendia bala... eram tipos muito próximos à minha realidade que eu não havia observado e que quando eu fui para lá, este foi o meu primeiro impacto. Que as pessoas que eram muito comuns a mim, à minha realidade também e que eu nunca tinha observado isso... vizinhos, pessoas do bairro, pessoas com quem eu já trabalhei no mesmo ambiente, e que eu não tinha me dado conta, e como a pessoa que mesmo sem saber ler e escrever, ela consegue passar uma imagem de que não é isso, só você perguntando... elas têm muita vergonha

2 Os alfabetizadores citados neste artigo deram permissão para que seus no-mes verdadeiros fossem mencionados em trabalhos acadêmicos vinculados ao programa.

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disso. As pessoas iam com o caderno enrolado num saco preto escondido debaixo do braço, filho levando mãe, estas situações, assim, de muita vergonha, de estar freqüentando o curso de alfabetização e também de ser num lugar onde vinha... não era revelado. Em vários ambientes que não era revelado.

Trecho do depoimento da alfabetizadora Luciana, estudante de serviço social:

[o impacto inicial] Foi um choque. Não que eu não conhecesse a realidade de uma favela. A gente convive e, profissionalmente, eu vejo muito. Ficava chocada com as condições, com os objetivos da pessoa que morava numa casa, que não tinha água, direito, um lugar pequeno, sem condições de nada e trabalhando pesado. Faxineira, pedreiro. Então, você via aquelas pessoas até tentando lutar. Por um lado, v. via uma dificuldade muito grande, mas uma vontade muito grande deles.

A entrada no território da favela provocou estranhamento dos modos de viver, da cultura da população. A princípio, os estudantes mostravam-se indignados com a deterioração das condições da vida nas favelas, com a miséria, falta de segurança e de oportunidades profissionais e culturais. O discurso dos estudantes sobre suas experiências revela que nas primeiras semanas predominavam a descrença na capacidade de exercer o papel de educadores, angústia e medo de errar. Mais adiante, surgiram indícios de empatia, descoberta de valores comuns, admiração por traços de caráter e histórias de vida de pessoas empenhadas em estudar em condições adversas. Apareceram o desejo e a disposição de ensinar; os estudantes começam a perceber-se como professores. A identidade de cada um foi afetada pela experiência vivida.

Segunda parte

Ao final do ano letivo de 2005, na condição de responsável pela formação continuada de um pequeno grupo de alfabetizadores, solicitei-lhes que coletassem trabalhos escritos dos alunos. Em virtude das limitações da extensão deste artigo, aqui são examinados textos produzidos por alunos de apenas duas turmas, entre setembro e dezembro de 2005. Os respectivos alfabetizadores – Fabiano e Joaquim

– freqüentemente estimularam a leitura, discussão e produção de textos de gêneros variados, conforme a proposta do programa.

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Os trabalhos foram produzidos nas salas de aula, na presença dos alfabetizadores. Na transcrição dos textos foram mantidos os erros de ortografia e gramática e procurou-se manter o tipo de letra usado (cursiva ou maiúsculas de imprensa) e ser fiel à disposição gráfica adotada pelos autores. Alguns poucos trabalhos trazem indícios de correção ou reescrita, mas, em geral, não foram corrigidos. O corpus de dados inclui textos curtos e simples, de natureza funcional, como listas de compras, listas de nomes de familiares e colegas e fichas de dados pessoais; textos subjetivos inspirados em fotos, escritos de comunicação pessoal (bilhetes e mensagens de boas festas) e também textos mais longos e elaborados, como narrativas pessoais, “causos” do mundo rural ou lendas urbanas.

Uma primeira aproximação com esses textos revela que seus autores, embora manejem com dificuldade a ortografia, e ignorem as regras de pontuação, são capazes de expressar com veemência idéias, desejos, sentimentos e críticas.

Textos funcionais, como listas de compras, listas de nomes de pessoas da família, fichas com dados pessoais (nome, endereço, naturalidade, RG, nomes dos filhos), e outros foram produzidos por quase todos que freqüentaram o programa com assiduidade durante um ou dois semestres. Textos de gêneros textuais variados – bilhetes, “causos” do mundo rural ou lendas urbanas, narrativas pessoais, e poesias – foram produzidos em menor número.

Há muitos trabalhos, ilustrados por fotografias, relacionados com as condições de vida da população pobre, com a identidade do brasileiro, e com a situação política do país ao fim do ano de 2005. Há outros textos expressivos, de natureza subjetiva, cujos temas são sentimentos de solidão e o medo da violência. Nas narrativas pessoais, voltam os temas das agruras da vida passada e atual. Os alunos falam da migração do mundo rural para a favela da Maré, ou de fatos marcantes de sua história, das dificuldades da vida e do trabalho, temperadas pela fé religiosa, esperanças no futuro e o amor pela família.

Os gêneros narrativa pessoal, mensagens de boas festas e legendas, ou pequenos textos inspirados em fotos, permitiram que pessoas situadas em diferentes pontos do processo de letramento expressassem idéias, preocupações, sentimentos. Com poucas palavras dizem muito, falam das

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mazelas do Brasil e dos políticos. Os temas tratados pertencem ao seu universo de interesses e preocupações. Não há escritas gratuitas, desconectadas do mundo real. Não há infantilização ou frases acartilhadas. Os alunos se revelam, se expõem. Seus textos são toscos, do ponto de vista da correção gramatical, mas expressivos.

Legendas de fotos

Usar fotos e gravuras como estímulo para a produção de textos é uma prática escolar comum, que pode ser mais ou menos enriquecedora do processo de letramento, segundo os objetivos do professor, o contexto de produção e o interesse que os alunos encontram na tarefa. No programa, os próprios alunos escolhem as imagens e escrevem legendas, ou comentários, não apenas descritivos, mas indicativos de suas opiniões, pontos de vista ou estados d’alma. Instaura-se um diálogo entre imagem e texto, pois o aluno não escreve sobre a imagem em si, mas sobre o que esta lhe sugere: pensamentos, lembranças, críticas, sentimentos, idéias, preocupações, posições políticas, esperanças. Assim, nesses trabalhos, experimentam a função expressiva da escrita.

Em setembro de 2005, mês da independência, o alfabetizador Joaquim pediu aos alunos que escrevessem frases com as palavras Brasil e brasileiro/brasileira e escolhessem fotos de jornais para ilustrá-las. Nas frases, são reveladas facetas diversas da identidade do brasileiro: o amor à pátria, o entusiasmo pela seleção de futebol, o orgulho pelas belezas do Brasil, recorrentemente considerado “o país mais bonito do mundo”. Por outro lado, os textos produzidos em novembro e dezembro de 2005, mostram que os alunos estavam a par das notícias sobre escândalos de corrupção no governo federal e assumiam posição crítica contra o presidente Lula.

As fotos, recortadas de jornais ou revistas não identificados, foram coladas em folhas de papel reaproveitadas, por medida de economia, que tinham no verso cópias xerocadas de textos acadêmicos. Os trabalhos dos alunos são bem apresentados, limpos, escritos em letra cursiva, ou maiúsculas de imprensa. Os dois tipos de letras por vezes aparecem misturados em alguns exercícios. Em alguns casos, as frases são curtas, quebradas, lembrando a disposição gráfica das frases das cartilhas; em outros, os alunos usam toda a largura do papel para escrever seus textos.

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Foto 1: Cenário de pobreza no meio rural. Casebres de pau-a-pique, galinhas ciscando, figuras humanas indistintas. Céu azul. A aluna escreveu:

BRASIL

O Brasil é o lugar mais bonito do mundo.A brasileira é muito sofrida.

Em apenas duas frases e uma foto a aluna expressou contradições que percebe. A imagem de pobreza rural contrasta com o clichê O Brasil é o lugar mais bonito do mundo. Por outro lado, o enunciado A brasileira é muito sofrida é coerente com a imagem dos casebres e possivelmente com a auto-imagem da aluna.

Foto 2: Céu azul, uma pipa voando alto, com a bandeira do Brasil ao centro. As frases:

O Brasil é o país mais bonito do mundo. A brasileira é muito trabalhadora.

A aluna, mulher trabalhadora de baixa renda, repete o clichê, mas insere no texto um enunciado que expressa uma faceta da identidade feminina.

Foto 3: Torcida de futebol, homens exultantes, com os braços para o alto, a bandeira brasileira em primeiro plano. A legenda:

Esta é maior torcida do mundo não importa o sexo é a torcida brasileira.

Há um diálogo entre a foto e o texto: a aluna observou que não aparecem mulheres na foto, mas afirma-se como torcedora e brasileira ao dizer que “não importa o sexo é a torcida brasileira”.

Foto 4: Uma parte da bandeira do Brasil foi recortada e colada no alto da página. O aluno escreveu em letras grandes, maiúsculas de imprensa, que ocupam quase toda a página no sentido transversal:

BRASIL

O BRASIL É UM PAÍS BRUITLFUO [O BRASIL É BEAUTIFUL]O BRASIL É UM PAÍS BONITO.BRASILEIROBRASILEIRO É MUITO TRABALHADOR.A BRASILEIRA É MUITO GOSTOSA.

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O aluno usa primeiro uma palavra em inglês (beautiful) para expressar o clichê, indicando que conhece algo desta língua de prestígio, embora cometa um erro de ortografia na palavra beautiful. Depois escreve O BRASIL É UM PAÍS BONITO. A seguir, a identidade de brasileiro/brasileira é expressa em dois enunciados contrastantes: BRASILEIRO É MUITO TRABALHADOR e A BRASILEIRA É MUITO GOSTOSA. Ambos os enunciados expressam admiração pelos compatriotas, mas a qualidade ressaltada para o gênero feminino relaciona-se com o estereótipo da brasileira sensual, não com a mulher trabalhadora e sofrida mencionada por alunas em outros trabalhos.

Foto 5: Um casebre de pau-a-pique, cobertura de sapé. Uma porta e uma janela, na qual se vê um vulto indistinto. Diante do casebre, quatro crianças sentadas num banco. A legenda tenta explicar as razões da pobreza desta família da zona rural:

O Brasil tem muito roubo. esta família sofre porque não tem terra para plantar.

Foto 6: Recorte de uma foto de jornal, tirada por ocasião da visita do presidente Lula e dona Marisa ao Vaticano. Em primeiro plano, à esquerda, a mão de um sacerdote oferecendo a hóstia e à direita, o presidente, com expressão compenetrada. Dona Marisa está com a cabeça coberta por um véu preto. Note-se o contraste entre a imagem piedosa do casal e a legenda crítica do aluno, que se dirige ao presidente como se estivesse com ele dialogando:

Lula você precisa ajudar os pobres a arrumar emprego melhorar as escolas os hospitais e aumentar os salários.

Foto 7: Foto da bandeira nacional, seguida de um texto em que o aluno explica as condições para que o Brasil, país muito rico, venha acabar com as desigualdades: salários iguais, universidade para os pobres, boa escola e bom hospital para os pobres.

O BRASIL é muito ricoNele não poderia ter desigualdadeEntre rico e pobresTodos poderiam ganhar por igualOnde pobres pudessem fazer a universidade como os ricosBoa escola hospital com bomAtendimento para pobres.

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Assim todos vivam bemNeste BRASIL.

Foto 8: Bandeira brasileira seguida de um texto em que a crítica – o Brasil é uma calamidade – é logo a seguir suavizada ou relativizada;

Esse país que nós vivimos é uma calamidade mais mesmo assim é bom de se viverE trabalhar por que não falta dinheiro mesmoSendo salário mínimo mais dar para comprar as coisas devagarzinho.3

Em novembro de 2005, o alfabetizador Joaquim propôs outro exercício do mesmo gênero. As fotos escolhidas e os textos giraram em torno da figura do presidente da República. No discurso dos alunos, o presidente é alvo de críticas severas e de acusações graves, assim como de manifestações de desconfiança e desapontamento. Uma única aluna disse que Lula é “um bom presidente”, mas a seguir acrescentou “que Promete muito mais (sic) ainda não fez mais (sic) pode fazer muito mais pelo povo brasileiro.”

Foto 9: O presidente Lula está num palanque, com os braços erguidos, cercado por pessoas que o aplaudem. O texto do aluno, datado de 21 de novembro de 2005, diz:

O Lula não fez nada para o nosso Brasil ele só sabe dizer que vai fazer não faz porcaria nenhuma e só quer aparecer na televisão dizendo que vai fazer só sabe viajar com a mulher para conhecer outros paiz que não pertence a ele e os bobo acompanha ele.

Foto 10: Esta é uma foto colorida, em que Lula, de olhos fechados, põe a mão na testa. Apesar do meio sorriso, aparenta preocupação, ou cansaço. O aluno escreveu como se estivesse falando com o presidente:

Lula você está chorando de arrependimento pois todos confiarão (sic) em você.

Foto 11: A foto, em preto-e-branco, mostra Lula entre dois homens engravatados. O da esquerda é José Dirceu, flagrado pelo fotógrafo apertando fortemente o nariz, com os dedos da mão direita. O gesto, talvez uma tentativa de reprimir um espirro, pode ser interpretado de outras maneiras. Primeiro o aluno escreveu algo quase ilegível.

3 Texto corrigido: Esse país que nós vivemos é uma calamidade, mas mesmo assim é bom de se viver e trabalhar, porque não falta dinheiro, mesmo sendo salário mínimo, mas dá para comprar as coisas devagarinho.

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Lula você pecirdo mto mai dia você vence pecirido é gadende e deu e e deu muito.

Abaixo, passou um traço horizontal e reescreveu a frase, provavelmente com a ajuda do alfabetizador, misturando letras de imprensa e cursivas. Também aqui o aluno escreve como se falasse diretamente com Lula:

Lula você é muito persiguido mais um dia você vence. Grande é deus e ele é muito bom.

Foto 12: Mais uma foto de Lula, agora diante de um microfone, tendo a bandeira nacional atrás de si. Assim como no exercício anterior, há duas legendas. A primeira, em maiúsculas de imprensa, é:

LULA CERA QA VOCE TA FALADO A VEDADI SO DESU É QUA SABE

Abaixo desta legenda, e separado por um traço, aparece o texto agora com pontuação e ortografia corretas:

LULA, SERÁ QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO A VERDADE? SÓ DEUS É QUE SABE.

Foto 13: Lula aparece sorridente, segurando um microfone, com expressão satisfeita. A simpatia que a aluna expressa pelo presidente é acompanhada de uma cobrança:

Lula é um bom presidentePromete muito mais (sic) ainda não fez mais (sic) pode fazer muito mais pelo povo brasileiro

Foto 14: Sorridente, cercado por uma multidão, Lula está tentando sair de um automóvel. O aluno escreveu:

Lula você disse no seu palanque corrupto não sobe E no seu governo não entraComo você pode esplica tudo o que esta acontecendo. será que podemos comfiar em você?

Esta pequena série de exemplos mostra como a combinação foto-legenda, ou foto-comentário, abriu caminho para expressão de preocupações e críticas de natureza social e política, talvez antes limitadas ao mundo da comunicação oral dos alunos em questão. A propósito, vários trabalhos estão marcados por fórmulas lingüísticas próprias do diálogo, como o uso do vocativo: “lula você disse”, “Lula você é muito perseguido”, “lula será que você está falando a verdade”.

As imagens provocaram reflexões e, ao mesmo tempo, ampliaram e enriqueceram os pequenos textos. O exercício

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escolar foi simples e produtivo; as fotos, extraídas de publicações de grande circulação, são material didático acessível, afinado com os acontecimentos da atualidade, à altura da compreensão do mundo dos jovens e adultos. Note-se, no entanto, que esses textos foram produzidos no contexto de salas de aula em que a discussão de temas de natureza política e social era freqüente. Fosse outro o modo de ensinar, teríamos tido provavelmente outro resultado.

Sentimentos

Outros trabalhos dos alunos de Joaquim, também inspirados em fotos, falam de sentimentos, especialmente de solidão e de medo da violência. Produzidos em sala de aula, a pedido do alfabetizador, revelam a subjetividade dos autores.

Sobre solidão, uma aluna produziu dois trabalhos.Na Foto 1 vê-se uma rua quase deserta. Em primeiro

plano, um homem negro, de meia-idade, está montado numa bicicleta; tem a cabeça raspada, veste macacão e empunha uma vassoura, ou espanador de cabo longo. Presa ao guidão da bicicleta, uma bolsa do tipo sacola. A aluna, que registrou sua idade – 58 anos –, escreveu:

Quando eu estou sozinha me sinto na solidão não é só de sexo é falta de outras coisas como falta de conversa principalmente a noite o dia as pessoas se distraen conversando e vai passando, a noite que é triste.

Na Foto 2 aparece um jovem de corpo inteiro, atlético, sem camisa, de bermuda florida. Está descalço e posa muito sério, num cenário natural. Trata-se de uma foto publicitária, de moda. Sobre a foto, a mesma autora do texto acima escreveu algo híbrido, que tem marcas formais da carta e da descrição.

Rio de Janeiro, 21/11/2005

Eu acho que este rapaz tem uma boa estatura [...] era assim que a minha mãe queria um genro alto de cor clara e muito famoso e lindo só que não é para mim e para garotas mais nova do que eu ele tem o corpo bonito, famoso, só que eu acho ele muito serio não dar nenhuma risada para mim ver o jeito dele mas eu gosto dele assim mesmo termino com um forte abraço e um beijo com muito respeito de não ter conhecido pessoalmente desculpe de alguns erros.

Enquanto no primeiro texto a imagem de um trabalhador negro, de meia idade, sugeriu à mulher alguém com quem se identificaria para atenuar a solidão, no segundo trabalho, o modelo da foto publicitária é um rapaz inacessível, que

“tem o corpo bonito, famoso”. Após descrevê-lo, dirige-se

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a ele formalmente, manda-lhe “um forte abraço” (marca de formalidade) e um beijo, “com muito respeito” (retorno da formalidade), acrescentando um pedido de desculpas pelos erros, fórmula que aparece com freqüência nas cartas de indivíduos que não confiam nas suas habilidades epistolares.

Na Foto 3, um homem de costas, curvado sob um guarda chuva, leva uma mochila. O cenário é cinzento, desolador. O texto reforça a imagem e vice-versa.

A solidão é muito tristeViver so é não ter uma pessoa para conversa e não tenho marido.

Outra aluna escolheu duas fotos (4 e 5). Na primeira, uma menina risonha, de vestido florido, tem a seu lado outra criança, cujo rosto não é visível. O cenário sugere uma casa árabe. A segunda foto mostra uma mulher negra, descalça, pano na cabeça, sentada sobre uma cama tosca, num ambiente pobre. Na parede atrás da mulher, uma profusão de cabaças, canecas e panelinhas. Abaixo das fotos, a aluna escreveu:

A solidão não existe so quem procura elaquem tem beija flor nunca fica sozinhoreconheço que os idozo estão abandonado Eita filho desnaturado

Nos primeiros textos, a solidão é descrita como algo penoso, que provoca tristeza, ataca principalmente à noite e se manifesta pela falta de alguém com quem conversar. Mas é também negada poeticamente: a solidão não existe, “pois quem tem beija-flor nunca fica sozinho” (Foto 4 e 5). Neste mesmo texto, a aluna retoma a perspectiva realista e diz que reconhece que os idosos (como a mulher negra da foto) estão muito abandonados.

Narrativas pessoais

Dentre um variado conjunto de trabalhos dos alunos do alfabetizador Fabiano, há algumas narrativas pessoais, gênero pouco explorado nas demais turmas.

As narrativas abaixo foram produzidas por alunos em níveis distintos do processo de letramento. São escritas geralmente em letra cursiva, de bom tamanho, com boa disposição gráfica no papel. Nestes relatos expressivos, os alunos comparam as condições de vida anteriores à chegada na Maré com as condições atuais, falam da luta pela sobrevivência,

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citam os professores, em textos em que não faltam coesão e coerência, apesar das falhas gramaticais.

Narrativa 1 - Datada de dezembro 2005.

Lá no norte nós não tínhamos condições de pagar uma escola particular e por isso eu vim para o Rio para conseguir uma vida melhor e aí eu conheci o Fabiano ele é um ótimo professor muito bacana além do Fabiano conheci vários colegas de classe que também são gente fina como Silas a dona erly e outros. melhorou bastante a minha letra e todo dia agradeço a Deus por ele iluminar meu caminho.

Narrativa 2

Eu nasci no ceará. Vim de uma cidadizinha chamada Catunda cheguei no Rio de janeiro em junho de 1976. E graças a deus consegui hoje trabalho de servente em um edifício garagem que se chama Rio Park no norte a vida não era fácil eu plantava horta para sobreviver quando cheguei conheci muita gente conheci vareos professores quando cheguei

Narrativa 3

Eu naci em taqara estado do espírito santo fui resistrada em cachoeiro de itapemirim vim para o rio de janeiro em 1957 pela viação itapemirim cheguei em niterói ais 9 horas da noite a travessei a barca para o Rio depois fui para são Cristovo e de la eu vim morar no Parque união.

Narrativa 4. Datada de 1 junho 2005.

Escrita legível, em maiúsculas de imprensa, traços firmes.

EU (segue-se o nome completo) TRABALHE NA ROSIA ATE OS 13 ANO DE IDADE DEPOIS FOI A CIDADE DE CANPIN GRADE (Campina Grande) TRABALHE ATE 17 ANO DE IDADE EU VI AO RIO DE JAENIRO PARA TRABALHA EU TENHO MUITA DIFICUDADE PARA SOBREVIVE TENHO MUITA FOFA (força) PARA TENTA A VIDA AQUI

No dia seguinte, o aluno deu continuação ao texto 4 escrevendo:

CONTINUAÇÃO AQUI E MUITO DIFICIO MAIS DIFICIO NO NORDESTE A FAUTA DE EMPREGO SÃO MUITA DEFICUDADE PARA SOBREVIVE NO NORDESTE POR MOTIVO EU TER VINDO AO RIO PARA TRABALHAR PARA AJUDA A MINHA FAMILIA SÃO MUITO POBRE E TRABALHAR NA ROÇA NA REGIÃO DE CANPINA GRANDE PARAIBA NORDESTE

Reexaminando os textos apresentados neste artigo, podem-se constatar algumas das dificuldades manifestadas pelos alunos quanto ao domínio da escrita. Os principiantes, que apenas começaram a estabelecer relações entre letras e

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sons, cometem erros de troca ou omissão de letras, como mto por muito, vedade por verdade, falado por falando etc. Sílabas fechadas são grafadas como se fossem abertas (vedade, falado) e há casos de transposição da consoante para o lugar da vogal (desu em lugar de deus).

À medida que os alfabetizandos avançam no domínio do código alfabético, erros desse tipo são menos freqüentes, sem chegar a desaparecer de todo. A pontuação é sempre problemática quando começam a escrever pequenos textos. Em geral, limitam-se a colocar um ponto ao final da frase ou do parágrafo. Vírgulas são inexistentes, ou colocadas de modo aleatório. A regra de uso das maiúsculas no início das frases quase sempre é respeitada, mas aparecem nomes próprios com minúsculas (ceará por Ceará).

São freqüentes as grafias que espelham o modo de falar dos alunos. Como disse Lemle, “sua escrita é como uma transcrição fonética da fala”. Escrevem naci por nasci, resistrada por registrada, dificudade por dificuldade, trabalha por trabalhar, fauta por falta, e assim por diante.

Erros de ortografia que Lemle denomina “falhas de terceira ordem”, correspondentes à troca entre letras concorrentes (Lemle, 2004, p. 41), aparecem com freqüência: idozo por idoso, cera por será, paiz por país etc. Há também numerosos erros de concordância verbal e nominal.

A falta de familiaridade com as convenções que regem diferentes gêneros textuais é mais visível nas cartas, bilhetes e legendas do que nas narrativas. De fato, a narrativa parece ser o gênero com o qual os alunos lidam com mais facilidade.

A questão da correção gramatical tem sido discutida com os alfabetizadores, que muitas vezes se declaram despreparados para lidar com o ensino de regras, exceções e particularidades do português. Algumas de suas perguntas: como lidar com a escrita que espelha variações dialetais? Como ensinar pontuação? Como diminuir a incidência de erros de ortografia? Como aliar a criatividade na produção dos textos a um mínimo de correção gramatical? Como ensinar gramática de forma não coercitiva e autoritária? Embora tenham sido tratadas nas reuniões de formação continuada, deveriam ter merecido mais tempo e mais atenção por parte dos formadores. A par disso, o programa deve investir, logo

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que possível, na preparação de material didático centrado nas dificuldades, necessidades e demandas dos jovens e adultos.

A proposta metodológica: balanço preliminar de uma experiência

A proposta metodológica inspirada em Paulo Freire – contextualizar a palavra geradora, desmembrá-la em sílabas, usá-las como unidades para formação de novas palavras – funcionou a contento para aqueles que precisavam ainda aprender o código alfabético. Ao mesmo tempo, os alfabetizadores proporcionaram contato com ampla variedade textual, por meio da leitura em voz alta e pela realização de atividades visando ao letramento. Foram valorizadas a leitura e interpretação de textos curtos, leitura oral (pelo educador e pelos alunos) de crônicas, poesias, notícias de jornais, a discussão dos textos e construção de textos coletivos. Contrariamente às práticas pedagógicas mais comuns, os alfabetizadores não esperaram que os alunos tivessem dominado o alfabeto, as combinações silábicas e as relações grafo-fônicas para depois apresentar frases e textos. Estes últimos apareceram paralelamente em atividades didáticas com diferentes suportes de textos (jornal, encarte, livro, embalagens, revistas). Assim, considera-se que foi utilizada uma metodologia híbrida, que contém elementos da proposta de Paulo Freire e de abordagens didáticas características dos métodos globais de aprendizagem da leitura.

Esse caminho metodológico misto, quando foi proposto aos alfabetizadores, criou dúvidas e insegurança, pois muitos não acreditavam ser possível ensinar a ler a escrever, a não ser começando pelas menores unidades lingüísticas, como letras ou sílabas. O processo de formação continuada serviu para dar aos alfabetizadores a base teórico-metodológica que lhes faltava, de modo que, paulatinamente, alguns foram ousando trabalhar com textos naturais, ao passo que outros ficaram presos à apresentação seqüencial de palavras-chave.

A ausência de material didático produzido especialmente para o programa foi outro motivo de insatisfação tanto para alguns alfabetizadores quanto para outros alfabetizandos. Uma tarefa urgente para os professores universitários interessados no campo da educação de jovens e adultos é a elaboração

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desse tipo de material. Nesse sentido, a colaboração entre estudantes-alfabetizadores e professores-pesquisadores será um campo fértil para a produção de material didático.

A interdisciplinaridade é um dos pressupostos do programa e tem sido buscada, mas apresenta dificuldades tanto para os educandos quanto para os educadores. Não obstante a orientação recebida dos professores universitários na formação inicial e continuada, houve alfabetizadores que deixaram de lado quaisquer tentativas de integração entre conteúdos de matemática e português e até mesmo elegeram dias da semana distintos para ensinar essas disciplinas, alegando que seus alunos “preferiam assim”. Isso ocorreu talvez pela força da tradição escolar do ensino por disciplinas, ou, ainda, pelas lacunas e fragilidades na formação inicial e continuada dos alfabetizadores.

Até o momento, não se investigou sistematicamente como os jovens e adultos avaliam o programa. Alguns alfabetizadores relatam que seus alunos estão satisfeitos e motivados. Muitos adultos procuram o programa não só porque o analfabetismo traz dificuldades na vida cotidiana, mas, principalmente, por ser um estado ou condição estigmatizante, por isso mesmo ocultada ou disfarçada, tanto quanto possível. Para aqueles que nunca freqüentaram escolas ou que delas foram excluídos, o programa oferece possibilidades de passar a fazer parte da comunidade dos usuários da língua escrita, ali onde o domínio da leitura e da escrita se torna mais visível: nas igrejas, nas associações de moradores, nas organizações não governamentais e até mesmo nas escolas freqüentadas por seus filhos e netos. Nesse sentido, considera-se que a alfabetização constitui um bem simbólico pelo qual os adultos sacrificam o escasso tempo livre para freqüentar aulas à noite.

Por outro lado, para os que procuram o programa na expectativa de encontrar emprego, a simples alfabetização, mesmo seguida da inserção num programa de ensino fundamental regular, não traz benefícios imediatos. O mercado de trabalho formal está cada vez mais fechado para os apenas alfabetizados, ou que completaram o ensino fundamental, restando-lhes procurar a subsistência nos empregos domésticos, na economia informal (vendedores não legalizados, prestadores de serviços sem carteira assinada, biscateiros), nas vagas de trabalho sazonal e nos programas de assistência social (bolsa-

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família e outros). Para ocupar funções qualificadas no setor de serviços (aquele que oferece maior quantidade de vagas) exigem-se cada vez mais certificados de estudos de nível médio e superior.

No entanto, por mais importantes que sejam emprego e renda, não são categorias isoladas de outros aspectos da identidade dos indivíduos. Homens e mulheres moradores da Maré, negros, pardos e brancos, nordestinos e cariocas, jovens e idosos têm identidades múltiplas e, de uma maneira ou outra, são afetados pelo fato de saberem (ou não) ler e escrever. Kleiman e Signorini (2001, p. 225) consideram que

“a escrita tem também para esses grupos uma função social emancipadora (ou, ainda, obstaculizadora) no sentido de que é seu conhecimento o que abre e fecha as portas de acesso para os melhores empregos e permite-lhe ou impede-lhe de lidar com a burocracia das instituições urbanas: a escola, o posto de saúde, a previdência”.

Considerando que muitos alunos das turmas de jovens e adultos já passaram pela escola pública, por vezes durante dois ou três anos, e de lá saíram sem terem aprendido a ler e escrever o quanto baste para atender a suas necessidades sociais, nunca é demais repetir que os sistemas de ensino devem rever seus currículos, métodos de ensino e conteúdos, exigências e normas, assim como processos de formação de professores, para criar uma escola de qualidade, que propicie condições para o letramento de crianças e jovens das classes populares.

Condições inadequadas de trabalho são flagelo comum na educação pública brasileira, que se tornam mais agudas no caso da educação popular, destinada aos excluídos. A alfabetização de jovens e adultos sofre cronicamente com a inadequação dos espaços escolares, escassez ou inadequação de material didático, improvisação de professores etc. No projeto em pauta, apesar da vontade política da Pró-Reitoria de Extensão e do empenho da equipe, as condições materiais inadequadas, agravadas pelas interrupções freqüentes da rotina escolar em virtude da ação da polícia e de bandidos, influíram negativamente sobre o trabalho.

O programa em questão traz o desafio da convivência com diversos tipos de diferenças.

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Marlene Carvalho

• diversidade de formações: estudantes-alfabetizadores que freqüentam os cursos de Pedagogia e Letras, que lidam com a questão do ensino da língua materna; alunos de serviço social, teoricamente mais familiarizados com a problemática da educação e da cultura das populações marginalizadas, e outros – estudantes de física, matemática, desenho etc. –, para quem esses universos de saberes são pouco familiares;

• diversidade de condições da existência: alfabetizadores que moram na Maré, ou em outras comunidades populares, e outros que nunca haviam entrado numa favela;

• diversidade de experiências: alfabetizadores que já haviam dado aulas, outros que nunca ocuparam o lugar de professores;

• diversidade de áreas de conhecimento dos professores universitários (pedagogia, letras, matemática, serviço social) que se colocam na posição de formadores;

• diversidade dos alunos: adolescentes, adultos e velhos, homens e mulheres, alguns já iniciados na leitura e na escrita, outros que não conheciam o alfabeto.

Tamanha diversidade é difícil de enfrentar tanto mais que o desejo de homogeneidade é fortemente inculcado na cultura escolar. Por um lado, a diversidade permitiu a troca de experiências e saberes, uma abertura para os pontos de vista de colegas, a explicitação de divergências e até mesmo a tomada de consciência de preconceitos em relação aos habitantes das favelas.

Uma questão política relevante é saber em que medida deve a universidade participar de projetos de alfabetização de adultos, se considerarmos que a persistência do fenômeno do analfabetismo tem raízes sócio-históricas e reflete a incapacidade dos sistemas de ensino municipais, estaduais e federais para cumprir suas funções. Em favor do programa, meu ponto de vista é que as atividades realizadas fornecem elementos para que se estabeleça uma ponte entre dois mundos vizinhos que se desconhecem e se ignoram: o dos moradores das favelas e o dos professores e estudantes universitários. Quando se trata de alunos dos cursos de licenciatura, futuros professores, esse é um conhecimento importante. Quanto aos resultados da formação continuada, considero que os

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Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...

estudantes que se propuseram a alfabetizar os jovens e adultos da Maré aprenderam mais que ensinaram sobre injustiças sociais, educação bancária, opressão, discriminação em função de gênero, cor, local de residência e outros fatores de exclusão. A participação no programa de extensão levou-os a refletir sobre a dimensão política da educação e do exercício do magistério, sem falar na experiência de enfrentarem a insegurança e a violência, que são mais agudas nas favelas do que em outras áreas do Rio.

As estratégias didáticas, os materiais de leitura, os textos de apoio e os materiais de alfabetização recriados pelos alfabetizadores não são padronizados e originaram-se do diálogo, da reflexão e das trocas entre eles, seus alunos e as professoras universitárias responsáveis pela formação. Sem serem criações inéditas, constituem produções pedagógicas nascidas da experiência, das limitações, possibilidades e necessidades do contexto. Além disso, constatei que os alfabetizadores alargaram seu conhecimento do mundo, aprenderam a explorar seus pontos fortes, a criar recursos e materiais didáticos, a inventar novos modos de trabalhar, a aplicar conhecimentos de base dos respectivos cursos de graduação. Quanto à pesquisa em didática da alfabetização e letramento de jovens e adultos, considero importante investigar sistematicamente os métodos híbridos e os recursos didáticos usados com sucesso pelos educadores, suas estratégias de ensino, as invenções que acrescentaram ao arcabouço básico proporcionado pelo método Paulo Freire. Isso pode vir a ser contribuição acadêmica significativa para outros alfabetizadores, do mesmo programa, ou que trabalham em contextos análogos.

Referências

CARVALHO, Marlene. Ensinando e aprendendo no cotidiano da Maré: diálogos de alfabetizadores, jovens e adultos. In: CONGRESSO INTERNACIONAL “COTIDIANO – diálogos sobre diálogos”. Anais... Universidade Federal Fluminense, 2005a. 1 CD-ROM.

CARVALHO, Marlene_______. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005b.

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Marlene Carvalho

_______. Ação pedagógica de alfabetizadores de jovens e adultos na Maré. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL (COLE), 15. Anais... Associação de Leitura do Brasil, Unicamp, 2005c.

_______. Alfabetização no conjunto Esperança: lições de um educador de adultos. Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ. Documento de circulação interna, 2004.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 28. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005a.

_______. Conscientização: teoria e prática da libertação. 3. ed. São Paulo: Centauro, 2005b.

_______. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

KLEIMAN, Ângela; SIGNORINI, Inês et al. (Org.). O ensino e a formação do professor. Alfabetização de jovens e adultos. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2004.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto Alfabetização de Jovens e Adultos do Bairro Maré. Pró-Reitoria de Extensão (PR-5), ago. 2003.

VARELLA, Drauzio; BERTAZZO, Ivaldo; JACQUES, Paula B. Maré. Vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

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A leitura literária e o hipertexto na sala de aula:

do centro à periferia

Miguel Rettenmaier*

Ausência de ética, falando em estética

Negro arcado, intitulado plebeuA África não vale, só padrão

europeuDe que o branco é bonito, feio sou

euGato Preto

O ano de 2007 marcará 25 anos da publicação de uma obra que se tornou canônica nos estudos sobre leitura. Organizado em 1982, por Regina Zilberman, o livro Leitura em crise na escola: as alternativas do professor, além de inaugurar a importante série Novas Perspectivas, da editora Mercado Aberto, pode ser considerado como um marco fundamental na reflexão crítica que relaciona às preocupações com a democratização do ensino a formação dos leitores e a importância de metodologias eficazes de estímulo à leitura. A década de 80 é, por excelência, o momento inicial de tal perspectiva que se centraliza na e pela leitura, enfatizada no ensino da literatura. Em 1980, Ezequiel Teodoro da Silva publica O ato de ler e, em 1981, funda-se no Cole, que acontecia desde 1979, a Associação de Leitura do Brasil (ALB). Nesse torvelinho, também em 1981 inaugurou-se em Passo Fundo o projeto das Jornadas Literárias, idealizado por Tania Rösing, com o acontecimento da I Jornada de Literatura Sul-Rio-Grandense. Estavam tais iniciativas, todas, conduzidas

* Universidade de Passo Fundo. O presente artigo é resultado de uma pesquisa que contou com o apoio da Fapergs, no programa ARD, ano 2004.

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Miguel Rettenmaier

por uma mesma inquietação, que, mobilizada pelo efetivo interesse de formar leitores, pretendia uma transformação não apenas no âmbito da escola, mas no cenário de todo o contexto sociopolítico daquela época.

No que se refere ao Leitura em crise na escola, o livro avançava em tal processo ao propor ações, em lugar de apenas constatar a problemática acerca dos encaminhamentos inadequados da escola no que se refere, principalmente, à leitura de obras literárias. Na apresentação, Regina Zilberman justifica a iniciativa de reunir artigos de importantes pesquisadores no sentido de atacar, como idéias e práticas, o problema da ausência de leitura de livros de literatura ou do uso inadequado do texto literário nas ações pedagógicas vigentes naquele momento:

[...] o âmbito reservado à literatura se vê assolado pela crise de ensino, somada a uma crise particular – a da leitura, que extravasa o espaço da escola, na medida em que se depara com a concorrência dos meios de comunicação de massa. É por essa razão que se justifica uma reflexão coletiva a respeito tanto do significado e da finalidade do incentivo à leitura na escola, como a propósito das estratégias de que o professor pode se valer, se este tem em vista estimular a freqüência do aluno à obra literária.1

A obra organizada por Regina Zilberman, nesse encaminhamento, assumiu, assim, o papel de lançar reflexões e proposições de trabalho, reunindo os mais atuantes – hoje consagrados – pesquisadores na área da leitura. Entre outros autores, Vera Aguiar e Maria Cattani contribuíam com uma análise crítica à proposta curricular na leitura do, então, 1º grau; Marisa Lajolo cooperou com o clássico “O texto não é pretexto”, no qual adverte para o encaminhamento do texto literário como “intermediário de outras aprendizagens que não ele mesmo”;2 Ezequiel T. da Silva, em seu artigo, questionou as práticas de leitura (in)existentes nas bibliotecas escolares, defendendo a proposta de uma dinamização do acervo dessas bibliotecas; Vera Aguiar, com nova contribuição, e Ana Maria Filipouski lançam, em outros dois textos, bases práticas para a seleção do material de leitura destinado aos jovens e para

1 ZILBERMAN, R. Estimulando a leitura – democratizando a escola. In: ZIL-BERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 7.

2 LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aber-to, 1982. p. 53.

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A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia

as atividades em sala de aula, a partir de estratégias segundo os estágios de desenvolvimento dos alunos. A preocupação com a leitura na escola, porém, era a face evidente de uma intenção mais profunda, não declarada, talvez por ser mesmo inconsciente: na medula do livro, unindo todos esses textos e os de outros autores, como Lígia Chiappini, Regina Maria Marques, Lígia Averbuck, Haquira Osakabe e Alcir Pécora, além da própria organizadora, Regina Zilberman, havia a intenção de transformar, pela leitura, um país politicamente também em crise.

O Brasil da década de 70 era um país de chumbo. A democracia, no início da década completamente sepultada, reerguia-se lentamente ao se aproximar da década de 80. A educação, combalida em muitos aspectos pelas reformas de ensino do governo militar, carecia de uma abordagem que valorizasse as humanidades, em contraposição aos encaminhamentos tecnicistas do Estado burocrático-autoritário. Nesse sentido, a obra Leitura em crise, de forma subentendida, buscava reagir pela leitura, num campo – a escola – no qual a reflexão, sobretudo, pelas áreas humanas e pelo texto literário, possibilitaria transformações nos referenciais sociais, políticos e culturais da época. Essa era, de certa forma, a luta desses pesquisadores no início de um processo de combustão que desaguaria em tantos efeitos posteriormente positivos.

Além das conquistas democráticas, restabelecidas por um conjunto de atitudes que contou, também, com a participação da intelectualidade da época na rediscussão de temas nevrálgicos de nossa condição política, como a própria democratização da educação e do pensamento, na ordem específica no que se refere à da leitura, consolidou-se no país a pesquisa sobre a formação do leitor e engendrou-se, para a atualização de práticas escolares tradicionalmente ineficazes, a noção de um sistema literário que incluísse a leitura do jovem. Nesse sentido, a literatura infanto-juvenil, lado a lado com o amadurecimento de nosso mercado editorial, tornou-se um gênero “independente”, não subalterno à literatura adulta, a verdadeira, e tornou-se objeto “digno” de pesquisa.

Fundamentalmente, graças a esses primeiros movimentos, a literatura, seja qual for, adulta ou para jovens, pôde impor-se como coisa tão séria quanto às demais “ciências” da época, exatas, técnicas e produtivas, e a leitura passou a tornar-se

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assunto de reflexão crítica, ainda, evidentemente, incorporada, essa reflexão, às circunstâncias contextuais desses primeiros passos.

A introdução de Zilberman aponta, no Leitura em crise, no cerne dessa resistência a leitura, uma concorrência perigosa. Ao tratar da problemática envolvendo a leitura na escola, refere os meios de comunicação de massa como possíveis ameaças ao que a leitura poderia fomentar ao jovem, tais como “o domínio cognitivo” e a “organização formal de seu raciocínio e expressão”. É esse o sentido, “em prol do alargamento do espaço para o livro na escola”3 em detrimento dos perigos da comunicação de massa, que a organizadora de certa forma estabelece, na abertura do livro, como o norteador político de Leitura em crise. A década de 70, sob a condução dos governos militares, foi a da incorporação da televisão na sociedade brasileira. Paralelamente ao AI-5, a segurança nacional investia pesadamente num sistema que unificasse a nação, num programa que sobejamente beneficiou a Rede Globo. Por isso, a ameaça da comunicação de massa, toda ela – já desde anos anteriores, “demonizada” pelos círculos de esquerda – era, talvez, a principal das preocupações de uma intelectualidade comprometida com as causas libertárias e com a democratização do país. De alguma forma, era um dos desdobramentos do sistema alienante capitalista no Brasil, irmanado com os aparelhos de repressão da ditadura.

O tempo, porém, mostrou que, se a comunicação de massa teve influência nos (des)caminhos políticos do Brasil, não foi propriamente a vilã no que se refere ao dificultoso processo de formação de leitores de literatura. Não há qualquer evidência forte que nos comprove que a televisão tenha formado “não-leitores”. Por outro lado, somadas a todas as problemáticas sociais que envolvem o acesso aos livros e ao saber, as abordagens referentes à promoção da leitura, malgrado suas inúmeras conquistas, talvez tivessem sido mais eficientes no enfrentamento de um quadro de crise da leitura do texto literário se tivessem procurado ampliar sua concepção de leitura no sentido de envolver a literatura com as demandas de uma sociedade quase completamente envolvida por uma inédita renovação técnica na ordem das

3 ZILBERMAN, R. Estimulando a leitura – democratizando a escola. In: ZIL-BERMAN, (Org.). Leitura em crise na escola:..., p. 8.

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relações comunicativas. Ao elegerem o texto literário como o texto por excelência, o que se justificava naquele momento em que o progresso técnico e material era sobrevalorizado, possivelmente, tenha-se, em contrapartida, isolado por demais o texto literário no universo de textualidades que começavam a se colocar à disposição dos leitores.

Nesse encaminhamento, ao introduzir no verbo “ler” uma transitividade específica, fixada na complementaridade do texto literário – muitas vezes subtraído mesmo de sua qualidade de literário, já que o “verdadeiro” texto era o literário –, a decorrência provável desse esforço pode ter sido, senão a escolarização absoluta da literatura, seu isolamento a instâncias específicas da sociedade, mais informadas, mais

“letradas”. Talvez se tenha enobrecido demais a literatura... e, quem sabe, uma maneira de fazê-la ser lida, como queriam e querem os formadores de leitores, seja restituí-la à vida... às

“impurezas” de um mundo em que a palavra escrita está jogada em mais de um suporte ou em mais de um gênero discursivo, e alicerçada a mais de uma linguagem, a mais de um código...

Hipertexto x literatura?

A complexidade do atual momento dos intercâmbios comunicativos globais já há algum tempo aponta para a exaustão de qualquer preocupação no que se refere aos

“perigos” da comunicação de massa. A tela hoje se compreende não como um objeto manipulador do indivíduo. É, pelo contrário, uma mídia de interação, ainda que restrita a alguns estratos da sociedade, principalmente no que se refere ao Brasil. Apesar de tal dificuldade (mais uma, no rol das injustas distribuições em nosso país), não há como negar que, direta ou indiretamente, na contemporaneidade, a subjetividade humana cada vez mais está associada à discursividade das múltiplas mídias e do hipertexto.

No que se refere ao hipertexto, tem, em si, simultaneamente, dois atributos que lhe são fundamentais. Em primeiro lugar, o hipertexto permite a “navegação”. Sua conexão com os demais hipertextos permite, da parte do leitor, um “agenciamento intertextual”4 que lhe garante a

4 LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento da era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 37.

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liberdade de saltar, pelo browser, ao clique do mouse, de página para página da infinita rede do www. Em segundo lugar, o hipertexto permite a convergência de várias mídias. Sua natureza multimidial, ou “multimodal”,5 permite, assim, que se associem palavras (em movimento ou não), som, imagens, vídeo, gráficos, diversas linguagens num único suporte, como refere Capparelli, “com a possibilidade de intervenção instantânea do navegador através de dispositivos que favorecem a interatividade”.6

Tal instantaneidade, à primeira vista, em todos esses aspectos, seja no que se refere à interação entre leitor e blocos de (hiper)textos ou páginas, seja na possibilidade de acesso às múltiplas mídias, parece se contrapor àquela literatura impressa, aparentemente pacífica, imóvel e “presa” nos livros. O movimento aparentemente descontrolado do leitor por textos incessantes, movediços, parece afrontar as possibilidades da fruição do estético, e a velocidade dos processos tecnológicos atuais sugere mais entraves à contemplação do que uma possibilidade real de leitura sensível-interpretativa dos fenômenos literários.7 A grande questão é que o mundo já está rápido, o “segundo dilúvio”, o de informações, do hipertexto e da cibercultura já existe... em fluxo dinâmico e indeterminado. Como defende Lévy: “Para melhor ou pior, esse dilúvio não será seguido por nenhuma vazante. Devemos, portanto, nos acostumar com essa profusão e desordem. A não ser em caso de catástrofe natural, nenhuma grande reordenação, nenhuma autoridade central nos levará de volta à terra firme nem às paisagens estáveis e bem demarcadas anteriores à inundação.”8 Assim, sob pena de elegermos mais um vilão, da mesma forma como já o fizemos com a comunicação de massa (já em via de esgotamento, pelo menos na força que outrora monopolizava nas tecnologias da informação), não podemos desalicerçar a leitura de literatura

5 LÉVI, Pierre. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 63.6 CAPPARELLI, Sergio. Novos formatos de leitura e internet. In: RÖSING, Ta-

nia; BECKER, Paulo. Leitura e animação cultural. Repensando a escola e a biblioteca. Passo Fundo: UPF, 2002. p. 106.

7 Tal circunstância de leitura, na cibercultura, poderia em outra oportunidade ser mais bem discutida. O dinamismo da leitura na rede digital não necessa-riamente pode implicar uma leitura superficial, passiva. irrefletida. Na rea-lidade, a cibercultura, como coloca Lévy, “não é justamente a civilização do zapping.” LEVY, op. cit., nota 5, p. 68.

8 LÉVY, op. cit., nota 5, p. 161.

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dessa vida que está acontecendo, dessas tecnologias, com as quais, talvez, a literatura em sua essência nem rivalize.

Possivelmente, os medos sejam nossos, de professores e de pesquisadores, não da arte. Aliás, a arte nunca se contrapõe à vida. E a literatura, não menos e cada vez mais, abebera-se dessas “perturbações” à ordem na experiência humana. Assim, em nome de lermos melhor e, principalmente, em nome de vencermos a tal conhecida “crise” da leitura na escola, talvez seja melhor começarmos a navegar seriamente pela (hiper)realidade!

O hipertexto sem tela

Quando falamos sobre a leitura do hipertexto em sala de aula, imediatamente surgem ressalvas quanto às possibilidades de se trabalhar com computadores, principalmente nas escolas públicas. Os argumentos dos professores reportam tanto a inexistência de computadores conectados à rede na escola (ou a existência de apenas uma sala de informática para toda uma população de alunos), quanto ao pouco domínio dos próprios professores no que se refere a essa ferramenta. Tais argumentos podem até ser momentaneamente válidos, mas estão condenados, é certo, à obsolescência. A introdução das multimídias digitais na escola é já uma realidade, mesmo que ainda tímida, da mesma forma como o desconhecimento do professor quando ao uso do computador é um fator necessariamente em vias de superação. Por enquanto, neste momento intermediário entre a sala de aula tradicional e a da cibercultura, há, contudo, uma possibilidade bastante exeqüível: hipertextualizar a sala de aula, mesmo sem a necessária presença de monitores de computador.

De alguma maneira, a realidade dos demais suportes nos permite hipertextos que apenas não são dessa forma reconhecidos por estarem impressos e em papel. Se o hipertexto tem em sua natureza a convergência de múltiplas linguagens, outros textos, como os de jornais e revistas, por exemplo, também recorrem a essa convergência, embora, evidentemente, com limitações características. Ao propor o trabalho com a leitura do texto jornalístico informativo num projeto pedagógico interdisciplinar e intertextual, Angela Kleiman e Silvia Moraes observam que a Folha de S. Paulo, assim como outros textos, pode ser lidas como hipertextos:

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Se o leitor nada souber sobre o assunto e se o assunto for complexo, pode ir para os encartes de gráficos e quadros (como se estivesse “clicando”) “Saiba mais”, “Entenda mais”, que, muitas vezes, trazem históricos, explicações, tabelas e mapas.A reportagem de revistas semanas de informação segue também essa tendência e utiliza diversos recursos e fontes nesse esforço de didatização: fotos, reproduções de documentos, tabelas, gráficos, diagramas, encartes explicativos. Como os prazos para a publicação não são tão exíguos como os dos jornais diários, encontra-se maior variedade no uso desses recursos, em geral também reproduzidos de forma mais atraente, pelo tipo de papel utilizado.9

As reportagens são exemplos de textualidades que se utilizam de vários códigos e de diversas mídias e são economicamente mais acessíveis no que se compare aos equipamentos de computador. Numa circunstância de eventual carência de recursos tecnológicos, podem servir como “janela” hipertextual e como um recurso importante para o estudo da literatura. Nesse aspecto, é importante, desde já, que digamos que, num trabalho hipertextual que vise ao estudo da literatura e à promoção da leitura, parece inadequado o centralismo exclusivo da leitura às fontes canônicas da história da literatura. As obras literárias são parte de um sistema comunicativo dinâmico que não está fechado e definido, mesmo que assim o desejem os planos de ensino; pelo contrário, em constante renovação e em constante diálogo, esse sistema e a literatura estão, incessantemente, sendo produzidos. Apenas com um trabalho aberto às demais construções sociocomunicativas e aos demais gêneros textuais, a própria noção do que seja literatura poderá ser posta em discussão como um fenômeno vivo, não como um conceito “pronto”, “acabado”, como um “conteúdo”, como veremos posteriormente.

Os textos jornalísticos podem ser introduzidos, assim, no estudo da literatura, pela sua condição textual, na qual convergem mais de uma mídia, mais de uma linguagem. São, de alguma forma, gêneros que, historicamente antecedendo o hipertexto na tela do computador, dão conta de uma leitura que não se basta na linearidade e na fluidez seqüencial fixa; antes, associam-se a uma visão que passeia pelo impresso, por diferentes lugares de informação do texto, por diferentes códigos, por imagens, por textos paralelos que se completam. Além disso, esses hipertextos guardam em si um outro fator

9 KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisciplinaridade. Campi-nas, SP: Mercado das Letras, 1999. p. 101.

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de grande pertinência no trabalho de leitura na escola: são portadores de atualidades. Por eles, podemos refletir sobre impasses, sociais, culturais, políticos, éticos etc. presentes em nossa realidade. São textos que trazem temas vigentes, notícias, matérias investigativas, denúncias, descobertas. São, assim, na forma e no conteúdo, vivos, dinâmicos, provocadores, embora, é claro, possam ser, principalmente quanto ao seu assunto, efêmeros.

A questão, então, é fazer que esses textos, dinâmicos, atraentes, apesar de efêmeros e contextualizados, sejam leituras que abram espaço para aqueles textos que, pela sua qualidade artística, sejam – ou possam a vir a ser – perenes. O texto literário, se, com freqüência, não tem a riqueza de recursos dos hipertextos jornalísticos, guarda em si a possibilidade de perdurar, pela universalidade que atinge. E isso o justifica como um “sítio” privilegiado de sentido a ser interpretado e reinterpretado. Em trabalho “em rede”, assim, orientado para a leitura hipertextual, é condição fundamental assegurar e preservar o lugar da palavra artística. É fundamental, na rede construída pelos percursos dinâmicos da leitura, jamais igualar os nós!

Na proposta abaixo, buscaremos sugerir não um método de trabalho, mas uma possibilidade de leitura em rede que, sincronizada com o interesse pela reflexão sobre os impasses da atual realidade, não perca o foco sobre o mérito e as particularidades da leitura do literário. Em lugar de conceitos, propomos discussões; em lugar de conteúdos, propomos interpretações. Dessas discussões e dessas interpretações, encaminharemos respostas que nos farão tanto compreender a realidade tematizada na rede de textos quanto permitirão uma discussão sobre como pode ser compreendida e promovida a leitura literária.

Um verdadeiro impasse da atualidade: a violência urbana e o crime organizado

Os acontecimentos em São Paulo, em maio de 2006, talvez não sejam por muito tempo esquecidos. Pela primeira vez na história social brasileira, uma facção criminosa, o PCC, mostrou o verdadeiro poder do crime organizado, fazendo da cidade mais economicamente produtiva do Brasil, o centro do país, refém de sua violência. Números alarmantes

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de atentados contra a população, delegacias e veículos de transporte coletivo, além de toda a sorte de violência e de homicídios contra policiais, pessoas comuns e bandidos, fizeram da capital financeira do país uma praça de guerra. Tudo, segundo a imprensa, mobilizado por lideranças que, de dentro dos presídios, impunham condições não admitidas pelas autoridades paulistas, que, embora advertidas sobre a realização da megarrebelião antes de sua execução, nada puderam fazer contra o poder do PCC. Dentre as exigências dos bandidos, estariam, segundo a imprensa e a revista Isto É, que será objeto de nossa análise, a não-transferência de presos para outras penitenciárias, mais seguras, a instalação nos presídios de aparelhos de TV para que os presos pudessem assistir à Copa do Mundo, a ampliação dos horários de banho de sol e de visitas íntimas, além da ampliação do indulto do Dia das Mães e da mudança do uniforme dos apenados – para uma cor mais adequada às fugas noturnas! O indeferimento dessas solicitações teria dado margem a que acontecesse o talvez maior conflito urbano entre a polícia e os criminosos na história do Brasil.

Antes de qualquer julgamento sobre os fatos e de qualquer reflexão sobre o tema, é fundamental que façamos a leitura das intencionalidades dos desdobramentos discursivos, fundamentalmente dos publicados na imprensa, perante o ocorrido. Mesmo em se tratando de matérias que se pretendem jornalísticas, a referencialidade de qualquer texto, inclusive dos que se pretendem em uma dicção informativa e objetiva, está sempre impregnada de uma imparcialidade ora implícita, ora abertamente atuante, como poderemos ver na revista Isto É de 17 de maio de 2006. Ali, na matéria principal, se intercalam às informações comentários sobre a megarrebelião, os quais ganham força de verdade quando avalizados por enunciados visuais, por imagens que supostamente confirmam os enunciados verbais, como podemos já ver na capa da edição, que se apresenta como uma espécie de portal de hipertexto, ao qual se seguem outras páginas a ele “linkadas”.

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A capa da revista anuncia e apresenta o que se abre no conteúdo posterior. É como uma home page, a página básica, da edição, nesse caso, sobre a megarrebelião do PCC. Nele se introduzem o fato em cobertura e o tratamento que se dará ao fato. Ali, contrariamente ao que se verá posteriormente na matéria, ricamente ilustrada com fotografias em grande destaque, a diagramação centraliza-se na dimensão maior da expressão “O caos”, em relação à foto, que é menor, datada e localizada. A dimensão da imagem não toma toda a página, seu tamanho é inferior à palavra em destaque. Ao que parece, a ênfase é na palavra, que se justifica no flagrante de um acontecimento entre outros tantos no “caos” instituído pela violência. O enquadramento permite a visão de todos os integrantes envolvidos no fato e a distância inviabiliza reconhecerem-se rostos ou feições. O importante é a cena, emoldurada em preto, na qual aparecem pessoas, como tantas outras naquele dia, submetidas à violência de armas pesadas. Enfatizando a amplitude do fato, diz a legenda: “Dominada por atentados, a cidade vira praça de guerra com 20 milhões de habitantes em pânico”. É um instantâneo de um incidente envolvendo sujeitos anônimos e reproduzido às centenas na

Figura 1 – Isto É: a capa (ou o Portal) – Habitantes em pânico

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cidade sem controle, que será apresentada na matéria das partes centrais da edição.

A matéria de Marco Damiani10 ocupa as páginas centrais da revista Isto É de 17 de maio de 2006. É introduzida por várias fotos e nela não há um título convencional e um subtítulo que delimite sobre o que tratará o texto. Há, sobretudo, na sua apresentação, imagens “linkadas” em várias páginas, num mesmo indicador, “Sob o domínio do crime”, que marca cada foto na parte superior esquerda. As imagens ocupam duas páginas da revista e, além de flagrar os fatos, encadeiam-se numa espécie de estrutura de continuidade, pelas palavras

“terror”, “pânico”, “caos” e “vergonha”, que, em destaque, ao mesmo tempo legendam as imagens e fazem parte do título da matéria. Nessa progressão de signos verbais e visuais se apontam as ações dos bandidos, as reações dos policiais, o desespero da população e a suposta ineficiência dos governantes.

Na primeira página da matéria, num plano de cima, que apequena um ônibus em chamas quase à condição de um brinquedo indefeso, a imagem combina o fogo e a escuridão em diálogo com a palavra “terror” e com as legendas abaixo

10 DAMIANI, Marco. Terror... Pânico... Caos... Vergonha. Isto É, São Paulo, n. 1909, p. 30-39, maio 2006.

Figura 2 – Primeira página: A matéria – O Ataque do PCC

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da palavra – em caixa alta, “Ônibus incendiado na zona leste de São Paulo”, e a seqüência “Com 82 coletivos atacados, frotas foram recolhidas às garagens”. Nesse ônibus depredado, apequenado, destruído, encaminha-se a leitura de que a população está a pé, abandonada à própria sorte e à mercê de outros perigos nas ruas, como os que seguem na próxima página.

A continuação da página anterior exibe os perigos das ruas. A foto, desta feita, não se dá de baixo para cima, mas de uma lente que está entre as pessoas da rua, expostas à guerra urbana. À frente, em primeiro plano, junto à palavra

“pânico” em destaque e logo abaixo do indicador “sob o domínio do crime”, na lateral, à esquerda da fotografia, uma jovem assustada tenta fugir do local do conflito. Suas mãos retraídas e seu olhar mostram o temor da popular que carrega seus pertences em sacolas plásticas. Atrás dela, no centro da imagem, um policial à paisana pula como um soldado, fortemente armado e protegido com um colete, na direção do passeio onde se encontra a jovem. Dentre os veículos na rua, outro policial, de costas para a cena, carrega uma pistola, enquanto, ao fundo, mais pedestres, também em pânico, tentam abandonar o lugar. O quadro não aponta para o sentimento de confiança na polícia, ou de segurança por sua presença, o que se confirma na legenda da foto: “Tiroteio nas ruas (em caixa alta): Em pleno centro da cidade, todos corriam.

Figura 3 – Segunda página – A reação da polícia e as pessoas nas ruas

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Policiais armados buscavam vingança em meio à população”. Há a sensação de que as pessoas estão, sem proteção, no meio de uma guerra na qual não pertencem a nenhum dos lados em luta.

Na continuação da cena que mostra o pânico dentre os pedestres, surge a confusão entre os veículos, que também estão, como se apresenta na expressão, à esquerda, na parte superior da página, “sob o domínio do crime”. A imagem de um grande congestionamento de fim de tarde, como mostra a legenda, “Às 18 horas na Av. 23 de Maio”, deixa claras as perturbações no trânsito da cidade e, principalmente, os transtornos que o crime causou ao centro da metrópole. Em ambas as direções, o engarrafamento mostra a impossibilidade de tráfego e de comunicação entre os pontos centrais, os bairros e os pontos periféricos da cidade. Avançando-se na leitura dessa ausência de comunicação, as questões relativas às distâncias socioculturais já podem começar a ser observadas. Justamente dessa falta de comunicação e desse desacerto decocorre o que a palavra em destaque, “caos”, pode significar. De alguma maneira, durante a megarrebelião do PCC, quando a periferia invadiu o centro, imobilizou-se qualquer tentativa de comunicação entre os distintos espaços sociais, que deixaram de coexistir, mesmo que problematicamente, em prejuízo, em especial, das pessoas que andam pelas ruas centrais, dos motoristas que trafegam pelas avenidas. As diferenças

Figura 4 – Terceira página - Os efeitos no trânsito entre periferia e centro

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colidiram, os estratos sociais se inverteram na momentânea desordem da pirâmide social de São Paulo.

A parte final da seqüência dá começo ao texto da matéria propriamente dita. As reticências, antes posteriores às palavras “terror”, “pânico” e “caos”, agora são anteriores à palavra “vergonha”, que se encontra abaixo de um foto na qual Cláudio Lembo, o governador do São Paulo, aparece cabisbaixo. Sob essa foto, uma legenda cita a avaliação do político frente aos fatos – “Está tudo sob controle” – em contraste com a foto maior, que mostra um presídio dominado pelo crime, e em contraste também com os demais elementos textuais da matéria que apresentam os números da megarrebelião do PCC em São Paulo, comparada a Bagdá, como uma cidade vítima do terror. A perspectiva panorâmica na foto do presídio, nesta página, diferentemente da imagem do ônibus (Fig. 2), não apequena o presídio, mas o mostra, em enquadramento do tipo bird angle, de cima, completamente dominado pelos criminosos, que são visíveis apenas como minúsculos pontos espalhados pelo pátio do prédio. De maneira semelhante às demais imagens da matéria, os criminosos não aparecem, não são visíveis. À medida que viramos as páginas, “linkados” pelo indicador “Sob o domínio do medo”, surgem, no texto de Damiani, apenas imagens dos efeitos dos atentados em São Paulo e do pânico causado pela megarrebelião organizada pelo

Figura 5 – Quarta página – A responsabilidade pelo ocorrido

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PCC. Em nenhum momento, os criminosos são fotografados, o que lhes dá a feição de sujeitos não identificados, de terroristas invisíveis, de inimigos públicos que fugiram ao controle do Estado.

O que surge, mesmo, nas imagens que antecedem o texto de Damiani é um panorama da cidade de São Paulo, orientado pelas lentes que, na foto do presídio dominado, fecham uma incursão pelo caos na cidade. Como se fôssemos conduzidos por uma realidade virtual, simulamos uma imersão pelo caos de São Paulo. Primeiramente, de cima, vimos um ônibus em chamas (Fig. 2); após, descemos às ruas, ficando entre a população à mercê da violência (Fig. 3); depois, começamos a subir novamente, vendo de cima o plano de um engarrafamento (Fig. 4) e, finalmente, num quadro mais amplo, pudemos ver de cima, com mais distância, o presídio (Fig. 5), no qual, como o ônibus, percebe-se o incêndio de uma rebelião não controlada. As imagens são como janelas que, encadeadas, nos conduzem a uma tomada geral do que foi a megarrebelião em São Paulo e se fecham no rosto abatido de seu suposto responsável, o governador do estado.

Há, no texto de Damiani, em palavras e imagens, uma clara responsabilização ao governo de São Paulo pelo ocorrido. Cláudio Lembo é o grande culpado pelos problemas, por não aceitar auxílio federal, por não se antecipar aos fatos, preferido por acusar a “elite branca” pela situação. O PCC, segundo esta matéria, é o grande vencedor nesse round entre o crime e a legalidade ao propagar a desordem pelo não-cumprimento de suas exigências. No meio da crise, que, uma vez organizada pelos criminosos, permitiu por parte da polícia uma revanche que a igualou aos bandidos (segundo a matéria “a polícia militar teve licença para matar”), à mercê de tudo isso, está a população, que “na gangorra entre bandidos, policiais, governos e políticos” não tem a quem recorrer.

A intencionalidade da matéria de Isto É, assim, encaminha-se, na cobertura da megarrebelião, pela interpretação que redunde na responsabilização do Estado, ou do governo de Cláudio Lembo, no sentido de não conter a reação das lideranças do PCC diante do não-cumprimento de suas exigências. A dicção da matéria está, evidentemente, malgrado algumas discordâncias políticas pontuais, relacionadas às contendas partidárias específicas do momento histórico da publicação,

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em conformidade com os ângulos de visão da classe média leitora desse tipo de revista de circulação nacional. Não há abrangência na reflexão ou diálogo entre diferentes pontos de vista, apenas o ângulo fechado da matéria em choque com a avaliação do governador, retratado, cabisbaixo, sobre a palavra “vergonha”. As causas da rebelião são, assim, claras e decorrem do fracasso de uma política coerciva contra os presos amotinados que patrocinaram atos terroristas.

A grande questão é: seriam essas as verdadeiras causas do que houve em São Paulo? Seriam tão imediatos os fatos que possibilitaram a convulsão que se seguiu? No contato com outros textos, contudo, parecem surgir mais fatores envolvidos nas raízes em nosso histórico distanciamento entre o centro e a periferia, em nossos permanentes conflitos entre o núcleo e a margem, que poderiam ser muito bem discutidos a partir da imagem ressemantizada do engarrafamento na av. 23 de Maio. Talvez o engarrafamento possa representar mais do que a mera perturbação na rotina dos motoristas. Talvez possa ser visto como a concretização de nossa histórica falta de diálogo...

Em outra plataforma: a megarrebelião do PCC em São Paulo e o “centro”

Pensar determinado contexto implica visitar outros textos, outras “plataformas”. Nesse sentido, abandonamos o “Portal” de Isto É, com suas páginas “linkadas” no indicador “sob o domínio do crime”, para ingressar em outra “plataforma”, orientada por uma nova circunstância de leitura e, sobretudo, de comunicação social.

“Meu dia de periferia”, um texto de Mônica Bergamo, poderia bem ilustrar a maneira como a plataforma central da sociedade (não) vê a periferia. O texto, publicado no caderno Folha Ilustrada, da Folha de São Paulo, de 17 de maio de 2006, em meio ao torvelinho da megarrebelião do PCC, mostra um outro lado do fenômeno, relacionado aos efeitos que o terror (não) causou a setores abastados da sociedade paulista.

As imagens, em lugar de mostrar praças de guerra e operações policiais, revelam indivíduos solitários em dependências luxuosas que deveriam aguardar convidados para eventos sociais de alta monta. Numa das fotos, a

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maior, um dos sujeitos lamenta o fato de ter sido obrigado a desmarcar seu aniversário de trinta anos e de ter sido forçado a se desfazer de trinta arranjos de orquídea, conforme a legenda que acompanha a foto. Logo abaixo, em imagens menores, mais dois integrantes do high society paulistano demonstram seu “desagrado” com os problemas causados pelo PCC. Um deles, conforme a legenda, lamenta ter cancelado a festa para 150 convidados; o outro, só, sentado a uma mesa, na qual está, ao centro, um abacaxi, revela “fúria” em sua indignação apesar de, paradoxalmente, revelar estar planejando um protesto pela paz.

O texto é estarrecedor para um leitor com uma compreensão crítica um pouco mais elaborada. Em seu início, Mônica Bergamo, em possível ironia, dá o tom do que virá: “O high society paulistano viveu seu dia de periferia na segunda-feira, 15. Toques de recolher espontâneos, bandidos por perto, pânico nas ruas. Foi um choque.” E o que vem é ainda mais assustador, tendo em vista a estreiteza de pensamento da elite de São Paulo. O mesmo sujeito fotografado à mesa, com o tal abacaxi, é citado em sua argumentação no sentido de convocar cinqüenta amigos para um protesto: “Se podemos fazer passeata gay na avenida paulista, se podemos permitir também vandalismos depois dos jogos de futebol, porque não podemos fazer uma grande passeata de protesto contra a corrupção e a ineficiência de nossos dirigentes ?!?!?!”. Na fala dessa “querida” figura dos Jardins/Higienópolis/Morumbi transparece a visão preconceituosa que vê como similares à desordem as diferenças

sexuais.

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O esforço do nobre sujeito, entretanto, parece fadado ao fracasso, como nos mostra a matéria, já que não houve a necessária adesão das outras (mesmas) partes, pois o sentimento que orientou a fina flor dessa sociedade paulistana foi – senão de tédio pelo acontecido, como nos mostram, na foto maior, as feições do aniversariante amofinado, que brinda só – apenas de desconforto pela impossibilidade de realização de seus eventos sociais. Viver seu “dia de periferia” parece não ter abalado o centro para os dramas das margens da sociedade, para o estado convulsivo em que se encontram as grandes

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cidades graças à indiferença como são vistos os dramas que não fazem parte do mundo dos “patês”, das orquídeas, do champanhe. As vozes periféricas, porém, podem não estar caladas sempre. Em outras “plataformas”, a arte e a literatura parecem dar vazão ao testemunho dos excluídos.

A periferia, o centro e a leitura do texto literário!

O que os olhos vêem11

Eduardo Dum-dum

O retrato da favela tem só uma imagem, mais cada olho tem sua interpretação pra essa imagem.Meus olhos vêem quando eu olho pra favela almas tristes, sonhos frustrados, esperanças destruídas, crianças sem futuro, vejo apenas vítimas da dor. Os olhos do gambé12 vêem traficantes com AR-15 lançador de granada, vagabundas drogadas, mães solteiras, desempregados embriagados no balcão do bar, adolescentes viciados, pivetes com pipa, com rojão avisando que os homi tão chegando, vêem em cada barraco um esconderijo, uma boca, em cada senhora de cabelo branco uma dona Maria mãe de bandido. Os olhos do político vêem presos ignorantes, ingênuos, marionetes de manuseio simples, a faca e o queijo, o passaporte para Genebra, o talão de cheque especial, o tapete vermelho para a loja da Mercedes, o tamanco, a bolsa, o vestido, o modes e o vibrador da sua puta, um mar de peixes cegos que sempre mordem o anzol.Os olhos do boy, esses não vêem nada, nenhum problema, não vêem fome, as rebeliões, os aviões13 com droga, o tráfico de arma, as escolas sem telhado, lousa, professor, segurança, o jovem sem acesso a livro, quadra esportiva, centro cultural, os ossos no cemitério clandestino, as vítimas da brutalidade da polícia, o povo esquecido e desassistido, os olhos do boy só são capazes de enxergar na imagem da favela o medo, o medo em forma de HK na ponta de seu nariz.

– E você, truta?14 O que seus olhos vêem quando olham para favela?

O texto acima é de um gênero definido como “escrita periférica”. Seu autor é paulista e rapper do grupo Facção Central. O texto é curto, contundente, sem a organização fabulística de uma narrativa ficcional, de um conto, sem a entonação lírica de um poema, embora estruturado à maneira da organização argumentativa de uma crônica literária. Acima

11 DUM-DUM, Eduardo. O que os olhos vêem. In: FERRÉZ: Literatura marginal. Talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 29.

12 Polícia Militar.13 Traficante de drogas.14 Parceiro, pode significar colega de quadrilha.

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de tudo, é um testemunho, um desabafo, que mostra a realidade da periferia e como essa realidade parece ser focalizada por parte de integrantes de outros estratos da sociedade. “Os olhos que vêem” é um texto que trata da resposta do periférico às diferentes maneiras como distintos atores sociais podem observar as margens dos grandes centros urbanos. Aos dramas da periferia, à carência de recursos básicos para uma sobrevivência digna nas favelas, associa-se, assim, uma nova mácula: o olhar depreciativo e preconceituoso do restante da sociedade.

Se na matéria de Isto É os sujeitos periféricos em nada se manifestam, em nome da construção de um inimigo invisível, disfarçado de terrorista, que vem das margens perturbar o centro; se, no texto de Mônica Bergamo, esses sujeitos ainda mais invisíveis se tornam graças à indiferença blasé da elite paulistana, no texto de Eduardo Dum-dum a periferia surge como um lugar que se reconhece multifacetado por diferentes olhares, advindos de setores nucleares da sociedade. Em resposta a isso, de alguma maneira a periferia rejeita, pela voz do

“eu” que conduz o texto “Os olhos que vêem”, ser aquilo que o centro quer que ela seja, resistindo às interpretações injuriosas que são impostas aos setores periféricos da sociedade.

Nesse sentido, o “eu” que se manifesta assume-se não apenas como objeto mudo às concepções das diferentes perspectivas centrais, mas como centro também de uma perspectiva, como uma voz crítica que não apenas se recusa a abdicar do diálogo com os outros “eu”, mais proximamente ambientados nos lugares institucionalmente nucleares da sociedade, mas os questiona frontalmente. Para isso, não abandona a linguagem, as gírias e as expressões da favela, testemunhando, assim, em resposta aos “outros”, logo nos primeiros parágrafos de “O que os olhos vêem”, sobre a verdade da realidade de dor das favelas, nas quais residem “almas tristes, sonhos frustrados, esperanças destruídas, crianças sem futuro”. Numa literatura de margem, sabe o que centro pensa, conhece o centro, mas não fala como ele...

A partir do terceiro parágrafo, então, observa o modo como a polícia (“gambé”), os agentes da ordem, estrangeiros à periferia quando a serviço do Estado, vêem a favela. Por esse olhar a periferia é o lugar onde se avolumam contraventores e despossuídos, excluídos e viciados. É espaço de criminosos a serem debelados. O olhar seguinte, dos políticos, é flagrado

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na maneira como os homens públicos vêem a favela: pelos benefícios que ela lhes proporciona ao manipularem os eleitores, “peixes cegos que sempre mordem o mesmo anzol”. O terceiro olhar avistado criticamente pelo eu-periférico é o do boy, que nada vê além do medo, que não enxerga o crime como um aspecto associado a carências no que se refere à educação, à cultura e à dignidade das pessoas marginalizadas pelo sistema, que não percebe que todas elas tão vítimas do HK das guerras urbanas ou da brutalidade da polícia.

O texto de Dum-dum, assim, de sua perspectiva marginal, visita o ponto de vista do(s) centro(s) e manifesta-se em réplica à repressão, à exploração ou ao temor irrefletido com relação à periferia, acusando em tais posturas a inexistência de uma atitude que reconheça a favela, em suas dificuldades e na sua circunstância, como efeito da desatenção, ou, principalmente, da exploração política no que se refere às questões sociais, educacionais e culturais. Nesse avanço, pela palavra e pela voz assumida, do olhar de excluído para o de um sujeito, como seus pares, apartado das garantias de cidadania, Dum-Dum pode, além de contestar perspectivas preconcebidas e reprodutoras da ordem injusta, estender a questão ao próprio leitor que está fora da margem: “– E você, truta? O que seus olhos vêem quando olham para favela?”.

É essa perspectiva que torna o texto de Dum-dum diferente dos demais. Em sua capacidade de tentar ultrapassar seus próprios limites e particularidades, na sua busca e no desafio ao(s) outro(s), às alteridades que, de forma manifesta, conhece e às quais procura responder, a literatura marginal de Dum-dum torna-se também um centro. Deixa de ser uma margem silenciosa (ou silenciada) vista a distância pelos olhos dos bem situados; passa a agir como um núcleo irradiador de questões que, diversamente dos demais textos, não apontam na direção de interpretações categóricas (ou da ausência delas!, como no texto de Bergamo). Por isso, por também ser centro, não abdica da própria linguagem, pois sua linguagem já é, de alguma maneira, seu tema, já que é parte da cultura periférica, da favela.

Para Dum-dum, os elementos de sua identidade, a linguagem e cultura não sugerem a afirmação de um código fechado. Não são articuladas palavras específicas e compreensíveis apenas ao grupo a que pertencem. Como visa ao outro, seu código, a língua da favela, é reelaborado como

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representação de uma oralidade, para uma recepção além do “si” de quem se expressa, embora ainda centrada no “si” de quem escreve: o artista. Sua proposta é aberta, sua leitura é releitura, sua voz é dialética. Nessa orientação, o texto exige a participação do leitor, numa postura de provocação à interação e, sobretudo, à reflexão.

Avançando nessa literatura de margem e nas questões que envolvem a megarrebelião do PCC, encontramos a obra Ninguém é inocente em São Paulo,15 de Ferréz. Publicada no contexto dos incidentes de maio de 2006, o livro é mais um testemunho de uma perspectiva periférica que pretende também ter voz. É um livro de contos, mas também é, acima de tudo, uma resposta, pela via da arte ficcional, às conclusões superficiais que cercaram as questões relativas à violência urbana.

Sem esquecermos a importância dos recursos visuais para a leitura dos enunciados verbais, a primeira leitura desta obra poderia se estabelecer na relação entre o título e a imagem da capa da edição. A foto mostra dois mundos distintos, lado a lado, o da riqueza e o da pobreza, dois mundo que, como quer mostrar Ferréz, não possuem inocentes.

Figura 6

15 FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. Rio de Janeiro: Objetiva. 2006.

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Na capa de Ninguém é inocente em São Paulo, mais do que se diferenciarem, os opostos são envolvidos em um jogo especular. Abaixo, à esquerda está a favela, uma união caótica de zincos e de vielas, num desordenado mosaico rasteiro no qual se acumulam e se concentram casas e detritos nas limitações espaciais impostas pela coexistência de muitas pessoas, aproximadas e avizinhadas pela pobreza. Separado por um muro, ascende um luxuoso condomínio. Em oposição à densidade opressora da favela, o que impera na área dos bem nascidos é espaço e conforto. O prédio sobe em um espiral planejado, asséptico, o que permite aos moradores uma varanda com jardinagem e piscina. Abaixo, na área comum do condomínio, abundam áreas de lazer. Há espaço para moradores, há um ambiente de convívio civilizado, um lugar em que a vida agradável está separada pelos muros da desordem rasa da periferia. A capa do livro porém, parece não permitir dicotomias claras, como já podemos ler no título, que não inocenta ninguém em São Paulo. Na parte superior, esses mundos divididos são invertidos de ponta-cabeça e cruzados. O condomínio passa a refletir a favela e a favela tem como reflexo justamente o condomínio. Cada mundo como parte mútua do outro, cada lado como espelho de seu contrário, cada parte como cúmplice de sua oposta.

O autor, como Eduardo Dum-dum, é um jovem advindo das periferias dos centros urbanos. Além de escritor, é compositor de hip-hop e, sobretudo, um leitor que, para sobreviver, antes da arte, teve vários pequenos empregos. A orelha de seu livro salienta que Ferréz “sempre freqüentou bibliotecas”. De alguma maneira, a leitura foi sua alternativa de superação, uma maneira de poder esta, deixar pela palavra e pelos livros, assimilar os valores do centro, para mostrar-se, ele, Ferréz, como centro irradiador de cultura, como um agente transformador da ordem que não lhe é favorável. Seu nome literário, em si, já aponta para esse caráter de contestação:

“Ferréz, nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, é um híbrido de Virgulino Ferreira (Ferre) e Zumbi dos Palmares (Z) e uma homenagem a heróis populares brasileiros”.16

O livro Ninguém é inocente em São Paulo, por isso, é uma união de contos e de “insultos”. Para o autor, contos

“sempre foram desabafos” (p. 9), e esses desabafos aparecem

16 http://www.itaucultural.org.br

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nas histórias narradas pelo autor numa linguagem de quem conhece as mazelas da pobreza, as dificuldades da periferia, a dor dos excluídos. O conto “Fábrica de fazer vilão” trata da violência policial gratuita, das abordagens desumanas dos agentes de segurança, que, em lugar de protegerem as comunidades pobres, são promotores da desordem, motivadores ao crime. “Pega ela” é um diálogo entre dois

“soldados” da favela numa discussão fatal a partir dos rigorosos códigos de fidelidade do crime. “Pão doce” tematiza os desrespeitos à dignidade dos trabalhadores de menor escalão no organograma das grandes empresas (no caso um supermercado), submetidos aos desmandos e crueldade de chefias, também pequenas, também periféricas, mas nem por isso solidárias.

Outros contos e outros ‘insultos” mostram as tentativas de superar as más condições da pobreza. “No vaga” envolve um diálogo de desempregados tentando encontrar meios de sobrevivência; “Rastejar” envereda pela via do fantástico ao relacionar o ato da leitura à metamorfose do sujeito à condição de um réptil – a leitura transforma!. O conto “Vizinhos” trata das dificuldades de convivência entre os sujeitos da periferia e as armadilhas dessa convivência num jogo no qual não há benfeitores ou malfeitores absolutos. Todos são cúmplices de um mesmo processo, no qual não há inocentes, como lemos no texto “O plano”:

Meu povo é assim, vive de paixão, o ideal revolucionário também é pura paixão, muitos amam Lucimares, muitos amam Marias, Josefas, Dorotéias, e, na transubstanciação da dor, um tipo mata um empresário no posto e o plano funciona.E quer saber?NIGUÉM É INOCENTE EM SÃO PAULO.Somos culpados.Culpados. Culpados também. (p. 16)

A visão crítica de Ferréz não isenta a favela dos próprios problemas. Se é evidente que a sociedade a abandonou, também é certo que, nesse processo de abandono, colabora o alheamento de seus habitantes: “Não me admira que o plano funcione, os pensamentos são vadios, afinal essa é a soma de tudo, quem? O rei do ponto? Esse tá sossegado, só contando dinheiro. Informação? Não! povo é leigo, não entende, então não complica, o assunto na favela aqui não vinga seu manual prático do ódio, só Casa dos Artistas, discutir na favela só se o Corinthians é campeão ou não” (p. 16).

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As narrativas de Ferréz são, dessa forma, provocações abertas não apenas ao centro que marginaliza, mas às periferias, que, ao se isentarem da crítica a própria condição, não se tornam também centros. Nesse sentido, os sujeitos excluídos, mesmo sem querer, colaboram com o “plano” excludente da sociedade.

Na discussão, então, sobre o enfrentamento da condição de marginalidade, a obra de Ferréz é um testemunho contundente da necessidade de superação da posição de injustiçado (que alimenta o crime organizado) para sujeito crítico. Nesse sentido, além de replicar ao mundo exterior, Ferréz quer fazer pensar a própria margem onde se encontra. E esse caminho só pode ter execução pela via da leitura e da literatura, como formadora de novos centros. Pela palavra escrita dos periféricos, dos excluídos, podem surgir as réplicas contra os ditames dos costumes, dos valores, da linguagem e da estética dos núcleos padronizadores. Nesse sentido, Ferréz, em seus “insultos”, pretende que se discuta mesmo o que é a literatura.

O primeiro texto do livro, “Bula”, trata do encaminhamento do autor com seu fazer literário, na medida em que seus textos que “têm algo de bom sempre nasceram rápido, de uma paulada só”: “A maioria é duro, desesperançado, porque assim foi vivido ou imaginado. No rastejar o ser mutante não se contenta em ser “normal”. Trechos de vida que catei, trapos de sentimentos que juntei, fragmentos de risos que roubei estão todos aí, histórias diversas do mesmo ambiente, de um mesmo país, um país chamado periferia” (p. 10).

No âmago das questões sociais está também um fazer literário que pede espaço. Somente legitimada como arte, a oralidade da periferia pode ser elevada ao status de uma linguagem reflexiva, crítica, atuante. Ferréz quer seu país, a periferia, que também é de todos, mesmo dos que vivem melhor, valorizado como centro de arte e de criatividade. Busca, então, a partir do factual, o ficcional e a universalidade da literatura. Inventa histórias, junta “trapos de sentimentos”,

“rouba” “fragmentos de riso” e transforma-os em matéria artística, associada a uma realidade específica e a uma crise particular – as mazelas urbanas da sociedade paulista e brasileira –, mas própria de merecer leitura em qualquer lugar do mundo onde exista pobreza, onde existam guetos

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formados pela insensibilidade política de todos os que com eles relacionam, fora ou dentro da margem.

E o caminho que Ferréz vislumbra é pela cultura, pela arte, pela contundente manifestação do texto literário, como ele mesmo parece afirmar no conto “Assunto de família”:

“Continuo andando, Pai, e por isso nunca mais deu tempo para gente se falar, eu continuo de escola em escola, de entidade em entidade, de show em show, tentando espalhar informação, tentando cultivar o prazer de ler e de buscar algo melhor, e sei que o senhor me apóia e torce para que um dia nós todos, brasileiros sofredores, lutemos com as armas certas, um livro, um caderno e um lápis, saberemos um dia o que é um livro, pois é um trecho de livro que nos coloca da cadeia, que nos afasta do dinheiro e que nos jogou aqui há quinhentos anos” (p. 81).

Considerações finais – a literatura, os centros e as margens

A publicação de Leitura em crise na escola, em 1982, foi resposta à questão social e política que residia nos desmandos da perspectiva do Estado burocrático-autoritário pós-64, os quais repercutiam em todas as demais instâncias sociais, entre as quais se encontrava a escola. Denunciar um processo em crise na formação de leitores e propor atividades efetivamente em conformidade com as particularidades do texto literário, este concebido, na sua verdadeira essência, como o texto, por excelência, emancipatório e mobilizador da reflexão, foi a base pedagógica de um movimento político que se encontrava em ebulição, principalmente nas partes letradas da sociedade. Nos objetivos da obra, de “circunscrever um novo perímetro para a leitura e o texto literário em sala de aula, sugerindo um relacionamento mais participante para o para o aluno, de modo a tornar autenticamente democrático o processo por que passa[va] a escola brasileira no nosso [naquele] tempo”,17 encontra-se a base de uma transformação inerentemente política. Formar leitores era formar sujeitos sensíveis ao texto literário e, assim, politizados. Era essa a necessidade no fim da década de 70, e início da de 80, quando todos pareciam unidos

17 Zilberman, op. cit., p. 8.

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por um problema maior do que os demais: o restabelecimento da liberdade no país.

A atualidade desse novo milênio aponta para outros problemas, já que a democracia – ao menos, formalmente – encontra-se consolidada. A questão agora é torná-la accessível a todos. De alguma maneira, a liberdade efetiva não atingiu milhões de desfavorecidos, que permanecem dependentes de condições de vida indignas. Nesse sentido, o caminho, hoje, parece ser a superação crítica da suposta “unidade nacional”, em nome da reflexão sobre os distintos e antagônicos espaços de nossa sociedade fracionada. Nesse sentido, é urgente um encaminhamento de reflexão sobre os diferentes setores da sociedade, aparentemente indiferentes, de costas uns aos outros, ou de frente, enfrentando-se, na busca por supremacia. Parece mais importante agora a reflexão crítica sobre os distintos códigos e as diferenças culturais.

A pluralidade de nossa sociedade, além das diferenças identitárias que fazem parte de qualquer nação, quanto mais com a extensão territorial do Brasil, em alguns aspectos parece diferir da dos demais países. Nosso caso específico forjou diferenças resultantes do histórico acúmulo de riqueza em partes minúsculas da sociedade com o empobrecimento de milhões de pessoas. Nosso caso específico não se deu apenas por diferentes tradições que urdiram culturas distintas num único território, ao contrário, é um mesmo passado, violento, autoritário e injusto que apartou grupos humanos. Por isso, a crise de agora é mais profunda e mais difícil de ser enfrentada.

O caminho para tal alteração da ordem, pela educação, parece ser o exercício da reflexão crítica quanto às demandas dessa sociedade fracionada pela pobreza de muitos e pela violência contra todos. Devemos permitir que os “invisíveis” aflorem no cenário da educação e da cultura. Devemos patrocinar a comunicação, não o congestionamento. Nesse sentido, é importante abrir e reorientar conceitos, já que são, de qualquer texto, socialmente circunstâncias, legitimados nas esferas centrais do conhecimento. Em primeiro lugar, então, devemos perceber e fazer perceber que o(s) saber(es) e as artes estão no mundo, não nas classes das instituições de ensino ou no acervo das academias. No mesmo plano, devemos reconhecer a arte que está na margem, respeitando

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A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia

e valorizando a estética desses setores. Dum-dum e Ferréz são artistas, são poetas, são ficcionistas – fazem literatura, mesmo que sua obra esteja fora dos currículos das escolas e da universidade. Legitimar a arte das minorias é um caminho para se entenderem as periferias como centros de reflexão.

Em segundo lugar, devemos pensar a leitura segundo uma abordagem necessariamente dialógica, abandonando as pretensões de uma “literariedade” intrínseca aos textos. Faz parte da condição essencial de todos os textos, mesmo e sobretudo os literários, serem condutores de réplicas. Isolados, perdem seu sentido, perdem a força. São plantas artificiais ou de laboratório – não passa por eles a seiva da vida. Justamente nesse diálogo entre textos, na forma e no conteúdo como se constroem as réplicas, escabelem-se as relações que fazem um texto ser artístico ou não.

Em nosso caso, neste trabalho, partimos de um impasse do cotidiano para saber mais não apenas sobre este cotidiano, mas sobre a própria sociedade e a própria literatura dessa sociedade. Para melhor entendermos esse mundo e a arte desse mundo, “navegamos” por diferentes “plataformas” textuais, transitando, conseqüentemente, por distintivos espaços sociodiscursivos da sociedade. Percebemos as limitações da abordagem da imprensa escrita no tratamento do fenômeno, que torna invisíveis as periferias e que acentua apenas as perturbações ocorridas no centro; estarrecidos, assistimos à indiferença entediada e autocentrada da elite paulistana quanto à megarrebelião do PCC em São Paulo. Por outro lado, vimos surgirem, pela literatura, testemunhos críticos de artistas que, numa estética própria, na oralidade rapper da favela, jogam na discussão elementos que comprometem toda a sociedade, inclusive as periféricas, como responsáveis por esse estado de coisas. São testemunhos profundos de uma arte particular, que, ao mesmo tempo, torna-se universal pela possibilidade de suplantar a própria circunstância: onde houver um gueto, Ferréz e Dum-dum serão compreendidos.

No entrechoque de textos, de imagens, de realidades, redescobrimos a realidade em mais de uma instância, em mais de um centro; pela leitura em rede, rediscutimos a literatura, retirando-a dos sítios letrados e ilustrados da sociedade para restituí-la à vida e a seus impasses reais... Nesse encaminhamento não há fim. Há mais leituras, há mais

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Miguel Rettenmaier

textos, há mais livros, há mais interfaces no infinito mundo hipertextual de descobertas no qual podemos navegar.

ReferênciasDAMIANI, Marco. Terror... Pânico... Caos... Vergonha. Isto É, São Paulo, n. 1909, p. 30-39, maio 2006.

DUM-DUM, Eduardo. O que os olhos vêem. In: FERRÉZ: Literatura marginal. Talentos da escrita.

FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisciplinaridade. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1999.

LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento da era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

_______. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1999.

RÖSING, Tania; BECKER, Paulo. Leitura e animação cultural. Repensando a escola e a biblioteca. Passo Fundo: UPF, 2002.

ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.http://www.itaucultural.org.br

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O professor e o erro no processo de alfabetização

Natália Duarte*

A educação é uma das demandas mais clamadas pela sociedade mundial na perspectiva de um mundo melhor. No Brasil, educação de qualidade para todos é apontada como elemento fundamental de estratégia de mudança, do fortaleci-mento da democracia e da redução permanente de desigualda-des sociais, regionais, étnicas e de gênero. Contudo, em vez de servir como redutora, a educação brasileira tem sido indutora da desigualdade. Por raça, etnia, gênero, região, classe social, deficiência e outros, a educação apresenta-se desigual e desi-guala, principalmente no que se refere à alfabetização.

A educação pode contribuir, nomeadamente, com a construção de um Brasil igualitário não apenas na perspectiva econômica tão apregoada, mas, sobretudo, para a ampliação da maturidade intelectual, fortalecimento da ética e demo-cracia, reconhecimento e valorização da diversidade cultural estruturante do Brasil e desenvolvimento da empatia com os outros seres humanos e com a natureza.

Promover um Brasil alfabetizado, educado, conhecedor de seus direitos, capaz de pensar, de resistir e de propor, em condições de se organizar e de lutar por sua liberdade, passa, inexoravelmente, pela melhoria do ensino da língua escrita em ambientes formais e não formais. A alfabetização efetiva é coadjuvante na viabilização de um novo projeto de desenvol-vimento social, político e econômico nacional.

* Professora de Educação e pedagoga; especialista em alfabetização e mestre em Educação. Foi professora de rede pública do Distrito Federal por 17 anos. É professora de graduação e pós-graduação no Centro de Ensino Universitá-rio do Distrito Federal há seis anos e há três trabalha no MEC – atualmente é Coordenadora Nacional do Programa Escola Aberta. É conselheira no CNAS representando o MEC.

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Natália Duarte

No contexto brasileiro, a inclusão social e a conquista da cidadania passam pela educação e sua porta de entrada é a aprendizagem da leitura e da escrita. Contudo, os progra-mas e sistemas de avaliação nacionais e internacionais vêm averiguando duas contradições. A primeira: ainda que a uni-versalização do ensino fundamental venha sendo construí-da efetivamente no Brasil, encontra-se hoje um contingente muito grande de crianças, dentro da própria escola, que não sabem ler e escrever (39%);1 a segunda é que, mesmo que a taxa de analfabetismo absoluto acima dos 15 anos tenha sido reduzida em mais de 50 pontos no decorrer do século XX (de 65,3% em 1900 para 13,6% em 2000),2 hoje o contingente de analfabetos é quase três vezes maior do que o de então – com o detalhe de que 35% dos analfabetos absolutos de hoje pas-saram pela escola.3

É inadmissível que num país com o potencial do Brasil ainda haja cerca de 14 milhões de brasileiros absolutamente analfabetos e mais de trinta milhões de analfabetos funcio-nais.4 Comparativamente: temos um dos mais baixos índices de escolaridade na América Latina, com taxa de analfabetis-mo adulto maior que a do Peru (10,1%), da Colômbia (8,4%), Equador (8,4%) e Paraguai (6,9%).5 Se continuarmos com a velocidade de alfabetização que temos hoje, alcançaremos as taxas de analfabetismo do Peru em 2006, da Venezuela em 2010, do Paraguai em 2011, do Chile em 2016 e da Argentina e Uruguai em 2020. Taxas próximas de zero, somente na segun-da metade do século XXI.6 É preciso abolir o analfabetismo jovem e adulto no Brasil e garantir que toda criança, sem ex-ceção, aprenda a ler e a escrever na escola, tendo este direito assegurado.

Entretanto, os alunos das escolas vêm apresentando re-sultados piores ao longo da última década. Comparando-se os resultados obtidos pelo Sistema Brasileiro de Avaliação Escolar (Saeb) nos anos de 1995, 1997, 1999 e 2001, perce-be-se uma queda no desempenho dos alunos (os resultados obtidos são de 188,3; 186,5; 170,7 e 165,1, respectivamente).

1 Saeb - 2003.2 Mapa do Analfabetismo no Brasil. Inep - 2003.3 Idem.4 IBGE, Censo Demográfico - 2000.5 Alfabetização de Jovens e Adultos. MEC - 2004.6 Alfabetização de Jovens e Adultos. MEC - 2004.

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O professor e o erro no processo de alfabetização

Se compararmos o primeiro e o penúltimo Saeb, constatamos uma queda de 13% no desempenho dos alunos. Nas regiões Nordeste e Centro-Oeste essa queda foi de 21,1% e 17,6%, res-pectivamente – atribuída à pouca competência na leitura e interpretação de textos (análise-síntese do Saeb).7

Outro contra-senso: os profissionais responsáveis pela alfabetização são os que possuem menor taxa de escolarida-de. A taxa de docentes com nível superior no ensino funda-mental é de 36,1% para 1ª a 4ª série, de 77,1% para a 5ª a 8ª, e, nas classes de alfabetização, essa taxa é de apenas 16,7%.8 Nos programas de alfabetização de adultos o quadro é ainda pior, posto que a alfabetização realizada por instituições não governamentais não exige sequer titulação de seus docentes. Em sua maioria, são voluntários com muito boa vontade, sem formação profissional e com uma “capacitação” de, em média, 40 horas.

Esses dados são intrigantes posto que muito tenha se produzido, academicamente, sobre alfabetização, desde a ploriferação de variadas metodologias organizadas ainda com a lógica do conteúdo (métodos silábicos, fonéticos, analíti-cos, sintéticos, Dom Bosco,...), passando por discussões mais abrangentes, que, desfocando o conteúdo, centram-se no con-texto do educando pensando a alfabetização com base em situações-problema, alfabetização com base lingüística, com práticas de valorização de cultura, chegando a concepções de educação alicerçadas nos estudos sobre a aprendizagem, com ênfase nos esquemas de pensamentos e processos psicogené-ticos de aquisição da leitura e escrita. Ou seja, há avanços te-óricos e conceituais que abrangem mudanças paradigmáticas do ponto de vista epistemológico da educação, contudo esses avanços ainda não conseguiram se efetivar em maior compe-tência da escola para a alfabetização.

A efetiva alfabetização de jovens e adultos é o ponto de partida para promoção da justiça social, da democratização, da inclusão no mercado de trabalho, no desenvolvimento do país, no aumento da renda nacional e na sua distribuição. Manter o atual quadro de analfabetismo significa perpetuar uma situação de pobreza e de exclusão social de uma gran-de parcela da população. A Declaração de Hamburgo sobre

7 Inep - 2002.8 Censo Escolar 2003.

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Natália Duarte

Educação de Adultos entende a alfabetização “como o conhe-cimento básico, necessário a todos num mundo em transfor-mação em sentido amplo, é um direito humano fundamental”. Ainda citando a declaração: “Em toda sociedade, a alfabeti-zação é uma habilidade primordial em si mesma e um dos pilares para o desenvolvimento de outras habilidades [...] tem também o papel de promover a participação em atividades so-ciais, econômicas, políticas e culturais, além de ser requisito básico para a educação continuada durante toda a vida” (Ire-land et al., 2004, p. 43).

Além de ser signatário da Declaração de Hamburgo de Educação para Todos e das cartas das Conferências Internacio-nais sobre Educação de Adultos (Confiteas), há leis brasileiras que apontam para a ação de alfabetização – inclusive com sua erradicação – e ampliação da escolaridade dos jovens e adul-tos brasileiros. Podemos começar ressaltando os artigos 205 e 208 da Constituição Federal, que afirmam a educação como um direito subjetivo assegurado, inclusive, àqueles que não tiveram acesso em idade própria. A Lei de Diretrizes e Bases, mais especificamente em seus artigos 4º, 37 e 38, prevê a edu-cação de jovens e adultos como uma modalidade de educação, reafirmando a obrigatoriedade, por parte do Estado, de seu atendimento. As Diretrizes Curriculares Nacionais de Educa-ção para Jovens e Adultos – res. no 01 de 2000 do Conselho Nacional de Educação – reafirmam o direito do adulto à edu-cação e ressaltam a necessidade de “formulação de propostas pedagógicas coerentes com as especificidades desta modalida-de” (p. 188), e o Plano Nacional de Educação (PNE) recomen-da prioridade em seu atendimento, abordando incisivamente o tema: “o número de analfabetos de 16 milhões de brasileiros maiores de 15 anos, na ocasião, envergonha o país” (Martins, 2004, p. 123). O PNE propõe erradicar o analfabetismo em dez anos e assegurar EJA a 50% da população adulta que ainda não detém a escolarização fundamental prevista em lei.

Se utilizarmos o conceito letramento, os números são maiores. Para Ribeiro, o letramento compreende “a leitura e a escrita como práticas sociais complexas, desvendando sua diversidade, suas dimensões políticas e implicações ideológi-cas... abarca não só habilidades (que seriam medidas por meio de teste), mas também práticas e representações das pessoas sobre a leitura e a escrita” (2004, p. 12).

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A partir desse critério, a Ação Educativa,9 pesquisando duas mil pessoas entre 15 a 64 anos em todo o território nacio-nal, percebeu que, dentre os que já cursaram de um a três anos de estudos, 32% são analfabetos absolutos e 51% apresenta-ram um domínio muito rudimentar da leitura e escrita; os com mais de quatro anos de escolaridade, 42%, apresentaram um domínio muito rudimentar de leitura e escrita. Segundo a pes-quisa, de todos os entrevistados, apenas 26% da amostra eram letrados.

É consenso que a manutenção do atual quadro de anal-fabetismo, seja de adulto, seja de escolares, significa perpetuar uma situação de pobreza e de exclusão social de uma grande parcela da população. A alfabetização é o ponto de partida para promoção da justiça social, da democratização, da inclu-são no mercado de trabalho, no desenvolvimento do país, no aumento da renda nacional e na sua distribuição. E optar por uma proposta pedagógica de alfabetização é o primeiro passo na consecução desse objetivo.

Um caminho para conhecer e analisar as propostas de alfabetização pode ser referenciado nas bases epistemológicas que sustentam o tema e se fazem presentes nas ações apoia-das. Uma primeira divisão das propostas a partir de suas bases epistemológicas pode ser realizada com base em Grossi (1995) e Duarte (2000, 2002, 2003), mas ainda carecendo de muita sistematização. A estruturação de programas de alfabetização de adultos pode se calcar em três grandes eixos, a saber: a or-ganização do programa a partir da lógica do conteúdo, a partir da incorporação do contexto/cultura do público participante e a partir da lógica dos processos de aprendizagem.

Algumas propostas de alfabetização se organizam a par-tir da lógica dos conteúdos. E essa forma de organização faz-se sentir principalmente nos programas que se constituem a par-tir do método silábico. Esse(s) método(s) é(são) bem antigo(s) e o registro mais anoso de sua utilização data do século XVIII. Trata-se de método(s) que centra(m) os esforços cognitivos no entendimento da unidade sonora sílaba.

Os principais períodos da história do ensino da história e da escrita mostram as diferentes formas de tratamento que a síla-ba tem recebido na alfabetização de crianças, jovens e adultos, desde séculos passados, de tal forma que podemos dizer que

9 Organização não governamental da área de educação.

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ela sempre esteve presente e que, mesmo tendo a metodologia apoiado em elementos sem significação, de uma forma ou de outra, dos trabalhadores braçais à elite intelectual do país, to-dos que sabem ler e escrever hoje, aprenderam pelos métodos tradicionais da silabação (Corrêa, 2003, p. 29).

Mesmo partindo das letras, da palavra ou de frases, essa(s) metodologia(s) de alfabetização tem por ancoragem a sílaba. Muito simplificadamente, podemos afirmar que esse método tem por princípio epistemológico o positivismo/em-pirismo e a lógica do conteúdo. Organizam a leitura e escrita seguindo da parte (vogais e consoantes) para o todo (sílaba, palavra, frase texto); do simples (sílabas estruturadas a par-tir de consoante/vogal) para o complexo (encontros conso-nantais e dígrafos); do concreto (substantivos concretos) para o abstrato (texto). E mesmo sendo anacrônico em termos de construções científicas e educacionais disponíveis hoje em dia, não consegue ser abandonado.

Paulo Freire faz denúncias sobre o positivismo presente na educação (principalmente na alfabetização de adultos) em muitas de suas obras. Segundo Freire, a educação bancária, que foca o acúmulo memorial de conteúdo, precisa ser signi-ficada, contextualizada, criticada e transformada para que os que estão aprendendo rompam com a reprodução inevitável da escola de massa10 e iniciem o movimento libertário de reco-nhecimento e valorização. Para Esteban, o saber – de analfabe-tos por exemplo – é desqualificado pela escola “num quadro de múltiplas negações, dentre as quais se coloca a negação da legitimidade de conhecimentos e formas de vida formulados à margem dos limites socialmente definidos” (1999, p. 8).

Na alfabetização de adultos, Freire (1992) ressalta ainda mais esse ponto indo à construção de um método de alfabetização que inaugura outro paradigma. Com Freire a lógica do conteúdo é substituída pelo foco no contexto, no significativo, na experiência do aluno. Freire (1999) aponta a necessidade da aproximação com o educando, sua comunidade, suas representações simbólicas, para, então, conseguirmos, a partir do que é reconhecido e valorizado pelo aluno, propormos o trabalho de alfabetização, que não tem mais o foco na sílaba, e, sim, o fomento à crítica do alfabetizando. Paulo Freire

10 Conceito construído por Mariano Enguita (1989) para denominar a escola de crianças na sociedade capitalista.

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revoluciona ao deslocar o foco do conteúdo para o educando (ou seja, sua cultura) e, nesse movimento inédito, desconstitui a base da escola de massa. Os princípios de hierarquia, de desqualificação e desvalorização do conhecimento do educando, da incorporação da alegria e esperança insurgem contra o instituído e fazem Freire conhecido mundialmente.

Esse movimento se concretiza no que Freire denominou: palavra geradora. “[...] as palavras com que organizar o progra-ma da alfabetização deveriam vir do universo vocabular dos grupos populares, expressando a sua real linguagem, os seus anseios, as suas inquietações, as suas reivindicações, os seus sonhos. Deveriam vir carregadas da significação de sua expe-riência existencial e não da experiência do educador. A pes-quisa do que chamava de universo vocabular nos dava assim as palavras do Povo, grávidas de mundo” (Freire, 1999, p. 21).

Essa proposta expressou a transformação que insurgia no mundo ocidental. Significou romper com a modernidade, dar voz a quem não falava para a escola. Também na linha de romper com a violência simbólica da escola de massa, a alfabetização de base lingüística busca o reconhecimento e a valorização da cultura do educando, de sua linguagem e de suas representações. Com ampla divulgação, muita produção acadêmica e propostas já visíveis em muitos programas de al-fabetização, a lingüística contribui na perspectiva da valoriza-ção da diversidade, rompendo com a modernidade e a norma, tentando transformar a escola em espaço democrático.

Segundo Bortoni, na “sala de aula, como em qualquer outro domínio social, encontramos grande variação no uso da língua” (2004, p. 25), e essa variação precisa ser reconhecida, afirmada e valorizada sob pena de inferiorização e exclusão. Continua o autor: “a superioridade de uma variedade ou falar sobre os demais é um dos mitos que se arraigaram na cultura brasileira. Toda variedade regional , ou falar é, antes de tudo, um instrumento identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo social” (p. 33).

Após os anos 80, entraram em cena o construtivismo e a lógica da aprendizagem. Embrenhando-se nas escolas sem o necessário adensamento teórico, o “método construtivista”

– denominação equivocada conceitualmente – tem o mérito de introduzir a discussão sobre como se aprende. A partir daí a intervenção didática na aprendizagem ganha consistência e passa a ser o cerne do trabalho do professor. “Nos anos 80,

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Natália Duarte

dois fenômenos se destacam por sua influência na educação escolar. O impacto da denominada revolução cognitiva na for-ma de entender o ensino e a aprendizagem e as mudanças nas concepções sobre o conhecimento” (Hernandez, 1998, p. 71).

Ao desfocar o conteúdo e centrar esforços na aprendi-zagem, ressurgem discussões a partir de teóricos do início do século XX – Jean Piaget, Henry Wallon e Levy S. Vygotski – na tentativa de compreender como se aprende e ressignificar a di-dática. A crítica à lógica do conteúdo é contundente em Grossi (1995): “...conhecimento não é memorizar informações. É, isto sim, ampliar sua capacidade de estabelecer relações entre os diversos elementos que interferem neste campo da aprendiza-gem. E o que é extremamente importante é que é impossível selecionar e dirigir por deliberação docente quais e quantos elementos devem ser oferecidos sucessivamente para os alu-nos, regulando de fora para dentro a sua aproximação com a complexidade dos conhecimentos científicos” (p. 22).

Também é a partir de Grossi que se intensifica a discus-são da didática vinculada ao processo de aprendizagem, eclo-dindo com sua publicação Didáticas da alfabetização – três volumes (1989), com mais de 15 edições. O Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação – Geempa, presidido por Grossi, capitaneia a discussão sobre construti-vismo no Brasil11 elaborando a teoria que, num primeiro mo-mento, denominaram de “construtivismo pós-piagetiano”12 e, em seguida, de “pós-construtivismo”.13 Essa discussão acres-centa ao contexto significativo – que deve ser considerado pelo professor – o processo de aprendizagem. E é nessa proposta pedagógica que passo a me deter mais detalhadamente.

Ao nos referirmos ao processo de aprendizagem da leitu-ra e da escrita, emerge um tema estudado mais recentemente: o erro e seu aproveitamento como estratégia didática. Alguns educadores se sensibilizaram com a facilidade com que cer-tas hipóteses eram consideradas como “erro” na escola, bem como a forma punitiva como eram tratadas no cotidiano es-colar. O “erro” é fruto indispensável do diálogo entre sujeito e conhecimento. Atuar desrespeitosamente sobre hipóteses,

11 Eliane Veras. A recepção de Piaget no Brasil. Tese (Doutoramento) – Departa-mento de Sociologia - UnB, 1998.

12 GROSSI, E. P. Construtivismo pós-piagetiano. Petrópolis, RJ, ed. Vozes, 1995. 13 Ver: Por que ainda há quem não aprende? A teroia, Petrópolis, RJ: Vozes,

2004.

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O professor e o erro no processo de alfabetização

competências e performances em construção, indispensáveis para a aprendizagem, pode prejudicar, ou, mesmo, impedir o letramento.

O “erro”, fruto “das tentativas de operar com novos conceitos e procedimentos, tem um papel fundamental” na aprendizagem dos alunos (Carvalho, 1997, p. 20). Aprender é construir esquemas de pensamento. Em alfabetização, “os que ainda não sabem ler e escrever formulam hipóteses lógicas e pertinentes que são, entretanto, inicialmente bem distantes do que corresponde de fato aos aspectos do sistema de escri-ta” (Grossi, 1995, p. 18). Essas hipóteses são absolutamente necessárias para a construção da escrita e acontecem mesmo sendo desrespeitadas. Nesse sentido, o “erro” é imprescindível e deve ser percebido como “fonte de virtude” (Luckesi, 1999). Todavia, não é assim que este vem sendo percebido na escola, e, sim, como “erro” em contraposição ao “certo”, “que é asso-ciado ao saber, e se revela quando a resposta do(a) aluno(a) coincide com o conhecimento veiculado pela escola, este sim, verdadeiro, valorizado e aceito, portanto positivamente classi-ficado” (Esteban, 1999, p. 15).

Dessa forma, não há diálogo entre o conhecimento do aluno com o proposto pela escola, nem respeito às hipóteses elaboradas pelo aluno na construção do conhecimento esco-lar. Entende-se que há o conhecimento e que este tem de ser apreendido, de fora para dentro, sem distorções no caminhar e, de preferência, todos ao mesmo tempo – o tempo pensado pela escola. Não há espaço para heterogeneidades de saberes e de hipóteses. Só há espaço para uma geléia homogênea deno-minada “sala de aula”. A escola passa de local privilegiado da heterogeneidade real, percebida por qualquer professor que esteja em classes de alfabetização, para local de uma homoge-neidade irreal e imposta. E frente à homogeneidade, implan-ta-se a inexorabilidade do “erro”, que surge principalmente como desvio de um padrão, ou melhor, do padrão, excluindo todas as outras possibilidades, que passam a ser classificadas como “erro”. “Quando se supõe a existência de padrões de de-sempenho melhores e piores, os desvios da norma adequada são considerados patológicos e devem ser corrigidos” (Olivei-ra, 1997, p. 49). Para Esteban, “essa perspectiva excludente, silencia as pessoas, suas culturas e seus processos de constru-ção de conhecimentos; desvalorizando saberes fortalece a hie-rarquia que está posta, contribuindo para que diversos saberes

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sejam apagados, percam sua existência e se confirmem como ausência de conhecimento” (1999, p. 15).

No período escolar responsável pela socialização da lei-tura e escrita, uma postura punitiva e convencional diante do erro é particularmente deletéria. Para reverter esse quadro, é preciso que o “erro” passe de “fonte de castigo a fonte de vir-tude” (Luckesi, 1999).

A aprendizagem se dá por construção, por esquemas que se sucedem, não obedecendo às leis conteudístas: do sim-ples para o complexo, da parte para o todo, do concreto para o abstrato, como bem demonstraram Piaget (1976), Vygotsky (1988), Wallon (1973), Dewey (1976), dentre outros.

A construção de esquemas de pensamento não se dá de forma linear e homogênea. Aprender implica construir hipóte-ses que dependem da significação que cada um dá ao que está aprendendo – e isso a partir de sua própria cultura – transcen-dendo em muito a perspectiva utilitarista que a escola dá aos conhecimentos. Aprender não é apenas utilizar, mas elaborar representações simbólicas do mundo a partir do conhecimen-to novo construído. É nessa perspectiva de escola que se con-segue construir uma “aventureira trajetória em que o espaço para a fabulação pessoal inteligente, engenhosa e tortuosa, é garantido” (Grossi 1995, p. 19). Mas não é fácil posto que o “erro” é um dos elos mais resistentes da cadeia avaliativa escolar. Ele tem sido apontado como elemento negativo, algo ruim que precisa ser eliminado e apagado do contexto escolar” (Pinto, 1999, p. 48).

O “erro” é uma hipótese inteligente que construímos na aquisição de algum conhecimento. Essas hipóteses, no caso da alfabetização, foram explicitadas na descoberta da psicogê-nese14 da lecto-escrita por Emília Ferreiro, que mais tarde foi reconceituada pelo Geempa, particularmente por Grossi, de uma forma que me parece muito esclarecedora e adequada.

Segundo Grossi (1996), a apreensão do código escrito se dá por fases de construção e ruptura e seu gráfico poderia ser uma escada, representada da seguinte forma:

14 Psicogênese é um conceito da epistemologia genética defendido por Piaget. Segundo esse autor, qualquer conhecimento é reconstruído pelo sujeito que aprende e passa por estágios que podem ser classificados num contínum entre menor e maior complexidade dos esquemas de pensamentos construídos.

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Essa apreensão tem dois grandes períodos: o período logográfico, que contém os níveis pré-silábico 1 (PS1) e pré-silábico 2 (PS2); e o período fonético, que contém os níveis silábico (S), alfabético (A), alfabetizado 1 (Alf1), alfabetizado 2 (Alf2) e alfabetizado 3 (Alf3). Podemos dividir essas hipó-teses em estágio não alfabetizado (PS1, PS2, S e A) e estágio alfabetizado (Alf1, 2 e 3). Entre cada um dos níveis encontram-se os estágios intermediários, caracterizados pela “quebra” da hipótese anterior, porém ainda sem a construção do invariante operacional do nível subseqüente.

No período logográfico, o alfabetizando escreve o ob-jeto mesmo, o que se denomina “realismo nominal”. Assim, quando se encontra no nível PS1 e quer escrever “cadeira”, ele desenha a cadeira: ou, no nível PS2, quer escrever “boi”, desenha um grande número de letras “porque boi é uma pa-lavra muito grande”. No período fonético o aluno deixa de escrever o objeto e passa a escrever o som do nome do obje-to; é quando começa a relacionar grafema/fonema. No estágio alfabetizado o aluno construiu a capacidade de decodificar o código da escrita – mesmo que, de início, se dê de forma extremamente precária –, o que ainda não faz no estágio não alfabetizado (apesar de já ter pensamentos extremamente pro-cedentes). Também não podemos desconsiderar o refinamento porque passa a transcrição dos sons das sílabas no processo de alfabetização. O aluno passa da escrita inicial do princípio da palavra “transverso” de “t”, passando por “ta”, depois “tara”, depois “tras”, “trãs”, até “trans”.

PS1

PS2

S

A

Alf1

Alf1

Alf3

PERÍODOFONÉTICO

ALFABETIZADO

NÃOALFABETIZADO

PERÍODOLOGOGRÁFICO

FONETIZAÇÃOGROSSA

FONETIZAÇÃOFINA

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Vejamos alguns exemplos de escritas logográficas:

Ainda sobre PS2, ilustro essa hipótese com a resposta de Adeildo, quando pedi que ele escrevesse a palavra “chão” e ele respondeu: “Chão é muito grande, deve ter muitas letras.”

No estágio fonético, encontramos o nível S, em que o alfabetizando não desmembra a sonoridade da sílaba; por essa razão, representa as sílabas com letras. Se a palavra tem qua-tro sílabas, terá quatro letras; se tem duas sílabas, terá duas letras...

Já no nível alfabético o alfabetizando desmembra a unidade sonora, mas ainda não construiu um invariante operacional para representar a sílaba – às vezes a representa

Exemplo PS1:

Exemplo de PS2:

(A baleia é azul) (A baleia é azul)

(boca) (dedo) (copo) (casa) (pato) (gato) (pano)

Exemplo:

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O professor e o erro no processo de alfabetização

com uma; outras vezes, com duas letras. Essas tentativas não estão erradas, são hipóteses inteligentes.Exemplo:

Quando o aluno se alfabetiza (no sentido de ser capaz, minimamente, mesmo com equívocos consideráveis, de deco-dificar o código), passa por uma caminhada. No nível Alfabe-tizado 1, o aluno acredita que a sílaba é composta, inexora-velmente, por duas letras, sendo a primeira uma consoante e a segunda uma vogal, construindo um invariante operacional (sílaba = consoante + vogal). Essa construção é, como classi-fica Emília Ferreiro (1989), uma regularização, pois a maioria das sílabas é composta dessa forma. Esse nível também se ca-racteriza por uma escrita de frases com segmentação equivoca-da das palavras. Isso acontece porque o aluno(a) não escreve palavras, e, sim, sílabas. São escritas difíceis de se ler, contudo já demonstram um invariante operacional capaz de decodificar rudimentarmente o código. Vejamos alguns exemplos:

(A xícara serve para tomar café.)

(A tesoura serve para cortar o tecido.)

(É fácil cuidar de avestruz)

(Eu gosto do Zezé de Camargo porque é bonito)

(Romário, eu gostaria de jogar no seu time porque gosto de você)

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No nível Alfabetizado 2, o aluno já começa a segmentar corretamente as palavras, flexibiliza a construção da sílaba e já escreve os encontros consonantais, mas ainda não repre-senta dígrafos, nem a nasalização, e estabelece uma relação biunívoca letra/som.

Exemplo:

O Alfabetizado 3 já rompe com a relação biunívoca le-tra/som e consegue perceber que um único som pode ser es-crito com dois grafemas – como nh, rr, ss, lh; já consegue re-presentar a nasalização com n e m, começando a demonstrar preocupação com a acentuação e os aspectos notacionais do texto.

Exemplo:

Encarando o processo de aprendizagem como constru-ção do conhecimento proposto, portanto, uma caminhada, é possível perceber que a avaliação classificatória do tipo cer-to e errado não pode ser aplicada. Não podemos considerar errada a escrita silábica de Eraldo da palavra abacaxi como

“abki”. Uma avaliação formativa que apóia a aprendizagem do alfabetizando e reorienta o trabalho do alfabetizador para in-tervir nos esquemas de pensamento incompletos dos alunos é que deve ter lugar em sala de aula, especialmente em classes de alfabetização. Perceber que a construção da escrita é uma caminhada permite-nos intervir precisamente na construção da escrita de todos, olhem bem, todos os alunos.

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O professor e o erro no processo de alfabetização

As informações que os erros dos alunos nos dão são subsídios para adequar o trabalho pedagógico às necessidades individuais de aprendizagem. A didática escolhida para um aluno que possua esquemas de pensamento incompletos pre-cisa atender e respeitar as características da sua compreensão de escrita, atuar em sua incompletude e desestabilizá-la. Seu

“erro” – que não é erro – deve ser fonte de virtude, não de clas-sificação e punição. Essa concepção de aprendizagem ressig-nifica a avaliação e reconduz sua prática no sentido de apoiar a aprendizagem do aluno. Para transformar a atual realidade escolar, pôr o diálogo no centro da organização do trabalho pe-dagógico é um caminho. Para Grossi, “fazer o trânsito entre os saberes cotidianos, frutos das culturas dos grupos onde vivem os alunos, constitui objeto da didática” (1995, p. 17).

E a didática tem de ser constituída a partir do que sa-bemos sobre o que os alunos sabem. Portanto, aproveitar que

“o erro oferece novas informações e formula novas perguntas sobre a dinâmica aprendizagem/desenvolvimento, individual e coletiva. O erro, muitas vezes mais do que o acerto revela o que a criança “sabe”, colocando este saber numa perspecti-va processual, indicando também aquilo que ela “ainda não sabe”, portanto o que pode vir a saber” (Esteban, 1999, p. 21).

Interpretar positivamente o “erro” é mudar radicalmen-te a escola e seu papel na sociedade. O “erro, visto como uma oportunidade de ensino, se associa com esperança, conheci-mento e êxito, e não necessariamente com fracasso” (Carva-lho, 1997, p. 21). Com base nesse príncípio, a didática para a construção dessa prática pedagógica não é simples, mas está ao alcance de qualquer alfabetizador que se enamore das escritas de seus alunos e que saiba ser possível alfabetizar a todos. Para tanto, cada aula deve ser capaz de atender a alguns critérios imprescindíveis para o trabalho pedagógico de alfa-betização. Vejamos quais são.

Uma aula, para ser produtiva, tem de trabalhar e ofere-cer informações sobre letras, sílabas, palavras, frases e textos; respeitar e atuar sobre a lógica do processo de aprendizagem da leitura e escrita e o esquema de pensamento de cada um dos alunos; oferecer informações sobre letra, sílaba, palavra, frase e texto; construir a aula partindo de uma unidade sig-nificativa e compartilhada pelo grupo, que permita o sentido para cada um dos alunos presentes (sentimentos, elementos culturais do grupo, atividades significativas...), e provocações

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didáticas específicas para cada aluno presente na sala de aula (derivadas do conhecimento minucioso que o alfabetizador tem sobre o que cada um dos alunos sabe a respeito da leitura e escrita).

Vejamos alguns exemplos de como os conceitos letra, sí-laba, palavra, frase e texto podem permear o planejamento da aula:

Sobre as letrasO aluno precisa experenciar atividades que lhe permi-

tam reconhecer cada letra, aprender o nome das letras, estabe-lecer a relação letra/som com cada uma das letras e ser capaz de escrever corretamente cada letra; para tanto alguns jogos adequados para essa função são: alfabeto vivo, bingo do nome próprio, jogo da memória com letra inicial e figura...

Sobre as sílabasA estruturação para a percepção auditiva da sílaba é a

primeira estratégia na consecução da escrita. Percebê-la como um som (nível silábico); depois, desdobrá-lo em dois (conso-ante-vogal); após, percebê-la mais detalhadamente a ponto de identificar os encontros consonantais, construir os dígrafos, até conseguirmos praticar a translineação, é uma longa cami-nhada. Esse caminho do aprender, bastante lógico, deve ser levado em consideração para o planejamento das aulas, bem como para a construção de atividades em grupo, jogos e in-tervenções didáticas. Alguns jogos interessantes para cumprir essas tarefas são dados com diferentes consoantes e outro com vogais, onde o aluno joga os dois e tem de se forçar a sílaba, di-zer uma palavra com ela e escrevê-la. Outro jogo interessante é um auto ditado, no qual, de um lado, tem-se uma figura e, do outro, o nome da figura (de preferência dissílabas como vela, uva, dedo, boca...).

Sobre as palavrasO entendimento do conceito de palavra é imprescindível

para a construção da escrita. Por muito tempo os alunos escrevem apenas as sílabas. A construção desse conceito vem da gradativa competência de transcrever os sons da fala, que, por sua vez, vem do entendimento cada vez mais procedente das letras, seus diversos e variados sons, e das sílabas, com, também, suas diversas e variadas composições, de uma, duas, três, quatro e até cinco letras. Somente após

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O professor e o erro no processo de alfabetização

uma certa intimidade com as letras e uma certa competência na percepção e transcrição das sílabas é que o aluno começará a pensar em palavras. Ótimos jogos para esses objetivos são recortar textos emendados, contar palavras de um determinado poema, formar palavras com letras soltas, formar frases com letras soltas etc.

Sobre as frasesEntender a frase ou oração como uma idéia econômica e

bem construída é o primeiro passo para o exercício da função social da escrita. Contudo, esse exercício precisa ser experen-ciado continuamente, nos mais variados textos, expandindo palavras, depois frases simples etc. A oralidade dá sustenta-ção a esse esquema de pensamento.

Sobre os textosTextos são produzidos com o objetivo de serem compre-

endidos. E a unidade textual é fruto da riqueza de experiências envolvendo as habilidades de falar, escutar, ler e escrever. Os processos de produção e compreensão de textos se enriquecem de atividades diversificadas e variadas de fala e escrita, leitura e escuta. Assim, no processo de alfabetização, urge a extensão das possibilidades de experienciar o uso da linguagem.

Algo importante a ser ressaltado é o fato de que todos os alunos, de todos os níveis, tem de escrever desde o primeiro dia de aula e todos os dias. É importante solicitar ao pré-si-lábico que escreva sempre, pois só nesse exercício ele estará refletindo sobre os conceitos envolvidos.

Também se deve ressaltar que, para uma aula produzir muita aprendizagem, ela precisa de diferentes espaços de refle-xão e exercícios. Por isso, uma aula precisa ter momentos co-letivos, imprescindíveis para a construção da unidade, do sen-tido e do pertencimento dos alunos ao espaço áulico; precisa ter momentos em grupos, de preferência compostos de quatro componentes, para as discussões, onde se colocam em xeque as incoerências dos esquemas de pensamento; o espaço mais ínti-mo de diálogo a dois para que a análise, reflexão e intimidade favoreçam a abertura; e o momento individual, importante para o exercício da zona real. Mas como identificar que jogo deve ser utilizado para qual aluno e em qual momento?

Didaticamente, o jogo é excelente para propiciar os momentos descritos acima e, por meio deles, favorecer a

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reflexão, a experimentação e a descentração. Os jogos são um espaço privilegiado de aprendizagem, contudo não é qualquer jogo para qualquer aluno. Para escolher os jogos certos é imprescindível cruzar o nível em que o aluno se encontra na sociopsicogênese com o conceito de zona de desenvolvimento proximal de Vygotski (1993), que passamos a explicar.

Para Vygotski, as aprendizagens não devem ser medi-das pelo que é demonstrado. A performance real e objetiva é apenas uma dimensão, uma zona no processo de aprendi-zagem. O autor compara a aprendizagem a um agricultor que quer calcular a sua produção de laranjas: ele não considera apenas as laranjas maduras, mas, todas as que estão no pé. Da mesma forma, a aprendizagem de um aluno não pode ser medida apenas pelo que ele é capaz de realizar sozinho, mas também o que consegue fazer com a ajuda de alguém. Assim, para Vygotski, aquilo que alguém faz sozinho é denominado de “zona atual” da criança, ou “zona real”. Outro nível é “um nível de desenvolvimento potencial. Entre os dois situa-se a zona de próximo desenvolvimento (ou melhor, zona proximal de desenvolvimento) que Vygotski define como aquilo que a criança sabe fazer com a ajuda de alguém e que não sabe fazer sozinha” (Vergnaud, 2004, p. 30).

Essa afirmação permite-nos entender que aquilo “que a criança pode fazer hoje com a ajuda de adultos poderá execu-tar sozinha amanhã” (Vergnaud, 2004, p. 30). E o ensino deixa de focar o que o aluno já sabe para focar naquilo que ele ainda não sabe, mas pode vir a saber, se provocado para isso.

É importante para o professor conhecer esses conceitos que precisam permear a aula. Sinteticamente, podemos asso-ciar, na alfabetização, a zona real à forma como ele escreve sem ajuda, espontaneamente. A zona potencial é aquilo que esperamos do aluno; por isso, desejar, entender que todos os alunos podem ler e escrever em poucos meses é uma forma de modular, ampliando, a zona real de todos os alunos. E a zona de desenvolvimento proximal é aquela explicitada pela escrita que o aluno consegue fazer com a ajuda de um colega, um jogo, um cartão ou mesmo do professor. Podemos acres-centar agora uma explicação de Piaget,15 de que se aprende

15 Essa fala foi retirada do vídeo Piaget por Piaget, do Centro epistemológico de Genebra, onde o ele próprio explica a razão de alguns de seus métodos clínicos de investigação sobre os esquemas cognitivos dos entrevistados.

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O professor e o erro no processo de alfabetização

resolvendo problemas, mas uma situação pode ou não ser pro-blema, dependendo para quem está posta. Explicando melhor, para um aluno PS2, que precisa vincular a escrita à fala para avançar ao período fonético, um problema é ele vincular sons às letras, reconhecendo sua regularidade, não apenas como símbolos aleatórios. Para um aluno silábico, é necessário des-construir a hipótese de que cada sílaba se representa por uma letra e passar a representá-la por duas letras.

Utilizando a ZDP e a psicogênese podemos identificar o espaço de aprendizagem de um nível que é nada menos que o seu nível subseqüente. A provocação didática virá especifica-mente do trabalho para construção dos conceitos presentes no nível subseqüente da performance real (zona de desenvolvi-mento real) do aluno. Vejamos o quadro sintético explicativo a seguir.

Nível Zona real Zona de desenvolvimento proximal

PS1 Escreve desenhando Escreve com símbolos. Perceber as letras, relacionar a escrita ao falado.

PS2 Escreve com símbolos e sem relacionar com o som

Vincular a escrita a fala, vincular som a letra, construir a relação letra/som.

S Escreve 1 símbolo/letra para cada pedaço da palavra (sílaba)

Quebrar a unidade sonora de sílaba (perceber a letra/fonema). Fortalecer a relação letra/som.

A Engole letras. Representa procedentemente algumas sílabas (do tipo consoante e vogal) e continua representando algumas sílabas por letras (principalmente pelo nome da letra)

Construir o conceito de sílaba: consoante/vogal. Ler pequenos textos e frase, e ditos populares. Ler orações conhecidas.

Alf1 Representa a sílaba rigidamente: consoante/vogal. Não apresenta a segmentação correta das palavras. Escreve as sílabas

Flexibilizar a sílaba e escrever palavras.

Alf2 Já escreve a palavra e não mais a sílaba. Já consegue vincular um som para cada letra, numa relação biunívoca, já ensaia a representação dos encontros consonantais. Come-ça a apresentar pontuação.

Quebrar a relação biunívoca letra/som ou 1 letra= 1 som. Atentar para os elementos notacionais do texto e da frase.

Alf3 Escreve frases, já flexibilizou a relação letra/som (mais de uma letra para um som e vice-versa). Já constrói textos com procedência

Construir os dígrafos (2 letras = 1 som), nasalizar, escrever textos com unidades textuais

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Considerações finais

Ao longo do texto, passeamos rapidamente pelos indi-cadores e diagnósticos sobre alfabetização, quadro esse que nos evidencia a necessidade de refletirmos e agirmos sobre esse momento imprescindível na vida escolar e cotidiana dos brasileiros. Pudemos verificar que a alfabetização e as propos-tas pedagógicas para executá-la são muitas, principalmente se considerarmos as últimas décadas. Nesse período, alguns con-sensos foram obtidos teoricamente, mas não conseguiram ter rebatimento efetivo na maioria das classes de alfabetização de escolas públicas e particulares brasileiras. É consenso que todos podem aprender a ler e escrever, que há um processo de aprendizagem da língua que precisa ser respeitado, que a vinculação com o contexto social e cultural dos alunos é imprescindível, que a alfabetização exige um trabalho diver-sificado muito bem planejado pelo professor, dentre outros. O que é apresentado pelo texto, que não é novo, mas que ainda está longe das salas de aulas, é que a relação que o professor estabelece com o “erro” do aluno precisa deixar de ser desres-peitosa e, por vezes, classificatória e punitiva para tornar-se uma relação de atenção, respeito e deleite. O desrespeito às hi-póteses que os alunos constroem denuncia a expectativa dos professores de um andamento homogêneo em sala, onde todos avançam ao mesmo tempo, construindo as mesmas hipóteses. Essa expectativa fundamenta as aulas coletivas, onde se pre-tende que todos os alunos resolvam as mesmas atividades ao mesmo tempo.

O “erro” do aluno na escrita desvela o esquema de pen-samento e hipótese que o aluno está vivenciando. É ele que possibilita apoiar a aprendizagem dos alunos, desde que o professor reoriente seu trabalho pedagógico para provocar e alimentar os esquemas de pensamento em construção. Para tanto, é cogente conhecer a sociopsicogênese, ser capaz de identificar na escrita dos alfabetizandos seus elementos fun-damentais e atuar sobre eles a partir de jogos e da utilização da zona de desenvolvimento proximal. É forçoso abordar em cada aula os conceitos de letra, sílaba, palavra, frase e texto na alfabetização.

Uma escola democrática que pretende ensinar a todos deve ter por princípio o respeito e o interesse pelas

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O professor e o erro no processo de alfabetização

construções dos alunos, além de uma didática que possibilita o acolhimento dessas hipóteses e também suas rupturas. A constatação respeitosa das hipóteses dos alunos, por si só, não garante a aprendizagem. O conhecimento do esquema de pensamento tem de ser profundo e articulado com uma didática que, dialogando com o já estabelecido, permita a compreensão de sua incompletude, desestruturando-a. O trabalho pedagógico deve ser organizado de forma a permitir que o próprio aluno se dê conta das lacunas que contém sua hipótese, ao mesmo tempo em que forneça as situações e procedimentos necessários para que novas hipóteses sejam construídas.

Romper com a lógica homogênea, tão arraigada na cul-tura da escola de massa, exige fundamentação teórica e revi-são de práticas ainda não conscientes. Instiga uma constante reflexão, ora sobre a teoria, ora sobre a prática, ora sobre os preconceitos inerentes à escola reprodutivista excludente.

A partir dos “erros”, que interessaram aos professores, exige-se a diferenciação das atividades propostas com base no quadro apresentado, as quais passam a ser planejadas não mais para o aluno padrão, e, sim, para cada aluno, que tem nome, sentimentos e história singular. A partir do que cada um sabe, propõem-se atividades específicas, rompendo defi-nitivamente com as aulas coletivas ministradas para o aluno padrão, para quem se dava aula, mas que, em realidade, não era nenhum dos alunos presentes em sala.

Assim, as hipóteses passam a ser percebidas como inteli-gentes, construídas na interação com o grupo, a partir de jogos escolhidos conscientemente. E de posse dessa nova percepção do “erro”, fundamento do pós-construtivismo, um erro não pode nunca ser punido; tem de ser pesquisado como alicerce de novas aprendizagens. Uma hipótese é sempre inteligente. E é a partir dela que eu construo diálogos.

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Natália Duarte

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O professor e o erro no processo de alfabetização

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Literatura infantil e introdução à leitura

Regina Zilberman*

Alfabetização e letramento

A inserção no mundo da escrita depende de dois fatores distintos: de um lado, de uma tecnologia, a alfabetização; de outro, do letramento, definido por Magda Soares como “o desenvolvimento de competências (habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita”.1 A alfabetização supõe a “aquisição” do “conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita”, contando-se entre elas:

As habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita (alfabético, ortográfico); as habilidades motoras de manipulação de instrumentos e equipamentos para que codificação e decodificação se realizem, isto é, a aquisição de modos de escrever e de modos de ler – aprendizagem de uma certa postura corporal adequada para escrever ou para ler; habilidades de uso de instrumentos de escrita (lápis, caneta, borracha, corretivo, régua, de equipamentos como máquina de escrever, computador...); habilidades de escrever ou ler seguindo a direção correta da escrita na página (de cima para baixo, da esquerda para a direita); habilidades de organização espacial do texto na página; habilidades de manipulação correta e adequada dos suportes em que se escreve e nos quais se lê – livro, revista, jornal, papel sob diferentes apresentações e tamanhos (folha de bloco, de almaço, caderno, cartaz, tela de computador...).

“Em síntese”, afirma Magda Soares, “a alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das

* Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Letras, Departamento de Pós-Graduação em Letras. Doutorado em Romanistica pela Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls), R.K.U.H., Alemanha. Pós-Doutora-do pela Brown University, B.U., Estados Unidos.

1 SOARES, Magda. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org.). Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. p. 90.

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Regina Zilberman

habilidades de utilizá-lo para ler e para escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita”.2

O letramento ultrapassa a alfabetização, na medida em que corresponde ao “exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita”,3 o que implica também habilidades várias, entre as quais a de “orientar-se pelos protocolos de leitura que marcam o texto ou de lançar mão desses protocolos, ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita, tendo interesse e prazer em ler e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informações e conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada, sendo as circunstâncias, os objetivos, o interlocutor”.4

O letramento é um processo que se inicia antes mesmo de a criança aprender a ler, supondo a convivência com universo de sinais escritos e sendo precedido pelo domínio da oralidade. Outros fatores associam-se ao processo de letramento, já que a convivência com a escrita começa no âmbito da família e intensifica-se na escola, quando o mundo do livro é introduzido à infância.

A criança convive igualmente com outros universos associados à escrita e à linguagem verbal, apresentando-se como suas expressões a publicidade, os jornais, as revistas, a mídia, computadores e jogos eletrônicos (quando ela pertence às classes mais abastadas). Assim, se a alfabetização ocorre num momento da existência de um indivíduo, quando ele aprende a codificar e decodificar fonemas numa das etapas de seu processo de escolarização, o letramento está sempre presente, mostrando-se sob diferentes perspectivas, dentro e fora da sala de aula.

A criança fica exposta, igualmente, ao letramento literário, já que, desde pequena, é iniciada ao universo da fantasia, que lhe aparece por meio da escuta de histórias. Essas se mostram em diferentes formatos: contadas oralmente, lidas em voz alta por outras pessoas, vistas, quando se trata da audiência a programas de televisão, teatro infantil ou cinema. De todo modo, o conhecimento do mundo da ficção, vital para a apreciação

2 SOARES, Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão. Letramen-to no Brasil, p. 91.

3 Idem.4 Idem, p. 92.

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Literatura infantil e introdução à leitura

de obras dirigidas à infância, dá-se mesmo quando o acesso ao livro é dificultado por razões econômicas, sociais ou culturais.

Letramento literário

A admissão ao mundo da literatura depende e ultrapassa a alfabetização e o letramento. Depende da alfabetização, enquanto envolve o domínio das técnicas de leitura e de escrita, e do letramento, na medida em que as práticas de leitura e escrita estão presentes em cada etapa da experiência do sujeito. Este, por outro lado, vivencia, a todo instante, o universo ficcional dominado pelo imaginário, haja vista os diferentes apelos à fantasia propiciados pelos meios de comunicação, sob suas distintas possibilidades de manifestação (verbal e visual). Contudo, o letramento literário efetiva-se quando acontece o relacionamento entre um objeto material, o livro, e aquele universo ficcional, que se expressa por meio de gêneros específicos – a narrativa e a poesia, entre outros – a que o ser humano tem acesso graças à audição e à leitura.

Há livros, por sua vez, que se dirigem a crianças no período em que elas se alfabetizam. Avizinham-se às cartilhas, mas são obras artísticas, cabendo-lhes propiciar o letramento literário durante o período em que se dá a aprendizagem da escrita, de sua combinação e formação de palavras. Cabe examinar como os escritores se posicionam perante tal desafio, pois, se desejam colaborar para a formação do leitor, e sobretudo do leitor de literatura, precisam conferir qualidade estética ao produto oferecido, o que advém da presença do imaginário e da narratividade.

Erico Verissimo,5 sob o pseudônimo de Nanquinote, publicou Meu ABC em 1936, obra ilustrada por E. Zeuner.6 A cada letra do alfabeto destina-se uma página, acompanhada do desenho a cores, que colabora para o entendimento do texto:

5 Erico Verissimo (1905-1975), nascido em Cruz Alta, RS, notabilizou-se como romancista, trajetória inaugurada em 1932, com a publicação de Clarissa.

6 Carl Ernst Zeugner (1895-1967), nascido na Alemanha, emigrou para o Bra-sil em 1922, trabalhando na Editora Globo como ilustrador.

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Regina Zilberman

Dois aspectos podem ser destacados na figura reproduzida:

• as letras são expostas nas suas formas gráficas diversas: manuscrita, impressa, maiúscula e minúscula;

• o trecho compõe uma narrativa curta, em que predominam as orações coordenadas, de fácil acompanhamento; porém, prevê sua reprodução em voz alta por um adulto ou por uma criança que, já dotada de alguma fluência, decodifique fonemas, uma vez que vocábulos como

“prefere” e “agradável” supõem emissor mais maduro; de todo modo, a ilustração reforça o entendimento do texto, amparando o leitor aprendiz.

Em 1937, Cecília Meireles7 e Josué de Castro8 publicaram A festa das letras, obra ilustrada por João Fahrion.9 O livro mescla a cartilha ao ensino de “preceitos de higiene alimentar, indispensáveis à sua [do leitor] vida”, conforme declaram os autores.10 Duas páginas na abertura do livro são dedicadas à primeira letra do alfabeto:

7 A poeta Cecília Meireles (1901-1964), autora de obras como Vaga música (1942) e Mar absoluto (1945), atuou igualmente como educadora e autora de livros infantis.

8 Josué de Castro (1908-1973), médico nascido em Recife, destacou-se por suas pesquisas sobre nutrição e higiene alimentar.

9 João Fahrion (1898-1970), artista plástico, foi capista e ilustrador da editora Globo nos anos 30 e 40 do século XX.

10 MEIRELES, Cecília; CASTRO, Josué. A festa das letras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

Figura 1 – Erico Verissimo – Meu ABC

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Literatura infantil e introdução à leitura

À narrativa, os autores preferem a poesia, recorrendo a estrofes paralelas e a versos rimados. A rima facilita a memorização e introduz o elemento lúdico, apoiado pela ilustração, que faz com que o grafema A seja representado por um palhaço.

Outro poeta, Mario Quintana,11 é autor de O batalhão das letras, de 1946, cuja primeira edição foi desenhada por Edgar Koetz.12 A página de abertura, ilustrada por Eva Furnari na versão mais recente do livro, apresenta o tema por intermédio de um quarteto, em que à rima e à metrificação são atribuídas as tarefas de facilitar a memorização do texto e das letras iniciais e finais do alfabeto:

11 Mario Quintana (1906-1994) é autor dos livros de poemas A rua dos cataven-tos (1940), Canções (1946) e Aprendiz de feiticeiro (1950), entre outros.

12 Edgar Koetz (1913-1969) atuou como ilustrador na editora Globo entre os anos 40 e 60 do século XX.

Figura 2 – Cecilia Meireles e Josué De Castro – A festa das letras

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Regina Zilberman

Quando a letra A é introduzida, a rima e o tema procuram estabelecer um ambiente lúdico, sendo o imaginário acionado pela associação entre o formato da letra e a posição do cavaleiro:

Figura 3 – Mario Quintana – O batalhão das letras

Figura 4 – Mario Quintana – O batalhão das letras

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Literatura infantil e introdução à leitura

Em 2003, Ziraldo13 reuniu num único volume os livros que compunham, desde 1992, a Coleção ABZ. A criação do escritor, que passa a se chamar o O ABZ do Ziraldo, é arrojada desde o título, ao substituir o convencional ABC por ABZ, que importa para o primeiro plano, e envolvida por carinhosas mãos, a derradeira letra do alfabeto, o Z, coincidentemente a que começa o nome do autor.

A obra encerra com uma apresentação em que Ziraldo recapitula a origem do livro, lançado primeiramente em exemplares separados, cada um destinado a um grafema distinto. Comenta que “muita gente acreditou, pelas letras nas capas, que se tratava de livrinhos para alfabetização. Não eram. Eu estava querendo era fazer literatura para crianças. Literatura, mesmo.” Em decorrência da natureza literária da obra, ele convoca o leitor “a ir lendo tudo, como se fosse um romance só. Aliás, é. Cheio de personagens!”14 Prova da realização desse propósito é a primeira narrativa, “A história do A”, principiada pela locução “era uma vez”, recurso que joga o leitor imediatamente para o mundo da ficção e da inventividade:

13 Ziraldo (1932) escreve livros para crianças, como Flicts (1969) e histórias em quadrinhos, como as que reúnem a Turma do Pererê.

14 ZIRALDO. O ABZ do Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos, 2003. Grifo do A.

Figura 5 – Ziraldo – O ABZ do Ziraldo

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Regina Zilberman

Na seqüência aparece o narrador, que dá a conhecer a personagem e nomeia-a. Na condição de ser fictício, ela vive acontecimentos, liderando uma ação que tem início, meio e fim, como é próprio de uma narrativa. A designação se justifica, pois, conforme se escreve ali, “até as pedras têm nome”; só que a primeira letra, A, é especial, ao inaugurar a história dos homens e das palavras, como demonstra a denominação de Adão, herói do Livro da Criação e ser concebido por Deus:

A história de André ocupa várias páginas, pois registra-se minuciosamente sua trajetória existencial, da infância à idade adulta. A ilustração sedimenta a passagem do tempo e o amadurecimento da personagem, ao alterar a aparência da letra: o André criança aparece sob o formato da minúscula, ao passo que que o André jovem e aventureiro coincide com um foguete. Quando André retorna à origem, adulto, magro e compenetrado, é a maiúscula que o representa.

Figura 6 – Ziraldo – O ABZ do Ziraldo

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Literatura infantil e introdução à leitura

“A história de André”, exemplificando o teor de O ABZ do Ziraldo, revela-se criativa do princípio ao final, aliando texto e ilustração de modo inovador e instigante. Realiza, pois, o objetivo das obras, que, apoiando-se no modelo das cartilhas, estimulam a imaginação e colaboram decisivamente para o letramento literário das crianças que começam a freqüentar a escola e a serem alfabetizadas.

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* Mestre em Comunicação, especialista em metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura. Coordenadora da Pós-Graduação das Faculdades Unidas do Vale do Araguaia. Docente das disciplinas de Comunicação Em-presarial e Leitura e Produção de Textos, dos cursos de Administração e Tecnologia em Sistemas de Informações.

Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto

Rosemari Glowacki*

O conhecimento é sempre gerado num processo de participação, num debruçar-se sobre os textos, sobre as teorias, na intenção de apreender sua essência, numa preocupação de se entenderem significados, para, então, experienciá-las, numa franquia permitida àqueles que no processo de interlocução ousam questioná-las.

Definida por Jauss (1986) como uma pesquisa sobre a recepção da literatura e seus efeitos no leitor, a estética da recepção visa ultrapassar uma teoria imanentista do texto, deslocando o eixo de análise para a sua recepção pelo leitor. Essa nova estética compreende a relevância da relação do autor com a obra dentro de um dado contexto e o papel significativo do leitor na sua recepção

Nessa perspectiva, a posteriori, a relatividade histórica dos estudos literários será focada na intencionalidade de entender a arte poética em sua longevidade, não apenas na legitimação recortada num dado tempo e espaço, mas, sobretudo, ampliando sua abrangência. É uma viagem introspectiva de aventuras que permite “a salvação da obra”, pautada na criatividade do leitor como co-produtor do texto.

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Rosemari Glowacki

(Re)Pensar a transitoriedade dos textos e a sua recepção, é o intuito maior deste texto, não com a pretensão de apresentar algo novo, mas com o objetivo de ampliar o leque de possibilidades de leitura.

Estética da recepção

A gênese da teoria da recepção

A “estética da recepção”, teoria criada por Robert Jauss, consiste na abordagem e análise do texto da ótica e perspectiva do leitor. “A ‘Estética da Recepção’ também chamada ‘Teoria da Recepção’ é uma corrente de crítica literária nascida há cerca de quinze anos, na Universidade de Constança, e hoje candidata a desbancar o estruturalismo como cânon de teorização e análise” (Merquior, 1981, p. 137).

A crítica moderna data de meados da Primeira Guerra Mundial e tem como foco principal, na obra de arte, o aspecto subjetivo. Uma nova ênfase dada ao estudo do texto em si, a partir dos formalistas russos, propõe-se minimizar circunstâncias ambientais ou biográficas do texto e do seu autor, enfatizando os atributos intrínsecos da obra. Esse comportamento opunha-se ao tratamento dado anteriormente pelos estudiosos da literatura.

Organizar uma nova história da literatura, baseada nas reconstruções da obra literária, decorrentes da sua recepção na época do autor e em diversas épocas, realizando uma pesquisa sincrônica e diacrônica da recepção do texto pelo leitor por meio de releituras, e por leitores diversos era a proposta de Jauss. “Jauss estabelece um programa metodológico que se propõe a investigar a literatura a partir de três aspectos: o diacrônico, relativo a recepção das obras literárias ao longo do tempo; o sincrônico, pertinente ao sistema de relações da literatura numa época determinada e a sucessão desses sistemas; a relação literatura/vida prática” (Flory, 2000, p. 24).

Em 1976, à parte dos estudos dos estruturalistas, teóricos que o antecediam, Jauss entrou em cena para contrapor-se à idéia destes de que o sentido dos textos pertence, em última análise, ao seu autor. Nascia a “teoria da recepção”.

Ao utilizar a teoria de Jauss, não se tem em mente cristalizá-la como única e verdadeira, mas construir pontes que aproximem outros pensamentos críticos acerca da

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1 Na obra As idéias e as formas, há um capítulo destinado a refletir sobre essa teoria, intitulado “Arte e literatura”, tratando desde “as contradições da van-guarda” à “estética da recepção”. Sua leitura, certamente, facilitará ao leitor a compreensão do caminho percorrido por Jauss na idealização de sua teoria com foco no receptor do texto.

recepção textual, estudos esses literários ou filosóficos anteriores, lançando luzes sobre a forma de pesquisa do assunto. Num debruçar-se para melhor compreender como se dá esse processo, alinhavamos um ensaio de crítica estética e ideológica com a pretensão primeira de descortinar esse tão complexo campo de estudos literários.

O sentido imanente do texto, invariavelmente, levanta problemas de interpretação. Daí a normalidade de uma tendência de bifurcação da sua análise: uma valoriza a interpretação autêntica (o sentido do autor) e a outra, uma busca do significado, de preferência, como bem comenta Merquior,1 do lado do leitor.

Era preocupação de Jauss a dimensão histórica das interpretações literárias. Nessa perspectiva, reconhecia a tese do filófoso heideggeriano Hans Georg Gamader, defendida no texto Verdade e método, quando dizia que a hermenêutica, ou arte da interpretação, não reconhece nenhum privilégio ao sentido autoral. “Numa palavra: o autor põe, mas os leitores

– a história - dispõem.”O estudioso tinha precursores, especialmente no

estruturalismo tcheco de Jan Mukarovski, o qual distinguia o texto entre “artefato” e “objeto estético”, mas isso será abordado no item “relatividade dos estudos literários”, a posteriori. Assim como a questão da relatividade, das delimitações temporais na literatura, uma vez que tempo, como bem esclarece Chauí (2001), é visto como: “O que é tempo? Estamos acostumados a considerar o tempo como uma linha reta, feita de sucessões de instantes, ou com uma sucessão de ‘agoras’ – um agora que já foi é o passado, o agora que está sendo é o presente, um agora que virá é o futuro” (p. 242).

Tudo somado, da crítica reducionista do século XIX às correntes inaugurais da crítica moderna (o new criticism, o formalismo russo, a estilística), e, na atualidade, a estética da recepção, podem-se apontar dois momentos desse processo: no primeiro, a rejeição da obra como documento, colocando-o como monumento; no segundo, a rejeição como tal.

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Rosemari Glowacki

Jauss condena justamente o fato de se visualizar a obra estanque, em si mesma, como um monumento, parada num tempo delimitado, e defende a idéia de senti-la como experiência viva da literatura.

Numa palavra: subjetivação. Em outras: apreensão, introspecção, leituras diferenciadas. Infelizmente, a lacuna de sua teoria ainda não foi preenchida: qual seria o leitor ideal? Isso não importa, tendo em vista que suas idéias já despertaram para um retorno, sem mistificação, ao texto. Os postulados epistemológicos sempre surgirão a seu tempo; primeiro há que se pensar muito e pesquisar.

É verdade que nas duas últimas décadas foi-nos possível observar uma verdadeira revolução no campo da teoria literária e do criticismo. Como bem comenta Flory (2000) em seu texto O leitor e o labirinto, “palavras como leitor, audiência, receptor, antes vistas como conceitos óbvios e triviais, passam a ser preocupação comum a várias correntes atuais de estudos críticos” (p. 21).

Os valores intrínsecos, em suma, o próprio processo de apreensão de significados que se legitima, tanto na construção do autor quanto na reconstrução do leitor, é que permitem a existência da obra literária, partindo da premissa básica de que esta só continua viva quando é atualizada pela leitura. O conceito aristotélico de prazer retomado por Jauss deixa claro que sempre existiu uma preocupação extrema com a produção e leitura do texto artístico.

Para o teorizador da estética da recepção, o prazer estético advém da admiração de uma técnica perfeita, ou seja, a estruturação do texto, como também do prazer que se obtêm no reconhecimento do assunto imitado. Daí os conceitos de mimese e verossimilhança, e nesse contexto destaca-se o leitor.

A recepção de um texto constitui-se num processo gerador de significado que se inicia muito antes da leitura do texto propriamente dito, como ressaltado anteriormente. A obra se inicia quando da sua construção pelo autor; assim, pode e deve ser reconhecida em inter-relação com a realidade histórico-cultural do autor e do leitor. Enfim, da intensificação da natureza comunicativa do texto emerge a experiência estética na obra de arte, e Jauss, resgatando a importância dessa experiência, desdobra e afirma que ela passa por três

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momentos simultâneos e complementares: a poiesis, a aisthesis e a katharsis.

Poiesis é produção, fabricação; significa uma criação que instaura uma realidade nova. Criar não é fazer algo do nada, como afirma a tradição hebraica, mas, no sentido da acepção grega, significa gerar e produzir, dando forma à matéria bruta preexistente. O prazer de se sentir co-autor da obra é a poiesis. Jauss afirma que, quanto mais o artista inova, mais se torna interessante para o público. Ainda, poiesis pode ser compreen-dida, no sentido aristotélico da “faculdade poética”, como o prazer diante a obra da qual se apropriou o receptor no ato da leitura.

A aisthesis diz respeito ao efeito provocado pela obra de arte como renovação da percepção do mundo circundante, a própria vivenciação do leitor. Sublinha Jauss que “legitima-se, desta maneira, o conhecimento sensível, face à primazia do conhecimento conceitual [...] como experiência da densidade do ser” (Sartre apud Jauss, p. 80).

Já a katharsis corresponde à libertação do leitor por meio da experiência estética comunicativa fundamental da arte, permitindo-lhe enxergar mais amplamente os eventos, ressignificá-los, de forma a dar uma resposta nova.

Jauss afirma que essas reações não dependeriam do arbítrio pessoal, mas das sugestões emitidas pela obra. Explicita-se, assim, a função basicamente mobilizadora da catarse, que ocorre na experiência estética ao contato com a obra de arte. Posteriormente à leitura compreensiva, temos a leitura retrospectiva, na qual se dá a interpretação, que assim se chama porque se pode, no processo, voltar do fim para o começo ou do todo ao particular. Em síntese, a vivência estética é formada a partir de três momentos: da poiesis, da aisthesis e da katharsis. Jauss afirma ainda a necessidade da existência do processo de identificação: reação maior de que é capaz o receptor. Essa experiência catártica, inerente ao processo de identificação vivenciado pelo receptor, acentua a função comunicativa da arte verbal.

Enfoques da estética da recepção

A multiplicidade de enfoque sobre o leitor no texto foi assim dividida por Susam Suleiman, que, juntamente com acadêmicos e professores universitários europeus e críticos

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norte-americanos, passou a estudar também a teoria da recepção: retórica, semiótica-estruturalista, fenomenológica, subjetivo-psicanalítica, sociológico-histórica e hermenêutica.

“As teorias literárias, baseadas na visão privilegiada do pólo da recepção do texto sobre o da produção, desenvolveram-se rapidamente na Itália, França e Estados Unidos, retomando abordagens formalistas, estruturalistas e outros precursores, desenvolvendo uma multiplicidade de enfoques sobre o leitor no texto” (Flory, 2000, p. 26).

Apresenta-se, em continuidade, essa direção dada aos estudos recepcionais.

A categoria retórica engloba estudos que priorizam o significado, o conteúdo ideológico ou a força persuasiva que permeia a situação comunicativa. Ainda, Waine Booth, como comenta Flory (2000), um dos mais representativos teóricos retóricos, elaborou o conceito de autor-implícito, ou seja, aquele que se define como o alter-ego, uma presença que permeia a obra e pode ser detectada pela leitura.

Todorov, outro estudioso da recepção, debate os paradoxos da interpretação, bem como sua validade, apontando um ponto de união entre as abordagens retóricas e as abordagens semiótico-estruturalistas, focalizadas a seguir.

O enfoque semiótico-estruturalista está pautado na leitura do texto artístico não apenas com o intuito de interpretá-lo, mas, também, de analisar todos os códigos e convenções presentes no mesmo. Dentre os estudiosos defensores dessa categoria temos Barthes, Bakhtin, Kristeva, dentre outros. A última estudiosa defende o texto como um aparelho metalingüístico onde a verticalidade (intertextualidade, dialogismo) e a horizontalidade (leitura sintagmática e coesão textual) caminham juntas.

A fenomenológica tem suas bases na questão da leitura, no papel da imaginação, na construção do significado e, segundo Flory, na própria percepção estética.

Ler é um ato que leva à produção de sentido, uma vez que permite ao leitor a seleção, organização, antecipação, retrospectiva e modificação durante o processo da leitura do texto; seriam os denominados “pontos de indeterminação” a serem “preenchidos pelo leitor”.

Maslow (1996) declarou: “O existencialismo assenta na fenomenologia, isto é, a usa como experiência pessoal e

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Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto

subjetiva como fundação sobre a qual o conhecimento abstrato é construído [...] uma pessoa é realidade e potencialidade” (p. 36-37).

Em se tratando da categoria subjetivo-psicanalítica, como a própria nomenclatura sugere, opõe-se às já apresentadas porque valoriza não a estrutura comum de recepção, e, sim, a variedade de respostas advindas de um mesmo texto. Em outras palavras, a personalidade do receptor influencia a leitura e decodificação da mensagem artística.

Assim, os teóricos que a defendem argumentam que os estudos literários devem vislumbrar os efeitos emocionais e intelectuais dessas mensagens nos receptores.

A penúltima categoria é a sociológico-histórica, cujos defensores pontuam que é interessante unir a dialética da produção textual, a recepção das obras literárias num dado contexto epocal e as características do autor para melhor apreender os significados da obra literária. A teoria jaussiana está ligada a esta categoria, uma vez que entende que se deva traçar a história da recepção de uma obra. Propõe:

“Reconstruir a evolução das sensibilidades, das mudanças de geração ou épocas, das transformações e oscilações de gostos, das ideologias dominantes, do ser histórico por detrás de um texto” (Flory, 2000, p. 32).

Daí esse enfoque não ter a pretensão de encontrar a “verdade” do texto, senão de abrir leques de significação que atualizem sua interpretação, legitimando-a como tal.

A categoria hermeunêutica, o último dos enfoques da estética da recepção, rejeita a idéia de intenção autoral e enfatiza o aspecto autônomo do texto como objeto poético. Distingue o significado (sentido da obra em si mesma) da significação (sentido da obra para os leitores). Bloom, Fish, Gamader, Todorov, dentre outros, foram considerados hermenêuticos.

Em síntese, os estudos relativos aos múltiplos enfoques da estética da recepção atribuem valor ao desempenho do leitor, à diversidade de questionamento atingido, à pergunta/resposta estabelecida entre o leitor e o próprio texto, enfim, à análise intrínseca e extrínseca da obra de arte.

Para uma abordagem mais completa dos elementos constitutivos do texto literário é interessante o estudo extrínseco e intrínseco. Essa proposta advém do estudo

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da historicidade da obra literária (é o método histórico comparativo – extrínseco – mais o enfoque intrínseco presente na mesma, somado à abordagem dos enfoques de recepção).

No que tange à crítica extrínseca, esta atividade parte de fora para dentro. D’Onofrio (1996) destaca a crítica sociológica, a crítica psicológica e a crítica arquetípica como modalidades desse tipo de análise. Nesse tipo de modalidade de abordagem observam-se a biografia do autor, as condições socioculturais que influenciaram as personalidades, as escolas e os movimentos literários, com todos os complexos estéticos e ideológicos presentes.

Em se tratando do aspecto intrínseco, essa crítica preocupa-se não mais com o uso do método histórico-comparativo, como as críticas anteriormente destacadas, mas com o texto enquanto texto, palavra. Preocupando-se com o aspecto interno, distingue enfoques diferenciados que possibilitam estudo mais abrangente:

a) enfoque lingüístico – elementos constitutivos sintáticos e a mensagem;

b) enfoque formalista – postura metodológica da crítica que substitui a oposição tradicional buscando o arranjo estético do material textual. As idéias vieram de Moscou, em 1914;

c) enfoque estruturalista – a estrutura não poderia ser individualizada num objeto particular, mas num modelo teórico formulado a partir da análise de vários objetos;

d) enfoque semiológico – considera o aspecto lingüístico e estrutural da obra literária, fazendo uma abordagem semiológica que vê o texto como um sistema de signos;

e) enfoque fenomenológico – a experiência perceptiva é o fundamento;

f) enfoque estilístico – análise do estilo no plano da enunciação e análise do estilo do plano do enunciado;

g) enfoque temático – estuda as unidades temáticas.

Assim, a integração dos vários métodos de estudo crítico de análise e interpretação literária possibilitará um trabalho mais completo.

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Relatividade histórica dos estudos literários

Reflexões

A observação da arte poética em sua longevidade alerta para o fato de que o leitor, na tentativa de apreender a verdade absoluta da arte escrita através de uma análise puramente sincrônica (imediatista), não estará apreendendo mais do que uma das suas circunstâncias legitimadoras. Se a análise for apenas direcionada ao movimento ao qual pertenceu determinado escritor, perder-se-ia muito da singularidade de sua obra literária.

Giambattista Vico, filósofo do século XVII, criou a teoria da recorrência dos ciclos históricos e acredita que a própria história sofre por ser recorrente. Os estudos literários devem ser realizados e analisados nessa perspectiva cíclica. Com a revisão do passado e da consciência do presente, hoje denominado “atemporal”, tornou-se impossível o não-reconhecimento de que todos os valores estéticos não são relativos, e as críticas não são mais únicas, porém acrescentam uma nova leitura ou releitura das referidas obras.

Em menor ou maior intensidade, cada escritor sofrerá e exercerá influência na literatura, em razão da própria natureza metalingüística da arte, ou seja, o templo pleno possibilita o estudo crítico e amplia as linhas de pesquisa, que tendem não a esgotar, mas a ampliar os efeitos e sugestões de uma obra ou produção literária de um dado autor.

E assim, após comprovar que uma obra de arte transcende o tempo de vida de seu autor e do próprio leitor de seu tempo, emerge a vontade de estudá-la no decorrer do tempo e não estaticamente. Essa “leitura” pode se dar na sua publicação ou em outros universos epocais; por exemplo, textos como o do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távora Redonda, que deram voz a vários personagens, tais como Lancelot, Guenevere; As brumas de Avalon-Morgana, Merlin, que já foi reescrito e até se transformou em filme.

Essa nova definição do texto, e do olhar não tão ortodoxo sobre ele, supõe interpretar o ato de ler como uma viagem introspectiva de aventuras que o leitor há de realizar por meio do livro, buscando sempre contínuos ajustes, por intermédio

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da imaginação, porque as palavras lidas não podem representar apenas o real, nem transportar significados inamovíveis. Pelo contrário, são enunciados humanos e históricos que se apresentam sob a aparência de ficção estética e que, justamente por isso, tornam possível que a criatividade do leitor configure representações imaginárias que (re)inventem a realidade.

Segundo Maslow (1986): “Termino com o estímulo que mais poderosamente me afetou na literatura existencialista a saber o problema do futuro em psicologia [...] nenhuma teoria estará completa se não incorporar [...] o conceito de que o homem tem o seu futuro dentro dele próprio, dinamicamente ativo nesse momento presente” (p. 42).

Outro conceito-chave na teoria da recepção é aquele que define a estrutura apelativa do texto: a linguagem não cobra textualidade até ao momento em que é lida. O significado é um “efeito para ser experimentado”, não um mero objeto para ser definido. Para que o significado se comporte como suscetível de ser realmente experimentado, isto é, para que se produza a desejável cooperação leitor/texto, é necessária a configuração apelativa na escrita do autor; caso contrário, não se dará a possibilidade semântica de que o leitor gere significados próprios e múltiplos.

Talvez a teoria de Jauss represente, como bem define o filósofo Gaston Bachelard (1990), a partir da criação de uma nova expressão, uma “ruptura epistemológica”, uma vez que provoca uma espécie de ruptura/abertura entre as chamadas

“teorias científicas”, conduzindo a uma descontinuidade do conhecimento científico no universo lingüístico e literário.

A historicidade da literatura e seu estudo permitem que tudo seja revisto, e este é o objetivo nesta análise, explorar leituras que sejam possíveis, pois, segundo Benjamim, “a salvação da obra” consiste em reavaliá-la, reconhecendo a maior gama possível de elementos estruturais que a sustentam, independentemente da cadeia de acontecimentos históricos (história linear), idéias e ideais estéticos do momento em que a mesma nasceu.

A obra literária como devir

A obra literária, primeiramente, deve ser visualizada como projeto (vontade de confecção); segundo, como legitimação (a sua longevidade e a possibilidade de leituras

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diferencias), ou seja, quando esta lança luzes sobre si mesmo e também ilumina outras obras (alusão e intertexto); finalmente, a obra como devir, que pode ser definida como a volta ao passado (translatividade regressiva), buscando subsídios culturais anteriores para torná-la mais consistente, e a ida para o futuro (translatividade progressiva), impulsionando-a a exercer influência sobre as demais produções literárias.

Dois movimentos essenciais são observados na obra possível com referência à linha do devir:

• a obra gira sobre si mesma, num dado espaço e época determinados. Leitores diferentes podem legitimá-la de formas variadas; dá-se, então, a rotatividade da obra. Cada um também pode perceber nuanças diferenciadas, que são filtradas pelos indivíduos de forma singular e fluídica. Seria a valoração sincrônica da arte escrita;

• no segundo momento, o movimento é translativo, em outras palavras, o projeto literário é infinito em possibilidades de leituras, basta adequarmos a padrões estéticos diferentes. Esse estudo se concretiza no tempo diacronicamente, e a legitimação da obra ocorre quando da exploração das referidas possibilidades de leitura numa linha de observações temporais sucessivas, procurando verticalizá-la para a produção.

Daí a importância da historicidade literária, que vai observar a sucessividade dos desempenhos estéticos de um projeto, canalizando essa análise para a busca do pólo energético e o campo semântico em alta num dado momento estilístico-epocal. Vale ressaltar que, até então, as escolas literárias se sucedem do trovadorismo ao modernismo e os professores tendem a ensiná-las aos alunos de forma estanque, estáticas, delimitadas por datas e acontecimentos. Uma obra não pode ser considerada acabada enquanto existir quem a leia e legitime o seu projeto, submetendo-o a novos parâmetros estéticos.

O leitor

A abertura de uma obra (leitura e releitura) permite que ela continue viva, e quem lhe dá essa chama eterna é o leitor. O leitor “salva” a obra literária sempre que a ressignifica mediante uma interpretação única e singular. Nesse instante, o leitor será co-produtor de seu significado.

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Assim, há que se cuidar da obra, observando, analisando, apaixonando-se pelo texto; e cuidar do leitor, estimulando-o, ouvindo suas releituras, numa co-produção. Dessa forma, o prazer será constante. Vale ressaltar, então, a relevância desse novo olhar sobre o texto e sobre seu leitor.

A leitura, por tratar-se de uma habilidade humana, tem existência histórica, porque se associa à adoção do alfabeto como forma de comunicação e à aceitação da escola como instituição responsável pela aprendizagem. Leitura e literatura integram-se ao programa da língua portuguesa. Esta constitui elemento fundamental na estruturação do ensino brasileiro porque forma a sua base: está no começo da aprendizagem e conduz a outras etapas do conhecimento.

Quando o estudante é estimulado ao hábito da leitura, esta se entranha na sua vida, torna-se uma atividade de prazer e emancipatória. Jauss utiliza essa expressão como palavra-chave de sua teoria, porque a experiência da leitura pode libertar o leitor, obrigando-o a uma nova percepção das coisas. Seus horizontes se abrem. Declara o autor: “A função social da literatura só se manifesta em sua genuína possibilidade ali onde a experiência literária do leitor entra no horizonte de expectativa da sua vida prática, pré-forma sua concepção de mundo e, com isso, repercute também em suas formas de comportamento social” (p. 154).

Desse modo, é chegada a hora do leitor, tendo em vista que o texto depende da disponibilidade deste de reunir numa totalidade os aspectos que lhe são oferecidos, criando uma seqüência de imagens e acontecimentos que desembocam na constituição do significado da obra. E esse significado só pode ser construído na imaginação depois de o leitor absorver as diferentes perspectivas do texto, preencher os pontos de indeterminação, sumariar o conjunto e decidir-se entre iludir-se com a ficção e observá-la criticamente.

A leitura implica aprendizagem e, ao mesmo tempo em que ler é pensar o pensamento do outro, também é possibilidade de adentrar em épocas distintas e compartilhar o universo da alteridade ali presente. É um perder-se no texto para depois se encontrar. Abre-se, assim, um portal de possibilidades para a formação do estudante/leitor. Quando ocorre a apropriação do texto por parte do leitor, ocorre quase uma ritualística: o leitor apropria-se do sentido do texto e apaixona-se pela leitura.

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O papel da escola é ajudar o estudante nessa tarefa, nunca o “obrigando” a determinadas leituras, sem promover a contextualização e estímulo necessários a essas atividades, mas, sim, mostrando-lhe que leitura é viagem. Da rotina cotidiana para o mundo da fantasia, um percurso de ida e volta; uma sala de aula mais ativa e mais alegre, onde o texto é prazer, não obrigação.

Cabe, então, à escola ensinar e promover atividade de leitura, levando os estudantes aos diferentes tipos de convivência com os textos escritos. Assim como os pais, ela é uma das responsáveis pela formação do leitor. Nessa perspectiva, os sujeitos-leitores autônomos, devidamente estimulados em atmosferas pedagógicas que permitam a criticidade e co-participação na leitura, poderão fruir prazerosamente esses textos, desse modo dinamizando sua imaginação e possibilitando-lhes uma viagem ao mundo do conhecimento.

Considerações finais

Adentrar na floresta densa da análise literária é tarefa que pressupõe curiosidade e receptividade para o novo. Curiosidade para não se contentar com o já existente, com teorias cristalizadas e idéias, por vezes, criadas na solidão da reflexão de certos estudiosos, como o passeio subjetivo pela mata dos conceitos; e receptividade para o novo, porque, quando este novo ainda não está totalmente delineado, surge o medo, medo de perscrutar os recônditos dos ecossistemas filosóficos, políticos, sociais, sociológicos das árvores chamadas “texto”.

As discussões e reflexões apresentadas remetem ao novo, a um novo olhar sobre o texto, e, como já destacado anteriormente, independente do momento de sua construção. Como foi destacado, a estética da recepção, surgida na década de 60 pelos estudos de Jauss, entende o texto como parte do processo de conhecimento, não como uma entidade autônoma que não interage com o leitor.

Ao contrário, como sugere o próprio nome dessa corrente estética, leva em conta como o espectador recebe a obra; a análise torna-se viva, de modo que as leituras críticas e questionadoras do mundo sejam o alvo do aprendizado.

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Entretanto, enganam-se aqueles que recortam as teorias sem integrá-las ao texto analisado, mais ainda, o texto exige o leitor e vice-versa. Vale ressaltar, então, a relevância desse novo olhar por sobre o texto, descobrindo o leitor como seu continuador. Nas universidades, no ensino médio e fundamental, cabe ao mediador de conhecimentos, o professor, compreender que cada nova leitura realizada no espaço da sala de estar ou de aula revitaliza o texto.

Como destacado anteriormente, a leitura constitui elemento fundamental na estruturação do ensino brasileiro e, atualmente, após um longo caminho percorrido, percebe-se que a leitura proposta pela escola não se justifica sem exibir e intencionar um resultado que está além dela. Liberar “amarras”, pois compete à escola recuperar o elemento emancipatório do texto, quer dizer, possibilitar espaço para o nascimento de um leitor mais crítico e mais participante.

Desenvolver um programa com vistas à formação do leitor cidadão exige uma mudança pedagógica e um novo olhar da educação sobre a leitura, encontrando extensão para além dos muros escolares. Vale ressaltar que a leitura não pode estar confinada às aulas de línguas e literatura; deve, sim, percorrer todo o espaço da aprendizagem. Atividades tais como oficinas de leitura, grupos de teatro, contadores de histórias e muitas outras podem ser realizadas, promovendo a interdisciplinaridade e, em conseqüência, estimulando a formação do leitor.

No meio do caminho tem a escola, mas esta não deve configurar-se numa pedra. A leitura, às vezes, parece ficar de fora, porque os professores não a incorporam ao universo do ensino. Então, todos os envolvidos no ato educativo precisam rever conceitos.

Em síntese, segundo a estética da recepção, o contato com os livros, se o objetivo for construir leitores conscientes e felizes, deve ser iniciado o mais cedo possível, não só pelo manuseio dos textos como também pela história contada, pela conversa ou pelos jogos rítmicos, no sentido de fazer amar a leitura, para que o leitor se sinta o protagonista do seu aprendizado, numa ponte que ligue a teoria e a prática, entre o universo estético e o universo real.

Anteriormente à estética da recepção, as histórias da literatura e da arte transmitiam o produto (a obra de arte) já objetivado. Era considerado o lado produtivo da obra – o lugar

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da obra de arte em seu tempo, em relação a seus autores e às obras contemporâneas –, porém raramente o receptivo e quase nunca o comunicativo. Com isso perde-se o entendimento da experiência daqueles que, na atividade produtiva, receptiva e comunicativa, desenvolveram in actum a práxis histórica e social.

Para Jauss, o prazer estético deve servir como orientação basilar de todo estudo e desenvolvimento do processo de recepção de textos. Outro fator muito importante para o estudo da recepção: o momento da experiência primária e o do ato de reflexão, que são diferentes. A formação do juízo estético baseia-se nas instâncias de efeito e recepção comparando-se os dois efeitos de uma obra, o atual e o desenvolvido historicamente (a obra ao longo do tempo).

O efeito e a recepção são momentos distintos: o primeiro trata do efeito condicionado ao texto propriamente dito; a segunda é aquele momento do leitor. Daí que o sentido do texto se constrói nessa inter-relação texto/receptor, o que vai gerar uma experiência, um processo de significação ainda mais abrangente e produtivo.

Ao procurar resgatar a importância da experiência estética, conforme considerações apresentadas anteriormente, Jauss desdobra-a e afirma que passa por três momentos simultâneos e complementares: a poiesis, a aísthesis e a katharsis.

O autor explicita, por meio dessas três fases, a natureza libertadora da arte fundindo dois aspectos importantes: seu papel transgressor e seu papel comunicativo. O plano da poiesis corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra. Jauss afirma que, quanto mais o artista inova, mais ele espera contar com a participação do destinatário de sua mensagem. O segundo plano, da aisthesis, diz respeito ao efeito provocado pela obra de arte como renovação da percepção do mundo circundante.

Já a katharsis corresponde à experiência comunicativa fundamental da arte, que permite explicitar a sua função social ao inaugurar ou legitimar normas e também libertar o espectador de sua rotina cotidiana, permitindo-lhe enxergar mais amplamente os eventos e, assim, estimulá-lo a posicionar-se. Esta etapa é considerada fundamental porque, durante essa leitura reconstrutiva, o intérprete verifica seu lugar na cadeia temporal. O professor Jauss espera que, pelo exercício

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da hermenêutica literária, o intérprete, no questionamento do texto, venha também a interrogar-se.

Parece chegada a hora do leitor, não do leitor passivo, mas daquele que interage com e no texto, uma idéia pós-moderna que deriva em grande parte do romantismo. Como bem define Eco “o texto não passa de um piquenique em que o autor traz as palavras e os leitores, o sentido.”

Uma vez (re)definidos esses entornos da obra, certamente será possível romper barreiras no campo dos estudos literários, alinhavando estruturas e teorias que formam o tecido maior que é o textum; utilizando para tanto nuanças de linhas coloridas, cada teoria uma cor, a fim de matizá-las e encontrar mais uma bela composição de tons, a mais bela composição artística: aquela que, por ser inacabada, permite sempre um novo matiz, uma nova leitura/releitura única, singular... como é singular o leitor.

Referências

BACHELARD, Gaston. O ar e o sonho: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.

D`ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1 – prolegômenos da narrativa. São Paulo: Ática, 1995. v. I e II.

ECO, Umberto. Estética: as formas do conteúdo. São Paulo: Perspectiva, 1964.

_______. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1980.

FLORY, Suely Fadul Villibor. O leitor e o labirinto. São Paulo: Arte e Ciência, 2000.

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: A leitura e o leitor. Seleção, tradução e introdução por Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

KOTHE, Flávio. Historiografia/historicidade literária. Rio Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

MASLOW, Abraham H. Introdução à psicologia do Ser. Rio de Janeiro: Eldorado, 1968.

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Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto

MERQUIOR, José Guilherme. As idéias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. de Maria Helena Nery Garcez. São Paulo, 1984.

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nas salas de inclusão de crianças de seis anos no ensino fundamental¹

Silviane Barbato*

Este texto tem por objetivo discutir as práticas de letramento no processo de alfabetização, considerando o desenvolvimento das crianças de seis anos que entram no primeiro ano do ensino fundamental e as metodologias de alfabetização no ensino de língua materna.

Com a complexidade da comunicação e a quantidade de informação que recebemos e produzimos em nosso cotidiano, precisamos refletir sobre como desenvolver metodologias de trabalho com a leitura e escrita em sala de aula que ofereçam aos alunos a possibilidade de formação de uma perspectiva de linguagem escrita como comunicação em diferentes contextos. Esse aprendizado deve ocorrer concomitantemente ao aprendizado da construção da palavra, da sílaba e do conhecimento fonológico em língua portuguesa do Brasil, com atividades de análise, confronto e julgamento de semelhança entre fonemas e grafemas (Orsolini, 1999).

* Professora do Departamento de Psicologia Escolar e de Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. É licenciada em Língua e Literatura Portuguesa pela UnB, tem Mestrado em Lingüística Aplicada pela Universidade de Durham, Inglaterra, e Doutorado em Psicolo-gia, também, pela UnB. É membro do Laboratório de Microgênese nas Inte-rações Sociais e coordena o Programa de Inclusão da crianças de seis anos no Ensino Fundamental de nove anos do Convênio Cform/UnB e Rede/SEB/MEC.

1 Apoio CNPq, Edital MCT/CNPq 61/2005, processo: 401480/2006-2.

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Assim sendo, a discussão sobre a relação entre os princípios teórico-metodológicos e a transposição didática torna-se central, na medida em que percebemos que, apesar das diversas experiências bem-sucedidas de muitas escolas no ensino-aprendizado da leitura e da escrita, o fracasso ainda ronda a história de muitas crianças a partir de suas primeiras vivências escolares. E como defendemos que os alunos tenham oportunidades de se desenvolverem desde os primeiros momentos da escolarização, como pessoas criativas e críticas, faz-se necessário uma metodologia que contemple o trabalho com as diferentes unidades de significação, do texto à relação grafema-fonema.

O avanço nas pesquisas sobre o processo de letramento e os resultados recentes de testes nacionais e internacionais (Saeb, Pisa) sobre o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita nos diferentes níveis de escolaridade têm contribuído para o direcionamento de nossas reflexões teórico-práticas com ênfase no aprendizado da língua materna na escola, a partir dos usos e funções da escrita em diferentes situações sociocomunicativas nas diversas comunidades lingüísticas de nossa cultura. Há caminhos diferenciados para o aprendizado da leitura e da escrita e diferentes processos de letramento, definidos relativamente à história das práticas culturais de cada grupo e às demandas dos diferentes contextos situacionais (Halliday; Hasan, 1989) e comunicativos.

Ao percorrermos essa problemática, passamos a considerar que os letramentos ocorrem relacionados também aos processos de desenvolvimento humano e às possibilidades de aprendizagem oferecidas pela escola. Defendemos, então, que as práticas de alfabetização sejam consideradas tendo em vista que o processo de ensino-aprendizado é uma negociação entre o que se espera atingir em termos de objetivos, as habilidades de acordo com a série e as demandas das crianças em desenvolvimento.

Neste texto, vamos enfocar as crianças de seis anos, chamando a atenção do leitor para as dinâmicas de ensino-aprendizado dialógico e suas relações com o desenvolvimento humano quando as crianças aprendem a ler e escrever. Por meio de nossas observações numa sala de aula no Distrito Federal, anotadas em diário de pesquisa (Barbato, 2006), o aprendizado das crianças nessa faixa etária e no primeiro

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ano da escolarização parece ser direcionado por operações características do brincar desencadeadas na interação com o novo conhecimento, a professora e os colegas.

O processo de ensino-aprendizado e o desenvolvimento das crianças e dos

professores

O ensino nas salas de alfabetização deixou em segundo plano os conhecimentos lingüísticos e sobre o desenvolvimento humano, dando ênfase a atividades relacionadas muitas vezes às dinâmicas e aos aspectos referentes aos mecanismos da aprendizagem das habilidades de ler e escrever sílabas e palavras, sem uma preocupação com a comunicação mais complexa nos diferentes contextos de letramento experienciados pelos alunos em seu cotidiano dentro e fora da escola. No entanto, os resultados que estamos obtendo nos testes e provas nos indicam a necessidade de uma conciliação entre os conhecimentos da lingüística, psicologia e pedagogia de uma forma mais executiva para que o professor possa se tornar autônomo, a partir de atividades de formação continuada, aplicando novos conhecimentos referentes à fonética da língua, às variações lingüísticas, atentando também para as características do aprender das crianças em sua sala e a se organizar e efetivar critica e criativamente a transposição didática.

Historicamente, os professores têm se adaptado a inúmeras práticas que muitas vezes conduzem ao fazer pedagógico que só privilegia a aprendizagem das unidades menores da língua ou das unidades maiores, não possibilitando que a criança tramite do texto à palavra, à relação grafema-fonema, praticando adequadamente a leitura e a escrita com o apoio do professor. O ensino tradicional fonocêntrico, o construtivismo (muitas vezes interpretado parcialmente) e, mais recentemente, o trabalho a partir da perspectiva do letramento têm sido alternativas abraçadas por professores em todo o país. As três perspectivas experimentam sucessos e fracassos, mas todas podem desencadear aspectos de exclusão se não atentarmos para o fato de que as práticas de leitura, escrita e da oralidade de textos verbais e não verbais estão relacionadas ao desenvolvimento das crianças como pessoas

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participantes de suas famílias, de seus grupos e da comunidade escolar.

A leitura, escrita e oralidade e as posturas do professor em sala são exemplos que modelam e negociam com a produção de significação de cada aluno. Assim, a produção da novidade no aprendizado depende da história que a criança está participando e tecendo para si com os outros, incluindo seus professores e colegas: das suas experiências, do seu conhecimento prévio e do embate dessas experiências no cotidiano da casa, da família, da rua com as novas vivências e os novos encontros proporcionados no ambiente escolar. A escola oferece possibilidades de socialização, e as práticas de letramento produzem momentos muito ricos para o desenvolvimento da identificação cultural e pessoal do aluno (Moita Lopes, 2004), inclusive, pela valorização das práticas lingüísticas das comunidades.

Os professores, buscando compreender como se dá a alfabetização, muitas vezes trabalham conforme uma posição tradicionalista, reeditando no processo de alfabetização a leitura de cartilhas e um trabalho que utiliza o nome das letras e operações de soma de habilidades, cujo ensino depende de pré-requisitos relacionados à aprendizagem das partes menores da palavra em direção às maiores. Nessa perspectiva, aspectos comunicativos da oralidade, leitura e escrita são desconhecidos como legítimos para as salas de alfabetização e deixados para serem privilegiados somente após a aprendizagem de pré-requisitos. O ensino baseia-se numa dinâmica de repetição com a soma de novos constituintes.

Entretanto, sabemos que os contextos letrados da cultura, incluindo os contextos de escolarização a serem percorridos pelos alunos nos anos seguintes, são muito mais complexos e exigem que, desde o primeiro ano, os alunos possam praticar a leitura e a escrita também de unidades maiores de significação, com o trabalho bem planejado com os processos de construção do conhecimento e da crítica a partir de atividades de compreensão do que é lido e da produção textual.

As práticas mais tradicionais e mesmo as posturas sincréticas não estruturadas ocorrem, geralmente, quando se impõem novas tendências e não se possibilita ao professor que tome conhecimento de outras práticas e discuta-as, tentando estabelecer critérios de planejamento, experimentação e

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avaliação do que aprendeu. O professor, como cidadão ativo, também está em desenvolvimento, também está se letrando e também está negociando os significados que conhece sobre o aprender e ensinar a ler e escrever com as novas idéias que lhe estão sendo apresentadas. Se não tem oportunidades adequadas para a discussão, que respeitem sua experiência acumulada dando oportunidade de transformá-las, o professor volta a repetir com seus alunos os caminhos de aprendizagem que achou ter percorrido quando criança ou que intui que devam ser os mais adequados. Não desenvolvendo as técnicas a partir de um referencial teórico, passa a depender somente de suas habilidades de envolver as crianças num ambiente afetivo que possa proporcionar-lhes um início de aprendizagem saudável.

Em anotações de diário de pesquisa junto a alguns professores (Barbato, 2006), registramos a seguinte fala de uma professora que chegara de um encontro de formação que possibilitou um momento de reflexão sobre sua prática e uma descoberta: – “[...] Aprendi que as letras têm sons. Por isso, que quando eu dizia para as crianças C (nome da letra /se/) mais ‘a’ é igual a ...elas diziam: – ‘sa’.”

Entretanto, com os esforços de uma formação continuada de qualidade, observamos que os professores criam práticas pedagógicas mais direcionadas para a alternância na construção de um conhecimento dos processos de significação utilizando textos e a relação entre sons e a formação de palavras, ao menos no que diz respeito à aplicação de uma série de estratégias que levam o aluno a negociar com o conhecimento que produziu. Por exemplo, quando a professora interfere, lendo o que o aluno escreveu em voz alta e discutindo com ele os sons e as partes da palavra. Essas estratégias têm surtido efeito, pois os alunos aprendem, passando de pré-silábicos para silábicos e silábico-alfabéticos ao longo do primeiro ano do ensino fundamental. Porém, a escola não é um lugar apartado da sociedade; ela faz parte da sociedade. Em nossas observações, assim que a criança passa por aquelas duas ou três semanas iniciais de trabalho com o alfabeto, os sons e as palavrinhas, percebemos que ela desenvolve um apetite pelo descobrimento; ela busca momentos de brincadeira em que aprende com seus colegas a expandir o conhecimento sobre os usos e funções da escrita na sociedade, e muitas vezes esse aprendizado se dá também sem que o professor perceba.

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A beleza do processo de ensino-aprendizado é que, se o processo está organizado e o professor trabalha minimamente construindo andaimes (Bruner, 1975) para apoiar o aprendizado, as crianças se sentem seguras e criam a partir do jogo entre o que conhecem e o que estão aprendendo, extrapolando o conhecimento. As crianças de seis anos negociam com os conhecimentos que estão aprendendo, na maior parte do tempo brincando, desencadeando eventos que utilizam operações próprias do faz-de-conta (Vigotski, 1998).

Podemos afirmar, com base nas construções de conhecimento das crianças de seis anos observadas em sala, que as operações do processo de imaginação intervêm no aprendizado da leitura e da escrita como parte inerente das estratégias utilizadas pelas crianças ao aprenderem a ler e escrever. Ao observarmos as crianças nessa faixa etária, enquanto a professora desenvolvia atividades de leitura e escrita no quadro, notamos vários tipos de jogos ocorrendo, nos quais brincam com sons, sílabas e palavras. Por exemplo, quando a professora trabalhava uma música que tinha a palavra “pateta”, diversas crianças desencadeavam “por conta própria”, em voz alta e paralelamente à professora, exercícios com sílabas contendo partes da palavra “pa, pa, pa, la, la, la”;

“pata, peta, pita, pota, puta”!

Observamos também momentos de negociação comunicativa complexos. Em notas de diário de campo (Barbato, 2006), por exemplo, a seguinte conversa entre as alunas (A1) e (A2), que já tinham terminado de fazer a atividade, desenvolvia-se enquanto a professora percorria as mesas para verificar como as tarefas estavam sendo resolvidas. Nesse episódio da aula, A1 e A2 desenvolveram uma atividade de faz-de- conta em um evento de letramento, utilizando materiais que possivelmente foram trazidos de casa e que vivenciam como rotineiros:

A1: [abre um folheto de propaganda de maquiagens de uma marca conhecida]: _ Eu tenho aqui batons para vender, qual você quer?A 2 [virando o folheto para ver melhor].A1 [retomando a palavra]: _ Tenho essa cor aqui, essa aqui [apontando para o batom escolhido e tentando ler o que estava escrito]. É marrom.A2: _quero essa aqui [também virando para si a cartela e passando o dedo sobre o possível nome da cor do batom]. Quanto custa?A1: _Custa trinta centavos [localizando os preços e fazendo como se estivesse lendo o preço na tabela do encarte].

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As crianças convivem com diferentes usos e funções da leitura e da escrita e com materiais diferenciados, e em suas brincadeiras rompem os modelos dados; ao brincarem sozinhas ou com os colegas, usam as estratégias aprendidas em casa e na escola, transformando o conhecimento.

Um outro exemplo foi anotado também enquanto a professora passava pelos grupos de alunos verificando e conversando sobre a atividade em desenvolvimento. Neste exemplo podemos notar que os alunos de seis anos utilizam quaisquer materiais que estão à mão para construir interações, que são vistas como a negociação para o aprendizado de operações complexas como a comparação. Dois meninos começaram a notar as imagens que havia nas capas de seus cadernos de escrita livre. Compararam as duas capas e depois começaram a circular pelas mesas adjacentes e compará-las com as de outros colegas. Depois, ao virarem o caderno, perceberam que na capa de trás havia fotos menores, com as capas da coleção de cadernos. Passaram, então, a comparar as capas que encontraram com as fotografias que tinham da coleção, mexendo os cadernos, virando-os e apontando para as figuras. Podiam-se ver, claramente, o manuseio adequado do caderno e o processo de reversibilidade, de checagem do conhecimento, imprescindíveis para o desenvolvimento de estratégias de leitura e escrita.

O processo de ensino-aprendizado da leitura e da escrita envolve práticas de pensar e agir sobre o mundo por meio de palavras escritas e depende de diferentes processos de acordo com o desenvolvimento desses conhecimentos e da negociação entre professores e alunos e entre os pares. Isso ocorre em contextos escolares rurais, rururbanos e urbanos, dependendo dos usos e das funções da escrita nas situações sociocomunicativas, dos gêneros, da prática das diferentes etapas de leitura (Bortone, no prelo), do uso de estratégias de leitura e escrita, da convenção ortográfica da língua, do reconhecimento global de palavras, por composição e decomposição de unidades maiores e menores.

Então, uma proposta de formação continuada de qualidade visa formar o professor mediador para que trabalhe com o conhecimento lingüístico a partir de uma perspectiva social, histórica e cultural, a fim de que desenvolva com os alunos diferentes aspectos da compreensão e produção da escrita como atividade comunicativa, utilizando estratégias

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que sejam direcionadas ao desenvolvimento da consciência enquanto autoregulação e regulação das atividades (Barbato, 2005).

Assim, as práticas de letramento em sala abarcam também o reconhecimento de que as trocas no coletivo estão contribuindo para o desenvolvimento de cada indivíduo que participa das interações. A mediação que possibilita a co-construção do conhecimento ocorre alternando-se atividades de leitura e escrita, desenvolvidas individualmente ou colaborativamente em duplas ou grupos, na negociação de significados entre colegas e entre o professor e o grupo de alunos. O professor alterna a leitura com perguntas (o que, quem, como, quando, por que) que trabalham o conhecimento e as estruturas de diferentes gêneros apropriados para as crianças de seis anos (fábulas, bilhetes, cartas, histórias em quadrinho etc.); utilizando diferentes portadores (livros infantis, revistas, cartazes, suplementos em jornais etc.); oferecendo modelos de textos concretos; escrevendo ele mesmo no quadro sobre suas experiências (suas férias, uma narrativa sobre quando vai às compras, alguma lembrança de como brincava na infância, um descrição de seu cachorro) para que todos acompanhem e deixando os alunos desenvolverem sua escrita autonomamente.

O professor mediador alterna também assuntos já conhecidos e estudados com novas atividades, construindo andaimes para as novas práticas a partir do que os alunos já conhecem, ampliando seus conhecimentos. O ensino não se dá apenas pela repetição do que se sabe oralmente em práticas diferentes de leitura e escrita, mas, além da repetição, deve-se ampliar o aprendizado; é a idéia da espiral, inserindo-se pontos de discussão temáticos e relacionando-os à própria estrutura da lógica de pensar.

A significação é construída por meio da história dos significados existentes (conhecimentos prévios), que dá origem e permeia as trocas comunicativas e a construção de novos significados. Produzimos um ensino-aprendizado significativo ao considerarmos o conhecimento prévio e as práticas de cultura das comunidades onde estamos interagindo, juntamente com o novo conhecimento que desenvolvemos com os alunos por meio de textos e outros materiais. Assim, percebemos que, nessa perspectiva, há a valorização da

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construção do conhecimento e da comunicação de cada interlocutor participante, mas enfatiza-se a negociação dos significados na inter-ação. Essas atividades podem ajudar o professor a aprender a ouvir seu aluno, tornando-se sensível a suas formas de aprender e produzir conhecimento. Organizar momentos de discussão e de aprendizagem conjunta, enfatizando um ou outro elemento do processo, de acordo com a situação comunicativa, promove o desenvolvimento dos processos de identificação social, mesmo se tratando de crianças tão pequenas.

Uma postura do professor que envolva o conhecimento lingüístico necessário e que considere os aspectos mediacionais relevantes provoca o desenvolvimento de uma sensibilidade à necessidade de mudanças no fazer e na rapidez com que procura desencadear respostas eficientes, ou criar novos instrumentos e procedimentos que resolvam as questões surgidas nas interações, colocadas pelos alunos. O professor mediador é aquele que é sensível aos seus alunos e que aprende a julgar e avaliar a necessidade de resposta e, se há, qual resposta dar e na direção de qual objetivo pedagógico.

Por uma mediação dialógica

Pensamos que, para lidar com a complexidade atual das situações interativas do cotidiano, torna-se necessário que os cursos de formação de professores direcionem as práticas pedagógicas para uma ação que não apenas constate problemas, mas para que aprendam a resolvê-los em sala de aula, por meio de atividades que contemplem a todas as crianças e busquem incluir a todas no processo de ensino-aprendizado (Mercer, 2005). O dialogismo no ensino se dá quando pensamos que, além de construir o conhecimento e um discurso crítico com as crianças, proporcionamos contextos de aprendizado diversificados nos quais esses conhecimentos conceituais e procedimentais possam ser transferidos, sendo experimentados em outros eventos de letramento na escola, na família, na comunidade, em situações de lazer.

O conhecimento é construído nas interações, com os outros; assim, um ponto positivo é o incentivo ao reconhecimento dos saberes dos alunos e das culturas locais. Quando o conhecimento que os alunos trazem de seu

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cotidiano e os raciocínios que desenvolvem ao resolverem uma atividade são aproveitados como alavancas para o ensino, estamos contribuindo para o aprendizado reflexivo da leitura e da escrita, dos usos da língua e para a formação de significados, avaliando o que sabem para direcionar o próximo desenvolvimento (Vigotski, 1998). Isso ocorre, por exemplo, quando proporcionamos trocas efetivas entre os alunos, como sugere Calkins (2002), para que, desde o início da escolarização, os alunos participem de rotinas de discussão conjunta dos temas que vamos utilizar nas atividades de leitura e escrita, ouvindo a opinião do professor e dos colegas ao longo do processo de negociação; inclusive nos momentos de desenho, escrita espontânea, quando forem mostrar e explicar aos seus colegas suas produções, mesmo que se expressando por meio de duas ou três palavras, no início da prática dessa atividade.

O professor está, assim, criando oportunidades de trocas e de tomada de consciência. Essa postura muda inclusive aspectos da temporalidade relacionados à leitura e escrita de textos, tornando as atividades de leitura e releitura possíveis, por exemplo, quando os textos são colocados em varais e expostos nas paredes internas e externas da sala; os livros, gibis e outros portadores (como os próprios livros produzidos pelas crianças) são disponibilizados no cantinho de leitura e as bibliotecas escolares e públicas funcionam plenamente para visitas, leituras individuais e coletivas in loco e empréstimos.

A significação também é construída pela qualidade da relação professor-aluno. Muitas vezes vemos professores que valorizam sobremaneira seus planejamentos e esquecem-se de que o ensino-aprendizado ocorre como uma negociação de significados com os alunos. Por exemplo, em situações que envolvem aspectos lúdicos que requerem uma flexibilidade por parte do professor para julgar como conduzirá a interação, torna-se crucial a leitura dos significados das falas e fazeres dos alunos antes de quaisquer tomadas de decisão quanto ao direcionamento da construção de conhecimento.

Ao observarmos uma aula de alfabetização em que a professora conduzia uma atividade cujo tema era “a minha casa”, ela não percebeu que, ao perguntar quantos quartos e quantos banheiros tinha a casa de cada aluno, poderia estar constrangendo crianças que moravam em condições precárias. Porém, ao ouvir a resposta extraordinária de um aluno, parou,

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refletiu sobre o que, possivelmente, estava ocorrendo e continuou a participar da interlocução de forma positiva. Ao chegar sua vez de responder, um menino disse: – “Na minha casa tenho 48 banheiros e 48 quartos”. A professora parou brevemente a seqüência que desenvolvia, mas logo retomou: –

“Ah sim! Quarenta e oito quartos e banheiros! Que imaginação! E tomou nota no quadro da resposta do menino” (Barbato, 2006).

Tanto a professora como as crianças são respondentes ativas (Volosinov, 1992). No exemplo anterior, podemos verificar que a professora considera e respeita a construção lúdica do aluno e, ao fazê-lo, constrói significações que motivam o aluno, pois tenta ser sensível aos aspectos relevantes do momento interativo. As pessoas aprendem aquilo que acreditam poder tornar seu (Bruner, 1998); se notam que suas produções estão sendo desvalorizadas ou não são levadas em conta, muitas vezes se sentem desmotivadas e acabam desistindo de continuar aprendendo. Isso diz respeito não somente às formas de agir e ver o mundo, mas também às próprias formas de falar. É, por exemplo, o que ocorre hoje em dia com a luta contra o preconceito lingüístico: evita-se o preconceito e aceita-se o desafio de trabalhar as variantes lingüísticas que são utilizadas em diferentes contextos sociais e locais por diferentes grupos (Bortoni-Ricardo, no prelo). Ao reconhecer os preconceitos, a escola constrói a norma padrão como uma das variações possíveis, acolhendo os falares locais.

Muitas vezes, as variantes utilizadas pelos alunos são confundidas com erros de aprendizagem. Recentemente, quando analisávamos os dados de produção escrita de crianças de seis anos com a professora regente, deparamo-nos com uma dessas formas: a criança, ao escrever “flor”, produziu

“fulo” (Barbato, 2006). Nesse caso, a professora foi incentivada a trabalhar com as crianças “formas de falar” e “formas de escrever”, utilizando exemplos de suas produções quando surgissem.

Assim, o desenvolvimento da participação cidadã crítica ocorre também nas relações em sala com as crianças pequenas, nas possibilidades que o professor tem de transformar o que parece erro em momento de construção e ampliação do conhecimento de seus alunos e de seu próprio conhecimento, nas práticas de respeito mútuo, de argumentação e pela

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dinâmica de ensino dialógico, que transforma a situação pedagógica. Nessa perspectiva, a construção de significados é deslocada do eu e do tu para o inter, passando a abarcar também os instrumentos utilizados no processo de ensino-aprendizado e os procedimentos, inclusive discursivos, da interação nos modos comunicativos orais, escritos e visuais.

Nesse sentido, o professor procura ouvir e observar a fim de transformar o conhecimento, utilizando os elementos produzidos nas interações em sala no aprendizado da oralidade, leitura e escrita. Cabe ao educador, como mediador, interpretar o que está acontecendo e, ao tentar alternativas visando à participação e ao aprendizado de todos, motiva o aluno a construir seu conhecimento. Assim, a participação dos indivíduos na comunidade desenvolve-se desde que nascem e não se dá apenas pela construção da crítica sobre o cotidiano, mas pelo domínio dos instrumentos que possibilitem a transformação pessoal relacionada aos objetivos e processos escolares.

O professor como mediador planeja suas aulas tendo em vista os processos já adquiridos pelas crianças e aqueles em desenvolvimento; provoca situações que promovam o aprendizado por meio de atividades diferenciadas, discussões e reflexões que conduzam o aluno à transformação de seu conhecimento. Estar para o outro é abrir com ele novas zonas de desenvolvimento proximal (Vigotski, 1998), é dialogar com ele, num movimento de escuta-reflexão e ação em que se têm por princípios básicos o trabalho conjunto e a crença na potencialidade de responsividade ativa (Bakhtin, 1992) para a transformação do conhecimento pelos indivíduos.

O educador, ao alternar atividades em que lidera com atividades em que os alunos lideram, oportuniza a todos diferentes formas de aprender e praticar a leitura, escrita e oralidade em eventos comunicativos, construindo com o coletivo um suporte que se estende a cada aluno, incentivando a atuação crítica sobre os conhecimento em processo de aprendizado.

Algumas das formas de intervenção na zona de desenvolvimento proximal são comparadas à construção de andaimes, de apoios pelo professor para auxiliar a transformação do conhecimento por parte dos alunos. Exemplos de dinâmicas de trabalho que podem desencadear a zona de desenvolvimento proximal incluem a manipulação de textos e

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Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...

materiais escritos com o planejamento alternado de dinâmicas de sala de aula, incluindo atividades lúdicas. Quando trabalha na zona de desenvolvimento proximal, o professor planeja uma série de atividades similares e vai retirando aos poucos a ajuda que oferece aos alunos, ora instruindo-os, ora deixando-os tomar as decisões. Por exemplo, quando, na alfabetização, quer enfatizar a relação entre os sons e a escrita de letras e palavras, procurando antecipar o planejamento, inclui diferentes atividades a serem desenvolvidas de acordo com as possíveis respostas que possam ser dadas pelos alunos.

A mediação provoca mudanças na estrutura interna das operações intelectuais e, portanto, influencia no uso de signos por parte dos alunos. A qualidade da mediação depende também da metodologia que o professor utiliza e, para Vigotski (2001), há uma relação entre as concepções do professor sobre o aluno e sua forma de aprender que influencia as formas de mediação. Portanto, é imprescindível possibilitar a participação ativa do professor na construção de uma nova metodologia, que responda às demandas comunicacionais da sociedade moderna, ao currículo do primeiro ano de escolarização, e seja sensível aos modos e estilos de construção de conhecimento das crianças de seis anos.

Considerações finais

O domínio da leitura e da escrita amplia as possibilidades de comunicação do sujeito, de sua inserção na cultura e, portanto, de sua participação cidadã. Para Vigotski (2002), a linguagem é o instrumento simbólico mais importante para a transformação de cada um de nós. Ora, se a linguagem escrita é uma potencialidade de ampliação do uso dos instrumentos de mediação simbólica, podem-se notar conseqüências imediatas quando um grupo a domina. Luria (1992) nos chama a atenção para a prática mediacional mais importante da escrita: aprendemos a escrever e ler à medida que compreendemos que leitura e escrita têm funções comunicativas.

Neste capítulo, discutimos as práticas de letramento no processo de alfabetização, considerando o desenvolvimento das crianças de seis anos, relacionando-os com o ensino dialógico. As salas de aula compõem microculturas (Alexander, 2003) e as construções de conhecimento são eventos de negociação de significados (Pontecorvo; Ajello; Zucchermaglio, 2004),

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Silviane Barbato

direcionados à compreensão dos processos de leitura e escrita como cultura letrada e como atividade de construção de suposições sobre os fatores que contribuem não somente para o aprendizado, mas para o desenvolvimento social dos indivíduos. Ao adotarmos uma postura dialógica no processo de ensino-aprendizado, encorajamos os alunos a descobrirem e lerem o mundo por meio do engajamento nas discussões a partir da compreensão e produção de textos, proporcionando-lhes e a nós, educadores, a construção de uma mudança social na sala de aula e na escola.

O processo de ensino-aprendizado da leitura e da escrita para as crianças de seis anos deve considerar suas formas de aprender direcionadas por práticas de brincar, mediadas pela oralidade, com a língua escrita e com o novo conhecimento, alternando a leitura e escrita de textos, palavras, sílabas e o trabalho com o conhecimento fonológico da língua e incentivando a leitura e escrita como prazer, e em atividades sobre as quais se conversa sobre, se discutem, se comparam e se interpretam os textos em eventos de negociação com os colegas e o professor.

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A leitura do texto teatral na escola

Tania M. K. Rösing*

PersonagemPRACINHA da Força Expedicionária Brasileira. Entre 70 e 75 anos. Homossexual.

AmbientaçãoUma máquina de costura Singer (manual). Um banco, caixa de costura, roupas e retalhos.

CENA ÚNICAO personagem PRACINHA, sentado junto de sua velha máqui-na de costura, canta serenamente um trecho da “Canção do Expedicionário” (letra: Guilherme de Almeida; música: Spar-taco Rossi). Ele pontua o trecho da música com os ruídos que produz com a máquina.

PRACINHA(cantando) Você sabe de onde eu venho?Venho do morro, do Engenho,Das selvas, dos cafezais,Da boa terra do coco,Da choupana onde um é pouco,Dois é bom, três é demaisVenho das praias sedosas,Das montanhas alterosas,Dos pampas, do seringal,Das margens crespas dos rios,Dos verdes mares braviosDa minha terra natal.

Por mais terras que eu percorraNão permita Deus que eu morraSem que volte para lá;Sem que leve por divisaEsse “V” que simbolizaA vitória que virá;Nossa vitória final,

* Doutora em Letras pela PUCRS. Professora de literatura brasileira no curso de mestrado em Letras da Universidade de Passo Fundo. Coordenadora do Centro de Referência de Literatura e Multimeios da UPF. Coordenadora das Jornadas Literárias de Passo Fundo.

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Tania M. K. Rösing

Que é a mira do meu fuzil,A ração do meu bornal,A aguado meu cantil,As asas a do meu ideal,A glória do meu Brasil.Pára de cantar. Encara a platéia.

PRACINHA“Desde que eu me lembro, estou na casa da minha avó. Sou um dos menores. Por isso, um dos primeiros que ganha comida. Minha vó fazia questão.A mesa não cabe. Cada um agarra um prato e senta no chão. Presto atenção nas conversas: o que precisava ser feito, o que já tinha acabado, uma mágoa, um combinado, uma comemoração. E assim se dizia as coisas uns pros outros, sentados abraçados nos pratos. Minha vó dava risada. Dizia que era uma família que comia e cagava tudo igual.Acordar, comer, cagar, aprender a ler, escrever carta, cortar unha, cortar cabelo, brigar, fazer as pazes, si assustar, fazer promessa, fazer fogueira, ouvir rádio, dançar em baile, deitar e dormir. Todo mundo junto. De dia e de noite. A gente sempre dividiu calor [...] (BONASSI, Fernando, NAVAS, Victor. Uma pátria que eu tenho. São Paulo: Scipione, 2003 – (coleção Palavra da Gente; v.5. Peça Teatral).

Homens e mulheres: diferentes papéis em sociedade

Qualquer pessoa, desde que desperta a cada manhã pra cumprir as ações do dia, desempenha diferentes papéis. Co-meça com os cuidados pessoais: higiene, aparência. Se for mu-lher ou homem, não interessa: ambos cuidam de si, da organi-zação da casa, dos alimentos, da distribuição das tarefas do dia – quem vai ao mercado, quem leva e quem busca as crianças na creche, na escola, quem veste o filho, a filha, quem prepara o lanche. Falta um medicamento. Quem está menos atarefado, liga para o serviço de teleentrega. É o dia da consulta ao den-tista. Quem acompanhará a filha? Solicitam ajuda do avô, da avó, da tia... O menino faz caras e bocas para não sair da cama – está frio! As horas vão passando celeremente.

O homem, já no trabalho, depois de enfrentar um trânsito complicado, identifica-se através do cartão ponto digital, cria uma desculpa plausível para justificar o atraso e corre para ocupar seu lugar. É um setor importante. Não pode apresentar resultados negativos. Revisa os documentos do mês anterior. Compara desempenhos. Convoca os integrantes do seu grupo para uma reunião-relâmpago. Compartilha preocupações.

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A leitura do texto teatral na escola

Ouve manifestações. Repensa estratégias. Cria coletivamente novas metas. Mostra-se esperançoso tentando esconder sua tensão. Não pode perder o emprego. A família. A garantia aos compromissos assumidos...

Em outro espaço de trabalho, uma mulher precisa de-senvolver com muita competência as atividades inerentes à sua função. Não pode falhar. Todas as tarefas são importantes.Um descuido pode comprometer a produtividade de todo o segmento . Enquanto trabalha, demonstrando uma aparente tranqüilidade, vem à sua mente a imagem do filho em estado febril... Pensou deixá-lo na creche. Mesmo no início da sema-na essa mulher está profundamente preocupada, já amplia seu nível de estresse. Tem consciência de que o terceiro turno de atividades em casa é inevitável. Mais funções a exercer. Mais papéis a cumprir. Diferentes pensamentos perpassam-lhe a mente. Emoções e cansaço mesclados... É uma multiplicidade de expressões na complexidade dos sentidos.

É profundamente significativa a reflexão do dramaturgo Alcione Araújo”(2006)1 neste momento:

A expressão teatral está tão profundamente umbricada na natu-reza humana e na condição humana, que é impossível estabe-lecer a fronteira de uma atividade mais genérica e o teatro pro-priamente dito. Pode-se perceber a dificuldade observando o lúdico jogo teatral presente quando crianças brincam de Papai e Mamãe, de Mocinho e Bandido ou mimetizando as relações entre os animais – nesses jogos as crianças já estão assimilando papéis que poderão desempenhar na vida adulta – note que a palavra “papéis”veio do teatro.

Quando se observa o que as pessoas fazem, quando se está muito próximo de cada um desses agentes construtores da história particular e social, sente-se o quão é difícil, o quão cansativo, o quão diversificado é o quotidiano das pessoas em geral. Essas constatações feitas “olho nu” e como uma sensa-ção de “pele” é o que o espectador sente ao vivenciar os senti-mentos, as emoções protagonizadas pelos atores nas diferen-tes cenas. Não se imagina: sente-se. Assistir a um espetáculo teatral constitui-se na vivência de sentimentos e emoções. Ler um livro – personagens e suas reações, cenário, tempo – pres-supõe muita imaginação.

1 ARAÚJO, Alcione, (Org.) Duas ou três coisas que eu sei dela, a dramaturgia. Proposta de leitura do mundo através da narrativa dramática / Leia Brasil

– Organização Não Governamental de Promoção da Leitura. Rio de Janeiro: Argus, 2006

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A diversidade de público no contextoda escola

Os diferentes níveis de escolaridade desde a educação infantil, passando pelo ensino fundamental, atingindo o en-sino médio, abrangem alunos de camadas socioculturais as mais diversas, dependendo, também, do sistema educacional a que pertence a escola: pública municipal, pública estadu-al, particular; da faixa etária; do sexo; da situação financeira desses alunos.

Essa heterogeneidade se revela no baixo desempenho de leitura da grande maioria desses jovens, paralelamente à variedade de interesses, de necessidades que, muitas vezes, é causa maior do seu distanciamento da escola. Um olhar cuida-doso dos professores é capaz de detectar a necessária oferta de materiais bem selecionados e com grande diversificação para seduzir os integrantes desse público e melhorar suas condi-ções de compreensão e de interpretação nas possíveis leituras a serem efetivadas.

A escola convencional não estimula o desenvolvimento de um processo de formação contínua dos professores. Se o mesmo for desenvolvido, poderá conscientizar professores e dirigentes das escolas acerca das mudanças velozes impostas pelas novas tecnologias, imprimindo um ritmo diferenciado e rápido ao lado da abertura de horizontes às pessoas que vivem no século XXI.

Essa escola deve observar com maior rigor o comporta-mento, as reações de seus alunos, que se afastam com muita naturalidade dos (não) apelos dessa instituição tradicional. Esses jovens dificilmente estão prontos com as leituras literá-rias indicadas pelo professor, mas não perderam o capítulo da telenovela. Buscam vivenciar experiências on line desinteres-sando-se pela linearidade típica de uma narrativa clássica lite-rária. Deliciam-se com as múltiplas possibilidades navegação num hipertexto em meio eletrônico.

Paralelamente a essa sedução, os jovens precisam en-frentar a rotina escolar de leitura – narrativas clássicas se re-petem numa trajetória sem emoções, sem novidades. Novas tribos de escritores não lhes são apresentadas por desconheci-mento e acomodação dos professores.

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A leitura do texto teatral na escola

Textos poéticos aparecem entre leitura “selecionadas” para os alunos das séries iniciais prioritariamente e, na maio-ria das vezes, exclusivamente nessas séries. Os professores mal preparados, não leitores, consideram o gênero literário poesia de difícil assimilação, linguagem concisa, hermética à compreensão, à interpretação e à apropriação de leitores/apre-ciadores da poesia. Também neste caso, quando são oferecidos textos poéticos para que os alunos leiam, são textos sem ne-nhum apelo, mal selecionados, apenas por serem canônicos.

Outro aspecto a ser destacado é desconhecimento de professores e de responsáveis por bibliotecas do conteúdo de canções populares cujas letras são poesia pura. Eis por que os jovens “consomem” produtos oriundos da indústria cultural, ignorando a questão da qualidade nesses poemas cantados.

Da mesma forma, a leitura do texto teatral impresso não está prevista no “planejamento” das leituras escolares. O que aparece é a “proposta” de encenação de peças teatrais, às ve-zes adaptadas de narrativas pelos próprios alunos sem que os mesmos entendam a natureza da dramaturgia, muito menos o seu valor.

Alcione Araújo (2006)2 propõe a seguinte reflexão/de-núncia:

A dramaturgia, base literária da expressão teatral, é ignorada pelos currículos acadêmicos mesmo nos cursos de letras e rara-mente utilizada nos níveis médio e fundamental do ensino no Brasil. Renuncia-se, assim, à sua utilização pedagógica como uma maneira de representar, interpretar e conhecer o homem e a sociedade criada pelos homens. A encenação teatral possibi-lita cumular vivências do que não se viveu.

Os descaminhos entre o potencial baixo de leitura dos professores e as necessidades dos alunos impulsionados pela inventividade, que lhes é peculiar e estimulados pelas novas tecnologias, desencadeiam uma trajetória sem previsão de eta-pas a serem cumpridas, por meio da inclusão dos gêneros lite-rários, poesia e teatro ao lado de gêneros textuais necessários às suas práticas culturais e sociais.

2 ARAÚJO, Alcione (Org.) Teatro: educar para sentir, pensar e agir. Proposta de leitura do mundo através da narrativa dramática / Leia Brasil – Organização Não Governamental de Promoção da Leitura. Rio de Janeiro: Argus, 2006.

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A complexidade da realidade visualizada no exercício da troca de papéis

PADRE: (Dá alguns passos de um lado para o outro, de mão no queixo e por fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial.) Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a promessa?ZÉ: Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com minha consciência e quite com a santa.PADRE: Só isso?ZÉ: Só.PADRE: Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?ZÉ: Eu?!PADRE: Sim, você. Você acaba de repetir a via crucis, sofrendo o martírio de Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imi-tar o Filho de Deus...ZÉ: (Humildemente) Padre eu não quis imitar Jesus!PADRE: Mentira! Eu gravei suas palavras! Você mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo [...].(DIAS GOMES. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Ber-trand Brasil, 2003 ) Literatura em minha casa. 8ª série; v. 4. Peça Teatral.

As crianças, desde muito cedo, desenvolvem jogos dramáticos: Agora eu sou a mãe e você é a filhinha. Ah! não! Agora eu quero ser a rainha má e você, a Branca de Neve. Não, não! Agora você faz as compras e paga pra mim. Sou caixa do supermercado.

Entre as adolescentes, acontece, repetidas vezes, que algumas garotas tentam imitar top models, começando por deixar de comer para ficarem com uma aparência corporal próxima às mais famosas e bem-sucedidas financeiramente. Não estão preocupadas em construir sua própria identidade. Imitam por imitar. É a aparência exterior que interessa. Projetos de vida, sentimentos, emoções ficam de lado.

Constata-se também uma grande preocupação com a aparência exterior por parte do sexo masculino. Submetem-se a tratamento estéticos, a experiências com novos produtos rejuvenescedores... não se importam com a paralisia de determinados músculos responsáveis pela expressão facial que lhes conferem identidade por muitos anos. Modelam os cabelos causando espanto. Esses comportamentos nada têm a ver com as personalidades assumidas de determinados personagens pelos atores enquanto encenação do espetáculo teatral (inclusive da própria telenovela). O diretor de teatro

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A leitura do texto teatral na escola

lidera um grupo de atores para selecionar as personagens a serem assumidas no contexto de uma peça teatral. Estudam, investigam muito. Assumir uma determinada personagem requer muito empenho. É preciso interiorizar o modo de ser dessa personagem, seu agir, seu pensar, seu sentir, a fim de interpretar com precisão a personagem.

Essa complexidade deve ser entendida pelos espectadores que integram a platéia desse espetáculo. Se o público espectador não conseguir participar profundamente desses sentimentos, dessas emoções, não está envolvido na atmosfera da arte teatral.

Paralelamente à reflexão sobre os papéis assumidos pelos atores no espetáculo teatral, a retomada dos papéis exercidos em sociedade faz-se necessária em relação ao que desejariam os jovens assumir na escola e não conseguem: autonomia no processo de seleção de leitura de produção de textos sobre te-mas específicos de seu interesse; compartilhamento de idéias, de sentimentos a partir de uma leitura; participação no pro-cesso de organização do espaço da sala de aula, nos debates ora como coordenadores, ora como relatores, ora como obser-vadores críticos; respeito dos professores à história específica de cada aluno, considerando este último um ser inteligente com história; tratamento dos alunos como sujeitos e não como seres passivos na comunidade de aprendizes em que devem se integrar professores e alunos; estímulo ao desenvolvimento da prática da investigação.

Ao contrário, de forma inconsciente, professores estimu-lam alunos a se organizarem em orkuts, espaço de discussão, de denúncia, de crítica séria ou leviana.

Não seria a hora de aprofundar o debate entre professores, alunos e pais sobre o distanciamento dos jovens da escola?

Que medidas estão sendo tomadas para diminuir o anal-fabetismo funcional, referido como desempenho inaceitável de leitura? É pertinente a proposta de Alcione Araújo (2006):

“Enfim, o que se pretende é sugerir o uso do processo de dra-maturgia como estratégia para superar o analfabetismo fun-cional. A leitura de peças teatrais induz de maneira lúdica e natural à atitude intelectiva de compreender o que se lê para compreender o que acontece.”

Os programas governamentais de distribuição do livro didático aos alunos do ensino fundamental e, agora, do ensino

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médio não conseguem provocar mudanças nesses alunos, uma vez que o problema maior encontra-se entre professores não leitores. Considerando que as bibliotecas escolares, quando existem, também são conduzidas por professores despreparados, o estímulo à leitura, a dinamização dos acervos, a mediação da leitura não acontecem.

Outros materiais de apoio ao professor têm sido pre-parados cuidadosamente por equipes técnicas do Ministério da Educação. Ao chegarem na escola, esses recursos não são criticados, sequer são analisados por número significativo de professores. A acomodação, o desestímulo pelo exercício da profissão são maiores do que a curiosidade de aprender sem-pre mais para compartilhar mais.

O desafio de ler o texto teatral na escola

[...]LORDEEstá certo, Bufo. Mas peço-lhe: não venha por este caminho. A cidade tem muitos atrativos e muitas tentações... E, infelizmen-te, somos fracos... Inventaram por lá uma sedução diabólica e irresistível chamada glória.BUFOE o que é a glória?BELAUma mulher, Bufo! Fico feliz, Lorde!LORDENão, não é mulher! É difícil explicar, mas a sensação é a mesma de fazer amor o dia todo, fazer amor a vida toda...BUFOE artista, Lorde, ainda há por lá?LORDEClaro. Há glorificados, como eu e os que lutam pela glória. Tal-vez existam outros, mas desconheço.BUFOE por que não devemos seguir o seu caminho? LORDEPorque é preciso preservar artistas como vocês. Vocês são a esperança de ressurreição da arte, depois do apocalipse. Não devem se contaminar. Vocês e a arte são uma única coisa, pura, simples, bruta, indestrutível. Lá, a glória fez os artistas maiores que a arte se salvarem só saberão ensinar a glória, não a arte [...].(ARAÚJO, Alcione. A caravana da ilusão. Rio de Janeiro: Civi-lização Brasileira, 2000 (Dramaturgia de Sempre).

O fragmento anterior provoca a curiosidade dos leitores. Quem são essas personagens? De onde vieram? Por que falam de glória e de arte?

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A leitura do texto teatral na escola

Em sala de aula, noticiar esse texto dramático para es-timular a leitura do texto complexo é a tarefa importante e desafiadora a ser cumprida pelo professor.

O jogo entre as operações mentais e os sentimentos, as emoções precisam acontecer durante a leitura. Há dois cami-nhos a serem percorridos: se forem leitores iniciantes, a lei-tura poderá ser compartilhada entre professor e alunos. Se já forem leitores experientes, poderão realizar a primeira leitura individualmente. Num momento posterior, há a explicitação das marcas dos texto teatral, a escolha de personagens, a iden-tificação do tema em questão e a avaliação de sua importância, as reações dos personagens, o cenário, o tempo, as situações, tudo na perspectiva da imaginação.

A partir do entusiasmo pelo envolvimento com a leitura do texto teatral, pode-se realizar, muitas vezes, a leitura do texto em voz alta, o que desencadeará uma leitura interpretada a partir das personagens e do envolvimento interior dos alunos com as mesmas, diferentemente da encenação no palco.

As razões apresentadas sugerem a professores, bibliotecários, alunos, leitores em geral o quão enriquecedor é o envolvimento com o teatro. O diálogo entre os personagens constitui-se numa polifonia caracterizada pela diversificação dos modos de pensar, de agir, de sentir. A decisão de ler o texto teatral é uma atitude firme em direção ao entendimento da condição humana através da ampliação do imaginário.

É imprescindível que cada integrante da instituição escola, que abrange, para quem não sabe, a biblioteca, conceda-se essa oportunidade ímpar de pensar e sentir a complexidade e a riqueza da condição humana pelo viés da imaginação, de forma competente, viabilizada pela leitura de textos teatrais. A resposta “eu não gosto de ler peças teatrais” deve ser entendida como “eu não tive a oportunidade de ler textos teatrais na escola, na biblioteca, em casa...”.

É incompatível com a escola no processo de desenvolvimento educacional e cultural dos alunos a não criação de oportunidades aos alunos de desenvolvimento com a dramaturgia, iniciando-se pela leitura de textos teatral para ampliar a imaginação desses jovens leitores.