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    FORMAS SINCRTICAS DAS RELIGIES AFRO-AMERICANAS:

    O TEREC DE COD (MA)1

    Mundicarmo Ferretti2

    INTRODUOOs estudos clssicos de religio afro-brasileira, realizados nas capitais nordestinas,

    em terreiros de nao africana, contriburam para a maior valorizao do candombl jeje-nag e do culto aos orixs. Essa preferncia explica, em parte, o desinteresse havidoposteriormente pelos terreiros em que a cultura africana foi mais sincretizada e em que, almdas entidades jeje-nag (voduns e orixs), so cultuados caboclos e entidades africanas deoutras naes. Assim, os estudos sobre a religio afro-brasileira do Maranho, em suamaioria, foram realizados em So Lus (capital), onde se desenvolveu o Tambor de Mina, emterreiros fundados por africanos (Casa das Minas e Casa de Nag) ou que afirmam umaidentidade africana (Casa Fanti-Ashanti), terreiros esses mais empenhados na preservao detradies culturais trazidas da frica para o Brasil por escravos. A partir de 1984,direcionando nossa ateno para as entidades caboclas do Tambor de Minaem um daquelesterreiros de So Lus e, retomando outros estudos realizados na capital e no interior, que svezes passaram quase despercebidos (o da Misso Folclrica, em 1938, e o de Octvio daCosta Eduardo, entre 1943 e 1944), compreendemos a necessidade de se lanar um novo olharsobre os denominados cultos sincrticos e de se pesquisar a religio afro-brasileira tradicionalde outras cidades maranhenses.

    Pretendemos apresentar aqui alguns resultados da nossa pesquisa sobre o Terec,denominao da religio afro-brasileira tradicional do municpio de Cod (MA), bastantedifundida na capital, no interior do Maranho e tambm encontrada em terreiros de Estadosvizinhos3. Embora menos empenhado na afirmao de uma identidade africana e muitas vezesconfundido com a Umbandaou com aMina,o Terec possui traos que apontam para umaorigem africana que merecem ser examinados por especialistas.

    TEREC, A LINHA DE COD

    Terec a denominao dada religio afro-brasileira tradicional de Cod - umadas principais cidade maranhenses, localizada na zona do cerrado, na bacia do rio Itapecuru,a mais de 300km, em linha reta, da capital. Alm de muito difundido em outras cidades dointerior e na capital maranhense, o Terec tambm encontrado em outros Estados,integrado ao Tambor de Mina ou Umbanda4. tambm conhecido por Encantaria de BarbaSora (ou Brbara Soeira), por Tambor da Mata, ou simplesmente Mata (possivelmente emaluso sua origem rural).

    Embora se saiba que o Terec se originou de prticas religiosas de escravos dasfazendas de algodo de Cod e de suas redondezas, sua matriz africana ainda poucoconhecida. Apesar de exibir elementos jeje e alguns nag, sua identidade mais afirmada emrelao cultura banto (angola, cambinda) e sua lngua ritual , principalmente, o portugus.

    No Terec, como no Tambor de Mina, as entidades espirituais so organizadas emfamlias, sendo a maior e mais importante a da controvertida entidade espiritual Lgua BogiBo da Trindade, apresentado em Cod como prncipe guerreiro ou preto velho angolano e,em So Lus, como filho adotivo de Dom Pedro Angassu, oriundo de Trinidade, ou como umcaboclo da Mata. Lgua Bogi tambm apresentado em terreiros da capital maranhense

    1 Elaborado em 2007. Retoma texto apresentado no Seminrio: Religies afro-americanas e diversidade cultural,promovido pela UNESCO e Fundao Palmares, no Rio de Janeiro, de 19 a 21 de dezembro de 2001, publicado pelaUFMA em Cadernos de Pesquisa. So Luv.14, n.2, jul./dez. 2003, p.95-108.

    2Dra. Antropologia; Profa. Titular aposentada da UEMA; Secretria Administrativa do INTECAB-MA

    3Resultados dessa pesquisa foram publicados anteriormente em captulos de dois livros da editora Pallas - Faces datradio afro-brasileira (CAROSO & BACELAR, 1999) e Encantaria brasileira, o livro dos mestres, caboclos eencantados (PRANDI, 2001) - e, mais recentemente, em um livro publicado pela editora Siciliano - Encantaria de

    Barba Soeira: Cod, capital da magia negra? (FERRETTI, 2001b).4Ismael Pordeus encontrou em Centros de Umbanda de Fortaleza vrias entidades espirituais da famlia de Lgua Bogi(PORDEUS JR., 1993) e Luiz Assuno, em Comunicao Oral feita na XXI Reunio da ABA, informou que a palavraTerec utilizada no Piau e interior do Nordeste em terreiros de Umbanda e Jurema (Catimb).

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    como vodum cambinda (na Casa das Minas-Jeje) ou como um misto de Lgba (correspondentedaomeano de Exu) e do vodum Poliboji, idia defendida por Pai Jorge Itaci (OLIVEIRA, 1989,p.37)5.

    Embora no Terec sejam cultuados voduns africanos jeje-nag (como Averequete,Sob, Ew), muito conhecidos no Tambor de Mina da capital, os transes ocorremprincipalmente com voduns da Mata ou caboclos comandados pela entidade Lgua Bogi Boda Trindade. Mas fala-se que as entidades espirituais da Mata so chefiadas por Maria Brbaraou Brbara Soeira, entidade associada a Santa Brbara e, s vezes, com ela confundida, quese acredita ter sido a primeira pajeleira (curadeira), razo porque o Terec tambmconhecido por Barba Sora. bom lembrar que, no obstante ser o Terec um culto afro-brasileiro, nele as prticas curativas so muito desenvolvidas (FERRETTI, M. 2001a, p. 59;2001b, p.154)6.

    Geralmente no Terec os pais e mes-de-santo tambm so curadores, emboraexistam na regio raizeiros, preparadores de mezinhas, que so ali mais conhecidos porcientistas (doutores do mato) do que por terecozeiros, umbandistas ou macumbeiros (termomais usado pejorativamente para designar toda religio de origem africana). Em Cod, tantono passado como na atualidade, alguns terecozeiros ficaram tambm famosos realizando

    trabalhos de magia por solicitao de clientes vidos de vingana, de polticos ou de outraspessoas dispostas a pagar por eles elevadas somas, o que s vezes lhe valeu a fama de terrado feitio. Afirma-se que nesses trabalhos e nas prticas teraputicas os terecozeirosassociam sabedoria herdada de velhos africanos conhecimentos indgenas, prticas docatimb, da feitiaria europia e que tambm se apiam no Tambor de Mina, na Umbanda ena Quimbanda (que se encontra em expanso em Cod). Contudo, feitiaria foi e continuasendo uma categoria de acusao e nunca de autodefinio.

    Em 1943 os terecozeiros do povoado de Santo Antnio no praticavam a magiacurativa, como os curadores de terreiros da rea rural de So Lus, e nem a magia negra,de que eram freqentemente acusados (EDUARDO,1948). De acordo tambm com odepoimento de terecozeiros codoenses ouvidos em So Lus por Pai Euclides, ainda criana(antes de 1950?), havia em Cod grande separao entre Terec e feitiaria, mas esta era

    praticada na regio por pessoas afamadas, que faziam qualquer maldade atendendo solicitao de quem pagasse o preo por elas estipulado (FERRETTI,M. 2001a; 2001b)7. Nosltimos anos muitos terreiros de Cod tm introduzido no Terec tradicional (na Mata Puraou na Mata Virgem) elementos da Umbanda e da Quimbanda, passando a cultuar Exu ePombajira, e do Candombl. Essa mudana tem sido apontada pelos mais tradicionalistascomo responsvel pela associao do Terec (religio) magia negra.

    Tudo indica que o Terec se organizou primeiro em povoados negros de Cod e demunicpios vizinhos, mas s se tornou mais conhecido depois que se desenvolveu na cidade deCod. Segundo Costa Eduardo, em 1943, no povoado de Santo Antnio dos Pretos, o Terecera mais conhecido por Paj ou por Brinquedo de Santa Brbara, e, s vezes, era tambmdenominado Budum (vodum) e Nag, o que sugere a existncia de um sincretismo afro-catlico-amerndio maior do que o que j fora constatado no Tambor de Mina.

    Alm de possuir alguma relao com as culturas jeje e nag (como indicado emdois dos nomes pelos quais era conhecido no povoado de Santo Antnio), o Terec tem sidotambm associado cultura banto. Como j mencionamos, a entidade espiritual Lgua BogiBo da Trindade nos foi apresentada como um preto velho angolano, em Cod, por DonaAntoninha (ou Antonina, a me-de-santo mais antiga de Cod, falecida em 1997, que foi nossaprincipal informante) e conhecido em So Lus, na Casa das Minas-Jeje como um vodum

    5Como nos falou a antroploga e linguista Yeda Castro, o nome de Lgua Boji deve ser fon e, se for, ele o Lgba daporteira. Essa hiptese tambm afirmada pelo lingista beninense Hyppolyte Brice Sogbosi, para quem Lgua Bojipode ser Legba Gboji, que significa no porto de Legba.

    6Em So Lus a palavra Soeira sobrenome. Na lista telefnica de 2001, encontramos 4 linhas em nome de Soeira,102 em nome de Soeiro e e em nome de Soero.

    7Pai Euclides assistindo, quando criana, a festas no terreiro de Maximiana (em So Lus), em companhia de sua tia eme de criao, que era daquela casa, ouviu de terecozeiros codoenses, que participavam da festa como visita(Eusbio Jnsen e outros), que Terec no tinha nada com feitiaria, mas que em Cod existiam feiticeiros, como ovelho conhecido por Deus Quiser, que fazia trabalho pago e que matava distncia, usando poderes mgicos.

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    cambinda. Segundo Dona Deni, atual chefe daquela casa, at mais ou menos 1954, eramfreqentes as vindas de pessoas de um terreiro cambinda de Cangumb (povoado negrocodoense ainda no localizado por ns) para as festas de So Sebastio realizadas na Casa dasMinas, e elas eram acompanhadas por voduns da Mata como: Lgua Bogi, Rei Camund eoutros. A linha de Cod tambm associada, em terreiros da capital nao Caxias,

    reverenciada na Casa de Nag, que para uns lderes religiosos remete a Caxeu (na frica) epara outros ao municpio maranhense de mesmo nome (Caxias), de onde Cod foidesmembrado, cujo nome pode ter sido tambm derivado de Caxeu8.

    Durante algum tempo acreditamos que a palavra Terec poderia ter se originado daimitao do som dos tambores da Mata (terc, terc, terc), em virtude de nohavermos encontrado nem em Cod e nem em So Lus uma definio etmolgica para ela.Mais recentemente, a antroploga e lingista baiana Yeda Pessoa de Castro, comentando emconversa um dos nossos trabalhos, esclareceu que a palavra seria de origem banto e teria omesmo significado que Candombl louvar, celebra pelos tambores (CASTRO, 2002, p.139).

    Em relao denominao Paj, dada tambm em Santo Antnio ao Terec,gostaramos de lembrar que, alm da cidade de Cod ter surgido em rea que foi muitohabitada por ndios e da palavra paj ser de origem tupi, a denominao paj foi utilizada

    em notcias publicadas na imprensa maranhense e de outros Estados, no ltimo quartel doSculo XIX, para designar a religio de negros (afro?) no Maranho 9. De qualquer modo, oemprego daquela palavra para designar Terec pode sugerir a existncia nele de maiorsincretismo com a cultura indgena do que a que ocorreu no Tambor de Mina jeje ou nag.

    A memria dos codoenses registra uma fase inicial do Terec em que os negros dasfazendas de algodo do municpio de Cod realizavam seus rituais religiosos na mata dococo (babau), longe da vista dos senhores, e uma fase, aps a abolio da escravatura,quando os negros da cidade realizavam seus rituais s margens da Lagoa do Pajeleiro (hojedesaparecida), s escondidas da polcia, com quem entravam freqentemente em conflito.Tudo indica que os primeiros sales de Terec da cidade de Cod surgiram muito depois dosprimeiros terreiros de Mina da capital e que no havia ali terreiros muito afamados at 1954,pois, alm de Costa Eduardo (EDUARDO,1948) no ter feito referncia a eles, nenhum pai-de-

    santo de Cod foi lembrado pelo lder esprita Waldemiro Reis em sua obra sobre o espiritismono Maranho, onde so citados nominalmente vrios pais-de-santo e curadores de So Lus ede outras cidades maranhenses (REIS, 1954)10. Contudo, analisando-se os relatrios da MissoFolclrica, criada por Mrio de Andrade, que percorreu o Norte e Nordeste, no final da dcadade 30 do sculo XX, pode-se verificar que, nesse perodo, a linha de Cod j marcava suapresena em terreiros de Mina de So Lus (Maximiana), de Belm (Stiro), e que j surgira noPar com o nome Babassu (ALVARENGA,1948; 1950)11.

    Algumas entidades do Terec, como Lgua Bogi e encantados de sua famlia (ColiManeiro, Lauro Bogi), so muito temidas e apresentadas como tendo uma banda branca eoutra preta (metade de Deus e metade do diabo). Afirma-se, em Cod, que elas podemcastigar algum (incorporando e fazendo a pessoa subir no topo de rvore, se jogar emespinheiro ou em poa de lama etc.), que so vingativas e que podem at tirar a vida de

    quem as desrespeita ou desobedece. Mas como elas no matam por dinheiro, nem parasatisfazer o desejo de vingana de ningum, e no se misturam com Exu e Pombajira, nopertencem linha negra. Embora muito temidas, as entidades do Terec so depositriasde grande confiana e encaradas como defensoras pelos terecozeiros12.

    8Uma das hipteses levantadas para a origem da palavra Cod aponta para Kodoc, no Sudo, de onde teriam vindoalguns escravos para l (FERRETTI, M.2001b, p.97).

    9Ver: Uma religio de que no gosta o governo. A Provncia de So Paulo, 10/11/1876.

    10Fala-se atualmente em Cod que o salo de Terec mais antigo da cidade foi aberto por Eusbio Jnsen, bem antesda abertura do salo de Maria Piau, que se afirma ter chegado a Cod em 1936.

    11 Segundo Bastide, o nome Babassu uma aglutinao de Barba Soeira, entidade espiritual que chefiava aencantaria em terreiro de Belm (PA) pesquisado pela Misso Folclrica (BASTIDE,1971, p.303). Em Cod, como jmencionamos mais de uma vez, o Terec tambm denominado Encantaria de Barba Soeira(FERRETTI, M. 2001a;2001b).12Relatos do tempo do cativeiro recolhidos no interior do Maranho pelo historiador Mathias Assuno indicam queLgua Bogi era invocado pelos negros e tinha fama de enganar o senhor para proteger os escravos de severos castigos(ASSUNO, 1988, p.117).

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    O conhecido pai-de-santo Bita do Baro, apresentado em 1994 pela TV Bandeirantescomo grande especialista em magia negra e que declarou naquela reportagem que recebe eatende muitos pedidos de vingana (at de morte), afirmou naquela oportunidade que saceitava aqueles pedidos depois que entra na casa do homem (Exu) e v que ele garante(TV-BAND,1994). preciso atentar que aquele pai-de-santo, alm de se apresentar a outros

    pesquisadores como sucessor do velho Deus Quiser (CAMPOS, 1996, p.34), que era maisconhecido ali como um feiticeiro dotado de poderes especiais, do que como terecozeiro,quando afirmou aos jornalistas da TV-Bandeirantes que realizava aqueles trabalhos invocandoExu, falou em uma entidade classificada em Cod como linha negra (da Quimbanda) e noque os realizava invocando a fora do povo de Lgua ou de outras entidades do Terec.

    TEREC E TAMBOR DE MINA

    Embora o Terec mais tradicional de Cod se apresente de modo bem distinto doTambor de Mina, tanto em Cod como em So Lus, pode ocorrer cruzamento entre eles epassagem ou mudana de um para outro durante um toque: para descansar os mdiuns,homenagear uma entidade que veio da Mina (no Terec), ou para reservar maior espaopara os caboclos (na Mina). O cruzamento das duas linhas, que j existia em So Lus, em1938 (quando foi feito pela Misso Folclrica de So Paulo um registro da msica do terreiro

    de Maximiana), parece ter se tornado mais conhecido em Cod com a me-de-santo piauiensedenominada Maria Piau, que migrou para l 2 anos antes daquela pesquisa (ASSAD, 1979) eque buscou reforo na Mina da capital, no terreiro do Cutim (hoje desaparecido), classificadocomo cambinda e como nag-derivado.

    Entre as caractersticas do Terec antigo e tradicional de Cod (do povoado de SantoAntnio dos Pretos e de Me Antoninha) que marcam sua diferena do Tambor de Mina jeje enag da capital, podem ser citadas:

    a) ausncia de terreiros organizados no estilo de conventos (onde residem os pais-de-santo e vrias vodunsis), muito comuns no Benin (frica) e na Mina da capitalmaranhense;

    b) grande atividade em gongs domsticos dos terecozeiros chefes (pais-de-santo) e

    reduzido nmero de festas e rituais pblicos nos barraces;c) existncia de poste central nos barraces antigos (do povoado de Santo Antnio

    e da sede do municpio), ausncia de quarto de segredo (peji) ou guarda depedras de assentamento das entidades espirituais em caixas de madeira(cofres?);

    d) abertura do toque com Louvari e chamada dos encantados com joelho emterra e com as mos (e at a cabea) encostadas no cho, de onde acredita-sevir a sua fora;

    e) uso de um nico tambor (o tambor da mata - de uma s membrana, como os daMina-Jeje, mas tocado com a mo), de maracs (cabaas cheias de sementes,mas sem malha de contas, como as da Mina) e, s vezes, tambm de pfaro e de

    marimba (berimbau), e ausncia de ferro (g ou agog) nos toques;f) presena de homens entre os mdiuns de incorporao maior do que a verificada

    na Mina e uso nos rituais, por eles, de batas rodadas;

    g) uso freqente de cabea coberta entre os participantes dos toques e de ingestode bebida alcolica pelos encantados;

    h) dana corrida, cheia de rodadas;

    i) toque realizado at o final da festa (sem suspenso) e sada de mdiunsincorporados para a rua, s vezes acompanhados de tocadores e seusinstrumentos musicais (a semelhana do que observamos em 1993 no Benin, no

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    festival de cultura do vodum Ouidah 92)13.

    Comparando algumas caractersticas das entidades do Terec de Cod com a devoduns da Mina Jeje, pode-se verificar que, embora se faa referncia na Casa das Minas fria de certos voduns, como Quevioss, e a severos castigos aplicados por eles s vodunsis(FERRETTI,S.1996), nenhuma entidade ali cultuada apresentada como tendo uma bandabranca e outra preta, ou tendo uma parte de Deus e outra do diabo (como Lgua Bogi esua famlia so, s vezes, representados em Cod e em So Lus, fora da Casa das Minas-Jeje).

    A comparao entre Mina-Jeje e Terec, no que diz respeito ao uso de magiacurativa, mostra que, embora a Mina-Jeje e o Terec usem banhos de ervas para afastarmales espirituais e para proteger os devotos, geralmente, na Mina-Jeje se prepara e distribuiseus banhos no terreiro, em dias de obrigao de vodum, enquanto no Terec eles podem serpreparados e distribudos com maior freqncia, em gongs domsticos, para maior nmerode pessoas (inclusive para clientes, sem ligao direta com o culto). Na Mina-Jeje, ocurandeirismo mantido sob rigoroso controle, pois afirma-se que, quando se transforma ematividade comercial, leva preparao de remdios sem fora espiritual, que estconcentrada no terreiro, onde esto assentadas as entidades espirituais. Fala-se tambm queo curandeirismo pode se transformar em ao abominvel quando associado ao culto de

    entidades malvolas, capazes de atender a pedidos inaceitveis pelos voduns e de fazeremmal. Como diz Dona Deni, no se pode pedir ao vodum o mal para uma pessoa, pois s Evo-vodum/Jesus sabe se ela o merece...

    COD, TERRA DO FEITIO OU CAPITAL DA MAGIA NEGRA?!...

    Como falamos anteriormente, apesar de Cod ser uma das Mecas da religio afro-brasileira, parece que o Terec s ganhou maior projeo depois de 1950. Fala-se, noentanto, que, antes da abertura dos primeiros terreiros de Terec, existiram ali afamadosfeiticeiros - pessoas possuidoras de poderes mgicos especiais, que aceitavam dinheiro parafazer trabalhos de vingana -, e que Cod possuiu tambm, no passado, conceituadosraizeiros - grandes conhecedores das propriedades teraputicas da flora da regio que aliso tambm chamados cientistas.

    Embora em 1944/1945 Costa Eduardo (EDUARDO, 1948) tenha encontrado, nopovoado de Santo Antnio dos Pretos (municpio de Cod), uma total separao entre Terec(ou Encantaria de Barba Soeira), magia curativa e magia negra (feitiaria), h muito queesses campos se aproximaram, na prtica, de alguns terecozeiros. Hoje, alm deles seremtambm muito procurados como curadores, pelo menos um, o conhecido Bita do Baro, seapresenta como continuador dos antigos feiticeiros de Cod e declara j ter realizado, comExu, muitos trabalhos de vingana (FERRETTI, M. 2001, p.91).

    Apesar de, mesmo depois da Inquisio, o termo feitiaria ter sido usado paradesignar toda e qualquer prtica religiosa afastada da ortodoxia catlica e de praticamentetodas as denominaes religiosas afro-brasileiras j terem sido alguma vez acusadas defeitiaria, no Maranho essa acusao recaiu mais sobre o Terec de Cod do que sobre oTambor de Minada capital. possvel que a represso policial tenha sido maior em relao ao

    primeiro e que tenha contribudo para aguar o preconceito contra ele, mas existe no Terecpelo menos um fator que pode ter facilitado aquela fama. No Terec de Cod, a entidadeespiritual que chefia a linha da mata - Lgua Bogi Bu da Trindade - apresentada pormuitos como tendo uma banda branca e outra preta, um lado para o bem e outro para omal. Essa caracterstica, associada a seu carter vingativo, brincalho e irreverente e ao seugosto por bebida alcolica, tem levado sua identificao com Lgba, entidade africana que,como Exu foi encarada no passado, por missionrios catlicos, como o demnio e que continuasendo vista na Casa das Minas-Jeje como demonaca. Embora a anlise do nome daquelaentidade realizada recentemente pela etnolingusta baiana Yda Pessoa de Castro (CASTRO,2001) confirme aquela interpretao, a identificao de Lgua Bogi Bu com Lgba no

    13Em So Lus, relatos a respeito do j extinto Terreiro do Egito falam de tambores que tocavam dia e noite semparar. Observaes tambm da festa de So Sebastio na Casa das Minas-Jeje registram uma sada dos voduns paraCasa de Nag. Nessa festa so cantadas algumas doutrinas em lngua africana e em portugus com palavras africanas,para relembrar a visita recebida no passado dos cambinda de Cod, onde se fala em: Camund, Boo Vandereji, BooJara, Boo Memeia, Boo Fama, Fina Jia e em outras entidades (FERRETTI,S. 1996; FERRETTI,M. 1993; 2001a;2001b).

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    aceita na Casa das Minas (jeje), onde ele conhecido como um vodum cambinda, da mata.Em Cod, a identificao de Lgua Bogi com Exu tambm no era aceita por Dona Antoninha,a terecozeira mais antiga e tradicionalista que tivemos oportunidade de conhecer, e nem porsua sucessora que, encerrando essa questo, nos esclareceu que no h participao de LguaBogi e nem de encantados de sua famlia em rituais da linha negra, realizados para Exu por

    alguns terecozeiros e umbandistas de Cod. Segundo ela, o povo de Lgua Bogi bebe muito, pesado e vingativo, mas no se confunde com Exu e nem com entidades da linha negrarecebidas na Quimbanda.

    A identificao do Terec com magia negra (feitiaria) ou com a linha negra dareligio afro-brasileira (linha de Exu, confundido com o demnio) geralmente negada pelosterecozeiros de Cod, embora exista ali alguns que declarem realizar trabalhos tanto para obem como para o mal. Magia negra e feitiaria foi e continua sendo, na religio afro-brasileira, uma categoria de acusao e, em Cod, se procura manter o Terec, Lgua Bogi eos vodunsos velhos dela afastados.

    A apresentao de Cod como terra do feitio ou capital da magia negra,negando o seu carter religioso, afastou pesquisadores e tem levado muitos terecozeiros a sedesviarem da tradio de Cod e a adotarem outra denominao religiosa afro-brasileira.

    Hoje, muitos dos que se filiaram a federaes de Umbanda esto se apresentando comoumbandistas e referindo-se ao Terec como algo primitivo, inferior Mina, Umbanda, aoCandombl e a outra denominao religiosa afro-brasileira mais conhecida e objeto de menorpreconceito. Por essa razo, consideramos necessria e urgente a realizao de pesquisas e apublicao de obras sobre Terec e sobre a linha da Mata do Tambor de Mina por parte decientistas sociais e de sacerdotes que o conhecem mais de perto.

    CONCLUSO

    Como no existe denominao religiosa afro-americana no sincrtica, parece-nosprefervel falar do Terec como uma das formas mais sincrticas da religio afro-brasileira oucomo mais sincrtico do que o Tambor de Mina. Alm do Terec ser bastante conhecido pela

    integrao realizada de elementos de origens diversas, pesquisa realizada em 1944 porEdurado (1948, p.47) mostra a existncia de alto ndice de sincretismo na religio de origemafricana do povoado de Santo Antnio dos pretos, hoje considerada a mais antiga etradicionalista da regio. Mas, apesar de Bastide (1971, p.397), apoiando-se nas descries deOctvio da Costa Eduardo, ter encarado a religio daquele povoado como tradio daomeanaquase esquecida, sincrtica, empobrecida pela perda de memria e pelo isolamento daspopulaes rurais, alguns indcios encontrados nos dados coletados por ns sobre o Terec deCod nos levam a encarar o Terec de Cod como outra religio afro-brasileira.

    A classificao do Tambor da Mata (Terec), em So Lus, como cambinda e aexistncia no Terec de Cod de um cntico de abertura em lngua enrolada, desconhecidonos terreiros jeje e nag da capital, nos levam a suspeitar de que ele se originou de outratradio religiosa africana, possivelmente banto, e a nos afastar da hiptese de que ele teria

    a mesma origem da Mina-Jeje ou que tivesse se originado dela. Contudo, consideramos que oselementos da Mina-Jeje encontrados ali por aquele pesquisador paulista no devem serdescartados. Relatos sobre a Casa das Minas antes de 1954 (quando faleceu sua ltima me-de-santo de grande prestgio), mostram que a Casa j teve muitas vodunsis de Cod e que, nopassado, era muito visitada por membros de um terreiro cambinda de um povoado de Cod:Cangumb (?).

    Embora Cod no tenha terreiros to antigos como os de So Lus, possvel que oTerec tenha surgido antes da Mina, com a realizao de rituais na mata do coco porescravos de fazendas de algodo do municpio. Como Lgua Boji aparece em memria dotempo do cativeiro, recolhidas fora da capital maranhense por Mathias Assuno (1988),pode se pensar que ele era conhecido ali bem antes da abolio da escravido.

    A pesquisa sobre Terec de Cod tem que avanar em vrias direes para que se

    possa ter uma viso mais profunda sobre ele. Mas, como os antigos terecozeiros j falecerame atualmente muitos esto se apresentando como umbandistas, a cada dia esse trabalho estse tornando mais difcil.

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