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ELIANE TOMIASI PAULINO ( ) TERRA E VIDA: A GEOGRAFIA DOS CAMPONESES NO NORTE DO PARANÁ Tese apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista UNESP, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Geografia. ORIENTADOR: PROF. DR. ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA PRESIDENTE PRUDENTE 2003

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ELIANE TOMIASI PAULINO

( ′ )

TERRA E VIDA:

A GEOGRAFIA DOS CAMPONESES NO NORTE

DO PARANÁ

Tese apresentada ao Curso de Pós-

Graduação em Geografia da Faculdade de

Ciências e Tecnologia da Universidade

Estadual Paulista – UNESP, como

requisito parcial para obtenção do título

de Doutora em Geografia.

ORIENTADOR: PROF. DR. ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA

PRESIDENTE PRUDENTE 2003

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ELIANE TOMIASI PAULINO

( ′ )

TERRA E VIDA:

A GEOGRAFIA DOS CAMPONESES NO NORTE DO PARANÁ

COMISSÃO JULGADORA

Presidente e Orientador: Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira (USP)

20 Examinador: Profa. Dra. Maria Regina Cunha de Toledo Sader (USP)

30 Examinador: Profa. Dra. Margarida Maria Moura (USP)

40 Examinador: Profa. Dra. Alice Yatiko Asari (UEL).

50 Examinador: Prof. Dr. Armando Pereira Antonio (UNESP)

Presidente Prudente, 13 de maio de 2003.

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Para os camponeses, portadores da ética que alimenta a utopia de um planeta sustentável. Para Rosa, Luís e Isabela, guardiões de um projeto de vida inspirado na história e estória camponesa, da qual somos fruto e semente.

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Agradecimentos

Ao Ariovaldo, pela orientação íntegra, ao mesmo tempo desafiadora e

tranqüilizadora. Mais que luz para os nebulosos caminhos da pesquisa, as marcas

da sapiência ficarão como referência para a vida.

Às 292 famílias visitadas, pela aquiescência em adentrarmos seu universo. Seu

modo de vida, suas atitudes, seus sonhos e suas lutas nos proporcionaram um

novo encontro com a utopia.

À Rose, mais que referência ao longo de todo o estradar na academia, o porto

seguro, onde se pode ancorar sempre que há turbulências ou que os tempos são de

calmaria.

À comunidade universitária da UEL e da UNESP, desde os amigos próximos até os

colegas distantes, cujas convergências e divergências nos têm permitido o rico

trilhar do apreender e aprender na Universidade.

Aos funcionários do IAP, IAPAR, SEAB/DERAL, Cativa, Cofercatu, Confepar, Corol,

Coovap, Bratac, Kanebo, Jaguafrangos, Avebom, Líder, Vigor, cuja disposição em

fornecer dados e informações foi de preciosa contribuição para esse trabalho.

Aos funcionários da EMATER dos três Escritórios Regionais e dos trinta e três

Escritórios Municipais, que colocaram a nosso dispor dados atualizados e

demonstraram irrestrita disposição em nos auxiliar. A pesquisa de campo, sem

suas informações privilegiadas, certamente teria sido mais árdua e menos profícua.

À CAPES, pelos dois anos de auxílio financeiro, via PICDT, e a todos do

Departamento de Geociências da UEL que se assoberbaram para que pudéssemos

desfrutar, durante 30 meses, do afastamento para dedicação integral à pesquisa.

Enfim, somos gratos a todos que colaboraram direta ou indiretamente, com

informações, com ensinamentos e com estímulo. Por serem tantos, não é possível

mencioná-los, porém é certo que poderão reconhecer nesse agradecimento a

importância que tiveram para a concretização desse trabalho.

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RESUMO

As profundas transformações atreladas à expansão das relações capitalistas para o campo têm provocado, desde o século XIX, diversas interpretações acerca do papel e do destino da classe camponesa. Nesse contexto, alguns pressupostos ganharam força, sobretudo aquele que vislumbrava o seu desaparecimento, enquanto classe.

Entretanto, em se admitindo que o modo capitalista de produção é essencialmente contraditório, constata-se que seu desenvolvimento não tem provocado o desaparecimento do campesinato, mas sua recriação. É sobre essa questão que trata este trabalho, cujo recorte geográfico é o Norte Novo do Paraná, uma das áreas de maior índice de tecnificação e produtividade agrícola do país. Dessa maneira, as evidências do processo de recriação camponesa estão apresentadas a partir da análise que obedece ao seguinte encadeamento.

A reflexão teórico-conceitual sobre o campesinato dentro das ciências humanas, no geral, e na geografia agrária brasileira, em particular, é apresentada no primeiro capítulo.

No segundo capítulo, nosso esforço analítico recai sobre as possibilidades históricas de recriação da classe camponesa ao longo do processo de construção do território, sendo consideradas três dimensões: a nacional, a estadual e, por fim, o norte-paranaense.

No terceiro capítulo, buscamos compreender tais possibilidades com base nos registros estatísticos disponíveis para a área de pesquisa a partir de 1950; para tanto, recorremos aos dados dos Censos Agrícolas e Agropecuários publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No quarto capítulo, nos debruçamos nas evidências de que o processo de territorialização camponesa é uma expressão do desenvolvimento contraditório do capitalismo, o qual se manifesta na monopolização do território pelo capital. Essa monopolização é verificada nas práticas de integração entre unidades camponesas e indústrias, com destaque para a avicultura e sericicultura.

Outra forma de integração analisada é a experimentada pelo sistema cooperativista na fruticultura, especificamente na citricultura e viticultura. As demais formas de apropriação da renda através da produção camponesa são apontadas em seguida; entre elas a pecuária leiteira, a cafeicultura, a policultura, as culturas mecanizadas, para então destacarmos como a renda é drenada através do consumo produtivo que as sustenta.

Por fim, no quinto capítulo demonstramos como as políticas públicas interferem no processo de territorialização camponesa, para, na seqüência, resgatarmos as trajetórias e estratégias inscritas nos marcos geográficos singulares à fração camponesa do território, especificamente no bairro rural e nos sítios. PALAVRAS CHAVE: Agricultura; monopolização do território; territorialização camponesa; bairro rural; sítio.

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ABSTRACT

Several Changes leashed to the expansion of the capitalism in the

field have nettled, since the XIX century, lost of interpretations about the peasant

destiny. In this context some presupposed got strength, over all of that discerned

indistinctly its disappearance as long as working class.

However, in if admitting the way of capitalism production is

essentially contradictory, it’s proved its development have not been nettled the

disappearance of the peasant, but your recreation. This piece of work is about a

place in the New North of Paraná one of the great index of technicist and productive

of Brasil.

In this way, the evidences of the peasant recreation process in this

part of land are presented from the analysis that obeys to the next linkage.

On the second chapter, our analytical effort fall again above the

historical possibilities of recreation of the peasant class along the land

construction, being considered three dimensions: national, state and at last the

North Paranaense.

On the third chapter, we look for comprehend the possibilities from

the statistical registers ready for use on the search since 1950; in this manner we

go through again on the basis of the agricultural census published by Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

On the fourth chapter we bendon the evidences that the process of

peasant territorialization it’s the expression of contradictory development of the

capitalism, which manifest on the monopolization of the territory for the capital.

This monopolization is verified in practice of integration among peasant units and

industries, in eminence to aviculture and silkworm culture. The other form of

eminence integration is the experimented by the cooperative system with fruit

growing, specify the citriculture and the viticulture. The other forms of income of

land appropriation is through the peasant’s production are pointed following:

between them the milkmaid cattle breeding, the coffee growing, the policulture and

the mechanics cultures, to point out the same is drained through the productive

consumption that sustain them.

At last on the fifth chapter we pawn in demonstrate how the public

politics can interfere on the peasant’s process territorialization, for the sequence we

ransom the ways and the strategic on the geographical marks singulars to land

peasant’s fraction being the rural ward and the sieges.

KEY WORDS: agriculture; monopolization of territory; peasant territorialization;

rural ward; siege.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................ 8

1. CAMPONESES...................................................................................... 16

1.1. Reflexões conceituais............................................................................ 17

1.2. Debates e embates na Geografia Agrária Brasileira............................... 48

2. O NORTE DO PARANÁ NO CONTEXTO DA QUESTÃO AGRÁRIA................ 54

3. DINÂMICA AGRÁRIA NO NORTE DO PARANÁ: POSSE, PROPRIEDADE E

USO DA TERRA .................................................................................................................

76

4. A MONOPOLIZAÇÃO DO TERRITÓRIO CAMPONÊS PELO CAPITAL .......... 101

4.1. A integração como expressão da intervenção capitalista no sítio

camponês e a sujeição compulsória da renda da terra...........................

112

4.1.1. A avicultura ......................................................................................... 122

4.1.2. A sericicultura...................................................................................... 144

4.2. O paradoxo do cooperativismo.............................................................. 164

4.2.1. A fruticultura no sistema integrado cooperativista...................................... 175

4.3. Sistemas agrários camponeses e a sujeição da renda da terra .............. 192

4.3.1. A pecuária leiteira................................................................................. 199

4.3.2. A cafeicultura....................................................................................... 215

4.3.3. A policultura ....................................................................................... 231

4.3.4. As lavouras mecanizadas de soja, milho e trigo .................................... 254

4.4. A transferência da renda no consumo produtivo camponês .................. 268

5. A PORÇÃO CAMPONESA DO TERRITÓRIO: UNIDADE NA DIVERSIDADE 274

5.1. Políticas públicas e camponeses: encontros e desencontros ................. 275

5.2. Trajetórias e estratégias camponesas .................................................. 318

5.3. O bairro rural e os sítios: a ordenação territorial camponesa ............... 348

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 410

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 418

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INTRODUÇÃO

Sabendo-se que não há neutralidade científica, quaisquer esforços

no sentido da apreensão da realidade não se fazem senão através de um trilhar

teórico-metodológico coerente com os pressupostos filosóficos de quem os

empreende, o que impõe a necessidade de explicitarmos, de início, os referenciais

que permeiam nosso estudo sobre a geografia dos camponeses no Norte do Paraná.

Nesse sentido, o primeiro desafio se exprime exatamente no plano

teórico, já que trabalhamos com conceitos sobre os quais não há consenso, nem

poderia haver, se considerarmos que esses remetem a concepções políticas afinadas

as situações de classe.

E em se tratando de classe, não há dúvida de que assinalar a

presença dos camponeses em uma das áreas em que a agricultura apresenta os

mais elevados patamares de tecnificação exige a lapidação de alguns pressupostos,

já que, para muitos, o desenvolvimento do capitalismo na agricultura ou mesmo a

simples emergência de uma base técnica sofisticada seria suficiente para extingui-

los. Some-se a isso o fato desses próprios sujeitos nem sempre se reconhecerem na

expressão camponeses, identificando-se, via de regra, por lavradores, agricultores

ou sitiantes.

Neste caso, entendemos que o fato da palavra camponês não ser

usual aos próprios camponeses não a invalida enquanto conceito, até porque no

Brasil essa foi incorporada apenas na história recente, surgindo como expressão

política do lugar comum desses sujeitos na estrutura de classes. Como lembra

Martins (1995), no Brasil a palavra camponês surge em substituição a uma série de

termos, muitos dos quais com sentido duplo e cunho pejorativo, e que adentra

nosso vocabulário exatamente pela projeção que alcançaram a organização e as

lutas camponesas a partir de meados do século passado. Nesse sentido, não se

trata de uma questão meramente vocabular, mas eminentemente política, como

demonstra Martins (1995, p. 25).

O escamoteamento conceitual é o produto necessário, a forma necessária e eloqüente da definição do modo como o camponês tem tomado parte no processo histórico brasileiro – como um excluído, um inferior, um ausente que ele realmente é: ausente na apropriação dos resultados objetivos do seu trabalho [...].1

1 Grifo do Autor.

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Cumpre salientar que excetuadas as condições peculiares ao caso

brasileiro, não raro os camponeses foram associados à barbaria, evidentemente pela

ótica dos que conservaram por séculos o poder dos registros escritos, que são os

que efetivamente entram para a história.

Contudo, à medida que se foram projetando como classe que

interfere nos rumos da história, tais sinônimos foram se perdendo no tempo. É

indubitável, portanto, que não se trata de uma questão meramente vocabular, mas

eminentemente política. Nesse sentido, Almeida (2003), esclarece

Embora o conceito de camponês tenha sido importado pelo partido comunista na década de 1960, o seu uso ainda hoje no Brasil se explica pelo efeito de unidade que carrega, ou seja, é o único capaz de dar visibilidade à classe, ao contrário de trabalhador que é genérico. Por outro lado, não podemos esquecer que falar em classe camponesa é apenas uma estenografia conceitual, logo que é no trabalho empírico que demonstramos e definimos quem são os camponeses. Lembrando também que o mesmo vale para o proletário, ou seja, nossos trabalhadores urbanos dificilmente se identificam como proletariado, trata-se também de uma estenografia conceitual.2

É por isso que as palavras não são vazias de significado, ainda que

a realidade seja mais rica que qualquer conceituação. Nessa perspectiva, os

conceitos devem ser tomados como construções teóricas que não apenas permitam

compreendê-la, mas o façam a partir de um marco político definido, como já

advertiram Shanin (1980) e Martins (1995).

Além disso, é esse mesmo conceito que permite vislumbrar a

unidade de classe que se manifesta na ordenação das parcelas do território sob seu

controle. Como classe sui generis do capitalismo, sua singularidade se manifesta na

experiência única de reprodução, a qual se baseia no próprio controle sobre o

trabalho e sobre os meios de produção. É o que lhes permite conservar a

capacidade de produzirem seus próprios meios de vida, ainda que as condições

concretas de reprodução de cada família nem sempre assim o determine.

Porém, não se trata de uma autonomia absoluta, que tampouco

sugere a independência a fatores externos, já que os camponeses afetam e são

afetados pelas condições circundantes. Antes, deve-se pensar numa autonomia que

se manifesta na maneira com que os camponeses, agregados em unidades

familiares e comunitárias, controlam seu tempo e seu espaço de forma

absolutamente contrastante com a lógica dominante.

2 Grifo da Autora.

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Contemplando essas questões, o primeiro capítulo do trabalho se

constrói em torno da reflexão sobre a pertinência do conceito de camponês. Como

atestou Shanin (1980, p. 52), interpretações contraditórias e muitas vezes

distanciadas, porém invocando a autoridade de Marx, têm sido utilizadas de modo

recorrente, a fim de se obter respaldo para a revogação desse conceito.

Considerando que esse esforço se verifica no interior de um pacto

contemporâneo, pretensamente revolucionário, mas que não reconhece na classe

camponesa senão agentes a serem submetidos à hegemonia política do

proletariado, não é possível compreendê-lo desvinculado das interpretações teóricas

clássicas, especialmente de Kautsky e Lênin, os quais se dedicaram aos estudos da

agricultura no capitalismo. Como se sabe, seus apontamentos acabaram por

culminar em desdém ao campesinato, por enxergá-lo tão somente como classe em

si.3

É esse debate que alimenta a visão reducionista da história, a qual

reduz os conflitos essenciais da sociedade capitalista ao embate de apenas duas

classes: proletários e burgueses, como se os primeiros estivem imbuídos da tarefa

histórica de conduzir o processo de transformação da sociedade. Como se sabe, ao

dedicar-se ao desvendamento das contradições essenciais do modo capitalista de

produção, Marx o fez com base na tríade: terra, trabalho e capital.

Com efeito, a compreensão de que as potencialidades

transformadoras da sociedade capitalista estão nas mãos de uma única classe

denuncia um direcionamento da teoria de Marx. No limite, pode-se falar em desvios,

a exemplo da tese que preconiza que, como meio de produção, a terra tem cada vez

menos importância no capitalismo. Ainda que se tenha alcançado níveis

espetaculares de produtividade, é risível supor que a biotecnologia venha anular os

campos de poder que emanam desse substrato material primordial a toda forma de

vida no planeta.

Além disso, sugerir a sua desimportância é fazer vistas grossas ao

projeto histórico do campesinato, que procura na terra muito mais que a renda,

mas a concretização de um modo de vida pautado na autonomia do trabalho e na

reprodução social delimitada pelos profundos vínculos familiares e comunitários, o

3 Sinteticamente, a classe em si representaria uma classe sem condições de construir um projeto político com vistas à superação das condições de exploração e opressão impostas pelo modo capitalista de produção. Martins (2002, p. 100, passim), faz coro a essa idéia, ao apregoar que os camponeses não têm condições de se tornar classe para si por não viverem o processo de alienação da mercadoria. Por outro, a classe para si se identificaria pela potencialidade histórica de formular um projeto de transformação para toda a sociedade; segundo esse mesmo autor, essa seria uma virtualidade própria da classe operária, que vive diretamente as contradições entre capital e trabalho.

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que lhe permite se colocar no mundo de forma completamente diversa daqueles que

vivem a alienação do trabalho.

Para nos determos em apenas uma evidência desse equívoco, basta

consideramos a face violenta da questão agrária brasileira, marcada pela

apropriação concentrada e excludente da terra. Seria até desnecessário lembrar a

força das cercas que têm sido erigidas em torno da terra de trabalho, o sentido

último da luta evolvendo as sucessivas gerações camponesas. É sobre essa questão

que trata o segundo capítulo, o qual está estruturado basicamente em torno dos

principais desdobramentos da questão agrária brasileira e, em particular, da

questão agrária paranaense.

Entretanto, não bastaria apontá-los, é necessário compreender em

que medida se dá a sua articulação com o recorte de pesquisa proposto. É por essa

razão que julgamos pertinente recorrer a indicadores específicos aos 33 municípios

pesquisados. Dessa feita, o terceiro capítulo está estruturado em torno de análises

baseadas em dados estatísticos publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE). Mais especificamente, as fontes são os Censos Agrícolas de 1950

e 1960 e os Censos Agropecuários a partir de 1970.

Considerando que, para os camponeses, terra é sinônimo de vida,

de existência, e que essa se estrutura sobre parcelas de terra, não se poderá pensar

o processo de recriação do campesinato desvinculado da dinâmica que envolve a

sua propriedade, posse e uso, sendo, pois, esse o recorte analítico desse capítulo.

Ao assinalarmos que estamos diante do processo de recriação do

campesinato, é necessário advertir que esse entendimento não implica em ignorar

as condições mais amplas, próprias de um tempo marcado pela hegemonia do

capital. Antes, essa compreensão deriva da premissa de que esse modo de produção

é essencialmente contraditório, e é no bojo dessas contradições que se verifica a

recriação dessa classe.

Para constatá-la, certamente não bastariam os estudos de gabinete;

é por essa razão que os elementos da pesquisa de campo permeiam este trabalho

como um todo. Para sua realização, foram adotados dois procedimentos distintos:

entrevistas e coletas de dados junto aos órgãos públicos e empresas relacionados

aos camponeses e o trabalho de campo propriamente dito. Esse último

compreendeu a visita a comunidades de cada um dos 33 municípios pesquisados,

sendo visitados 292 sítios ao todo. Lembramos aqui que o apoio prestado pela

Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) foi

decisivo para o êxito do trabalho de campo, pois em cada um dos municípios

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pudemos contar com a orientação dos técnicos e extensionistas para localizar as

diferentes comunidades camponesas.

Contrastando com o caráter objetivamente abreviado do trabalho

junto aos órgãos e empresas, no campo, a necessidade de romper com

procedimentos rígidos, por exemplo, a aplicação de questionários, manifestou-se de

imediato. Ainda na fase de reconhecimento da área de estudo, percebemos as suas

restrições, pois a metodologia previamente definida mostrou-se por demais limitada

diante da rica condição camponesa. Por essa razão, os questionários foram

substituídos por uma espécie de súmula contendo um conjunto básico de

indagações a serem feitas, sem qualquer encadeamento preestabelecido. Isso se

refletiu em uma maior fluidez dos relatos, permitindo-nos apreender muito mais

elementos do que aqueles definidos como essenciais. Por outro lado, o fato de não

ter sido possível retornarmos para que cada um dos relatantes fizessem a revisão

das citações contidas no texto, levou-nos a optar por resguardar a sua identidade,

razão pela qual aparecem apenas as iniciais dos seus nomes e os respectivos

bairros onde residem.

Não obstante, ao nos apoiarmos na premissa de que a reprodução

da classe camponesa pressupõe o controle de parcelas do território, de antemão

estamos supondo que tais parcelas não podem ser entendidas senão como parte de

um todo, qual seja o território capitalista, de modo que as frações do território

controladas pelo campesinato são integrantes e estão integradas a essa ordem

dominante. Como afirmam Calabi e Indovina (1973) “Uma análise do território,

embora possua seus próprios instrumentos, deve configurar-se como uma leitura

que diz respeito ao processo total e específico do capital [...] o fim último da

organização territorial.” (apud Bombardi, 2001, p. 42).

Trata-se, pois, de advertir que a recriação do campesinato está

articulada a um sistema orientado para a acumulação ampliada do capital. Dito de

outro modo, é a dinâmica das forças produtivas prevalentes que determina a

configuração do território. Não obstante, Oliveira (2002, p. 74), pondera:

O território deve ser apreendido como síntese contraditória, como totalidade concreta do processo/modo de produção/distribuição/ circulação/consumo e suas articulações e mediações [...]. O território é assim produto concreto da luta de classes travada pela sociedade no processo de produção de sua existência. [...] Dessa forma, são as relações sociais de produção que dão a configuração histórica específica ao território. Logo o território não é um prius ou um a

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priori, mas a contínua luta da sociedade pela socialização igualmente contínua da natureza.4

Portanto, as relações de poder que estão no âmago do processo de

construção do território definem-se nos embates e confrontos entre as classes. É

por essa razão que, ao analisarmos o processo de territorialização camponesa, o

fazemos na perspectiva de que a monopolização do território pelo capital não se dá

harmoniosamente, mas envolve profundos conflitos. Evidentemente, tais conflitos

se desenham a partir da própria condição de classe e diferem, necessariamente, do

conflito entre capital e trabalho, no qual os trabalhadores percebem diretamente a

exploração na relação de trabalho. O fato dos capitalistas perseguirem a renda da

terra desloca o foco de conflitos para a produção camponesa, que é portadora da

renda. Em situações de extrema voracidade dos capitalistas, respondem com o

abandono das respectivas culturas, buscando outras que lhes permitam auferir

uma margem maior de renda. Aliás, esse é o sentido da diversificação dos cultivos e

da sua incessante alternância.

Assim, as diversas formas com que a monopolização do território se

manifesta no norte paranaense estão analisadas no quarto capítulo, momento em

que nos debruçamos nas principais atividades econômicas com as quais se ocupam

os camponeses. Com isso, elucidamos os caminhos de drenagem da renda da terra,

razão primordial da monopolização do território pelo capital.

Dentro dessa lógica, o sistema de integração, praticado na

avicultura e sericicultura, é tomado como expressão da intervenção capitalista no

sítio camponês, já que são as empresas integradoras que definem os métodos e as

regras da atividade desenvolvida pela família. Em outras palavras, os parâmetros

para a condução da atividade são impostos pelas integradoras, gerando assim um

foco permanente de conflito, pois essas estão sempre a pressionar os camponeses

para se adequarem às suas metas de produtividade dentro de seus padrões de

qualidade.

Essas prerrogativas, somadas ao poder unilateral de definição dos

preços a serem pagos pela produção dos integrados, são tomadas como evidência de

que a integração é um recurso privilegiado a que recorrem as indústrias para

obterem a matéria-prima básica à sua atividade. Por ser portadora da valorização

conferida pelo trabalho familiar camponês, essa produção integra o circuito da

produção do capital, à medida que a renda da terra, produzida por relações não-

4 Grifo do Autor.

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capitalistas, ao ser apropriada pelos capitalistas da indústria, vai se transformando

em taxa de lucro.

Uma experiência diversa de integração, mais precisamente a

integração cooperativista na fruticultura, foi abordada na seqüência. Nessa, a

mediação da cooperativa é essencialmente diversa das empresas privadas, por

serem os próprios cooperados os depositários da renda da terra por eles produzida.

Porém, de antemão sentimos a necessidade de discutir as limitações da cooperação,

diante da lógica empresarial que tem orientado suas administrações.

Após essas reflexões, nos debruçamos nas demais atividades com

que se ocupam os camponeses, a fim de elucidar a situação conjuntural das

mesmas e os mecanismos de apropriação da renda, manifestados não apenas no

ato da comercialização da produção, mas também no descompasso entre preços ao

produtor e custos para produzir.

Por fim, no quinto capítulo centramos os esforços no sentido de

evidenciar como a recriação do campesinato se manifesta em uma geografia

peculiar. Nesse sentido, verificamos que as políticas públicas ora se manifestam

como encontros, ora como desencontros, em relação às demandas e interesses da

classe camponesa, o que, por sua vez, reflete-se em um movimento marcado por

avanços e recuos no processo de territorialização.

É a compreensão de que se trata de uma dinâmica contraditória

que nos permite apreender a diversidade de estratégias e trajetórias no interior da

classe. Ao invés de culminarem no desaparecimento inexorável, sentença traçada

sob os auspícios da lei da diferenciação social, verificamos a sua recriação. É isso

que nos obriga a tomá-la tão somente como possibilidade, como devir que comporta

tanto a “descamponização” quanto a “recamponização”. Com isso, ainda que não se

possa negar a vulnerabilização ao limite da proletarização de camponeses, observa-

se também o inverso, o fortalecimento enquanto classe, oportunizado pela compra

da própria parcela de terra, mostrando-nos que é possível negar o caminho e,

assim, a lei imutável contida nesta teoria.

Na última parte do trabalho, nos ocupamos dos marcos geográficos

indissociáveis da lógica de ordenação do espaço que é própria do campesinato.

Como parcelas do território onde a produção econômica e a reprodução social estão

imbricadas em um plano que transcende o limite das unidades familiares, nos

debruçamos nas práticas que costuram a unidade comunitária que lhes dá

sustentação.

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Por fim, não poderíamos deixar de assinalar que experimentar de

perto a receptividade e cordialidade dos camponeses foi, sem dúvida, a melhor

experiência que um trabalho poderia proporcionar. Durante cinco meses

perambulamos quase que diariamente pela área de estudo, sem que uma família

sequer nos tivesse fechado as portas. Pudemos acompanhar a lida na lavoura, os

cuidados com as criações; em suas casas fizemos as refeições e frutos de seu

trabalho nos foram doados em profusão. Tudo isso veio reforçar o pressuposto de

que a mera inserção no mercado não é suficiente para entronizar a lógica da

mercadoria nas parcelas do território dominadas pelo campesinato, pois aí a pessoa

tem precedência.

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CAPÍTULO I

CAMPONESES

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1.1. REFLEXÕES CONCEITUAIS

No contexto do capitalismo mundializado, onde as mudanças

ocorrem em ritmo cada vez mais acelerado, muitas proposições e ferramentas

construídas para interpretar a realidade tornam-se rapidamente obsoletas, levando-

nos a uma permanente necessidade de (re)pensar e (re)construir todo um arcabouço

teórico-metodológico que possa dar conta dessa dinâmica.

Assim, é a capacidade de inserção crítica e reflexão sobre os fatos

que nos envolvem, enquanto cientistas e sujeitos sociais, que movem a pesquisa,

como forma de resgatar a lógica de processos que se materializam à luz de ações

combinadas, perpetradas por sujeitos concretos.

Nessa perspectiva, o propósito de privilegiar as mediações que

emanam das relações de produção no campo nos coloca a necessidade de

considerar toda uma construção histórica, sendo imprescindível compreender e

superar a visão espacial dicotômica, na qual o campo é analisado

independentemente da cidade. Portanto, devemos apreender o processo de

territorialização a partir de amplas e complexas condicionantes, que vão desde

a análise do sentido da propriedade privada dentro do capitalismo e sua

interferência no desenvolvimento da agricultura, até as relações envolvidas nesse

setor produtivo particular.

É a contextualização dentro de uma dimensão macro, repleta de

manifestações desiguais, resultando em construções territoriais singulares, que

permite a elaboração de parâmetros para a delimitação do objeto. Assim, em nosso

estudo, partimos da premissa de que, no Brasil, as relações econômico-

institucionais encontram sustentação em formas rentistas, as quais denunciam a

natureza contraditória do desenvolvimento capitalista.

Com isso, a extração do excedente social está fundamentada em

formas de apropriação do território baseadas no privilegiamento da concentração da

propriedade privada da terra, comparecendo esta como instrumento primordial de

acumulação através de duas frentes:

- o cerceamento ao seu acesso atua no sentido de desequilibrar a relação oferta –

procura, ocasionando uma valorização que a torna inacessível à maior parte dos

trabalhadores, inclusive aqueles envolvidos em atividades agrícolas;

- sua divisão de forma desigual confere aos proprietários um poder desmesurado,

desobrigando-os de observar o cumprimento da função social desse meio de

produção essencial; com isso, é reduzida de forma drástica a oferta de trabalho

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onde predomina a malha fundiária concentrada, gerando um excedente de mão-de-

obra incompatível com a capacidade de absorção dos outros setores da economia.

No entanto, essa aparente irracionalidade atende plenamente às

diretrizes essenciais do modo capitalista de produção, pois permite o rebaixamento

tanto das expectativas quanto das condições efetivas de reprodução dos

trabalhadores. Para Martins (1994, p. 129),

Enquanto para o modelo europeu no centro do desenvolvimento capitalista está o capital, no modelo brasileiro, profundamente marcado pela tradição da dependência colonial, a terra é essencial para o desenvolvimento capitalista porque propicia uma acumulação de capital com base no tributo e na especulação, isto é, com base na renda da terra.

Essa inversão confere ao Brasil uma posição sui generis dentro do

capitalismo contemporâneo, cuja especificidade se sustenta na manutenção de uma

estrutura fundiária altamente concentrada, sendo esse monopólio a característica

essencial que marca a expansão ocidental do território brasileiro e perpassa a

história de índios, negros, caboclos, enfim, de povos cuja unidade se encontra

basicamente na luta contra a exclusão que essa via de apropriação da terra tem

promovido há cinco séculos. Entrementes, deve-se admitir que essas diretrizes,

historicamente, têm se defrontado com a recusa popular em aceitá-las.

É por essa razão que se parte do pressuposto que a imbricação da

questão fundiária com a opção política de crescimento econômico tem gerado

conflitos, expressos nas mais variadas formas de insatisfação popular e

enfrentamento ao longo do tempo, haja vista as diferentes estratégias de exploração

postas em prática no decorrer do processo de mercantilização da terra no interior

da produção capitalista.

No intuito de contribuir para o debate, em especial no que tange à

singular realidade do Norte do Paraná, cuja colonização chegou até mesmo a ser

confundida com projeto bem sucedido de Reforma Agrária1, partimos da premissa

de que a área em questão também é produto do desenvolvimento desigual e

contraditório que, pelas especificidades, incita-nos a retomar as considerações de

Oliveira (1994), a fim de explicitar os tipos de relações de produção existentes no

campo.

Temos assim, de um lado, relações tipicamente capitalistas, nas

quais os trabalhadores se acham divorciados dos meios de produção, inserindo-se

1 Como exemplo citamos Cernev, 1997, p. 118.

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no mercado como portadores da exclusiva mercadoria força de trabalho. Por

conseguinte, a atividade agrícola realiza-se a partir da celebração de um contrato de

compra e venda, comparecendo os trabalhadores como vendedores e os

proprietários dos meios de produção como compradores dessa mercadoria.

É essa transação que assegura ao contratante o incremento de sua

riqueza, posto que somente o trabalho pode criar valor e, no momento em que o

mesmo está sob seu controle, igualmente seus frutos a ele serão transferidos,

deduzida a parte convertida em salário, a condição da reprodução da força de

trabalho.

Por outro lado, temos as relações não tipicamente capitalistas, entre

as quais destacamos:

- as formas de sujeição violenta empregadas sobre trabalhadores destituídos dos

meios de produção. Com isso, os proprietários de tais meios que, por razões

diversas, não desejam se enquadrar nos princípios básicos da ordem capitalista,

a obtêm contrariando o mecanismo de compra e venda da mercadoria força de

trabalho. Como exemplo destacamos a peonagem, prática ainda existente no

Brasil.

- as formas autônomas de trabalho, derivadas do controle dos meios de produção

pelos proprietários da força de trabalho que, ao mobilizar a família e,

esporadicamente, contratar força de trabalho complementar, asseguram a

produção/reprodução camponesa.

Enquanto que na agricultura capitalista, a mercadoria primordial

dos trabalhadores é a força de trabalho, sendo como as demais transacionada no

emaranhado das relações econômicas, nas unidades camponesas, a inserção dos

trabalhadores não se dá nesses mesmos moldes, pois que o que eles têm a oferecer

não é a mercadoria força de trabalho, mas a renda camponesa da terra.

É através da monopolização do território que é assegurada a

transferência dessa renda a setores capitalistas, momento em que é convertida em

capital, o que explicita a lógica contraditória do modo capitalista de produção, cuja

expansão “além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção,

engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua

reprodução.” (Martins, apud Oliveira, 1986, p. 67).

Portanto, a heterogeneidade é a principal marca no campo, pois

existem dois tipos de propriedade privada da terra: a capitalista e a camponesa.

Dentro da propriedade capitalista, a terra constitui-se em objeto de negócio, seja

pelo fato de consistir em instrumento de exploração do trabalho alheio, logo, de

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extração de mais-valia, seja pelo fato de ser mantida como instrumento de

especulação, em outras palavras, reserva de valor.

Quanto à propriedade camponesa, constitui-se em terra de

trabalho, restrita a exploração ao regime de trabalho familiar2, não sendo

instrumento de acumulação de capital, mas de sobrevivência da família.

Essa dualidade terra de negócio versus terra de trabalho somente se

explica através do caráter contraditório do desenvolvimento capitalista, que

comporta tanto a propriedade privada capitalista quanto a propriedade privada

camponesa da terra.

Entretanto, são regidas por princípios opostos, já que no primeiro

caso prevalece o seguinte critério: D – M – D’, indicando que o investimento na

agricultura é realizado com o objetivo de se produzirem mercadorias que, ao serem

comercializadas, devem assegurar um retorno monetário superior ao que foi

investido e assim sucessivamente. Nesse caso, o fim último da propriedade privada

da terra é a exploração do trabalho alheio, para a extração da mais-valia.

Na propriedade camponesa, o princípio é outro: M – D – M, em que

a produção de mercadorias objetiva a obtenção de dinheiro para a aquisição de

mercadorias que não se produzem, mas que são indispensáveis à reprodução da

família.

Como vimos, a lógica inerente à propriedade capitalista é a

possibilidade de obtenção de lucro, o qual resulta da exploração do trabalho. Ou

seja, o lucro é a parte do valor produzido pelo trabalho, subtraído dos

trabalhadores. Em se tratando da atividade agrícola, a ele soma-se a renda

capitalista da terra.

A renda da terra aparece como um componente distinto no modo

capitalista de produção, pois diferentemente de todos os outros meios de produção,

os quais são criados a partir do trabalho, deriva da terra, que é um bem natural e

não pressupõe trabalho acumulado.

Porém, o fato de estar apropriada privadamente implica no

pagamento de renda aos proprietários, para que entre em disponibilidade para as

atividades produtivas. Ou seja, o estatuto da propriedade privada da terra garante

aos proprietários dispor desse bem natural de acordo com suas conveniências. A

renda é o tributo pago a esses proprietários para que a terra, tal qual os demais

meios de produção, seja posta para produzir.

2 Caio Prado Jr. (1981) já trabalha com o conceito de terra de negócio, posteriormente desenvolvido por Martins (1995) em oposição ao conceito de terra de trabalho.

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No entanto, a renda não é um tributo particular, cobrado apenas aos

que desejam trabalhá-la diretamente, mas sim um tributo social, pelo qual a

sociedade inteira paga, pois seu cálculo já vem embutido no preço de todos os

produtos primários. Vejamos as considerações de Martins (1995, p. 169):

[...] a renda da terra também tem a sua dimensão oculta; por isso não posso entendê-la [...] se não vejo que a terra, através do proprietário, cobra no capitalismo renda da sociedade inteira, renda que nem mesmo é produzida direta e exclusivamente na sua terra, que sai do trabalho dos trabalhadores do campo e da cidade, que entra e sai do bolso do capitalista, que é paga por todos e não é paga por ninguém e que, em última instância, é uma parte do trabalho expropriado de todos os trabalhadores desta mesma sociedade.

Nota-se que é a possibilidade de extração da renda que impele a

atividade capitalista na agricultura. No entanto, esta é uma atividade produtiva

singular, pois diferentemente de todas as outras, está estritamente sujeita aos

ciclos da natureza. Enquanto a produção industrial se faz a partir de um ambiente

adaptado às necessidades da produção, ocorre o inverso na agricultura, que tem de

adaptar-se ao meio circundante.

A despeito do nível de modernização tecnológica, que vêm

modificando e reduzindo o tempo de maturação dos alimentos e demais matérias-

primas, bem como redefinindo a influência de agentes perturbadores nos ciclos

produtivos, a agricultura ainda depende das forças naturais e é bastante afetada

por elas, constituindo-se em uma atividade de riscos.

Primordialmente, essas duas variáveis, renda e riscos, são decisivas

na definição do volume de investimentos capitalistas na agricultura. A renda

comparece como um lucro extraordinário, desigualmente distribuído entre os

diferentes produtos agrícolas. Dessa maneira, há culturas que permitem auferir

renda maior, seja pela melhor inserção na equação custo-benefício no momento da

produção, seja por condições privilegiadas no âmbito da circulação, razão pela qual

se constituem em objeto de interesse do setor agroindustrial.

Com isso, a instalação de agroindústrias obedece ao princípio da

fusão entre atividades agrícolas e industriais, de modo a controlar tanto a produção

da matéria-prima quanto o processamento industrial; isso permite aos capitalistas

o domínio completo sobre o processo produtivo, do qual auferem tanto a renda,

extraída socialmente, quanto o lucro, extraído individualmente dos trabalhadores

envolvidos na produção.

Ao lado da renda capitalista, destacamos a renda pré-capitalista da

terra que, ao contrário da primeira, comparece invariavelmente como um tributo

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pessoal. Na origem, manifesta-se sob três formas distintas: renda em trabalho,

renda em produto e renda em dinheiro.

Oliveira (1986, p. 76-77) esclarece o seu fundamento:

A renda pré capitalista é diretamente produto excedente, ao contrário da renda capitalista da terra, que é sempre sobra acima do lucro, fração da mais-valia, portanto. Embora na origem as primeiras formas da renda da terra sejam pré-capitalistas, cabe esclarecer que sob o capitalismo elas perdem esse caráter, à medida que entram no processo de produção do capital. (...) hoje elas devem ser entendidas dentro da lógica contraditória do capital. É através delas que o próprio capital, contraditoriamente, se produz, criando as condições necessárias para implantar e desenvolver seu processo de reprodução ampliada.

É o que ocorre com a monopolização do território pelo capital,

quando verificamos a sujeição da renda camponesa, cuja transferência aos setores

capitalistas implica em acumulação desmesurada, face à não remuneração do

trabalho necessário à produção das mercadorias. Com isso, os capitalistas podem

ganhar duplamente, pois os alimentos baratos que chegam à mesa dos

trabalhadores permitem também o rebaixamento geral dos salários.

Depreendemos, com isso, que os camponeses produzem a partir de

uma lógica distinta, já que a acumulação capitalista não se constitui em

componente de sua forma de produzir. Isso não implica em negar a sua capacidade

de acumular, mas é necessário diferenciar essa modalidade de acumulação, como

já fizera Chayanov (1974).

Isso porque a extração da mais-valia não se constitui no

fundamento da atividade camponesa, o que significa que a acumulação adquire

sentido diverso, retornando sempre sob a forma de aumento da produtividade do

trabalho e melhoria das condições de vida da família.

Como vimos, nessa forma de produzir, a renda camponesa não se

confunde com a renda capitalista da terra. Diferentemente da primeira, representa

um tributo pessoal, tanto do ponto de vista de sua auferição pelo camponês quanto

de sua transferência aos setores capitalistas ou à sociedade. É pessoal porque o

camponês detém a autonomia sobre o processo produtivo, a qual permite o controle

dos resultados do esforço produtivo, ainda que o mesmo represente trabalho

gratuito.

Isso nos permite entender a razão pela qual as culturas que

compõem a alimentação básica da população, de um modo geral, são desenvolvidas

pelos camponeses, pois isso representa, contraditoriamente, possibilidade de

acumulação do capital fora do circuito produtivo tipicamente capitalista.

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Essa situação, aparentemente paradoxal, cria dificuldade de

entendimento quando se perde de vista que o modo capitalista de produção opera a

partir de uma lógica contraditória.

Dela derivam debates e divergências entre pesquisadores, em

conseqüência de diferentes posturas teórico-metodológicas adotadas para

interpretar essas relações à luz das determinações do capitalismo. Especificamente

com relação ao caso brasileiro, a dificuldade do consenso reside originariamente na

discussão sobre a existência ou não do campesinato e de restos feudais.

Esse debate, que não é recente, remete-nos a Lênin, que não

visualizou a transição entre camponês servo e camponês livre. Isso lhe custou a

perda de alguns pressupostos de Marx, formulados ainda dentro de uma

conjuntura de servidão, já superada em seu tempo. Basicamente, no esforço de

interpretar os processos capitalistas em curso, Lênin instituiu como pontos centrais

de análise a acumulação e a exploração, distanciando-se assim da teoria de Marx,

que coloca as relações sociais no centro da explicação.

Para Lênin, algumas das manifestações econômicas e expressões do

escravismo moderno não se distinguem em nada das do feudalismo (1980, p. 10),

confusão derivada da associação entre feudalismo e escravismo moderno pelos

níveis de opressão e exploração praticadas tanto contra escravos americanos

quanto contra servos feudais.

Essa compreensão implica, em última instância, na diluição da

diferença estrutural entre ambos, já que o escravismo moderno se deu no âmago do

capitalismo, em que o próprio trabalhador escravo entrou no circuito como fator de

reprodução de capital, pois antes mesmo de produzir riqueza a partir do trabalho,

já permitia o enriquecimento daqueles que intermediavam seu comércio.

Por tratar-se de uma relação eminentemente mercantil, não se pode

compará-la à servidão feudal, que fora estruturada em bases essencialmente

distintas, não havendo mobilidade da força de trabalho em hipótese alguma, visto

que o vínculo entre o servo e a terra na qual nascera era perpétuo, mesmo que

outro senhor viesse a adquirir os respectivos domínios.

Lênin, ao elaborar esses preceitos, recorreu às interpretações de

Marx sobre a renda da terra, em que Marx pondera que em ambos os modos de

produção não é possível separar renda e lucro de forma clara. É com o advento do

capitalismo que essa separação se explicitou, e Marx, privilegiado pelo momento

histórico em que se tornara prática usual os arrendamentos capitalistas na

Inglaterra, conseguiu desvendá-la plenamente.

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Nessa forma de exploração, não eram os proprietários que punham

a terra para produzir e sim os capitalistas, mediante o pagamento de renda e

contratação de trabalhadores assalariados. A separação entre renda e lucro

explicita-se em função dos rendimentos agrícolas permitirem aos capitalistas

deduzir os salários e, da parte do trabalho não pago aos trabalhadores, a renda

devida aos proprietários da terra, além do lucro médio, condição sine qua non para

a realização de investimentos de capitais na agricultura.

Desse modo, pode-se afirmar que a similaridade apontada por Lênin

encontra apenas respaldo indireto na obra de Marx, já que seu entendimento foi

construído a partir da análise de outras questões. Além disso, a tese de restos

feudais ou pré-capitalistas é compatível com uma certa concepção evolucionista da

história, na qual a conquista do socialismo ocorreria necessariamente após a

superação histórico-linear dos modos de produção anteriores, quais sejam,

capitalismo e feudalismo.

Com isso, reconhecer a existência do feudalismo, mesmo que

disfarçado sob o que Lênin chama de restos feudais, é imprescindível para a

validade desse esquema interpretativo.

É por essa razão que partimos de premissa diversa, pois alguns

Estados modernos, como é o caso do Brasil, já nasceram sob a égide do

capitalismo, sem que isso implique em ignorar as formações territoriais existentes

antes da colonização. Portanto, referimo-nos ao período em que esses Estados

passam sistematicamente ao controle dos colonizadores.

É a gênese capitalista do Estado brasileiro que torna incongruente a

idéia de que o camponês de que tratamos deve ser considerado um resíduo feudal.

Conforme já salientamos anteriormente, essa classe é a expressão contraditória de

um modo de produção cuja mola propulsora não é a mercadoria, mas a

acumulação.

Assim, a existência do campesinato não deve ser vista como algo

descolado do capitalismo, mas como parte integrante desse modo de produção.

Conforme demonstramos, a atividade camponesa não inverte as bases da

acumulação ampliada; nota-se exatamente o contrário, pois o fato de estar

assentada em relações não tipicamente capitalistas possibilita a maximização da

acumulação nos setores capitalistas, visto que o excedente de renda gerado é

passível de ser apropriado pelo capital sob duas formas: direta, ao ocorrer a

intermediação entre os produtores e os consumidores finais, num circuito que

passa pelo rebaixamento do preço inicial do produto à sua supervalorização nas

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etapas subseqüentes; indireta, ao serem despendidos menos recursos com o

pagamento de salários, visto que a reprodução da força de trabalho tem o custo

reduzido quando parte dos alimentos é produzida sem que a remuneração dos

produtores seja mediada pela extração do lucro médio.

Desse modo, a existência do campesinato permite a apropriação de

um montante extra de renda, sendo que no universo da produção ele não

comparece como vendedor da mercadoria força de trabalho, salvo em situações

esporádicas, quando essa prática se constitui em recurso para a manutenção da

condição camponesa, como é o caso do trabalho acessório.

Em outras palavras, a venda da força de trabalho não

descaracteriza esse sujeito social, desde que seja menos representativa que o

trabalho autônomo, situação essa perfeitamente coerente com um modo de

produção cujo fim precípuo não é a proletarização absoluta, mas a acumulação de

capital, independentemente dos meandros a serem percorridos.

É inequívoco, portanto, que o advento do capitalismo provoca, ao

mesmo tempo, o surgimento de classes sociais diversas e a transformação completa

dos antigos papéis. Ao situarmos a origem do campesinato brasileiro na idade

moderna, momento em que a lógica capitalista já está incrustada em todas as

relações, admitimos que tal lógica é que impulsiona a territorialização dos

europeus, processo eufemisticamente denominado civilizador, mas que implicou na

violenta desterritorialização dos povos nativos, pari passu ao contato.

Com ele, as diferentes formas de organização comunal vão sendo

banidas, sobrevindo a lógica mercantil e o princípio da acumulação ampliada.

Desse contato nasce a aculturação e o desenraizamento dos diferentes povos

indígenas, num processo de etnocídio e genocídio sem precedente.

Na luta por liberdade e por terras livres, outros povos irão se somar

aos indígenas, pois o seu encontro é a garantia de liberdade que a escravidão

imposta pelos ocidentais lhes roubara. Trata-se dos povos africanos, cujo contato

com os europeus implicou em impactos ainda mais avassaladores do que aqueles

sobre os indígenas, pois a escravização se consumou em outro continente, tornando

difícil a reconstrução de quaisquer referências que lhes permitissem a

reterritorialização.

Desses grupos aprisionados, coagidos, aculturados e dissidentes

deriva parcela fundamental do campesinato brasileiro. Unidos entre si e com os

europeus banidos do pacto de acumulação instaurado no Brasil, irão legar gerações

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de migrantes na incansável marcha pela terra de trabalho, a qual já dura meio

milênio.

Assim, a inserção do Brasil na rota das relações mercantis foi

paulatinamente gerando uma classe social cuja identidade está na luta sistemática

pela libertação do jugo representado pelo controle privilegiado da terra. A

incansável busca da terra livre tem sido uma resposta ao histórico processo de

expulsões e migrações imposto pelo próprio avanço do capital.

Como vimos, este não pode conter a rejeição dos trabalhadores à

completa mercantilização, fato explícito no expressivo acesso dos camponeses à

terra. É a sua posse, mesmo que precária, que afasta o assalariamento e permite a

reafirmação da autonomia do trabalho.

Outrossim, ao afirmar que o século vinte é o da consolidação do

campesinato brasileiro, Oliveira (2002) nos remete à compreensão dos processos

distintos que o compuseram, cujo divisor se encontra na transformação da posse

em propriedade proporcionada pela Lei de Terras de 1850.

No contexto institucional, durante todo o período em que vigorou o

critério de posse, formalmente extinto em 1824 com a promulgação da carta

constitucional imperial, o campesinato se constituiu numa classe precária, em

trânsito permanente, em função da concessão dos títulos de sesmarias, outorgados

à população branca, de fidalgos e demais diletos da coroa.

Para Martins (1995), a precedência do título sobre a posse

representa o banimento desses sujeitos do pacto civil, à medida que sua existência

enquanto camponeses autônomos dependia essencialmente das terras que

sobravam, não inseridas na lógica de apropriação corrente, donde podemos concluir

tratar-se eles próprios de sujeitos sobrantes, ausentes da composição de forças

produtivas reconhecidas como tal.

Contraditoriamente, é a transformação da terra em mercadoria que

permitirá a sua inserção enquanto classe no jogo das representações políticas, pois

o mesmo deixa de ser um sobrante, integrando-se pelo simples fato de se tornar

proprietário, independentemente do quinhão fundiário, numa sociedade em que o

critério de inclusão é progressivamente mediado pela propriedade privada.

Todavia, lembramos que esse status não alcança exclusivamente os

pequenos proprietários de terra, mas todos os demais que possuem o controle dos

meios de produção, seja via arrendamento, cessão ou posse. Enfim, é o

reconhecimento jurídico-institucional do pequeno produtor autônomo que vai

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consolidar, no pacto político, a existência camponesa; daí concordarmos que isso se

impõe no último século no cenário brasileiro.

Com base nessas ponderações, passemos ao outro ponto de

discordância quanto aos camponeses: trata-se das concepções fundamentadas na

idéia de seres sociais isolados, ausentes das relações de mercado, por estarem

fechados num círculo de precária auto-suficiência e rusticidade, tal qual os

concebera Kautsky (1980), contemporâneo e partidário de parte das idéias

leninistas. Sem desconsiderar suas contribuições, é forçoso reconhecer a

impossibilidade de se transpor integralmente para a nossa realidade as

especificidades da classe camponesa analisada pelos respectivos teóricos.

Limitemo-nos a Kaustky, cujas evidências empíricas emanavam de

um universo particular, assim como o instrumental teórico-metodológico adotado.

Seu trabalho revela que a preocupação quanto ao campesinato se inscreve no

contexto dos intensos debates que se desenrolaram dentro da social democracia

alemã do final do século XIX, em que as propostas de transformação da sociedade

esbarravam na incógnita representada tanto pela agricultura quanto pelos

camponeses, em função do desenvolvimento capitalista no campo.

Avaliar esse contexto é um passo fundamental para entender o

significado de tão importante obra que, por essas mesmas características, produziu

um certo fetiche entre os estudiosos contemporâneos da questão agrária. Pode-se

concluir que muitos a tomaram como profecia, na medida em que a utilizaram

desconsiderando que o território é dinâmico e adquire feições próprias em virtude

da multiplicidade de variáveis amalgamadas no permanente movimento da

realidade.

Dessa maneira, o esforço de desvendamento da realidade não pode

se pautar em protótipos estáticos, congelados. Equívocos dessa natureza estão

registrados na história brasileira, os quais têm conduzido a uma abordagem

preconceituosa do papel político dos camponeses em nossa sociedade.

Isso é perceptível nos desdobramentos das lutas travadas no século

XX, como as desencadeadas pelas Ligas Camponesas, em que as tentativas de

mediação dos setores progressistas, notadamente dos comunistas, foram orientadas

pelas concepções teóricas clássicas, produzindo assim interpretações e projetos

políticos com indisfarçável caráter de tutela e distanciamento das verdadeiras

aspirações camponesas. É o que indica a política de frente única que, ao propugnar

a aliança da burguesia e dos trabalhadores em defesa dos interesses nacionais,

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perdeu de vista a dimensão de classe, em especial a rapina existente na

transferência de renda representada pela existência do monopólio privado da terra.

Foi essa incapacidade de compreender o sentido das lutas

camponesas que levou à perda da unidade essencial entre partidos políticos e

organizações populares, culminando no refluxo das Ligas e, por fim, no golpe

militar de 1964 e seus perversos resultados para os camponeses.

No cenário recente, parece-nos que, mais uma vez, a incompreensão

do universo camponês perpassa alguns cenários de luta, sobretudo as

empreendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). É o que

indica a dificuldade por que passam as experiências coletivas nos assentamentos,

as quais se encontram em visível refluxo em todas as regiões onde foram

implantadas.

Entendemos que essa dificuldade provém da não consideração de

um elemento essencial que orienta a utopia camponesa, a busca obstinada da

autonomia, da liberdade de dispor de seu tempo, de seu espaço e de seu saber de

acordo com os sonhos e projetos construídos ao longo das próprias tradições.

Assim, embora reconhecidamente positiva do ponto de vista

econômico, tal experiência não seduz a maior parte dos assentados, muitos dos

quais a abandona após experimentá-la, pois a lógica capitalista, do resultado

material do trabalho, não é o componente essencial a mover a classe camponesa,

como veremos adiante. Não se quer afirmar, com isso, que os camponeses rejeitam

o progresso material, mas que eles o condicionam à garantia da autonomia, que

somente a propriedade individual dos lotes assegura integralmente.

Isso não implica em questionar a importância do MST, pelas

conquistas e avanços que não só fragilizam o pacto agrário, mas ameaçam o pacto

político, razão pela qual foi alvo de um deliberado projeto de desestruturação

perpetrado pelo Estado no Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Nossas

considerações caminham no sentido de refletir sobre as estratégias adotadas, pois

entendemos que leituras equivocadas sobre o universo camponês de hoje é um fator

de vulnerabilidade, comprometendo as promissoras possibilidades de inclusão

social que o mesmo representa.

Enfim, concordamos quando Oliveira (2002) adverte ser necessário

sapiência, pois não se pode tirar dos camponeses o sonho histórico da produção

individual autônoma. Entendemos que somente sua experimentação conduzirá ao

amadurecimento que poderá levar a sua superação. Tudo indica que o

distanciamento entre as aspirações e os projetos postos em prática decorrem de

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estigmas ainda profundamente incrustados em nosso meio, consubstanciados na

recusa em admitir, de fato, a existência dos camponeses.

Quando Kautsky e Lênin, interpretando Marx, sentenciaram o

desaparecimento dessa classe, o fizeram num momento crucial do desenvolvimento

capitalista, em que a interpretação dos fenômenos sociais estava fundamentada em

teses oriundas da profunda análise das transformações urbano-industriais.

É sabido que Marx não se deteve com o mesmo esmero nas

questões relativas à agricultura. Quando o fez, foi no intuito de lapidar

teoricamente o seu campo analítico, o que em última instância indica que muitas

das análises posteriores, tidas como marxistas, foram mais suposições e deduções

do que propriamente apontamentos conclusivos desse pensador.

Por outro lado, não é possível retomar a discussão sobre o

campesinato sem transitar pela obra desses teóricos, pois muitas lacunas e falsos

consensos podem ser explicitados à medida que as teorias revelam uma coerência

compatível com o contexto em que foram produzidas. A inconsistência reside no

esforço de moldar a realidade a partir de modelos previamente definidos, sem

contudo sugerir com isso que o permanente pulsar da história leve ao descarte dos

saberes produzidos no passado: nada soaria mais insano, pois não se faz ciência

por decreto, ela é uma produção humana que invariavelmente evolui a partir de

preceitos que, nos diferentes tempos históricos, são aceitos como verdadeiros.

Nessa perspectiva, as superações insinuam-se na própria dinâmica

da realidade, razão pela qual há um campo ilimitado de indagações e descobertas a

serem feitas, tornando a verdade acabada a alquimia da ciência, mas que muitos

inadvertidamente absolutizam, inclusive os próprios cientistas.

Portanto, um esforço de ponderação é necessário, a fim de evitar

incorrer em extremos, seja acatando integralmente teorias que, por serem

consagradas, conferem segurança aos que dela se servem para construir seu

arcabouço teórico-metodológico, seja ignorando-as em prol de consensos vagos e

inconsistentes, denunciando em ambos os casos a perigosa inversão no sentido da

ciência que, presumivelmente, consiste na busca permanente de conhecimentos

passíveis de melhorar as condições de vida e bem-estar da humanidade.

Reconhecendo que a divisão da sociedade em classes torna essa

função primordial um privilégio de poucos, cabe então assinalar que nenhum

trabalho intelectual é neutro, produzindo frutos políticos decisivos, à medida que

reforçam ou combatem a exclusão social.

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Na contramão da tendência atual, caracterizada pela indisfarçada

descontextualização dos fenômenos, própria de um momento em que a perda da

historicidade é a garantia de que nada pode conspirar contra um consenso

habilmente fabricado, revisitamos alguns apontamentos que podem contribuir com

o deslindamento de alguns dos nós que ofuscam a leitura do território e suas

contradições, especialmente no tocante à questão agrária brasileira e suas

expressões particulares no Norte do Paraná.

Se para Kautsky e Lênin, estudiosos particularmente debruçados

nos estudos sobre a agricultura, em um momento singular de transições -

desintegração do feudalismo, ascensão do capitalismo e iminência do socialismo - o

desaparecimento da classe camponesa era inexorável, para Chayanov isso não se

colocava, a não ser em um horizonte muito distante. Quais seriam os fundamentos

de visões tão distintas?

Inicialmente, leituras tão divergentes apontam distinções do ponto

de vista do método, ou seja, do conjunto de proposições construídas para o

entendimento dos processos, os quais refletem a própria postura político-filosófica

desses teóricos que, em essência, consistem nos seguintes pontos:

Em Kautsky, encontramos um inédito esforço em transpor para a

agricultura os pressupostos construídos por Marx, nos quais prevalece a concepção

de que o desenvolvimento capitalista no campo seria uma extensão dos processos

verificados na indústria. Cumpre salientar que, nessa passagem, já se perde muito

da riqueza do pensamento de Marx, construído sobre a tríade terra, trabalho e

capital, pois, em grande medida, as análises privilegiam apenas o embate entre

burgueses e proletários3.

Essa distorção não encontra eco nas teorias classificadas como

populistas, por emanarem de teóricos que, como Chayanov, não desconsideravam a

importância e o peso do trabalho familiar na composição das forças políticas do

momento, advogando não a extinção, mas a sua preservação mediante

readequações impostas pelo próprio modo de produção em consolidação.

Para Lênin, as teorias enquadradas no rótulo “explorações

fundadas no trabalho familiar” seriam românticas, já que ocultavam o grau de

miserabilidade dos camponeses.

Além disso, seriam estritamente burguesas, por não exporem para a

sociedade os conflitos de classe, contribuindo para o ocultamento das contradições

3 Cf. Lefebvre apud Martins, 1996.

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do capitalismo e, conseqüentemente, atrasando o processo revolucionário que

conduziria à superação desse modo de produção.

Apesar do peso dos argumentos relacionados ao rápido

desaparecimento dos camponeses4, Chayanov mostrou-se cauteloso, mesmo

considerando essa possibilidade a longo prazo. Passado um século, é possível

verificar que foi ele que melhor antecipou o processo que ambos procuraram

compreender.

(...) podemos ver com toda claridad que no hay que esperar necessariamente que el desarrollo de la influencia capitalista y la concentracion en la agricultura desenboquen en la creación y el desarrollo de latifúndios. Con Mayor probabilidad había que esperar que el capitalismo comercial y financiero establezca una dictadura económica sobre considerables setores de la agricultura, la cual permacería como antes en lo relativo a producción, compuesta de empresas familiares de explotación agrícola en pequeña escala sujeitas en su organización interna a las leyes del balance entre trabajo y consumo (CHAYANOV, 1974, p. 42).

Nessa questão reside o cerne das divergências, as quais não

somente impediram o diálogo naquele momento, como também se arrastam até

hoje, mesmo que metamorfoseadas, com a ressalva de que, há um século atrás, os

teóricos tiveram que se valer de proposições de certa forma vagas, pois vivenciavam

um momento de consolidação do modo de produção, com todas as indefinições e

incógnitas características daquele momento de transição.

Diríamos que é na atualidade que esse debate se apresenta como

um ranço, visto que o movimento da história já nos dá o privilégio de analisar os

desdobramentos essenciais do capitalismo na estruturação das classes, em que fica

patente a reprodução da classe camponesa, contrariando assim os pressupostos

destacados.

Entretanto, seria ato de extrema leviandade apontar pura e

simplesmente tal equívoco sem ponderar a extraordinária visão de Kautsky e Lênin

sobre a ação transformadora do capitalismo: a insuficiência de seus quadros de

análise decorre, sobretudo, da concepção linear do processo histórico, que

pressupunha etapas a serem cumpridas para se chegar ao socialismo.

Essa interpretação tornava imperioso considerar o caráter

revolucionário do capitalismo, particularmente no que se refere ao campo, pela

4 Cumpre ressaltar que as próprias posições de Lênin se modificaram posteriormente, conforme aponta Shanin (1980, p. 53): A própria abordagem de Lênin passou por uma mudança consistente, embora lenta: Já por volta de 1907, ele declarava ter havido claro exagero em suas primeiras conclusões sobre a natureza capitalista da agricultura russa (...). Lênin foi além (embora mais implicitamente) na aceitação da permanência de traços camponeses. Essa mudança subjaz e explica as modificações dos programas do partido em 1917, 1921 e foi mais firmemente expressa nos últimos momentos de vida de Lênin.

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suposta potencialidade de eliminar os camponeses enquanto classe e, banindo,

assim, a barbárie construída pelos séculos de miséria e submissão impostas pelo

regime feudal.

Atuando em um universo social presumidamente constituído de

apenas duas classes politicamente representativas, seria inexorável o triunfo de

uma delas, face às contradições inerentes ao modo de produção. Nessa perspectiva,

à classe mais numerosa restava o rótulo de vacilante e oportunista: para Lênin,

pequenos agraristas, pela própria fatalidade histórica de deterem os meios de

produção e assim partilharem os mesmos interesses dos grandes proprietários

fundiários; para Kautsky, sujeitos limitados a serem redimidos pela superioridade

intelectual e política dos operários, adquirida na experiência coletiva de

expropriação e exploração da força de trabalho.

Contudo, conforme já assinalamos, esses referenciais não foram

construídos por unanimidade: o próprio Gramsci (1987), apesar da pronunciada

visão de que os operários se constituem, por excelência, nos agentes de

transformação, em diversas ocasiões não lhes fará coro, não só por explicitar a

impossibilidade da classe revolucionária conquistar o poder a curto prazo, mas

sobretudo por defender uma aliança entre os operários do Norte e os camponeses

do Sul da Itália, destoando assim da tese de incapacidade política do campesinato.

(...) a regeneração econômica e política dos camponeses não deve ser buscada numa divisão das terras incultas ou mal cultivadas, mas na solidariedade com o proletariado industrial, que precisa, por sua vez, da solidariedade dos camponeses, que tem “interesse” em que o capitalismo não renasça economicamente a partir da propriedade fundiária (...) (GRAMSCI, 1987, p. 76-77).

Note-se o quanto esses pressupostos foram ignorados na

construção do paradigma revolucionário brasileiro, seja na pretensa aliança

trabalhadores/burguesia nacional contra o suposto inimigo comum: o

imperialismo, travestido nas pretensões dos latifundiários, seja na clássica leitura

dos restos feudais, implicando na defesa da expansão capitalista como solução

imediata para o desenvolvimento do campo e diminuição da pobreza.

Ao refutar a tese de que o desenvolvimento das relações capitalistas

no Sul da Itália livraria os camponeses dos abjetos contratos a que estavam

submetidos, abrindo-lhes melhores perspectivas, Gramsci não concordava que o

desenvolvimento capitalista eliminaria o fosso imposto aos pobres do campo,

sinalizando para a interpretação de que a miséria resulta exclusivamente das

formas como o desenvolvimento capitalista é acionado pelo bloco social dominante.

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Traduzidas para a realidade brasileira, seria uma advertência de

que a pobreza e a exploração não podem ser solucionadas através da proposição de

uma aliança com os próprios agentes que a produzem.

Convém salientar que, para Gramsci, uma dada territorialidade é a

forma como são expressos os embates em um determinado contexto histórico-

social. Com isso, refuta a interpretação baseada numa parcialidade geográfica, em

que prevalece a visão simplificada de explorados e redentores, o que inegavelmente

suprime as contradições internas de classe.

Isso nos municia não no sentido de tripudiar o insucesso da aliança

citada, mas no sentido de refletir sobre os equívocos teóricos diluídos nos

sucessivos programas da esquerda brasileira, indicando que a crítica se faz

necessária, inclusive para que sejam repensadas as estratégias de intervenção na

realidade.

Por outro lado, com isso não se pretende invalidar os pretéritos

esforços empreendidos visando a uma transformação social, em função dos quais a

repressão se mantém viva com as mais variadas nuances, coagindo e exterminando

um sem número de trabalhadores. Propomos analisar esses equívocos sob dois

prismas: no primeiro, buscamos evidenciar a insuficiência dos pressupostos

clássicos, tais como os de Kautsky, para entender a dinâmica e o lugar das classes

sociais no movimento da realidade. Restringindo-nos somente ao século XX,

momento em que as cidades adquirem importância e a população rural deixa de ser

majoritária, vemos que os camponeses foram e continuam sendo importantes

agentes de instabilidade, potencialmente decisivos para a manutenção do status

quo.

Isso lança por terra a tese de sua incapacidade política de

organização, demonstrando ser esse mais um preceito que atravanca a construção

de um projeto de cidadania coeso. Não se pode entendê-lo somente a partir das

heranças que a intelectualidade brasileira absorveu, mas sobretudo desviando um

olhar mais cuidadoso para os pactos historicamente construídos nesse país.

Como salienta Martins (1995), excetuando-se as práticas políticas

dos capitalistas, o que em si dispensa comentários, por serem coerentes com o seu

lugar na reprodução das classes e relações sociais, é forçoso reconhecer que os

pobres, mais os do campo que os da cidade, não foram efetivamente inseridos no

debate, no sentido de fazer valer os projetos delineados na sua trajetória concreta

de vida. Com isso, a mediação toma caráter de tutela (muitas vezes rejeitada),

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materializada em soluções construídas a partir de um universo que não é o seu,

estranho, portanto, às suas aspirações.

Em relação aos camponeses, isso ficou bastante evidente nos

momentos que as forças populares alcançavam uma respeitável projeção, como é o

caso dos anos quarenta aos anos sessenta, quando eclodiram as Ligas

Camponesas. Nesse momento, os mediadores foram incapazes de formular um

projeto efetivamente identificado com a essência de suas lutas: à medida que os

comunistas, a elite pensante do momento, preconizavam a referida aliança com a

burguesia, os camponeses foram se isolando, pela própria capacidade de

antecipação dos fatos que as contradições de classe lhes permitiam vislumbrar.

Somente eles tiveram clareza de que a essência do embate estava

centrada na questão da renda da terra, o impedimento básico de ter a burguesia

como aliada. Assim, sua resistência foi construída a partir de articulações

endógenas, refluindo à medida que os próprios aliados (os agentes exógenos) se

mostraram inaptos a uma mediação construtiva.

Desses eventos é possível ainda extrair outros ensinamentos, tão

pertinentes na atualidade, na qual inadvertidamente se desconsidera a dimensão

das contradições que emanam do modo capitalista de produção. Por mais

descaracterizadas que estejam, tendo em vista que prevalece a forma

homogeneizante e estrategicamente simplista de analisar quaisquer fenômenos, as

classes sociais estão aí. O que nos falta é uma instrumentação teórica eficiente para

compreendê-las, em face das novas configurações que são instauradas à proporção

que o próprio modo de produção evolui.

Isso seria particularmente visível em se tratando dos camponeses.

Pelas próprias questões apontadas anteriormente, eles gradativamente foram sendo

suprimidos das análises e, conseqüentemente, ignorados nas formulações e

programas de intervenção, mesmo aqueles de cunho progressista.

Ao serem transformados em meros trabalhadores familiares, ao

serem propugnadas realidades alienígenas, supostamente redefinidas pela perda do

papel produtivo do campo, pela perda da importância da terra, pela homogeneizante

tese da multifuncionalidade das unidades produtivas e transformação dos

camponeses em “proletários” parciais, está implícito a perda da dimensão de classe,

o que não se justificaria diante das mudanças em curso, visto que a mudança é um

componente da realidade, o que colocaria as demais classes sociais no mesmo

patamar, o que não é o caso. Isso parece ser mais um indicativo de que ainda

sobrevive a estratégia de banimento dessa classe social do pacto político.

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Se os instrumentos de análise legados se mostram insuficientes,

isso possivelmente se deve ao fato de não serem revistos e incrementados à medida

que os processos assim o exigem. Prova disso é a dificuldade com que se lida

teoricamente com a noção de classes, evidenciando a fragilização dos instrumentos

de intervenção na realidade, lançando-nos na desconfortável posição que mais

sugere ser a de expectadores, enquanto o mercado passa a ser sacramentado como

o sujeito da história. Reportemo-nos a Shanin (1980, p, 57)

(...) o capitalismo “juvenil” e otimista do século XIX influenciou muito a visão marxista clássica. Era visto como agressivo, construtivo, dominador e supereficaz em sua capacidade de se expandir. Como o dedo de midas que transforma em ouro tudo o que toca, o capitalismo também transforma em capitalismo tudo o que toca. A terra é o limite. À luz do que realmente encontramos hoje, tudo isso parece um grande exagero. É indubitável a capacidade dos centros capitalistas de explorar todos e tudo à sua volta; mas sua capacidade ou sua necessidade (em termos de maximização dos lucros) de transformar tudo ao redor à sua semelhança não o é. Os camponeses são um exemplo.

Note-se que um dos principais argumentos em torno do

desaparecimento dos camponeses reside no fato dos mesmos estarem inseridos no

mercado, argumento esse já utilizado por Kautsky. Ora, as relações mercantis são

inerentes ao modo capitalista de produção; o feudalismo sucumbiu exatamente em

função do aprofundamento e refinamento das trocas. Por isso, é necessário mais

cuidado ao se tratar dessa questão.

Se recorrermos a Chayanov, veremos que o mesmo não vislumbrava

nessa relação um indício de desagregação rumo à proletarização, portanto de

desaparecimento enquanto classe. Ao contrário, a inserção no mercado foi tida

como estratégia de fortalecimento, por permitir aos camponeses dedicarem-se com

mais afinco aos cultivos mais rentáveis, adquirindo no mercado aquilo cuja

produção própria roubaria tempo e recursos preciosos, especialmente terra, sempre

escassa entre eles.

Cumpre destacar que Lênin já se mostrava cauteloso nessa questão,

ao classificar de produção natural a agricultura voltada para o autoconsumo,

diferenciando-a da produção mercantil, pois afirmava que a tese da eliminação da

pequena exploração pela grande somente se aplicaria nos casos de agricultura

mercantil,

(...) a produção que não é voltada para o mercado, mas para o consumo da própria família da farm, desempenha um papel relativamente importante na agricultura e ela só cede lugar à agricultura mercantil de forma bastante lenta. E se neste caso,

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forem aplicadas as teses teóricas já estabelecidas pela economia política, não de uma forma estereotipada e mecânica, mas criteriosamente, veremos, por exemplo, que a lei da eliminação da pequena produção pela grande só pode ser aplicada à agricultura mercantil. (LÊNIN, 1980, p. 58-59).

Apesar disso, via a necessidade de potencializar os recursos no

sentido de garantir o aumento da produtividade. Se isso já era evidente há um

século, não é possível ignorá-lo no atual estágio das forças produtivas, em que os

níveis de competitividade atingem patamares elevadíssimos.

Portanto, o próprio Lênin e, mais incisivamente Kautsky, apontaram

as vantagens da produção em escala no campo, o que ambos rotulavam de

racionalidade na agricultura. A viabilidade da exploração racional estaria vinculada

à grande propriedade, para Kautsky, ou grande exploração, para Lênin5, o que em

última instância coroava o veredicto sobre a classe camponesa.

No entanto, isso é bastante discutível, como aponta Abramovay

(1990), ao indicar que o ganho de produtividade apresenta limites, à proporção que

a escala de produção se compatibiliza com os meios disponíveis. É por essa razão

que nos Estados Unidos, país em que os índices de tecnificação são dos mais

elevados do mundo, as propriedades em geral não apresentam dimensão superior a

3.000 hectares.

Por outro lado, salientamos que o próprio Abramovay é signatário

das proposições anteriormente arroladas, conforme podemos observar a seguir:

As sociedades camponesas são incompatíveis com o ambiente econômico onde imperam relações claramente mercantis. Tão logo os mecanismos de preços adquiram a função de arbitrar as decisões referentes à produção, de funcionar como princípio alocativo do trabalho social, a reciprocidade e a personalização dos laços sociais perderão inteiramente o lugar, levando consigo o próprio caráter burguês da organização social. (ABRAMOVAY, 1990, p. 124).

Essa sentença proferida por Abramovay supõe que, ao serem

alteradas as bases técnicas, uma classe social (os camponeses) desapareceria,

dando lugar a uma nova categoria social (os agricultores profissionais),

implicitamente integrantes da burguesia pequena. Some-se a isso o fato de que o

autor rejeita qualquer tipo de produção de capital sobre bases camponesas. A nosso

ver, isso expõe a dificuldade em aceitar o movimento como componente

indissociável da realidade, movimento esse que não adquire, em hipótese alguma,

5 Observe a distinção existente entre esses autores no que se refere ao conceito de exploração. Lênin classificava-a de acordo com o volume de investimento, ou seja, grande exploração seria aquela em que a inversão de capitais fosse ponderável, independentemente do tamanho da área. Já para Kautsky, grandes e pequenas explorações significavam, respectivamente, grandes e pequenas propriedades.

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traçado unilateral, pois ao mesmo tempo que as diferenças se confrontam, se

influenciam mutuamente e são superadas, sem que as forças mais vigorosas

passem incólumes, por mais que triunfem.

Portanto, falta consistência ao modelo explicativo no qual os

camponeses comparecem como seres alheios, alienígenas, produzindo apenas para

si e sua família, como se fossem refratários às influências do modo de produção do

qual fazem parte. Parece tratar-se de uma simplificação perigosa, especialmente se

entendermos que as classes sociais não estão isoladas em si mesmas, hipótese essa

incompatível até mesmo para sociedades de castas.

Entendemos que outro equívoco reside na definição do conceito de

reprodução ampliada do capital, pelo próprio sentido da mesma entre as classes. É

notório que dentro da lógica capitalista, classificamos de capital tudo aquilo que é

investido com o objetivo de se obter mais capital, ou seja, de reproduzir-se

ampliadamente.

Por outro lado, o amealhar recursos dentro da lógica camponesa é

completamente diverso. Chayanov já o vislumbrara, ao indicar que para os

camponeses a acumulação de dinheiro tem o objetivo precípuo de aumentar a

produtividade e, com isso, diminuir o esforço, garantindo o aumento do bem-estar

da família.

Não obstante, é possível que as “sobras” do trabalho camponês,

deduzidos os gastos gerais com a manutenção da família e da unidade de produção,

sejam investidas na extração de mais-valia. Esse é, pois, o processo de produção

não-capitalista do capital. Contudo, a partir de então não se poderá mais

caracterizá-los como tal, mas sim enquadrá-los na categoria de capitalistas, o que é

perfeitamente compatível com a dinâmica da realidade. Portanto, o problema não

está nessa dinâmica, mas nas generalizações forjadas a partir da mesma.

Por outro lado, cremos não ser possível definir a inserção no

mercado como um dos critérios de diferenças, sobretudo quando se considera que

as próprias relações humanas se encontram bastante mercantilizadas. Mesmo os

grupos que rejeitam tal parâmetro estão inseridos na lógica das transações

mercantis, seja direta ou indiretamente, por aquilo que representam ou têm para

oferecer como elemento de troca, sejam produtos, conhecimento, cultura, enfim,

algo diferenciado que se torna objeto de apropriação por uma sociedade ávida de

consumo.

É isso que nos permite inferir que o fato dos camponeses estarem

inseridos no mercado não os torna menos camponeses. Antes, é necessário discutir

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os porquês e as formas como se inserem. Comecemos fazendo uma distinção entre

mercado de trabalho e mercado de consumo, apesar da linha tênue que os separa,

se considerarmos que nesse mercado a força de trabalho é a principal mercadoria

consumida.

Há um consenso entre os autores que admitem a existência

camponesa de que uma de suas características fundamentais é a autonomia do

trabalho; mais precisamente, o elemento diferenciador seria o trabalho familiar.

Seria, pois, admissível vê-los trabalhando esporadicamente para outrem? Vejamos

como os teóricos se manifestam em relação a essa questão.

Em sua obra, Kautsky já vislumbra essa relação, classificando-a de

trabalho acessório; por mais paradoxal que possa parecer, não há aí divergências

teóricas, mas um alinhamento com o pensamento de Chayanov, ao mostrar que a

sobrevivência dos camponeses não depende, no limite, do trabalho acessório. Em

outras palavras, Kautsky aponta que é a preservação dos meios de produção que

garante a sobrevivência dessa classe, pois na impossibilidade de incrementar a

renda da família com a venda esporádica de trabalho, ela irá sobreviver, mesmo em

condições piores, o que não seria possível caso estivesse completamente despojada.

Por outro lado, Chayanov adverte, sem ressalvas, que a venda

esporádica da força de trabalho é benéfica quando avaliada com critério pela

família. Nos momentos em que os ganhos podem ser maiores no trabalho extra

unidade de produção, a família reduz as atividades internas ao mínimo. Ao se

envolver naquelas que permitem um acúmulo de recursos, terão assegurado um

incremento de recursos monetários na unidade e, conseqüentemente, sobrevivência

futura com menos esforço físico.

La familia campesina trata de cubrir sus necessidades de la manera más fácil y, por lo tanto, pondera los medios efectivos de produción y cualquier otro objeto al cual puede aplicarse su fuerza de trabajo, y la distribuye de manera tal que puedem aprovecharse todas las oportunidades que brindan una remuneracion elevada. De esta manera, es frecuente que, al buscar la retribuición más alta por unidad domestica de trabajo, la familia campesina deje sin utilizar la tierra y los medios de producción de que dispone si otras formas de trabajo le proporcionan condiciones mas ventajosas... El unico rasgo que en este caso distingue a la familia campesina del empresario consiste en que el capitalista, de un modo u otro, distribuye siempre la totalidad de su capital; la familia campesina, en cambio, nunca utiliza completamente toda su fuerza de trabajo pues cesa de consumirla en el momento en que satisface sus necesidades y alcanza su equilibrio economico. (CHAYANOV, 1974, p. 120).

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Concluímos, portanto, que não é exatamente a limitação da

atividade interna imposta pela escassez dos meios de produção que leva os

camponeses a deixarem a unidade ou a realizarem trabalhos acessórios e sim a

possibilidade de obterem ganhos maiores a partir de um mesmo esforço físico.

Desse modo, nas situações favoráveis, em que as remunerações

externas são consideradas vantajosas, as atividades não agrícolas surgem como

uma oportunidade de acumulação monetária, ao passo em que em condições

desfavoráveis, de baixos salários, eles intensificam ao máximo as atividades dentro

das próprias unidades.

Outrossim, essa inserção no mercado de trabalho, tida por grande

parte dos teóricos clássicos e contemporâneos como sinônimo de proletarização, é

interpretada por Chayanov como recurso para a manutenção da condição

camponesa. Até mesmo o fato de acumular dinheiro não aparece como uma postura

pequeno burguesa, ponderando-se que a diferença fundamental entre unidades

capitalistas e unidades camponesas está na lógica interna da exploração e

organização.

Dessa maneira, a hipótese da melhor remuneração possível é

perfeitamente compatível com tal lógica, o que nos permite vislumbrar os limites da

tese da diferenciação interna, conforme aponta Lênin (1980). Como vemos, não se

pode eleger como critério das diferenças o nível de bem-estar e volume de bens

materiais, mas a forma como se organizam internamente. Em outras palavras,

deixarão de ser camponeses ao incorporarem a lógica capitalista, expressa na

exploração do trabalho alheio e privilegiamento da acumulação de capital.

Pelo fato de debruçar-se sobre essa coerência interna, distinguindo-

a da lógica capitalista, Chayanov foi severamente criticado em seu tempo, pela

alegação de estar politicamente vinculado à defesa de interesses burgueses, na

medida em que idealizava uma forma de organização social reacionária, contrária

aos interesses da revolução socialista.

Atualmente, o foco das divergências não é mais o mesmo, pois

sugere-se aos que encontram nas evidências da existência camponesa uma suposta

incapacidade de apreender as expressões do moderno. Entretanto, ao se construir

todo o viés interpretativo baseado na inexorável força do mercado, perdem de vista

a categoria essencial para o entendimento da realidade: a contradição, por mais que

toda sorte de simplificações queira suprimi-la, pois que a luta de classes é o motor

do devir histórico.

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Ao considerá-la, não se nega a prevalescência das relações

estritamente mercantis, rejeitando-se sim a noção de homogeneidade que o próprio

desenvolvimento histórico se encarregou de desmistificar.

A simplificação revela-se na transformação da exceção em regra,

como podemos notar no conceito de multifuncionalidade, o qual, além de suprimir o

sujeito, privilegiando as diversas expressões produtivistas e consumíveis das

unidades rurais, sugere uma subserviência intelectual, visto ser importado dos

países centrais. Ainda que esse possa auxiliar na compreensão do que lá se

desenvolve, está em desacordo com as expressões concretas da dinâmica aqui

existente.

Revela ainda a necessidade dos geógrafos retornarem ao campo (do

empírico), a fim de encontrar a diversidade que não pode ser inteiramente

materializada nos esquemas teóricos. Ademais, é o próprio movimento da realidade

que os alimenta, razão pela qual não se pode dispensar a reflexão articulada com a

investigação do campo, em permanente transformação.

Lembramos que foi exatamente o respaldo na realidade um dos

fatores a conferir legitimidade à obra de Chayanov, pelo seu profundo conhecimento

da lógica camponesa, decorrente de sua própria experiência profissional6,

experiência essa que autores como Kautsky e Lênin não puderam desfrutar

plenamente.

Partindo da diferenciação demográfica e do balanço entre trabalho e

consumo, Chayanov indica os caminhos pelos quais as unidades camponesas

alcançam o equilíbrio interno, destacando-se as estratégias de ocupação da família.

Diferentemente da agricultura capitalista, essa possui força de trabalho constante,

não podendo ser contratada ou dispensada de acordo com as necessidades dos

cultivos.

Isso nos dá algumas pistas para entendermos a razão pela qual os

camponeses dominam as culturas alimentares que proporcionam menores

rendimentos. Mesmo sabendo-se que existem outras variáveis (não possuem

recursos suficientes para se lançarem nas culturas mais “nobres”, os meios de

produção são limitados, incompatíveis com a escala de produção exigida, não estão

materialmente aptos para suportar os riscos inerentes às atividades de maior

6 Chayanov era integrante da Escola de Organização e Produção, instituição composta por técnicos agrícolas e outros estudiosos, voltada ao registro de dados e apresentação de propostas para o desenvolvimento das unidades camponesas. Com isso, reuniu informações privilegiadas, pelo contato direto com os indivíduos que mais conheciam e mantinham contato com os camponeses: os técnicos e funcionários agrícolas.

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rendimento etc.), optam por atividades passíveis de ocupar a mão-de-obra familiar,

o que lhes assegura rendimentos brutos maiores.

É esse conjunto particular de características que constrange o

pressuposto de que camponeses necessariamente devem ser avessos a resultados

satisfatórios, o que seria o mesmo que desconsiderar o bom senso dos mesmos.

Outro equívoco é considerá-los a partir dos parâmetros produtivos

capitalistas (mesmo que venham a contratar mão-de-obra, essa assume sempre um

caráter complementar, portanto não visam a auferir lucros a partir da exploração

do trabalho alheio). Resta-nos, portanto, admitir que atuam a partir de uma lógica

distinta à capitalista, pela sua própria condição social.

Kautsky, ao perder de vista essa dimensão, chegou a apontar como

limitação intelectual a restrição dos camponeses à utilização de máquinas;

impedido de compreender que essas, além de representar um custo incompatível

com seus recursos, eram poupadoras da mão-de-obra que eles necessitavam

ocupar. Portanto, o empecilho à mecanização, nesse caso, não era o atraso cultural

e a falta de inteligência dos camponeses, conforme anunciava, mas as condições

objetivas internas às unidades camponesas.

Dessa maneira, o equacionamento da produção camponesa, como

ilustra Chayanov, parte da composição da força de trabalho familiar, ao contrário

daqueles que podem a qualquer tempo dispor de força de trabalho alheia.

No entanto, a pressão exercida pelas necessidades de consumo é o

fator determinante no grau de utilização e intensificação da força de trabalho, visto

que o recurso primordial dos capitalistas, o descarte dos trabalhadores não

produtivos, não pode ser aplicado à família: “El volumen de la actividad de la

familia depende totalmente del numero de consumidores y de ninguma manera del

numero de trabajadores.” (CHAYANOV, 1974, p. 81).

Além disso, a decisão do que e como produzir é orientada pela

promessa de rendimentos brutos a serem auferidos, diferentemente da atividade

capitalista, para a qual a motivação está centrada nos rendimentos líquidos.

Vejamos as razões da valorização extremada dos rendimentos brutos.

Apesar da incontestável vinculação ao mercado, fato já

contemporâneo de Chayanov, não se pode perder de vista que uma das

características da unidade de produção camponesa é a cultura de excedente. Nessa,

a seleção dos cultivos comerciais é diretamente influenciada pela capacidade de

consumo interno da mesma, na iminência de percalços no momento da

comercialização. Temos aí mais um elemento que explica o privilegiamento da

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produção de alimentos básicos pelos camponeses, razão pela qual a mesma é

vulgarmente definida por cultura de pobre. Alguns autores analisam essa

combinação na perspectiva da alternatividade, conforme veremos adiante.

Desta feita, os rendimentos brutos nada mais são do que a

somatória dos proventos percebidos pela família, seja na forma de produtos

colhidos, seja na forma de dinheiro obtido com transações, incluindo-se a venda da

força de trabalho. Porém, quanto maior for a parte da produção interna destinada

ao consumo, maior a segurança alimentar da família e menor, portanto, a

necessidade de recorrer ao mercado para satisfazer as necessidades básicas.

Percebe-se, com isso, que os camponeses somente abdicam da

autosuficiência interna à medida que alguns produtos podem ser comprados em

situação vantajosa, considerando a relação custo benefício, desde que a

impossibilidade de adquiri-los não represente risco à sobrevivência imediata.

Graças a su contacto con el mercado, la explotacion puede eliminar ahora de su plan organizativo todos los sectores de producion que proporcionan pocos ingresos y en los cuales el producto se obtiene con un esfuerzo mayor que el requerido para obtener su equivalente en el mercado mediante otras formas de actividad economica que producen ingresos mayores. En el plan organizativo solo subsiste lo que proporciona uma alta remuneracion para la fuerza de trabajo o constituye un elemento de producion irreemplazable por razones técnicas. (CHAYANOV, 1974, p. 142).

Outrossim, a dificuldade teórica em justificar o desaparecimento da

classe camponesa pode ser extraída das ponderações de Abramovay (1990),

considerando sua leitura acerca do papel estratégico que a agricultura desempenha

dentro do capitalismo contemporâneo. Concordamos que nos países centrais, a

estruturação das relações econômicas deve ser entendida a partir da presença do

Estado que, ao garantir renda para os produtores do campo, assegura oferta

abundante de alimentos.

A despeito dessas políticas indicarem projetos deliberados, no

sentido de salvaguardar as bases da expansão capitalista que permitam a expansão

do mercado de consumo de bens duráveis, como aponta Abramovay, é possível

reconhecer vestígios do paradigma que o autor critica, quando pondera que o legado

de Lênin e Kautsky são insuficientes para analisar o desenvolvimento do

capitalismo na agricultura.

Conforme já salientamos, esse paradigma se travestiu, na

contemporaneidade, da rejeição do papel político da classe camponesa: na obra em

questão, isso fica evidenciado na concepção de que o projeto político se construiu

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muito menos em função do poder de pressão dos agricultores e mais em função da

necessidade de ampliação de mercados para os produtos industrializados.

Cremos que a implicação direta dessa leitura é a concepção de que

os camponeses são sujeitos passivos, incapazes de influenciar os projetos políticos

mais amplos. A nosso ver, explicita a perda da dimensão contraditória do

desenvolvimento social, descaracterizando os embates e conflitos próprios do

movimento da realidade. Certamente para entendê-lo é preciso considerar os pactos

sociais e políticos construídos e refeitos historicamente, a exemplo da Revolução

Francesa e da Guerra da Secessão nos Estados Unidos.

Cremos não tratar-se de picuinhas conceituais, meros detalhes,

visto que por trás das concepções teóricas se constroem (não necessariamente

nessa ordem) projetos concretos de intervenção na realidade, os quais modificam o

presente e redefinem o futuro. No quinto capítulo demonstraremos como as

políticas públicas são provas irrefutáveis desses apontamentos. Vejamos as

ponderações de Shanin (1980, p. 76-77) acerca da dimensão política do conceito:

Um camponês não é uma palavra vazia a refletir os preconceitos do populus, as frivolidades linguísticas dos intelectuais ou ainda, conspirações de adeptos de uma ideologia, embora às vezes isso possa ser verdadeiro. Se revogado, este conceito (ainda?) não pode ser facilmente substituído por algo de natureza semelhante. Ele tem, assim como os conceitos de “capitalismo”, “proletariado” e, é claro, “modo de produção”, potenciais de reificação, isto é, pode ser enganoso, assim como ser usado para enganar, especialmente quando utilizado de maneira ingênua. Tem-se dito corretamente que “o preço da utilização de modelos é a eterna vigilância”. É verdade também que sem tais construções teóricas não seria absolutamente possível qualquer progresso nas ciências sociais. O camponês é uma mistificação principalmente para aqueles que são propensos a se tornar mistificados[...]. Em última instância, os conceitos devem servir não a “uma questão de reconciliação dialética de conceitos”, mas à “compreensão das relações reais.” [...] Excetuando sua mistificação e sua utilização ideológica, o conceito de campesinato cumpriu, muitas vezes, todos esses serviços. Esta capacidade ainda não se esgotou.7

Assim, ao instituir como eixo estrutural de análise as relações

econômicas, nas quais o mercado comparece como agente exclusivo e soberano,

toma vulto a idéia de que o camponês deixa de ser sujeito criador de sua própria

existência8, tarefa essa supostamente assumida pelo mercado. É imbuído dessa

concepção teórica que Abramovay (1990, p. 7,10), propõe a substituição automática

do conceito de camponês por agricultor familiar, excluindo as demais dimensões

7 Grifo do Autor. 8 Grifo do Autor.

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que constituem esse modo de vida, pela própria noção de inconsistência de análises

que possam privilegiar a lógica que preside a fração camponesa do território:

Uma agricultura familiar, altamente integrada ao mercado, capaz de incorporar os principais avanços técnicos e de responder às políticas governamentais não pode ser nem de longe caracterizada como camponesa... [Teríamos assim] unidades produtivas que são familiares, mas não camponesas.

Daí inferirmos que a referida análise distancia-se dos pressupostos

de Marx, ao privilegiar não as relações sociais, mas o mercado, instituindo-o como

elemento fundante da sociedade e das classes. Trata-se de um alinhamento com

algumas concepções leninistas.

Perde-se, assim, a dimensão multiforme das relações sociais (o que

não exclui a dimensão econômica), visto que as trocas são um componente

indissociável desse modo de produção, o que não nos permite supor que as

relações, qualquer que seja o recorte de classe, passem incólumes a essa lógica.

O pressuposto de que a iminência do mercado extermina o

campesinato nos remete àquela velha concepção de que essa classe social seria um

resíduo em vias de extinção, pois se admitirmos que a mesma é parte do

capitalismo, não é possível sentenciá-la ao isolamento das condições produtivas

orquestradas por esse modo de produção.

Esse seria um dos exemplos em que a obliteração de uma classe

social (os camponeses) em função de um elo econômico (a relação com o mercado),

revela um hiato analítico, o qual é questionado por Shanin (1980, p. 59):

Aceitar a marginalização como um dos padrões de mudança camponesa, sob o impacto do capitalismo, é condição para a resolução de mais uma dúvida conceitual. Quando, se acontecer, um camponês deixa de ser camponês, mantendo embora como unidade de produção o estabelecimento rural familiar? 9

Como vimos, em Abramovay, a resposta estaria na metamorfose dos

camponeses em agricultores profissionais10, o que a nosso ver oblitera, num passe

de mágica, uma classe e, por extensão, os embates políticos existentes no interior

do modo capitalista de produção.

Some-se a isso o perigo em interpretar a sociedade partindo de

pressupostos congelados, nos quais a produção do capital é incompatível com a

9 Grifo do Autor. 10 Abramovay, 1990, p. 139.

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lógica de reprodução camponesa. Isso nos permite uma dupla constatação:

primeiro, é desconsiderada a constante readequação capitalista no sentido de fazer

manter as condições da reprodução ampliada. Conforme já salientamos, peca-se

pelo equívoco de reduzir a lógica capitalista a um jogo de forças de composição

binária, ou seja, capital e trabalho, simplificação que o próprio Lefebvre11 considera

um empobrecimento caro aos prepostos de Marx. Shanin assim se pronuncia a

respeito (1980, p. 58):

(...) sob certas condições, os camponeses não se dissolvem, nem se diferenciam em empresários capitalistas e trabalhadores assalariados e tampouco são simplesmente pauperizados. Eles persistem, ao mesmo tempo que se transformam e se vinculam gradualmente à economia capitalista circundante, que pervade suas vidas. Os camponeses continuam a existir, correspondendo a unidades agrícolas diferentes, em estrutura e tamanho, do clássico estabelecimento rural familiar camponês.

Por outro lado, a falta de definição do que seria acumulação

monetária dentro das unidades camponesas se encarrega de fomentar a confusão:

ao se estabelecer como critério metodológico a homogeneidade, elegendo a primazia

absoluta das relações capitalistas, perde-se de vista a essência das diferenças.

Conforme demonstrou exaustivamente Chayanov (1974), a acumulação monetária

dentro das unidades camponesas tem por critério a garantia da satisfação das

necessidades de consumo da família, através do princípio de equilíbrio entre

trabalho e consumo às expensas da diminuição da auto-exploração.

Não se quer, com isso, corroborar com a idéia recorrente em

Abramovay de que os camponeses são avessos ao trabalho exaustivo12. Ao

contrário, isso explicita uma lógica diametralmente oposta à capitalista, visto que

na última, a acumulação de capital segue o princípio do investimento associado à

expansão do trabalho assalariado; em outras palavras, aumento da exploração da

força de trabalho, coroando o processo da reprodução ampliada.

Outrossim, é incontestável o papel estratégico da agricultura dentro

do capitalismo contemporâneo. É o próprio autor (1990, p. 271) quem acena para a

monitoração exaustiva dos Estados Nacionais na atividade, através de pesados

subsídios, com o fim de garantir renda aos produtores e, por extensão, oferta de

alimentos a preços que permitam a supremacia econômica da burguesia industrial:

(...) a agricultura tem um papel decisivo no processo de rebaixamento permanente do custo de reprodução da força de

11 Apud Martins, 2000, p. 112. 12 Cf. Abramovay, 1990, p.95.

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trabalho. Neste sentido, o mecanismo de preços permite uma verdadeira transferência intersetorial de renda, onde se beneficiam não só os setores que lidam diretamente com a compra de produtos agrícolas e a venda de insumos e máquinas, mas o conjunto do sistema econômico, pelo caminho da redução da parte do orçamento das famílias dedicadas diretamente à alimentação.

Contudo, analisemos algumas derivações desses pressupostos:

O peso da produção familiar na agricultura faz dela hoje um setor único no capitalismo contemporâneo: não há atividade econômica em que o trabalho e a gestão estruturem-se tão fortemente em torno de vínculos de parentesco e onde a participação de mão-de-obra não contratada seja tão importante [...] Todas as comparações a respeito de rendas agrícolas e de setores da economia urbana mostram, com efeito que, nos países capitalistas avançados, os agricultores freqüentemente não alcançam sequer o correspondente ao salário de um trabalhador com um mínimo de qualificação [...] Em 1960 estavam [...] abaixo deste referencial em 43,5%. [...] Esta aliás é a base objetiva da capacidade que tem o Estado, em vários países europeus [...] de estabelecer o nível de preços agrícolas tomando por referência uma renda onde os agricultores avaliam sua atividade não a partir do custo de oportunidade do capital, mas sim do custo de oportunidade do trabalho. (ABRAMOVAY, 1990, p, 251- 272). 13

Na trilha de tantos outros autores que investiram na supressão

conceitual, Abramovay explicita nessa passagem a dificuldade de cotejar os

pressupostos teóricos com as evidências destacadas. Como já o demonstramos, a

explicação da sujeição desses que ele chama de agricultores profissionais a uma

atividade cujo rendimento chega praticamente à metade daquela dos trabalhadores

assalariados mais desqualificados, não pode se pautar em parâmetros capitalistas,

por denunciar a singular lógica camponesa.

Parece-nos um equívoco preconizar a diluição do código camponês

no entrelaçamento com o mercado, quando o mesmo não incorporou padrões

proletários, tampouco capitalistas, conforme destacado na transcrição anterior.

Assim, há que se considerar que somente a lógica sui generis do campesinato é que

pode lançar luzes para a devida compreensão dessas questões.

Considerando que a renda se reveste do resultado estrito do

trabalho camponês, é necessário considerá-la dentro da especificidade de classe,

pois como nos lembra Chayanov (1974, p. 276), a renda é um fenômeno real,

econômico e social, criado a partir de uma gama de relações sociais, que surgiram a

partir das bases da produção agrícola.

13 Grifo nosso.

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(...) podemos admitir que los factores generadores de renta que en la unidade de explotación capitalista dan surgimiento a los fenomenos de la renta economica de la tierra como uma forma particular de ganancia extraordinaria, en las unidades de explotacion domestica y familiar provocan un alza del nivel de consumo, un aumento en la capacidad de acumular capital y un relajamento de la intensida en la fuerza de trabajo.

Portanto, no caso em questão, os ganhos realizam-se sob a forma de

rendimentos brutos divididos entre acumulação monetária e satisfação das

necessidades de consumo da família, tornando muito complexa a estimativa da

renda da terra, mas que em última instância não se traduz em aumento ou

diminuição de ganhos monetários, mas no aumento da produtividade do trabalho, o

qual se reflete no nível de consumo e bem estar da família.

É isso que nos obriga inclusive a rever os indicadores tradicionais

dos rendimentos camponeses, já que não foi suficientemente aclarado qual o

patamar definidor do nível de miserabilidade relacionado a essa classe.

Onde entra a segurança alimentar da família camponesa?

Entendemos que igualar essa classe aos demais trabalhadores, que

obrigatoriamente adquirem tudo o que consomem no mercado, camufla um ganho

efetivo que não tem condições de ser computado.

Além disso, não é possível descartar a alimentação da cesta de

consumo de uma população empobrecida, como o é a brasileira, ao se perder de

vista que os camponeses têm uma produção voltada para o autoconsumo, variável

de acordo com sua inserção no circuito produtivo.

Questões... para as quais não temos respostas acabadas. É por isso

que concordamos que os conceitos somente são válidos desde que

representem/expliquem aspectos do real. Outrossim, o permanente movimento da

realidade não permite o seu congelamento, obrigando a uma interminável

reconstrução e, quiçá, seu descarte, sempre que a realidade o exigir e a capacidade

intelectual permitir, pelas próprias limitações com que nos deparamos no esforço de

interpretar a realidade.

Enfim, concordamos que a desconceituação pode ser um caminho

válido, desde que não floresça o hiato conceitual. É certo que esse muito mais

favorece a manutenção do status quo do que auxilia o avanço do conhecimento,

entendendo este não como produto neutro de uma sociedade de classes, mas

resultado concreto do trabalho intelectual voltado à humanização da sociedade.

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1.2. Debates e embates na Geografia Agrária Brasileira

Após essa reflexão acerca das questões conceituais mais amplas

que envolvem o campesinato, julgamos conveniente apontar, em linhas gerais,

como a Geografia Agrária se inscreve nesse debate.

Porém, ao fazê-lo, somos impelidos à retomada dos pressupostos

filosóficos que têm norteado esse campo do conhecimento geográfico, o que nos

remete a uma breve explanação dos fundamentos próprios do conhecimento

geográfico e dos embates travados no interior dessa ciência.

Ao nos remetermos à História do Pensamento Geográfico, é

necessário situar a sua origem a partir de um enfrentamento de cunho geopolítico

travado no século XIX por duas nações emergentes, a França e a Alemanha.

O embate supostamente fundamental da ciência geográfica

nascente, qual seja, os pressupostos deterministas, de um lado, e os possibilistas,

de outro, reforçou a idéia de que essa ciência se constituiu, exclusivamente, sob o

signo do positivismo, como se estivesse circunscrita às evidências empírico-

descritivas da paisagem.

Entretanto, essa idéia revela-se mais uma simplificação que, entre

tantas outras, visa a ocultar a pluralidade filosófica existente no interior do

processo de constituição do pensamento geográfico.

Segundo Oliveira (1994, p. 25-26), no século XIX, momento em que

se registra a gênese da Geografia Moderna, houve importante debate travado no

interior das Ciências Humanas entre materialismo e idealismo, debate este que

provocou na Geografia uma fissura teórico-metodológica, face à incorporação de

fundamentos filosóficos tão opostos como o são o positivismo, o historicismo e a

dialética.

Com o ocultamento dessas diferenças estruturais presentes nos

alicerces da Geografia, em essência, dificultou-se a propagação dos fundamentos

filosóficos do materialismo e da dialética, somente retomados décadas depois.

Isso de certo modo revela a falácia do ideário da liberdade,

igualdade e fraternidade empunhado pela burguesia, desde o princípio ocupada em

implantar o consenso, inclusive dentro da ciência. Essa é a razão pela qual os

estudiosos de orientação materialista e suas respectivas obras foram ignorados,

dificultando a consolidação dessa matriz filosófica. Assim, não é por acaso que a

produção geográfica está impregnada das premissas do positivismo, entre as quais

Oliveira (1994) destaca:

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- a sociedade seria regida por leis naturais, sobre as quais não se tem controle, o

que implicitamente sugere não ser a mesma dotada de capacidade de interferir

nos rumos dos processos sociais;

- supondo-se legítima a naturalização da sociedade, a utilização dos

procedimentos e métodos empregados para a interpretação dos fenômenos da

natureza não comprometeria o entendimento dos fenômenos sociais, daí ser

desnecessário métodos próprios;

- os cientistas deveriam limitar-se a atuar de forma objetiva e neutra, o que

implica em ignorar os condicionantes sociopolíticos decorrentes de sua inserção

em uma sociedade de classes, logo, com interesses divergentes.

Não custa lembrar que embora o positivismo tenha surgido como utopia crítico-revolucionária da burguesia antiabsolutista tornou-se ainda no século XIX, uma ideologia conservadora identificada com a ordem industrial/burguesa estabelecida. Este postulado de neutralidade valorativa das ciências humanas conduziu, inevitavelmente, à negação, ou, a que os seguidores ignorassem o condicionamento histórico-social do conhecimento. Por outro lado, reforçou sua base doutrinária na objetividade/neutralidade científico-social. (OLIVEIRA, 1994, p. 26).

Portanto, essas questões explicam as razões pelas quais ganhou

visibilidade a Geografia assentada em bases positivistas, ocasionando a depreciação

ou banimento de importantes estudiosos e suas respectivas obras, como é o caso de

Reclus e Kropotkin.

Desse legado não se libertou completamente a ciência geográfica do

século XX, em particular a Geografia Brasileira, pois a posição do Brasil no

contexto do desenvolvimento capitalista gerou um campo fértil para o conhecimento

utilitário, sendo o planejamento um instrumento privilegiado de apropriação dos

recursos e gestão do território.

Nessa conjuntura, importante parcela da produção geográfica se fez

a partir dos interesses oficiais de planejamento; dito de outra forma, parte

importante da produção geográfica esteve atrelada às conveniências da acumulação

capitalista, portanto, em desacordo com as principais demandas socioambientais.

Considerando que esse momento coincide com a implantação de

vários Departamentos e Cursos de Geografia, instala-se um falso debate entre a

corrente denominada Geografia Tradicional e a corrente denominada Nova

Geografia, já que, em essência, ambas se mantêm presas às mesmas concepções de

mundo. A primeira, no que refere-se ao positivismo, por estar baseada no

empirismo e na descrição, e a segunda, por estar vinculada ao neopositivismo,

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destacando-se pela abordagem lógico-quantitativista dos fenômenos geográficos.

Segundo Fernandes (1998, p. 94)

[...] a “Geografia Tradicional” [...] a partir do trabalho empírico-descritivo estudava a paisagem, “ignorando” a realidade. Com base nas observações e em pressupostos historicistas chegavam a conclusões positivas. Presos a uma concepção idealista, privilegiavam o objeto, simbolizando-o através de estudos de diferentes lugares, organizando as partes que comporiam o todo. A Nova Geografia, [por sua vez], tem como fundamentação filosófica o neopositivismo, analisando uma realidade construída a partir de pressupostos lógicos dos modelos matemático-estatísticos. Presa a uma concepção ideal, previamente estruturada da realidade objetiva, privilegia o método e sacrifica o objeto na sua essência, descaracterizando a realidade.14

Essa última encontrou terreno fértil não só em várias universidades

públicas, mas nos próprios órgãos de fomento de pesquisa, nos quais seus

representantes puderam interferir nos rumos da produção geográfica brasileira, ao

direcionar grande parte dos recursos aos projetos afinados a tais pressupostos.

Do ponto de vista da Geografia Agrária, essa vertente manifesta-se

em trabalhos marcados por uma abordagem preocupada com a aplicabilidade de

sistemas e modelos matemático-estatísticos, que não comportam as relações

envolvidas nos processos produtivos.

Nessa concepção, a priori, a realidade agrária é vista a partir de uma tipologia, em que as relações sociais não são consideradas. O que importa é a classificação de áreas através de tipogramas. Os processos de transformação da agricultura são descritos em uma visão técnico-linear. (FERNANDES, 1998, p. 103).

Não por acaso, uma das melhores expressões dessa produção

geográfica sacrifica, desde o título, o Agrário em favor do Agrícola15, o que nos

remete a Valverde (1964), que décadas atrás já vislumbrara as limitações dessa

denominação

Êste têrmo (sic) é, portanto, mais restrito; rigorosamente, a expressão Geografia Agrícola deveria englobar apenas o estudo da distribuição dos produtos cultivados e de suas condições de meio, sem envolver aspectos sociais, como regime de propriedade, relações de produção [...].

Esses apontamentos já sugerem que nem todos se renderam aos

apelos da ciência hermética, produzida a partir de bases materiais privilegiadas

14 Grifo do Autor. 15 Cf. Diniz, 1984.

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que, nos períodos de redefinição efetiva das estratégias de acumulação, foram ainda

mais explícitas.

Assim, toma vulto uma produção intelectual que não se presta aos

desígnios estritos da acumulação capitalista, culminando em profundos embates no

interior da academia. Contudo, foram eles que tornaram a geografia brasileira mais

rica, mais próxima dos desafios de seu tempo.

No interior da Geografia Agrária, esse movimento adquire

visibilidade com trabalhos como os de Manuel Correia de Andrade e do próprio

Orlando Valverde. Adentram, pois, a trilha dos embates inicialmente travados na

academia francesa, quando importantes geógrafos, entre os quais Yves Lacoste,

Jean Tricart, Pierre George etc, empreendem memorável esforço no sentido de

recuperar a dialética como fundamento de sua produção científica.

No entanto, não foram poucas as dificuldades com as quais se

debateram esses geógrafos para se livrarem da influência idealista, produto do

estágio da produção científica de seu tempo. Ao destacar a importância da obra

“Geografia Agrária do Brasil”, Oliveira remete-nos a essa perspectiva:

Valverde vivia, quando escreveu esse livro, a contradição intelectual daquela época, entre uma visão historicista da Geografia enquanto ciência, e a sua firme posição política de compromisso com a transformação da sociedade. (OLIVEIRA , 1994, p. 27).

Assim, devemos considerar que esses trabalhos derivam de um

contexto em que o próprio sentido dos estudos geográficos era outro, visto que o

país se encontrava em uma transição entre o agrícola e o industrial, entre o urbano

e o rural.

Enquanto se manteve sob a hegemonia da economia

agroexportadora, o campo constituiu-se na principal temática dos estudos

geográficos. Esses estudos, conforme já foi salientado, moldaram-se a partir de

análises centradas na distribuição geográfica da produção agrícola e sua

significação econômica.

Todavia, o fato de estarem calcados nos fundamentos do

historicismo clássico, de viés idealista, não os torna menos importantes, pela sua

contribuição fundamental para a consolidação da geografia brasileira. Diríamos que

representam as bases de implantação de uma “escola geográfica” no país.

A presença de inúmeros geógrafos europeus, sobretudo franceses,

na formação dos jovens geógrafos impôs-lhes uma desafiadora tarefa: construir

uma geografia agrária brasileira. Com isso, foi necessário romper com alguns tabus

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inerentes à visão eurocêntrica dos trópicos, empreitada vitoriosa, de certo modo em

virtude da troca de experiências oportunizada pela radicação temporária de alguns

deles no Brasil.

Dessa fase da Geografia Agrária brasileira saem os discípulos que se

tornarão os mestres da fase posterior. A Geografia Agrária derivada dos

fundamentos filosóficos do materialismo dialético. Ao incorporarem em suas

análises os processos histórico-sociais relacionados ao campo, geógrafos como

Orlando Valverde e Manuel Correia de Andrade revelaram já estar sob a influência

da dialética. Com isso, colocaram-se à frente de seus contemporâneos, tornando-se

referência nos embates posteriores que culminaram no fortalecimento do chamado

movimento da Geografia Crítica.

Considerando a seqüência linear da Geografia Agrária, esses

geógrafos farão escola, contribuindo com a formação das principais vozes

destoantes do período de domínio da Geografia Quantitativa.

Aos sucessivos golpes no prestígio do paradigma pragmático,

somar-se-á, no início dos anos setenta, a produção de cunho materialista dialético,

destacando-se Ariovaldo Umbelino de Oliveira, cuja tese de Doutorado inaugura

dentro da Geografia Agrária a incorporação meticulosa dos conceitos básicos dessa

matriz filosófica.

Portanto, esse é o momento em que as questões subjacentes aos

pressupostos teórico-metodológicos da Geografia Quantitativa não conseguem mais

se impor sob o signo do rigor matemático-estatístico.

Reunidos em torno de concepções filosóficas e políticas comuns,

convictos de que o paradigma idealista dominante não investira a Geografia de um

instrumental teórico-metodológico adequado à análise e interpretação geográfica

dos processos e fenômenos de seu tempo, parte dos Geógrafos se insubordinam.

Toda essa pulsação culmina nos acalorados debates do final dos

anos setenta, sendo que, no Encontro Nacional de Geógrafos de 1978, as profundas

fissuras teórico-metodológicas tornam-se explícitas.

Esse processo de renovação se alimentará, no campo da Geografia

Agrária, de importantes obras de Oliveira, centradas na concepção de que no campo

o desenvolvimento contraditório do capitalismo se manifesta na territorialização do

capital, de um lado, e na monopolização do território pelo capital, de outro.

Essa elaboração teórico-metodológica se constitui em contraponto

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ímpar ao paradigma da modernização do campo que, renascida sob as bases

filosóficas da Geografia Quantitativa, privilegiará as condicionantes técnicas da

produção agrícola.

Em suma, na atualidade, velhos embates manifestam-se em novos

debates dentro da Geografia Agrária. Isso porque as distintas matrizes filosóficas se

materializam em novas escolas, cujo arcabouço conceitual acena para as profundas

diferenças existentes.

Do ponto de vista da proposição desse trabalho, destacamos a

oposição que consideramos fundamental: agricultores familiares ou camponeses?

Conforme destacamos anteriormente, a terminologia agricultor

familiar constrói-se em substituição ao conceito de camponês. Sua utilização

implica no entendimento de que o progresso técnico é o elemento fundante dos

processos em desenvolvimento no campo. É por isso que o mesmo é refratário ao

conteúdo de classe, sendo, em suma, o desdobramento ulterior de um princípio

basilar do positivismo, o conservadorismo.

Entendemos que isso revela uma rejeição a Marx, que identificou na

tríade capitalistas, proletários e proprietários de terra, os fundamentos para o

entendimento das relações de produção dentro do capitalismo. Excluindo-se a

classe, diluem-se os sujeitos e nega-se a contradição que, a rigor, torna os homens

e mulheres instrumentos passivos do capital, essa abstração que encobre as

relações sociais subjacentes e, por conseguinte, os projetos políticos que privilegiam

uns e excluem outros.

Por tudo isso, cremos ter explicitado a pertinência de recorrermos

ao conceito de camponês para analisarmos essa classe sui generis que,

contraditoriamente, se reproduz no campo. Como um elemento de dentro do

capitalismo, esses sujeitos seguem, incorporando técnicas, produzindo

mercadorias, sem contudo tornarem-se capitalistas face o controle dos meios de

produção; sem tornarem-se proletários, ainda que o trabalho familiar seja o

fundamento de sua reprodução.

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CAPÍTULO 2

O NORTE DO PARANÁ NO CONTEXTO DA QUESTÃO AGRÁRIA

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2. O NORTE DO PARANÁ NO CONTEXTO DA QUESTÃO AGRÁRIA

Ao repousar nosso recorte geográfico sobre o Norte Novo de

Londrina (Figura 1), divisão adotada pelo IBGE em função da própria gestão do

território anteriormente imprimida pela Companhia de Terras Norte do Paraná,

julgamos pertinente encaminhar nossa análise a partir da conjuntura que, por

razões a serem destacadas, motivou a ação dessa empresa na região em questão.

Outrossim, esta análise não pode prescindir da consideração de

alguns elementos de ordem estrutural, sem os quais a abordagem proposta se

tornaria desconexa, visto que essas duas dimensões se intercruzam, sobretudo em

determinadas ocasiões.

Dessa feita, partimos do pressuposto de que a questão agrária norte

paranaense é a expressão de um processo tanto único quanto abrangente, seja do

ponto de vista espacial ou temporal, cujo esforço analítico busca uma conciliação

entre essas duas esferas, até mesmo para que possamos apreendê-lo em suas

singularidades e generalidades.

Do ponto de vista temporal, concordamos que a questão agrária é

mais ampla do que muitas vezes se quer reconhecer, visto articular um conjunto de

forças em que a construção do território capitalista do Brasil vem assumindo

feições de acordo com as conveniências que se fazem hegemônicas ao longo do

tempo, as quais podem ser genericamente apreendidas em três momentos decisivos.

No primeiro, situamos a gênese da questão agrária brasileira, a qual

emerge com a colonização européia. Esse é o momento em que as tradicionais

formas de gestão do território, com toda a sua pluralidade, sofrem violento assalto,

sendo sistematicamente banidas em favor de um controle exógeno e centralizado.

Como é amplamente reconhecido, esse período coincide com a expansão

mercantilista, ensaiando as profundas transformações oriundas do modo capitalista

de produção, em particular na sua expressão colonialista.

Guardadas as variações decorrentes de uma combinação de fatores

tais como situação sociopolítica e projetos diferenciados das nações colonizadoras,

bem como a localização geográfica e recursos naturais das áreas capturadas, o

colonialismo propiciou uma transferência de riquezas intercontinentais até então

sem precedente, situando, desde o princípio, nascentes Estados Nacionais europeus

em privilegiada posição no mecanismo de trocas desiguais.

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O Brasil, face à inserção nessa ordem como Colônia de Exploração1, organizará

todas as atividades produtivas em função da acumulação em favor da metrópole,

sendo a terra apenas um instrumento intermediário a assegurar esse fim, uma vez

que, nesse período, o fundamento da economia está na escravidão.

Conforme assevera Martins (1995), a forma lucrativa com que se

revestiu o tráfico de escravos vincula a viabilidade da economia agroexportadora à

concentração fundiária, por duas razões: a dimensão do “negócio” e a necessidade

de obliterar qualquer experiência que possa implicar em concorrência, como seria o

caso da produção baseada no trabalho livre, dado o alto custo do trabalhador

cativo.

Por representar renda capitalizada, os escravos se constituem no

bem de maior valor dos senhores, o que não dispensa a necessidade de controle

sobre a terra, o real meio de produção. Com isso, ela se mantém refém desse grupo,

cujo prestígio já lhe assegurara a concessão das cartas de sesmaria2, ao mesmo

tempo que esse status lhe outorga poderes inalienáveis na esfera político-

administrativa.

Nasce assim a versão promíscua entre esferas públicas e o poder

privado que emana da terra, razão pela qual as políticas invariavelmente velarão

pela manutenção da concentração, ainda que, à revelia, se construa um modelo

alternativo de exploração agrícola, baseado no trabalho familiar e nas atividades

voltadas para o autoconsumo com produção de excedentes para o mercado.

Seus agentes representam o campesinato em formação, já que na

referida estrutura não estão inseridos, a não ser como “intrusos”, pois estão

sujeitos à permanente migração, sempre que suas posses forem alcançadas por

uma carta de concessão.

Isso demonstra o descompasso de forças na composição do pacto

social brasileiro; enfim, sinaliza os rumos que tomaria a questão agrária,

considerando aquilo que Prado Júnior (1986, p. 81) classifica de ausência de

descontinuidades históricas, pois “a linha mestra e ininterrupta de acontecimentos

se sucederam em ordem rigorosa e dirigida sempre numa determinada orientação.”

Assim se passaram cerca de três séculos, pois a constituição

geográfica do país, o teor do povoamento e a natureza das relações econômicas

travadas tanto internamente quanto na esfera internacional impuseram um ritmo

1 Cf. Caio Prado Júnior, 1986. 2 A concessão de terras, via cartas de sesmaria, era privilégio exclusivo de homens brancos, em especial fidalgos diletos da Coroa Portuguesa.

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lento à expansão da fronteira, bem como marcado pela assimetria na formação dos

blocos oligárquicos. A partir daí, questões emergentes modificarão estruturalmente

a situação agrária brasileira, com destaque para a resolução de 17 de julho de

1822, a qual extingue o regime de sesmarias.

A Constituição do Império (25 de março de 1824), no artigo 179 do

Título VI, o qual trata das disposições gerais e garantias dos direitos civis e políticos

dos cidadãos, prevê no item 22:

É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado no valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização.3

Constatamos, portanto, que o livre acesso à terra, representado pelo

fim da regulamentação até então existente, coincide com os primeiros sinais de

decadência do regime escravista, decorrente tanto do empenho britânico em

expandir mercados consumidores em suas áreas de influência quanto da crescente

recusa dos escravos ao cativeiro.

Dessa maneira, a corrida pela terra da liberdade torna-se

incompatível com os interesses dos senhores de escravos, cuja ciência quanto à

inevitabilidade da transformação do regime de trabalho, conduz à busca deliberada

de alternativas de manutenção do status quo. Estaríamos, pois, diante do momento

de reafirmação da questão agrária brasileira.

Esse é o contexto que fomenta a Lei de Terras (1850) a qual, apesar

das dificuldades de regulamentação e implementação, altera a composição de

classes e sua respectiva força política no cenário nacional e, por outro lado,

representa a consolidação da questão agrária, pois o pressuposto da

mercantilização implica em uma postura ainda mais conservadora e excludente que

o acesso precário, via posse da terra, permitira até então.

Segundo Costa (1987), a Lei de Terras é gerada dentro de um

conflito entre duas concepções de propriedade e política de terras que persiste do

século XVI ao século XX: de terra da Coroa à terra pública; de doação por

recompensa à doação para exploração econômica; de signo de prestígio social a

signo de poder econômico. Desse modo, antes da Lei de Terras, o poder econômico

deriva do prestígio social, pois é o último que assegura a concessão de terras. A

3 apud Costa, 1977, p. 38-39.

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partir de 1850, o prestígio social vai derivar do poder econômico, visto que o poder

de compra passa a mediar o acesso à propriedade.

Consideramos ser esse o momento de definição da questão agrária,

tal qual a percebemos hoje, pois a referida Lei é portadora de uma dada concepção

de controle e gestão do país que, em última instância, apresenta desdobramentos

nas diversas esferas da sociedade, seja política, jurídica ou econômica.

Ao preconizar a transformação da terra em mercadoria, sendo

artificialmente elevados seus preços, busca-se não apenas ordenar a apropriação

fundiária a partir de uma orientação concentracionista, mas sobretudo persegue-se

a subjugação da força de trabalho em favor de uma classe numericamente

inexpressiva, mas politicamente hegemônica.

Com esse projeto, o Brasil se vê mergulhado numa teia de relações

em que são profundamente cerceadas as possibilidades de desenvolvimento efetivo,

já que grande parte da população será atirada em uma situação limite entre

inclusão precária, via venda da força de trabalho e exclusão absoluta, sempre que

não houver empregos disponíveis.

Os resultados dessa orientação estão aí, contrastando com todos os

países que viram na democratização da propriedade fundiária a chave do

desenvolvimento e inclusão social.

A fim de exemplificar tal situação, recorremos ao caso norte

americano, pela coincidência de passado colonial e promulgação de Lei

disciplinando o acesso à terra ao mesmo tempo que o Brasil. No entanto, trata-se

de uma Lei com teor completamente diverso: o Homeasted Act assegurou terra e

condições mínimas de permanência a todos que desejassem se estabelecer como

produtores autônomos.

Assim, é indiscutível que tanto no Brasil quanto nos E.U.A. a

mudança nas formas reguladoras de acesso à posse/propriedade da terra

representa uma mudança na concepção de trabalho.

Conforme apontamos, no Brasil, ela foi mediada pelo princípio de

que o poder monopolístico da oligarquia agrária deveria manter-se na base do

modelo econômico, impondo à maioria a venda barata da força de trabalho,

contrastando assim com a opção americana, em que a partilha fundiária foi

utilizada como mecanismo eficaz de democratização, através da inclusão de

ponderáveis parcelas da sociedade ao direito de propriedade; em suma, gerando

ampla distribuição da riqueza, um dos pilares do seu crescimento econômico

posterior.

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É por essa razão que a questão agrária não está circunscrita apenas

à produção agrícola, mas também aos impactos que se acham inscritos nas

diversas dimensões organizativas da sociedade. Ao preconizar um regime de coerção

abusiva sobre os trabalhadores, vinculando suas possibilidades de reprodução às

conveniências de um empreendimento instável, primordialmente voltado à

satisfação de necessidades externas ao povo brasileiro, o modelo agro-exportador

lança seus desagregadores tentáculos às demais esferas produtivas, que o têm

reproduzido, seja pelo fato de haver oferta de trabalho em excesso, seja pela cultura

espoliativa disseminada no circuito patronal, em muitos casos camuflada por

roupagens “modernas”.

Paradoxalmente, esse mesmo regime fundiário implica na

possibilidade de consolidação da classe camponesa, já que o estatuto jurídico da

propriedade elimina a hierarquia social institucionalmente implantada. No entanto,

isso não elimina os efeitos perversos da supremacia oligárquica, antes os

aprofunda, tornando a sobrevivência um permanente desafio, ao qual a classe

camponesa tem respondido com resistência.

O desdobramento desses atos jurídicos, a nosso ver, explicita a

redefinição da questão agrária brasileira. Ao definirmos uma divisão em três

momentos, levamos em conta que tanto no período de emergência quanto no de

reafirmação anteriormente apresentados, foram os concessionários e ou

proprietários os agentes por excelência das determinações que dimensionaram a

questão agrária brasileira.

Por outro lado, nas primeiras décadas do século XX, novos agentes

entram em cena, alterando a composição do pacto político. Entretanto, a origem da

burguesia urbano-industrial não destoa, no essencial, daquela anteriormente

descrita, já que no geral seus representantes são oriundos diretos do modelo

agroexportador, especialmente do café, cujo cultivo propiciou um nível de

acumulação de capital capaz de alavancar o processo de industrialização.

Ainda assim, a cisão se explicita, pois o aparelho de Estado é

acionado em prol de interesses emergentes, passando a oligarquia a ocupar a

posição que Martins (1994) denomina de bastidores, atuando no plano político

sobretudo no zelo dos privilégios anteriormente adquiridos.

Em função dessa conjugação de forças no pacto político, são

asseguradas as condições de reprodução anteriormente delineadas, mas não se

consegue reprimir a recusa camponesa aos meios de extorsão representados pelo

monopólio da terra.

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É essa conjuntura que explicitará a extraordinária capacidade que

classes aparentemente ambíguas possuem em alinhar-se nos momentos de

transformação iminente, fato que culmina no golpe militar, cujos protagonistas irão

selar um novo pacto agrário, diferente dos demais por implicar em uma aliança sui

generis, a qual destoa de qualquer diretriz contemporânea, já que consegue unir

proprietários fundiários e capitalistas.

No que se refere à composição das forças, a constituição dessa

aliança denota uma impregnação do conservadorismo no modelo de

industrialização brasileiro, pois ao aliar-se ao bloco agrário, a burguesia nacional

abdicou de um projeto capitalista strictu sensu.

Outrossim, a referida aliança sugere a utilização da estratégia de

cooptação pelo bloco agrário, já que a melhor maneira de resguardá-lo seria somar

forças com o setor financeiro e industrial. Esse fato foi consumado na régia oferta

creditícia via subsídios, o que atraiu massivo interesse de grandes empresas, que

viram nessa política uma forma fácil de acumular, sem necessariamente investir no

setor produtivo agrícola. Isso se comprova nos pífios resultados da política de

incentivos fiscais, eivada de corrupção e insucessos.

Assim se consolida a questão agrária brasileira, cuja fórmula de

acumulação privilegia a extração da mais-valia social, via monopolização da

propriedade e conseqüente potencialização da renda da terra. É essa mesma

concentração que irá atuar no encolhimento do poder de barganha dos

trabalhadores, nas esferas de representação dos mesmos, no tamanho do mercado

interno, não apenas no sentido econômico, mas no nível de privação que o mesmo

implica.

Genericamente, esse é o quadro agrário brasileiro, o que não

elimina a necessidade de se analisarem as especificidades regionais, já que o

território se define no conjunto de variáveis derivadas das particularidades

geográficas e sociopolíticas, as quais se acham interligadas ao contexto mais geral.

Tendo esse contexto como pano de fundo, é possível apreender seus

desdobramentos na escala estadual. É o transbordamento da atividade cafeeira que

insere o Paraná no circuito produtivo/mercantil, notadamente a sua porção Norte,

cuja trilha percorre as áreas geograficamente privilegiadas da Região Sudeste até o

ponto de exaustão, deixando atrás de si um rastro de depredação socioambiental,

sempre compensado pela abundância de terras e braços. Ainda assim, essa

atividade remodela, mais do que qualquer outra, parcelas do território, pela

dinamização que o negócio imprimiu à economia nos dois últimos séculos.

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Dotada de condições naturais privilegiadas, face à fertilidade do solo

e proximidade dos canais de escoamento da produção, a região será alvo de cobiça

dos mercadores de terras desde a valorização prévia ativada pela expansão cafeeira.

Nesse aspecto, aqui basicamente se repete o padrão nacional, em

que, na primeira fase de ocupação, os indígenas são massacrados e expulsos,

empurrados pela frente de expansão, cujo papel preponderante é a “limpeza”4 da

área para a expansão capitalista.

Considerando a escala macro, já que a proclamação da República

implicou na transferência de todas as terras devolutas para os Estados (art. 64 da

Constituição Federal de 1891), o Paraná caracterizou-se por políticas e projetos

dúbios quanto à ordenação fundiária, sendo que a Lei 601 de 1850 somente foi

regulamentada através da Lei Estadual n. 68, de 20 de dezembro de 1892.

Conforme já salientamos, somente na composição das forças políticas de cada

momento é que se poderá encontrar a explicação para esse compasso de espera.

Segundo Costa (1977, p. 29), a primeira carta de sesmaria do atual

território paranaense foi concedida em 01/06/1614 na região de Paranaguá. Devido

à descoberta de ouro de lavagem nesse local, houve crescente ocupação nesses

moldes. Entretanto, o esgotamento das reservas auríferas e o deslocamento do eixo

minerador para Cuiabá e Minas Gerais transformaram essa região em zona

criatória, abastecedouro de carne das novas áreas mineradoras e, mais tarde, em

zona de trânsito de mercadorias para as colônias recém instaladas no Sul, bem

como de tropas militares movimentadas pelos conflitos fronteiriços.

Não obstante, a questão agrária no Paraná se explicita

imediatamente após sua transformação em Província, quando do desmembramento

da Província de São Paulo. Historicamente dominado por enormes latifúndios,

construídos às expensas do regulamento sesmarial, os supostos concessionários

valeram-se, por longo período, do interesse por arrendamento dessas áreas em

função da demanda por erva mate, espécie nativa e abundante.

Esse tipo de monopólio, notadamente calcado em irregularidades,

passa a incomodar o poder público estabelecido, além de causar prejuízos na

arrecadação de tributos. É o que motiva esforços no sentido de colonizar o Estado.

Entretanto

[...] o problema não era somente vender as terras. Era necessário incentivar os posseiros a providenciar a medição e a legitimação das

4 Limpeza no sentido de assegurar que não haja elementos humanos capazes de se tornarem obstáculos para a expansão capitalista.

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terras. O prazo para a entrada de requerimentos na Secretaria de Terras para medição estava sendo sempre prorrogado, principalmente devido aos problemas que os posseiros enfrentavam, fruto da crise geral pela qual passava o país em 1900. O prazo das legitimações e revalidações de terras seria sucessivamente prorrogado. (COSTA, 1977, p. 75).

O desencontro político-administrativo, no que se refere à efetiva

partilha fundiária no Paraná, reflete o momento mais amplo de redefinição da

questão agrária, através do qual a mercantilização resulta em vantagens àqueles

que se propõem a especular com terras.

Com a justificativa de cofres vazios, o Estado abdicou, desde a

primeira República, de atuar incisivamente na ordenação fundiária, delegando esse

papel a empresas de colonização e construção de estradas, bem como a

particulares, através da concessão da maior parte do patrimônio devoluto.

Tornara-se uma indústria lucrativa e tranqüilamente exercida a apropriação indébita das terras pertencentes ao patrimônio do Estado, seja por processos violentos de invasão, seja mansamente, por meio de papéis ardilosamente arranjados, com aparência de legalidade, favorecidos, às vezes, pela complacência de altas autoridades administrativas.(RIBAS, apud COSTA, 1977, p. 92).

Daí os percalços das políticas de povoamento, uma vez que a

ocupação ficara condicionada ao fator primordial que movia os colonizadores

privados: a vantagem econômica nas transações com terras. Esse fato implicou no

povoamento tardio, bem como na constituição de enormes latifúndios e pendências

jurídicas, dada a própria conivência dos órgãos que deveriam regulamentar e

fiscalizar as ações dessas empresas privadas.

O desinteresse na comercialização imediata das glebas, a título de

valorização, representou enorme esvaziamento nas possibilidades de progresso que

o vizinho Estado de São Paulo já experimentava, à medida que a fraca densidade

populacional minava a geração de receitas, com reflexos não somente na

capacidade financeira do Estado, mas no próprio dinamismo agrícola e urbano-

industrial.

Por essa razão, após a Revolução de 1930, houve uma mudança na

política estadual de terras, preconizando-se o impedimento à formação de novos

latifúndios. Para tanto, foram revistas as leis existentes, visando à normalização

das concessões e ao gerenciamento das terras devolutas, além das revalidações e

legitimações das posses.5

5 Cf. Costa, 1977, p. 84.

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Como se vê, o esforço no sentido de limitar a ação dos

especuladores coincide com a ascensão do pacto burguês em escala nacional,

momento em que foram definidas algumas medidas no sentido de privilegiar a

regularização das posses, a exemplo do Decreto 800, de 08 de agosto de 1931, que

estabelecia a obrigatoriedade de comprovação de moradia habitual e cultura efetiva

em áreas não superiores a 200 hectares.

Ao mesmo tempo, foram editados decretos que tornaram caducas

várias concessões de glebas em manifestas irregularidades. Entretanto, essas

medidas não passaram de paliativos, já que pouco interferiram nos processos

agrários em andamento, expressos inclusive nos resultados a que chegou o

Departamento de Terras, o qual anunciou, em 1933, que cerca de um terço das

terras do Estado haviam sido apropriadas de modo ilegal.6

Nesse imbróglio, medidas aparentemente paradoxais foram

tomadas, haja vista a promulgação da Lei 46, de 10 de dezembro de 1935,

transcrita por Costa (1977, p. 96), cujo artigo primeiro determina:

Fica o Poder Executivo autorizado a promover a colonização das terras devolutas do Estado, mediante concessão das glebas a emprezas (sic) ou particulares, que assinarão contrato onde se estipularão clausulas garantidoras dos interesses públicos e da fiel execução das condições de concessão.

Essa Lei veio no sentido de postergar a disposição do Estado em

lançar-se em programas oficiais de colonização, fato ocorrido somente com a edição

do Decreto 8.564 de 17 de maio de 1939. A partir de então, estabeleceu-se como

prioridade a colonização oficial nas regiões com desmesurada prática de grilagem,

essas últimas facilitadas pelo grande estoque de terras devolutas e processos de

anulação de concessões.

Com efeito, ao assumir a colonização direta, o Estado se viu na

contingência de reconhecer os benefícios dessa política:

Tal circunstância evidencia, de sobejo, a conveniência do Estado em promover a colonização direta de suas terras, comprovada pelos resultados obtidos[...]. Em contraposição ao sistema de concessões, cuja finalidade única é assegurar proventos materiais aos respectivos concessionários que obtêm as terras ao preço ínfimo e irrisório de 5$000 por hectare, alienando-as por valores elevados e dificultando, dest’arte o povoamento das massas, de vez que são alienadas a pessoas abastadas e não a colonos, prolongando o prazo que lhes é facultado pelos respectivos contratos com sucessivas e reiteradas prorrogações, a fim de obterem lucros vantajosos na transação comercial de simples venda de terras que continuam no

6 Cf. Costa, 1977, p. 90.

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estado primitivo, desabitadas e improdutivas. (RIBAS, apud COSTA, 1977, p. 103-104).

Essa análise se dá no bojo das concepções que atribuem grande

parte dos males no Estado à grilagem e especulação de terras, em face da limitação

administrativa ocasionada por baixa arrecadação tributária que, permanentemente,

dificultavam o empreendimento de medidas de visibilidade política. A transitória

mudança de ventos pode ser apreendida no teor de alguns artigos da Constituição

Estadual de 1947, citada por Costa (1977, p. 108).

Art. 82: Os latifúndios serão progressivamente extintos para condicionar o uso da propriedade ao bem-estar social, por meio de sanções fiscais e outras medidas estabelecidas em lei ordinária.

Art. 84: O Estado promoverá o parcelamento das suas terras devolutas, estabelecendo planos de colonização, doação e venda de lotes e, para isso, assegurará aos posseiros dessas terras, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição de até 25 hectares;

&10 Terão igualmente preferência para aquisição, até 100 hectares, os posseiros de terras devolutas que nelas tiverem cultura efetiva e morada habitual por mais de 10 anos ininterruptos;

&20 O Estado fará cessão gratuita, para fins agrícolas, de um trato de terras de até 25 hectares, a quem o requerer, mediante prova de que não possui outra propriedade, nem recursos financeiros para adquiri-la.7

Contudo, essas medidas previstas se fizeram, em larga escala, letras

mortas, já que o aparelho institucional se manteve capturado por interesses e vícios

latifundistas.

[...] há uma verdadeira liquidação do patrimônio territorial do Estado, em prazo curto, tendo-se convertido aquele setor administrativo em balcão de vendas de terras com o exclusivo interesse e benefício imediato de inúmeros intermediários ligados estritamente ao governo e do qual não compartilham os verdadeiros interessados, os ocupantes das terras, num completo desvirtuamento do verdadeiro objetivo da colonização racional. Uma das mais graves reduções foi a de preços, inexplicavelmente favorecendo alguns privilegiados, que podiam comprar grandes áreas [...] em prejuízo do verdadeiro interessado na colonização – o colono. Dentre as mais graves irregularidades destacavam-se a total desigualdade no encaminhamento do processo e titulação definitiva, a venda irrefreada de requerimentos deferidos, as falhas e omissões nos serviços de medição e demarcação e a entrega de títulos definitivos, com a inobservância do que era preceituado pela Constituição Estadual vigente [...]. Havia uma total desarticulação entre a área vendida e a área disponível, sendo que o Estado vendeu o que não mais possuía, alcançando área superior a 130.000 alqueires de terra a área compromissada pelo governo com os requerentes com prestações pagas e cuja localização se pode dar em qualquer outra parte do País, menos no território Paranaense. (ROCHA NETO, apud COSTA, 1977, p. 128).

7. Constituição do Estado do Paraná de 1947, 1966, p. 36.

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Ao apontarmos os elementos norteadores da questão agrária

nacional, destacando a sua constituição no Estado, elencamos as variáveis mais

gerais que nos permitem compreender seus desdobramentos na região estudada, a

qual manifesta profundos vínculos com a colonização privada, no caso com a

Companhia de Terras Norte do Paraná.

Para entender a ação dessa Companhia, bem como a margem de

manobra existente em seu projeto e ação efetiva em imensa área do Estado, cujas

marcas são indeléveis, não se pode perder de vista o contexto que permitiu tanto

sua constituição quanto a modelação geográfica por ela imprimida.

Nesse sentido, cremos ter indicado o caráter mais geral das políticas

fundiárias do Estado as quais, apesar de fomentarem um tipo específico de

ocupação do patrimônio devoluto, não resultaram em um padrão específico de

povoamento, pela pluralidade geográfica e sociopolítica próprias de um território em

construção.

Assim, há algumas variáveis que, em nosso entendimento, são

responsáveis por essa combinação, expressa nas generalidades em relação à

questão agrária nacional, nas particularidades dentro do caso paranaense e nas

singularidades da área em apreço. Ao nos determos nelas, buscamos corroborar

com o esforço que alguns autores já empreenderam no sentido de desfazer alguns

mitos que envolvem essa região, em razão do papel desempenhado pela Companhia

de Terras.

Isso se faz necessário pelo componente ideológico próprio de uma

postura colonialista, a qual situa a suposta racionalidade e capacidade

empreendedora da referida empresa em um patamar que oculta os conflitos e as

condições de ação com que a mesma se deparou, cujos privilégios não se repetem a

quem os queira.

Cabe lembrar, porém, que o povoamento é anterior à ação da

companhia, sendo a Colônia Militar de Jataí o primeiro núcleo a ser fundado

(1855), seguido dos aldeamentos de São Pedro de Alcântara e São Jerônimo da

Serra. Evidentemente, tais referências são do processo de povoamento recente, já

que essa região era densamente habitada por indígenas, paulatinamente expulsos

ou exterminados com a chegada da frente de expansão e, posteriormente, da frente

pioneira. Atualmente resistem uns poucos núcleos indígenas, bastante

desestruturados em função da violenta aculturação a que foram submetidos.

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Na primeira fase, a ocupação caracterizou-se pelo regime de posse

ativado pelo fluxo de mineiros que utilizavam esse traçado para conduzir as tropas

negociadas na feira de Sorocaba (SP) para o Sul. Predominava a agricultura voltada

para o próprio consumo com produção de excedentes, sendo a suinocultura a

principal atividade comercial.

Considerando que a normatização da Lei 601 de 1850 implicou,

desde o princípio, na corrida por terras em razão da valorização, o Norte do Paraná

também foi alvo de grilagem, ação preconizada por João da Silva Machado, o Barão

de Antonina que, “onde fosse possível, fazia uma posse de terra e depois requeria

sua legalização[...]. Por isso, foi chamado o primeiro papa-terras do Paraná e

precursor dos grileiros.” (Wachowicz, apud Bragueto, 1996, p. 26)

Com efeito, o incremento do povoamento nas primeiras décadas do

século XX se pautou na ocupação derivada de um surto de extraordinária

valorização. Por estarem inseridas na rota da “marcha do café”, tais terras foram

antecipadamente transformadas em alvo de cobiça, dada a fertilidade e proximidade

com os canais de escoamento, condição fundamental para a expansão da

cafeicultura.

Assim tiveram início os conflitos e litígios fundiários, instalando

contendas nas áreas de apropriação perpetradas pela frente pioneira, a qual incide

sobre o que vulgarmente se denomina “terra amansada”, ou seja, indígenas

expulsos e existência de pontos de apoio e caminhos rudimentares construídos

pelos primeiros ocupantes.

É nesse contexto que passa a atuar a Paraná Plantations Company,

empresa inglesa atraída pela determinação do governo federal em abrir aos ingleses

o patrimônio fundiário, em troca da instalação e operação de serviços públicos, via

concessão. Não obstante, sua instalação atendia aos interesses dos fazendeiros do

Norte Velho, que não dispunham de recursos para estender a estrada de ferro às

terras férteis à oeste.

Assim, em 1925, a referida empresa cria a subsidiária nacional, a

Companhia de Terras Norte do Paraná. Esta adquire diretamente do governo do

Estado uma gleba de 1.089.000 hectares os quais, incrementados com a compra de

terras de particulares, resulta em um patrimônio de 1.321.499 hectares, o que

corresponde a aproximadamente 6,7% do território paranaense.

Para se ter uma idéia do nível de captura de renda que tal

transação lhe proporcionou, basta considerar que a venda de apenas 23% da área,

ocorrida na primeira década após sua implantação, foi suficiente para cobrir todos

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os custos com a aquisição das terras, demarcação dos lotes e implantação da infra-

estrutura básica8. Segundo Padis (1981), em 15 anos, as terras adquiridas ao preço

de 20 mil réis por alqueire foram comercializadas a 500 mil, o que demonstra o

quão lucrativa fora a empreitada, ainda que se considere as desvalorizações

monetárias ocorridas no período.

Some-se a isso o direito adquirido pela Companhia de obter do

Estado a concessão de 3.600 hectares de terra por cada quilômetro de estrada de

ferro construída, incentivo que a levou a comprar a maior parte das ações da

Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná, transação concretizada em 1928. A

partir de então, as obras de extensão da ferrovia foram aceleradas, permitindo a

sua chegada em Londrina em 1935.

Não obstante, durante todo o período em que a empresa

permanecera sob controle estrangeiro, uma série de medidas restritivas não lhe foi

imputada, entre as quais destacamos:9

• 12 anos de prazo para o pagamento de 46% da dívida contraída ao Estado com a

aquisição das terras, o que limitou sobremaneira a necessidade de capital

próprio, já que parte apreciável dos lotes foi vendida à vista;

• Isenção de imposto territorial enquanto fosse proprietária das terras;

• Não aplicação, em suas áreas, da Lei Federal de 1931 que proibiu o plantio de

café em virtude do excesso de oferta no mercado internacional;

• Não cumprimento do decreto de nacionalização da Ferrovia em que era acionária

majoritária.

Analisadas em conjunto, essas medidas revelam o grau de

promiscuidade entre poder público e capital privado; enfim, denunciam a

composição de forças que definiram os contornos da questão agrária norte-

paranaense, haja vista os termos em que atuou esse grupo estrangeiro. Não resta

dúvida de que isso resulta do jogo de interesses incrustado no aparelho de Estado,

orientado pela conveniência de abdicar de um projeto nacional; apesar das

negociatas lesivas para a sociedade, certamente foram proveitosos a uns poucos no

exercício do poder.

Essa é também uma prova da submissão colonialista da qual as

classes dominantes brasileiras nunca se livraram, seduzidas pelas migalhas que

ainda lhes cabem no esquema de trocas, tornando extremamente seletivo o acesso

às riquezas e altamente predatório o seu usufruto.

8 Cf. Tomazi, 1989, p. 168. 9Cf. Tomazi, 1989, p.108.

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Quanto aos camponeses, não resta dúvida de que perdas

patrimoniais dessa envergadura lhes afetaram diretamente, uma vez que, ao

depararem-se com a intermediação especulativa da referida empresa, pagaram mais

caro ou tiveram que abdicar do sonho da terra própria.

Embora essa tenha sido a regra para a partilha do patrimônio

fundiário brasileiro, não se pode deixar de questioná-la. Sabemos que a ciência não

permite conjeturas sobre o passado, mas é o fato das mesmas ações se repetirem,

sob roupagens diferentes, que nos leva a resgatá-las, até mesmo porque a nossa

história está repleta de episódios em que a transferência da riqueza nacional se faz

em benefício de seletos grupos, sendo invariavelmente socializadas as perdas.

Relembrar as formas lesivas com que o Estado tem gerido o

patrimônio público não deve servir apenas para incutir em nós a idéia da

inevitabilidade de tais políticas, pela sua prática histórica, mas também para

despertar a indignação coletiva, arma eficaz contra a apatia e impotência de uma

sociedade que ainda não se articulou o suficiente para capturar as rédeas de seu

futuro com ações concretas e incisivas no presente.

Ainda que se considerem as lutas travadas no Norte do Paraná, que

não foram poucas, há que se admitir as dificuldades de arregimentar forças

suficientes para imprimir uma versão mais democrática de gestão territorial. Não

que isso implique em constatações peremptórias sobre o caráter das relações

manifestadas nas parcelas do território, pois isso seria o mesmo que ignorar a sua

constituição contraditória, pelos embates decorrentes de interesses contrários, que

aqui também se manifestam.

É dentro dessa contraditória construção do território que a referida

empresa foi vendida pelos ingleses a um grupo de capitalistas paulistas em 1944.

Contribui para isso as diretrizes superestimadas da própria Companhia de Terras:

ao atuar a partir da lógica de mercado, mediada pelo monopólio fundiário de que

dispunha, impôs uma valorização incompatível com os recursos de ponderável

parcela de potenciais compradores, fato que culminou na frustração das projeções

iniciais de venda das terras.

Para isso concorreu também o lampejo nacionalista, instaurado

pelo Estado Novo (1937), que implicou na proibição da propriedade de terras por

parte de não brasileiros, além de criar embaraços para a exportação de capitais e

pesada taxação sobre os lucros das empresas estrangeiras.10

10 Cf. Monbeig, 1984, p. 239-240.

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Entrementes, durante os dezenove anos em que essa companhia foi

proprietária de uma área equivalente ao território da Irlanda do Norte, imprimiu um

modelo de colonização baseado na pequena propriedade. Segundo Tomazi (1989, p.

168), a seu cargo foi comercializada aproximadamente 24% da gleba, o que

corresponde a algo em torno de 28% das propriedades demarcadas, predominando

lotes de 20 a 30 hectares, dos quais 90% foram comprados à vista. Somados à ação

de sua sucessora, a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, os resultados são

os seguintes:

No total, a Companhia (...) colonizou uma área correspondente a 1.321.499 hectares, ou ainda cerca de 13.166 km2. Fundou 63 cidades e patrimônios, vendeu lotes e chácaras para 41.741 compradores, de área variável entre 5 e 30 alqueires e cerca de 70.000 datas urbanas com área média de 500 m2. (CMNP, 1975, p. 133).

Outrossim, deve-se salientar que o projeto de malha fundiária

menos concentrada não foi movido por ideais progressistas da companhia, no

sentido do desenvolvimento social, conforme veicularam seus agentes. Essa não

passa de uma peça de propaganda cuja eficiência é incontestável, visto que até hoje

muitos paranaenses têm uma certa veneração à Companhia.

Conforme indicou Monbeig (1984), o traçado em pequenas

propriedades atendia essencialmente à demanda do momento, já que o regime de

colonato pressupunha pagamento monetário aos imigrantes envolvidos no trato

com o café, sendo que a economia após sucessivos anos de trabalho poderia

permitir a compra de um pequeno sítio, necessariamente em áreas de incorporação,

por serem mais baixos os preços da terra.

Além disso, a propriedade da estrada de ferro também contribuiu

para tal decisão, uma vez que eram os sitiantes os principais usuários do serviço

ferroviário, seja para transporte pessoal, seja para transporte de mercadorias, tanto

as trazidas de fora para consumo quanto à produção agrícola encaminhada para

outros mercados.

Enfim, a Companhia concebia o sucesso de seu empreendimento

baseada em uma tese capitalista já consagrada, na qual haveria que se ampliar o

número de proprietários, a fim de garantir dinamismo econômico e,

conseqüentemente, lucros maiores.

Ainda assim, não se pode omitir seu planejamento na definição do

modelo de ocupação; nele, a divisão dos lotes obedeceu ao seguinte critério:

hierarquia urbana baseada em cidades núcleos regionais distantes

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aproximadamente 100 km entre si, centros abastecedores intermediários a uma

distância de 10 a 15 km e lotes delimitados nos espigões pelas estradas e nos vales

pelos rios11.

Com isso, assegurou-se a reprodução camponesa, dado o acesso à

água, às vias de circulação e aos núcleos urbanos. Tudo isso se constituiu no

principal fator de alimentação da demanda e valorização crescente das terras, pois

o sucesso dos que chegavam era condição para a atração de mais compradores.

A constituição da rede urbana nesses moldes tornou-se, inclusive,

referencial para a divisão político-administrativa da região, visto que a designação

existente entre norte velho, norte novo e norte novíssimo marca as três fases da

colonização, as duas últimas a cargo da referida Companhia, prevalecendo a divisão

a partir dos núcleos regionais, no caso Norte Novo de Londrina, Norte Novo de

Maringá e Norte Novíssimo de Umuarama - Paranavaí.

A terceira fase da colonização foi empreendida pela Companhia já

nacionalizada. A partir de então, o ordenamento da malha fundiária se fez em

outros termos: progressivamente foi descartado o privilegiamento das propriedades

pequenas em favor das grandes propriedades, não sem as articular aos

minifúndios. Prevaleceu, assim, o projeto de exploração empresarial da propriedade,

já que a comercialização dos minifúndios visava, sobretudo, a garantia de mão-de-

obra aos grandes estabelecimentos.

Cumpre salientar que, apesar de eivado de arbitrariedades, o

modelo de ocupação derivado do primeiro projeto de colonização implicou na

constituição de uma economia dinâmica, tendo como eixo a agricultura baseada no

trabalho familiar. O café, principal produto comercial, reinou absoluto nessa

região até os anos sessenta, apesar dos sucessivos percalços sofridos em

decorrência da instabilidade do comércio exterior e, sobretudo, da oferta

incompatível com a demanda do produto.

Contudo, vários foram os elementos componentes da crise do setor

cafeeiro, a qual teve desdobramentos socioeconômicos bastante graves, no Paraná

em particular, pela dimensão do cultivo, que chegou a 62,8% da produção nacional

na safra 1962/6312. No Norte do Paraná, os efeitos foram ainda mais devastadores,

pois o café se tornara o produto comercial por excelência, sendo que, em 1960, era

responsável por 44% da área cultivada.

11 Cf. Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, 1975. 12 Cf. Bragueto, 1996, p. 129.

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Bragueto (1996) destaca a mudança no padrão de acumulação

desenhado a partir dos anos 30 como um dos vetores dessa crise, pois o

transbordamento de setores da indústria em direção ao Paraná, Minas Gerais e

Mato Grosso implicaram em uma redefinição de papéis, ainda que sem rupturas

com o setor cafeicultor tradicional.

Nessa conjuntura, a monocultura de exportação atuou no sentido

de fornecer as divisas necessárias à expansão do parque industrial, baseada na

importação de máquinas e equipamentos, sendo reservado à policultura o

tradicional papel de assegurar a produção de alimentos básicos a preços que não

comprometessem a reprodução da mão-de-obra, historicamente mal remunerada.

Stolke (1986) assevera

O realinhamento das forças econômicas no país, que se iniciara no começo do século, consolidou-se nos anos pós-guerra, e o café perdeu para a indústria o seu papel dinâmico na economia brasileira. Mas isso não significou que os produtores e exportadores de café fossem de um só golpe despojados de sua proeminência econômica e política. De fato, a industrialização por substituição de importações dependia grandemente, em seus recursos, das cambiais obtidas com o café e, nos anos 50, a participação do produto nos ganhos do comércio exterior mais uma vez aumentou notavelmente [...]. A importância renovada do café dotou o setor cafeeiro de uma influência política que permitiu aos fazendeiros e exportadores proteger com considerável sucesso os seus interesses de intromissões excessivas por parte do interesse “nacional”, pelo menos até 1958-1959. (apud BRAGUETO, 1996, p.127).

Com efeito, os impactos socioeconômicos foram insignes, pois as

políticas públicas adotadas no sentido de substituição de culturas não foram

direcionadas aos pequenos proprietários e cafeicultores não proprietários,

responsáveis pelo fornecimento de nada menos que 80% da mão-de-obra ocupada

no café13.

No Paraná, após 20 anos de atuação do Grupo Executivo de

Racionalização da Cafeicultura (GERCA)14, 56% da área ocupada por cafeeiros foi

substituída por outros cultivos, prevalecendo a expansão das pastagens. Não

obstante, a ação dos formadores foi decisiva para a acumulação dos pecuaristas,

visto que os primeiros se submeteram ao trabalho gratuito de formação dos pastos

em troca da permissão de cultivar as terras por um curto período, em média de 2

anos. 15

13Cf. Bragueto, 1996, p. 195. 14 Período de 1963 a 1983. 15 Cf. Bragueto, opus cit, p. 196.

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Essas mudanças culminaram na eliminação de grande parte dos

postos de trabalho, de tal modo que não basta analisar os processos pelo viés da

“crise” do café. Antes, é necessário recorrer à conjuntura em que esses

acontecimentos se sucederam.

Conforme se fez referência, nos anos sessenta a indústria já

movimentava as engrenagens do país, destacando-se sua influência no setor

agrícola, cujo funcionamento passou a ser dimensionado a partir das projeções e

necessidades de acumulação da primeira. Com isso, as políticas agrícolas

privilegiaram, sem exceção, culturas e atividades que representavam mercado de

consumo ao setor industrial.

É o que se pode concluir ao observar que, em 1975, o volume de

crédito concedido ao setor agrícola coincidiu com a geração total de renda do setor,

o que indica mera transferência monetária do setor público para o privado. No caso

de alguns ramos industriais, os números são expressivos: Bragueto (1996, p. 212),

destaca que, em 1979, a receita obtida com a venda de fertilizantes no Brasil foi

apenas 10% superior ao total concedido em créditos para tal fim; o mesmo se aplica

à indústria de máquinas, pois as vendas de tratores não conseguiram superar em

10% o montante destinado ao seu financiamento.

Portanto, houve incomensurável transferência do dinheiro público à

indústria, que pôde contar com um mercado cativo: o Estado o assumiu, ao

direcionar o consumo quase que integral da produção industrial, através da

vinculação das políticas creditícias à aquisição de insumos e máquinas, inclusive

fixando percentuais exatos a serem gastos respectivamente.

Por outro lado, verificamos que o aporte de crédito foi extremamente

seletivo: segundo o Instituto Paranaense de Desenvolvimento (IPARDES), apenas

21,5% do montante total destinado ao crédito no Paraná foi usufruído por

produtores pequenos.

Essa é apenas uma das expressões da questão agrária; como se

pode observar, ela envolve classes opostas, cria situações privilegiadas de

acumulação no campo e na cidade e, conseqüentemente, interfere no processo de

territorialização camponesa. Assim, a questão agrária adquire visibilidade, por

exemplo, nas políticas deliberadas que arrolamos, as quais denunciam os pactos

políticos presentes na composição do Estado. Outrossim, é necessário frisar que

não se trata de um processo de mão única, dirigido exclusivamente pela classe

dominante, já que a classe camponesa se inscreve no cenário político através de

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diversas ações, de silenciosas a incisivas. Mais adiante analisaremos as estratégias

camponesas ante os impactos das políticas públicas.

De qualquer modo, não ignoramos que as forças hegemônicas

interferem na gestão dos fundos públicos e, diante disso, os trabalhadores, em

geral, e os camponeses, em particular, são profundamente afetados. A ação do

GERCA, alinhada às diretrizes da Companhia de Desenvolvimento do Paraná

(CODEPAR), são o melhor exemplo: desde 1962, houve investimentos maciços no

setor de infra-estrutura, como ampliação da rede de energia e malha rodoviária. É

evidente que esses não se deram aleatoriamente; antes, objetivaram privilegiar os

projetos agroindustriais, o que explica o rápido impulso que tiveram as culturas

temporárias mecanizáveis, notadamente a soja, o milho e o trigo.16

Por conseguinte, o ônus recaiu sobre os produtores pequenos, por

não disporem de recursos financeiros suficientes para a mudança do padrão

tecnológico da agricultura, bem como por não disporem de crédito adequado às

suas necessidades. A esses, o investimento estatal veio na insidiosa propaganda

sobre um novo Eldorado que, paradoxalmente, transformou Rondônia em um

reduto de paranaenses, de modo que nos anos 70, tais migrantes representavam

30% da população daquele Estado.17

Entretanto, os principais fatores ligados à substituição do café pelas

culturas mecanizadas e pela pecuária extensiva não se descortinaram à maior parte

dos trabalhadores, cuja memória conseguiu reter basicamente dois eventos para

explicar a expulsão ou expropriação que os atingiu. Um deles, de ordem climática,

as geadas, e outro, de ordem jurídica, o Estatuto do Trabalhador Rural.

Isso mostra o quão hábil foi a classe dominante em capitanear tais

eventos, reforçando no imaginário coletivo esses aspectos de somenos importância

no processo. Há na região, sobeja literatura que o confirma, sendo o

descortinamento desses fatos um desafio que nem todos abraçaram e ainda

abraçam, inclusive pesquisadores.

Kohlhepp (1991, p. 86, 87) destaca que a busca por produtos mais

vantajosos, do ponto de vista das exportações, já era expressiva no início dos anos

sessenta. Nesse período tomaram vulto as políticas públicas de crédito subsidiado,

com juros negativos, especialmente para o plantio da soja, milho e trigo.

16 Segundo Bragueto (1996, p. 180), dos recursos liberados pelo GERCA, o Paraná foi contemplado com 32%, sendo que no período de 1967/70, 39,5% destes foram destinados aos projetos agroindustriais e 36,4% para obras de infra-estrutura. Nos projetos agroindustriais, a indústria de óleos foi contemplada com 44,7% dos recursos. 17 Cf. Kohlhepp, 1991.

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Carvalho (1991, p. 72, 74) afirma que no início dos anos 60, os

grandes cafeicultores tornaram-se pecuaristas, através do esquema de formação de

pastagens já mencionado. Isso foi possível devido à presença significativa de

trabalhadores volantes, submetidos a remunerações muito baixas. Na década de

sessenta, somente no Norte Novo de Londrina, desapareceram 146.210 hectares de

café, surgindo 167.786 hectares de pastagens. É por essa razão que a maior parte

dos municípios do norte-paranaense perdeu de 20 a 60% da população apenas no

período em destaque. Não obstante, ao mesmo tempo em que as médias e grandes

propriedades partiram para outras modalidades de cultivo, as propriedades

menores tornaram-se o reduto dos cafezais: “Os estratos inferiores a 20 hectares

plantados com café somavam 24,5% da área desta lavoura permanente em 1960 e

passaram a 49,6% em 1970.” (CARVALHO, 1991, p. 32).

Com efeito, os camponeses que resistiram ao processo, recorreram

ao café para manter-se na terra, pois além desse não implicar em mecanização nos

moldes implantados nas culturas temporárias, apresenta elevado índice de

ocupação de mão-de-obra. Segundo Bragueto (1996), para cada três hectares de

café é necessário um trabalhador, ao passo que, na pecuária, a proporção é de 73

hectares por ocupação.

Essas projeções remetem a projetos distintos de exploração

econômica, para os quais Chayanov (1974) já chamara a atenção. Trata-se de

lógicas opostas em que atuam capitalistas e camponeses: a alternativa da pecuária

é aceita sem restrições pelos primeiros, por demandar pouco trabalho, ao passo que

os camponeses recorrem aos cultivos que requerem intensa utilização de mão-de-

obra, ainda que os rendimentos líquidos sejam menores. Como vimos, uma das

razões para isso é a necessidade de envolver o maior número de membros da

família nas atividades internas.

Desse modo, a compreensão da constituição agrária do Norte do

Paraná remete-nos, ora às políticas públicas e aos pactos construídos em escala

nacional, ora nos indica o peso das particularidades locais.

A nosso ver, a modernização da base técnica da agricultura, que

modificou profundamente as condições de reprodução camponesa, guarda relação

direta com esses processos que a antecederam. Assim, resta-nos analisar os seus

desdobramentos no processo de territorialização camponesa.

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CAPÍTULO 3

DINÂMICA AGRÁRIA NO NORTE PARANÁ: POSSE,

PROPRIEDADE E USO DA TERRA

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3. DINÂMICA AGRÁRIA NO NORTE PARANÁ: POSSE, PROPRIEDADE E USO DA

TERRA

A formação do território denuncia a combinação de variáveis unidas

em uma complexa e indivisível amálgama que se manifesta em “imagens

territoriais”1, mas não se resume a elas. Por essa razão, o esforço em desvendá-las

requer a utilização de referenciais teórico-metodológicos que contemplem a análise

dos processos que lhe são subjacentes, ainda que nossos instrumentos analíticos

sejam limitados ante fenômenos em constante movimento.

Porém, se não se pode captá-los em tempo real, pode-se ao menos

desvendar a sua lógica, através da qual se poderá pensar em intervenções

construtivas, em tese, um dos fundamentos da investigação científica.

Desse modo, as análises subseqüentes objetivam expor o

encadeamento das mudanças ocorridas no Norte do Paraná, a fim de elucidar as

formas de integração da classe camponesa a esse processo. De antemão,

salientamos que o recurso exacerbado aos dados é um ponto de partida, pois a

construção da parcela camponesa do território capitalista é um continun. Por essa

razão, a apreensão da sua organicidade e ordenação não pode prescindir das

combinações que foram se articulando ao longo do tempo. Por fim, advertimos que

se fez essa incursão quantitativa até mesmo para respaldar as análises posteriores,

em face dos pressupostos reinantes nesses tempos, em que impera a lógica dos

números.

Em outras palavras, destacaremos as variáveis que, do ponto de

vista dos objetivos desse trabalho, são as mais representativas. Busca-se, com isso,

a articulação de dados que auxiliam na compreensão das mudanças em curso na

agricultura norte-paranaense, a partir da intensificação do processo de

modernização e, assim, relacioná-las com o processo de territorialização

camponesa.

Nessa perspectiva, elegemos como ponto de partida a análise da

malha fundiária, a fim de apresentarmos um contraponto às vozes que se levantam

em torno da idéia de que a propriedade da terra não é mais o centro da questão

agrária. Conforme destacamos anteriormente, essa interpretação deriva de uma

opção teórico-metodológica, a qual transfere às mudanças tecnológicas o eixo de

explicação dos processos em curso no campo.

1 Cf. Raffestin, 1993, p. 152.

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78

Não queremos como isso negar a importância desse processo, pois a

modernização da base técnica proporcionou, indubitavelmente, extraordinário

aumento da produtividade, porém a um custo socioambiental equivalente. Assim,

nosso objetivo é deslocar o foco de análise, lançando mão das relações para explicar

os processos sociais, de modo a destituir a técnica da centralidade explicativa.

Dessa maneira, entendemos que apesar de vivenciarmos um

momento de extrema projeção da ordem financeirizada, a qual reclama mais

liquidez imediata e menos capital imobilizado, a terra ainda se mantém no centro

da questão agrária, seja como patrimônio, seja como meio de produção, sendo

pertinente, portanto, evidenciar como tem se processado a sua distribuição na área

estudada.

Passemos aos indicadores da malha fundiária, sendo considerados

os dados publicados pelo IBGE, Censos Agrícolas de 1950 e 1960 e Censos

Agropecuários de 1970 a 1995/96. (Figura 2).

6321

688

647

66

1893

814

1212

1968

2678

712

9025

7883

1675

616

56 3124

94

1474

015

95 3433

88

1599

317

1934

6583

1184

216

09 3635

72

0

5000

10000

15000

20000

25000

30000

1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Figura 2 - Variação da malha fundiária segundo número de estabelecimentos

Até 50 ha. 50 - 100 ha. 100 - 1.000 ha. Acima 1.000 ha.

Fonte: IBGE – Censos Agrícolas e Agropecuários

Tendo em vista o período considerado na Figura 2 é necessário

esclarecer que nele basicamente se define a atual divisão político-administrativa na

área estudada. Para se ter uma idéia, o Censo Agrícola de 1950 registrava apenas

nove municípios que, após sucessivos desmembramentos, resultaram nos 33

atualmente existentes. Outro dado a ser considerado é que a fase do povoamento se

arrastou pelos anos quarenta e adentrou os anos cinqüenta, momento em que as

empresas colonizadoras ainda detinham grande parte das terras. Essa é a razão da

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79

pequena expressão numérica dos estabelecimentos na primeira década, quaisquer

que sejam os estratos considerados.

Observemos que o Censo Agrícola de 1960 indica um extraordinário

aumento numérico de estabelecimentos, o que sugere a fragmentação da exploração

econômica, que chega ao segundo maior índice em todo o período considerado.

Entretanto, há que se ressaltar que estamos lidando com a categoria

estabelecimento, a qual supõe uma unidade econômico-administrativa e não

jurídica das terras. Dessa maneira, esses dados devem ser tomados apenas como

referência para se avaliarem os índices de concentração do uso e não da

propriedade legal das terras.

Considerando que, desde o início do povoamento até o final dos

anos sessenta, a cultura cafeeira foi absolutamente dominante na região,

prevalecendo as relações de parceria, não resta dúvida que a real concentração das

terras não está representada nesses dados. Por outro lado, esses são indispensáveis

para apreendermos a dimensão da recriação camponesa nesse período, em grande

medida possibilitada por essa forma precária de acesso à terra.

Observemos que o ano de 1970 registra o auge da divisão

econômica das terras, expressa no número recorde de estabelecimentos. Porém, já

se pode verificar o crescimento expressivo dos estabelecimentos nos estratos com

área superior a 50 hectares, o que evidencia o início do processo de substituição do

café pelas pastagens e culturas mecanizadas.

Ao registrar o início da curva descendente no número dos pequenos

estabelecimentos em 1975, ao lado do progressivo crescimento numérico dos

estabelecimentos maiores, é evidenciada a exclusão progressiva daqueles que

detinham a posse precária, com destaque para os parceiros, conforme precisaremos

mais adiante.

Entretanto, para melhor compreensão desse processo,

apresentaremos a variação da área correspondente aos diversos estratos, pois

somente a aferição de ambos os dados possibilita uma visão mais abrangente das

mudanças ocorridas nessa região. (Figura 3).

Essa figura indica a notável desestruturação dos pequenos

estabelecimentos, sobretudo após 1970, quando se inicia a respectiva transferência

de área para os demais estratos, reflexo direto do processo de expulsão camponesa

derivado da erradicação do café. Notemos que, desde então, os situados no estrato

entre 100 e 1.000 hectares apresentaram um crescimento extraordinário: em

termos de área, tais estabelecimentos registraram um incremento de 123.704

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hectares; em termos numéricos, surgiram 553 novos estabelecimentos.

Percentualmente, isso representa uma variação positiva de 36% no que se refere à

área açambarcada e 41% em relação ao número de estabelecimentos.

0

100000

200000

300000

400000

500000

1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Figura 3 - Variação da malha fundiária segundo a área dos estabelecimentos

Até 50 ha. 50 - 100 ha. 100 - 1.000 ha. Acima 1.000 ha.

Fonte: IBGE - Censos Agrícolas e Agropecuários

Por outro lado, a segunda maior variação positiva ocorreu no

estrato de 50 a 100 hectares, no qual vamos encontrar alguns camponeses ricos.

Nesse período, surgiram 319 novos estabelecimentos e respectivamente 22.913

hectares, o que representa, em termos percentuais, 25% tanto em número de

estabelecimentos quanto de área.

Quanto aos estabelecimentos com mais de 1.000 hectares, o estrato

por excelência dos latifúndios, a despeito da perda de 19% de área nas três últimas

décadas e uma variação numérica negativa de 13%, a concentração foi retomada.

Notemos que, no período que separa os dois últimos recenseamentos, houve um

incremento de 5.633 hectares nesse estrato de área, mesmo com o desaparecimento

de nove estabelecimentos. Considerando que esse crescimento se fez às expensas

do estrato onde estão agrupados os menores estabelecimentos, julgamos

conveniente apresentar tais dados de forma detalhada. Lembramos que optamos

por fazer um corte nos anos setenta, pois é a partir de então que o processo de

concentração do uso da terra se torna mais evidente. (Figura 4).

A Figura 4 é o maior indicador do processo de desagregação

registrado nos estabelecimentos com até 50 hectares. Note-se que quanto menor os

estabelecimentos, mais vulneráveis eles se mostraram nessas três últimas décadas.

Considerando os 33 municípios selecionados, deixaram de existir nada menos que

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14.945 estabelecimentos, ou seja, a proporção se aproxima de dois

estabelecimentos extintos para cada um existente na atualidade.

1268

4

8455

5648

6059

5400

5297

5380

4587

4773 68

15

4559

4619

4585

3450

3807

0

5000

10000

15000

1970 1975 1980 1985 1995/96

Figura 4- Variação do número de estabelecimentos com até 50 hectares

Até 10 ha. 10 - 20 ha. 20 - 50 ha.

Fonte: IBGE - Censos Agropecuários

Além disso, esses dados desmontam o principal argumento acerca

do esvaziamento rural dessa região: a grande geada que arrasou os cafezais. Como

se pode observar, entre 1970 e 1975, os estabelecimentos com até 20 hectares já

tinham sido reduzidos pela metade, não coincidindo, portanto, com os estragos

atribuídos ao rigoroso inverno de 1975.

Por outro lado, é oportuno conferir não apenas a variação numérica

dos pequenos estabelecimentos, mas também o respectivo comportamento em

termos de área perdida para os estabelecimentos maiores (Figura 5), para que

possamos inferir como a concentração do uso da terra se manifestou nesse período.

7461

711

6917 17

0759

3447

675

763 16

4216

2733

464

899 15

0200

3278

264

691 14

6539

2324

849

305 12

2128

0

50000

100000

150000

200000

1970 1975 1980 1985 1995/96

Figura 5 - Variação da área dos estabelecimentos com até 50 hectares

Até 10 ha. 10 - 20 ha. 20 - 50 ha.

Fonte: IBGE - Censos Agropecuários

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Como se pode observar, quanto menores os estabelecimentos, mais

vulneráveis os mesmos se apresentaram nesse período. Notemos que o estrato de

área de até 10 hectares foi o que registrou, em termos percentuais, a maior

transferência de área, chegando em meados dos anos noventa com apenas 31% da

área ocupada no início dos anos setenta. O estrato intermediário conseguiu manter

42% da área e, por fim, os estabelecimentos entre 20 e 50 hectares chegaram aos

meados dos anos noventa com 72% da área ocupada no início dos anos setenta.

O fato da Figura 5 ter sido construída a partir da média regional,

certamente camufla o comportamento específico a cada município, mesmo porque

há padrões diferenciados de ocupação do solo, os quais se delinearam exatamente

no momento em que houve a substituição do café. Assim, na região do basalto,

prevaleceram as lavouras mecanizadas, ao passo que, no arenito, foi a pecuária a

sua principal substituta. Por essa razão, optamos por analisar os dados por

município, a fim de melhor apreendermos o referido processo: na figura a seguir,

foram considerados os dados individualizados de 1970 em comparação a 1995/96,

extraindo-se daí o percentual de transferência de área dos estabelecimentos.

Outrossim, esclarecemos que definimos o corte analítico na casa

dos 50 hectares, em razão desses estabelecimentos terem sido marcados pelo

processo de desestruturação, de modo que parte da respectiva área foi incorporada

aos demais estratos. Conforme demonstraremos posteriormente, a variação positiva

em termos numéricos e de área já pode ser verificada nos estratos de 50 a 100

hectares. Observemos, pois, como se deu a diminuição da área dos pequenos

estabelecimentos em cada município. (Figura 6).

Essa figura mostra que a perda de área dos pequenos

estabelecimentos foi notável após a desestruturação da cafeicultura nos moldes

originalmente implantados. Contudo, é necessário reafirmar que esses dados devem

ser tomados como expressão da concentração do uso, mas não da propriedade

jurídica da terra, tendo em vista que a categoria estabelecimento se define pela

unidade econômica da terra, de modo que os lotes dos cafezais até então explorados

em parceria figuravam como estabelecimento.

Por outro lado, foram observados basicamente dois padrões na substituição dos

cafezais: as pastagens e as culturas temporárias. Nas áreas onde foi privilegiada a

implantação da pecuária, os estabelecimentos menores não só pereceram em

função do pressuposto de que essa atividade requer áreas mais extensas, mas,

primordialmente, em função da lógica de implantação da atividade, baseada na

cessão temporária da terra em troca da formação das pastagens.

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Em outras palavras, a pulverização no uso da terra foi bastante

intensa no período que antecedeu a consolidação da pecuária, em face da estratégia

adotada pelos proprietários para obter a formação praticamente gratuita das

pastagens, em troca do direito dos camponeses sem terra explorarem-na por um

determinado período.

À medida que as pastagens formadas foram se expandindo, as áreas

disponíveis para tal prática foram se tornando mais escassas, até o ciclo de

formação se fechar. A partir de então, esses trabalhadores viram limitadas ao

extremo as condições de reprodução autônoma nessa região.

O mesmo se aplica aqueles que atuavam como parceiros nos

cafezais que foram substituídos pelas lavouras mecanizadas, de baixíssima

utilização de mão-de-obra. Assim, o alijamento da terra impôs a migração em

massa desses trabalhadores, seja em direção às cidades, seja em direção à

Amazônia, notadamente ao Estado de Rondônia que, naquele momento,

apresentava-se como saída para os excluídos das terras paranaenses. Isso torna

pertinente apresentar os dados sobre a condição dos produtores, os quais conferem

visibilidade à questão do acesso precário à terra, uma alternativa de reprodução

camponesa largamente utilizada em resposta ao elevado índice de concentração

fundiária. (Figura 7).

68,

9 2

,0

29,

1 -

63,3

4,3

31,1

1,3

52,8

8,1 34,9

4,0

76,6

6,8

14,0

2,6

78,7

7,8

9,7

3,9

69,

1 12

,612

,85,

5

78,6

10,1

6,5

4,9

-

20,0

40,0

60,0

80,0

1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Figura 7 - Condição do Produtor

Proprietário (%) Arrendatário (%) Parceiro (%) Ocupante (%)

Fonte: IBGE - Censos Agropecuários

Como vimos, os parceiros foram os maiores atingidos pelas

mudanças no campo norte-paranaense, em virtude do cerceamento das relações de

parceria, diante da desativação da lavoura cafeeira em favor da expansão da

pecuária, de um lado, e expansão das lavouras mecanizadas, de outro.

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Entretanto, chama a atenção o aumento de arrendatários e

ocupantes, o que confirma o fato de que a classe camponesa, por vezes, se reproduz

à revelia da apropriação capitalista da terra, seja através da recusa em pagar renda,

ignorando o peso da propriedade privada, seja submetendo-se ao pagamento da

renda para assegurar a sua autonomia.

Nas áreas de implantação da pecuária, isso tem relação com a

prática de formação das pastagens, o que denuncia a estratégia dos proprietários de

atuarem em uma atividade de investimentos e riscos baixos. Por outro lado, há que

se considerar os efeitos da mecanização nas áreas de implantação das culturas

temporárias, igualmente perversa aos produtores que não detinham a propriedade

da terra, ou não possuíam renda suficiente para enfrentar a emergente matriz

tecnificada para a agricultura.

Nesse contexto, o descarte maciço de trabalhadores é explicado, de

um lado, pelas novas tecnologias agrícolas, baseadas na intensa utilização de

máquinas e insumos e, de outro, pela implantação de atividades extensivas. Aliás, o

impacto dessa segunda tem sido tão acentuado que entidades patronais,

cooperativas e poder público estão apostando no projeto “soja no arenito”. Esse

projeto tem por objetivo atuar nos elevados índices de degradação dos solos,

resultado direto da pecuária extensiva, sem tocar na estrutura do latifúndio.

Todavia, essas práticas conservadoras não têm sido capazes de

brecar o processo de territorialização camponesa, fato comprovado na

predominância absoluta dos pequenos estabelecimentos.

Assim, ao partir-se do pressuposto que uma das condições

inalienáveis da recriação camponesa é a existência da posse fragmentada da terra,

optamos pela apresentação individualizada dos dados segundo os municípios. Com

isso, contornamos o problema da diluição de situações particulares na média

regional, a qual oculta as grandes variações, tanto positivas quanto negativas. Por

outro lado, optamos por trabalhar apenas com os dados censitários mais recentes,

sendo considerada apenas a participação, em termos numéricos, dos

estabelecimentos com até 50 hectares nos respectivos municípios. (Figura 8).

Da Figura 8 podemos depreender que a presença camponesa é

expressiva na área em estudo, visto que a apropriação capitalista da terra ocorre,

via de regra, em propriedades maiores. E isso está igualmente relacionado às duas

lógicas dominantes, primeiro ao padrão de racionalidade atrelado ao modelo

tecnicista da agricultura mercantil de larga escala e, segundo, à propriedade

especulativa da terra.

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87

Dos 33 municípios estudados, notamos que em 12 deles a presença

numérica dos pequenos estabelecimentos corresponde a mais de 80% de todas as

unidades produtivas. Se considerarmos a participação percentual acima de 70%,

chegamos a 25 municípios nessa situação.

No extremo oposto, destacamos o município de Porecatu, em que há

a menor participação desses estabelecimentos, dada a sua situação particular na

região: trata-se da presença de uma usina de açúcar e álcool que praticamente

monopoliza a atividade produtiva do município. Assim, a concentração da terra e da

produção da cana-de-açúcar reduz sobremaneira as possibilidades de uso

alternativo da terra. Não por acaso, entre os municípios estudados, Porecatu

apresenta o maior índice de concentração fundiária, sendo que os 15 maiores

estabelecimentos ocupam 82,5% das terras.

Esse modelo produtivo concentrador tem provocado estragos,

especialmente após a empresa, apesar de décadas de influência direta em

praticamente todos os setores da vida pública e privada do município, alegar

dificuldades financeiras, atrasando o salário dos funcionários.

Diante da momentânea fragilidade a cada acontecimento dessa

natureza, eclode um debate em torno da pertinência de formas alternativas de

organização da economia municipal, ao mesmo tempo que pipocam denúncias de

irregularidades trabalhistas cometidas pelo grupo. Entretanto, seu desmesurado

poder econômico e político ainda tem sido suficiente para calar as vozes

discordantes, sendo tabu no município qualquer manifestação a respeito, pois as

retaliações tendem a ser imediatas.

Eles são muito poderosos...tem gente que vai descobrir que eles não recolhem o fundo de garantia depois de muitos anos de trabalho, quando são demitidos. Mas ninguém tem coragem de fazer uma denúncia, porque o irmão, o pai ou outro parente também trabalha na usina. Então já sabe que se reclamar, o outro também vai ser mandado embora.... Eles têm a cidade nas mãos.2

Essa situação particular, desdobramento maior da concentração da

terra, está evidenciada na Figura 9, na qual estão apontados os percentuais de área

ocupada pelos estabelecimentos com mais de 500 hectares por município.

Esclarecemos que adotamos um patamar médio em torno dos padrões correntes na

região para chegarmos a esse enquadramento.

2 R.: Porecatu.

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89

Diante da Figura 9, há observações a fazer: é amplamente reconhecido que as

grandes propriedades3 são as que menos geram postos de trabalho, além de darem

a menor contribuição, em termos proporcionais, com a produção agrícola. Em

outras palavras, via de regra, as mesmas estão aquém dos desígnios da

Constituição, que reza o cumprimento da função social da terra. Observemos a

Figura 10, que melhor evidencia esse fato.

13

8140

8517

1204

6

1091

60

1019

912

469

9053

3

7386

6018

8787

3

6601

3364

3656

7

7596

1952

8

0

20000

40000

60000

80000

100000

120000

140000

1970 1975 1980 1985 1995/96

Figura 10 - Trabalhadores ocupados segundo os estratos de área

Até 50 ha. 50 - 100 ha. Acima 100 ha.

Fonte: IBGE – Censos Agropecuários

Inicialmente, cabe explicar que projetamos essa Figura com o

objetivo de melhor tratar as questões relativas às ocupações na agricultura. Assim,

ao destacarmos os postos de trabalho desde os anos setenta, segundo os diferentes

estratos de área, explicitamos a desagregação ocorrida nos estratos inferiores, fato

que deve ser analisado em conjunto com o próprio desaparecimento da maior parte

dessas unidades produtivas.

Essa ressalva é necessária, a fim de se evitarem conclusões

baseadas na simples observação empírica dos dados, já que notamos uma curva

descendente das menores, contrastando com uma curva ascendente, quando se

analisam aquelas com mais de 100 hectares.

À primeira vista, poderia nos ser questionado: onde se assenta a

leitura da reprodução da classe camponesa, já que a mesma deve se manifestar,

invariavelmente, nas pequenas unidades produtivas, alvo privilegiado do processo

de desagregação ocorrido? Vejamos, pois, o que está subjacente à Figura anterior.

3 Utilizamos aqui essa expressão para evidenciar que a categoria estabelecimento atua no sentido de camuflar a concentração fundiária, já que uma unidade jurídica (propriedade) pode dar origem a várias unidades econômico-administrativas (estabelecimentos).

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Inquestionavelmente, são os pequenos estabelecimentos os

responsáveis pelo maior número de pessoas ocupadas, a despeito de se observar

um crescimento nos postos de trabalho em unidades produtivas com mais de 100

hectares, patamar estabelecido justamente pela pequena representatividade desses

nos estratos superiores.

Outro dado se refere ao corte cronológico proposto: consideramos os

dados a partir de 1970, por evidenciarem o início das mudanças oriundas da

modernização e ou expansão da pecuária. Assim, no momento que o processo de

modernização conservadora se instalou definitivamente na área em questão, os

pequenos estabelecimentos (até 50 hectares) respondiam por 87% das ocupações no

campo, dispondo de 37% das terras. Lembramos que essa relação é compatível com

o padrão produtivo da época, eminentemente centrado na pulverização do uso da

terra e nos cultivos baseados no uso intensivo de mão-de-obra, a exemplo do café.

Nos anos noventa, apesar do índice de ocupação cair para 57%, o

que indica que os pequenos estabelecimentos estão ocupando menos pessoas que

há três décadas, ainda assim são esses os espaços por excelência de geração de

postos de trabalho. Isso sem entrar no mérito da proporcionalidade em termos de

área ocupada, em relação aos grandes estabelecimentos.

Como vimos, houve notável concentração fundiária nesse período,

caindo a participação dos pequenos estabelecimentos para 21% das terras, ao

mesmo tempo que os estabelecimentos com mais de 100 hectares passaram a

abocanhar o índice histórico de 67% das mesmas.

Essas ressalvas são necessárias, a fim de evitar uma observação

pouco acurada da Figura 10: note-se que apenas três estratos de área foram

considerados, o que se explica pelo fato de que o ponto de estrangulamento

encontra-se nos 100 hectares, ou seja, a utilização intensiva de força de trabalho

encontra aí o ponto limite.

Concluímos, assim, que a curva descendente das ocupações dos

pequenos estabelecimentos não pode ser considerada em separado do processo de

eliminação a que estiveram submetidos nada menos que dois terços desses

estabelecimentos. Assim, é evidente que isso se refletiu no seu potencial de geração

de postos de trabalho.

Por outro lado, observamos que os estabelecimentos no estrato

intermediário praticamente mantiveram estáveis os níveis de ocupação,

manifestado num ligeiro crescimento numérico. Com isso, ficam evidentes os efeitos

da modernização, ainda que de forma discreta, já que o número de ocupações não

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91

acompanhou o aumento numérico dos estabelecimentos, bem como a respectiva

área ocupada.

Outrossim, reforçamos que os estabelecimentos com mais de 100

hectares, cujo crescimento nos níveis de emprego são ponderáveis, foram também

aqueles em que se processou uma concentração extraordinária, razão direta do

aumento na proporção de empregos.

Outro dado que não deve ser desconsiderado é a expansão

verificada na cana-de-açúcar na região, uma cultura que ocupa grande número de

trabalhadores; entretanto, trata-se de ocupações temporárias e, sobretudo,

precárias, majoritariamente durante o corte. A título de esclarecimento, entre 1970

e 2001, a área cultivada com cana aumentou em quase sete vezes, passando de

13.370 para 87.079 hectares.

Enfim, ponderamos que todas essas mudanças se inscrevem no

interior do processo de desenvolvimento capitalista na agricultura, expressas na

alteração verificada no padrão produtivo. As lavouras, ao tornarem-se

eminentemente poupadoras de mão-de-obra por causa da intensificação das

técnicas, não deixam de estar presentes nos estabelecimentos camponeses. Seria

um equívoco esperar que a territorialização camponesa se mantivesse refratária a

mudanças dessa magnitude.

Isso não implica em acatar a idéia de que esse é um processo

homogêneo, mas sim reafirmar a sua hegemonia, ainda que desdobrada em

dinâmicas próprias, de acordo com a organização interna das diferentes formas de

produzir no campo. Assim, fica evidente que o impacto do processo foi de tal ordem

que implicou no desaparecimento da maior parte daqueles que tinham acesso

precário à terra, bem como daqueles que não conseguiram se organizar

internamente, de modo a se adequar às mudanças.

Em outras palavras, lembramos que a classe camponesa é tão

dinâmica quanto o é a realidade circundante, sendo a sua capacidade de adequar-

se às novas conjunturas a condição para sua perpetuação enquanto classe. Porém,

apesar de todas essas mudanças, a propriedade camponesa continua sendo, de

longe, aquela que apresenta o maior índice de ocupação produtiva, que se reflete

não apenas no número absoluto, mas inclusive de forma inversamente proporcional

ao tamanho das propriedades. É sobre a relação entre área ocupada e empregos

gerados quando da realização do último Censo Agropecuário que trata a figura a

seguir. (Figura 11).

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92

57

21

12 12 10

16

10

22

4

13

6

16

0

10

20

30

40

50

60

Até

50

ha.

50-1

00h

a. 100-

200

ha.

200-

500

ha.

500-

1000

ha.

Aci

ma

1000

ha.

Figura 11 - Relação entre empregos gerados e área ocupada em 1995/96

Empregos gerados (%) Área ocupada (%)

Fonte: IBGE – Censo Agropecuário 1995/96

Os dados falam por si: notemos que os estabelecimentos com até 50

hectares são os únicos em que a relação entre terra disponível e ocupações é

inversamente proporcional, sendo que, quanto maior o estabelecimento, menor o

índice de trabalhadores ocupados. Em outras palavras, ainda que se considere

todos os empregos permanentes e temporários dos estabelecimentos com mais de

50 hectares, esses representam apenas 74% do volume de trabalhadores ocupados

nos primeiros. Porém, em virtude das diferenças estarem ocultas nas médias,

apresentaremos os dados referentes à participação dos pequenos estabelecimentos

na geração dos empregos na agricultura por município. (Figura 12).

Essa figura não só contribui para que tenhamos uma noção exata

da importância dos pequenos estabelecimentos em cada município, como também

explicita um dos efeitos que podem ser associados ao monopólio da terra: a grande

concentração de renda derivada da concentração da terra. Isso porque os baixos

níveis de contratação se refletem no rebaixamento do poder aquisitivo dos

trabalhadores, com reflexos diretos em praticamente todos os setores da economia

municipal.

No extremo novamente comparece Porecatu, com 7% dos empregos

oriundos dos pequenos estabelecimentos, conseqüência direta da pequena fatia de

terra de que dispõem. Note-se que esse é um caso típico de territorialização do

capital, no qual as formas camponesas são praticamente tolhidas pela atuação

monopolista do setor sucro-alcooleiro, cujos reflexos já foram destacados.

Situação parecida pode ser observada em Florestópolis, cuja geração de apenas

23% dos empregos pelos pequenos estabelecimentos contraria os

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padrões encontrados nos demais municípios. Da mesma forma, esses dados

explicam-se pela ação do referido grupo, pois sobre esse município se estendem, de

forma marcante, as suas atividades.

Por outro lado, chamam a atenção, pelo quadro oposto, municípios

marcados pela atividade policultora e menores índices de modernização, como é o

caso de Munhoz de Melo, Flórida e Primeiro de Maio. Ibiporã, apesar de igualmente

estar situado entre os municípios com altos índices de geração de emprego nesse

estrato de área (73%), destaca-se pela intensa modernização atrelada às lavouras

temporárias. Neste município, a avicultura é uma das atividades que incrementa a

geração de postos de trabalho.

Observamos, assim, que a importância dos pequenos

estabelecimentos quanto à magnitude da força de trabalho ocupada, não se limita

às áreas “tradicionais”4, ocorrendo também naquelas de maior índice de

modernização. Essa é a resposta do campo àqueles que se apegam ao ideário

simplista de que a saída para o Brasil, que tem na produção agrícola um dos pilares

de sustentação da balança de pagamentos, está resumida à agricultura capitalista

tecnicamente modernizada.

Notamos que a propriedade pequena não se destaca apenas do

ponto de vista da inclusão social, com a inigualável capacidade de gerar empregos e

renda. Ela é também aquela que dá uma lição de produtividade, da qual não se

abeiram os médios e sequer arranham os grandes proprietários.

Já frisamos que a relação entre quantidade de terra disponível e

força-de-trabalho familiar é inversamente proporcional. Essa variável assume

importância singular para que se possa identificar as unidades camponesas, pois

um dos elementos que a diferenciam das unidades capitalistas é a origem da força

de trabalho e não a medida pura e simples de terra.

A Figura 13 não só indica a predominância do trabalho familiar nas

atividades produtivas do campo como também indica que, nos anos noventa,

inverte-se o padrão delineado nos anos setenta, com o aumento da participação da

família nos trabalhos agrícolas, considerando-se os percentuais da década anterior.

Esse é um dado bastante expressivo, se considerarmos que o Norte do

Paraná é uma das regiões brasileiras de maior índice de tecnificação, o que nos

permite concluir que a classe camponesa também participa desse processo de

4 Tradicionais no sentido de enclaves policultores, tidos como atrasados, passíveis de serem resgatados pela agricultura moderna, leia-se tecnificada.

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modernização, ainda que em uma situação de subordinação aos ditames mais

gerais da lógica mercantil.

Figura 13 - Evolução da participação da força de trabalho familiar nas atividades produtivas (%)

0%10%20%30%40%50%60%70%

1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Fonte: IBGE – Censos Agrícolas e Agropecuários

É nessa relação que lhe é confiscada a renda, quaisquer que sejam

as etapas produtivas. Tanto pode ocorrer no momento da produção, quando os

camponeses se apresentam como consumidores dos maquinários e insumos, ou

ainda como usuários do sistema financeiro, através das operações de crédito para

investimento ou custeio da produção. Por último, é consumada quando sua

produção é colocada no mercado, momento em que seu poder de barganha se

mostra mais frágil, dada a interposição de verdadeiros oligopólios.

Todavia, não se pode inferir que todas as unidades produtivas onde

há trabalho familiar são camponesas, sendo necessário definir critérios para essa

classificação. Assim, destacamos a necessidade de desvendar a lógica interna da

mesma, seus traços mais gerais no que tange às relações sociais envolvidas na

reprodução da família, não apenas do ponto de vista econômico, mas também

social, cultural e político.

Considerando que a singularidade camponesa se assenta em um

conjunto próprio de signos e códigos, não é possível extraí-la dos números, o que

não invalida os esforços em utilizá-los, até mesmo para certificar que a

argumentação em torno do desaparecimento dos camponeses, face à modernização

das técnicas empregadas na agricultura, requer análises mais cuidadosas, sendo

imprescindível o literal retorno ao campo.

Nessa perspectiva, tomaremos os dados individualizados sobre a

participação da força de trabalho familiar nos 33 municípios estudados, o que

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auxilia parcialmente o desvendamento da realidade regional, já que impede a

homogeneização contida no parâmetro das médias. (Figura 14).

A análise da Figura 14 aponta para um fato anteriormente

apreciado: a presença marcante do trabalho familiar, mesmo em áreas de intensa

modernização. Destacamos que todos os municípios da porção centro-sul, onde

estão os maiores índices de produção/produtividade, apresentam uma participação

acima da casa dos 60 pontos, salvo o caso de Arapongas, onde a participação da

mão-de-obra familiar é de 55%.

É por essa razão que os indicativos de aumento do assalariamento

em relação ao trabalho familiar, verificados sobretudo nos anos setenta, não devem

ser tomados como expansão da capacidade de gerar empregos das unidades

capitalistas. Como vimos, há dois fatores a serem considerados: em primeiro lugar,

refletem a diminuição do número de membros da família ocupados naquele

momento, em virtude do banimento do acesso precário à terra nas formas descritas.

Em segundo lugar, indicam que as atividades monocultoras baseadas no

assalariamento precário, a exemplo da cana-de-açúcar, sofreram enorme expansão

nesse período.

Com isso, pode-se inferir que, passado o maior impacto da

substituição das técnicas, novamente os camponeses vão recriando estratégias de

se manterem na terra. Já vimos que a região é uma das mais modernizadas do país,

evidenciando a presença incontestável da exploração capitalista. Porém, antes de

desaparecer, o trabalho familiar, proporcionalmente, está apresentando uma ligeira

recuperação, chegando próximo aos índices verificados em 1975. Para nós, esse é o

dado inequívoco de que a reprodução camponesa é um elemento do capitalismo e

não uma excrescência ou resíduo, exteriores à sua ordem.

Entretanto, a lógica dos camponeses não é a mesma dos

capitalistas. Sendo o lucro o fundamento da exploração capitalista, sempre que

essa possibilidade estiver ameaçada, seus agentes se retiram, buscando outras

oportunidades de investimento.

O mesmo não se dá com as unidades camponesas que, por terem

como fundamento a remuneração do trabalho e não do capital, continuam a

produzir, no limite, em condições completamente desfavoráveis, a fim de garantirem

minimamente a sobrevivência.

É essa lógica diferenciada que auxilia na explicação da superioridade, do ponto de

vista da produtividade, das propriedades pequenas em relação às maiores, pois as

condições com que se defrontam são as mais adversas.

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É sobre as diferenças nos níveis de produtividade que trata a Figura

a seguir.

33

21

121215 16 16

22

913 1516

-5

101520253035

Até

50

ha.

50-1

00 h

a.

100-

200h

a.

200-

500h

a.

500-

1000

ha.

Ac.

1000

ha.

Figura 15 - Valor da produção segundo os estratos de área em 1995/96

Valor produção (%) Área ocupada (%)

Fonte: IBGE – Censo Agropecuário 1996/96

Como se pode observar, a Figura 15 mostra que os pequenos

estabelecimentos são os únicos onde a relação quantidade de terras e valor da

produção é inversamente proporcional, apontando assim o caráter inequívoco da

produtividade superior nesse estrato de área. Contudo, para não cairmos na

armadilha das médias, achamos por bem indicar o valor percentual da produção

dos estabelecimentos com até 50 hectares por município, conforme os dados do

Censo Agropecuário 1995-96. (Figura 16)

A Figura 16 nos permite concluir que a porção centro- sul da região

estudada, notoriamente mais modernizada que a porção norte, é aquela onde a

produção oriunda dos pequenos estabelecimentos é ligeiramente superior. É isso

que compromete a tese de que a modernização no campo não comporta a classe

camponesa.

Cremos ter demonstrado que essa classe se reproduz tanto em

bases tradicionais, imersas em um círculo de miserabilidade, como incorporando

tecnologia. Conforme nos alertou Chayanov (1974), ao incorporar melhorias

técnicas na produção, a família camponesa consegue reduzir a penosidade do

trabalho, logo, conquista maior bem estar. É isso que se torna visível nas áreas

onde os camponeses são mais “fortes”.5

5 Terminologia utilizada pelos próprios camponeses quando se referem aos pares de maior renda, que possuem mais terra e dispõem de melhores maquinários e instalações. Isso significa que estão mais fortalecidos economicamente, mas nem por isso se tornaram capitalistas.

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É sobre esses pressupostos que nos deteremos: a princípio

analisaremos as evidências e desdobramentos da monopolização do território

camponês pelo capital para, em seguida, nos atermos à dimensão geográfica do

processo de territorialização camponesa.

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CAPÍTULO 4

A MONOPOLIZAÇÃO DO TERRITÓRIO PELO CAPITAL

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4. A MONOPOLIZAÇÃO DO TERRITÓRIO PELO CAPITAL

Entendemos o desenvolvimento do modo capitalista de produção como processo contraditório de reprodução ampliada do capital, e esta, como reprodução das formas sociais não-capitalistas, embora dominada pela lógica do capital. É assim que esse modo de produção se nutre de realidades não-capitalistas, e essa desigualdade não pode ser entendida como incapacidade histórica de superação, mas sim demonstra as condições sociais recriadas pelo próprio desenvolvimento do modo capitalista de produção. (Ariovaldo Umbelino de Oliveira).

A constatação de que o capital, ao invés de se territorializar,

monopoliza o território, pressupõe uma ruptura com o entendimento de que o

desenvolvimento das forças produtivas capitalistas culminaria na bipolarização

entre capital e trabalho, ou em sua variante, na separação entre meios de produção

e força de trabalho. Por sua vez, designa a possibilidade de que a lógica da

acumulação ampliada não sofra restrições, ainda que determinados agentes não

atuem diretamente na esfera produtiva, controlando apenas a circulação das

mercadorias.

É nessa forma de produzir no campo que se define a monopolização

do território pelo capital; nessa, a produção propriamente dita se dá no interior de

relações não tipicamente capitalistas, em que os trabalhadores não estão

despojados dos meios de produção.

Tal qual já advertira Shanin (1980), o capitalismo não tem o poder

de reproduzir integralmente as relações em uníssono à sua lógica. Admitir essa

possibilidade seria o mesmo que negar a categoria contradição, indissociável do

movimento da realidade. Admitindo-se que a diversidade é subjacente ao conjunto

das formas organizativas no campo, cada qual rica em especificidades, nosso

estudo não se detém nas experiências produtivas inseridas na lógica da

territorialização do capital. Em outras palavras, não nos deteremos nos ramos da

produção agrícola controlada por proprietários fundiários que têm assegurado a

extração da renda e do lucro, através do emprego de força de trabalho contratada.

Ao nos debruçarmos nas especificidades da agricultura camponesa,

o seu oposto, optamos por destituir os indicadores quantitativos como critério

primordial desse estudo, pela própria dificuldade de mensuração dos resultados de

uma produção que, em parte, é destinada para o consumo interno, situação em que

não há conversão monetária. A dificuldade em vislumbrar a dimensão dessa que se

constitui em estratégia própria da reprodução camponesa, tem provocado uma série

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de equívocos analíticos, com destaque para o cálculo subestimado de sua

capacidade de geração de renda.

Nesse sentido, é bom lembrar que o recurso aos índices

mensuráveis da atividade rural já tem assegurado tratamento privilegiado nos

compêndios que se limitam às variações gerais da agricultura tipicamente

capitalista, predominando o enfoque em torno das cifras que a mesma mobiliza ou

potencialmente pode mobilizar. Em conseqüência desse viés metodológico, tem sido

comum a inobservância da heterogeneidade existente na agricultura.

Deliberadamente ou não, isso ofusca uma questão que, a nosso ver, precede as

demais: o cumprimento da função social da propriedade.

Em outras palavras, no destaque aos dividendos da agricultura

capitalista, é comum observarmos que os parâmetros são definidos a partir das

experiências de exploração intensiva, excluindo-se do cômputo geral as

propriedades que não privilegiam o investimento produtivo, a despeito das mesmas

igualmente se organizarem em bases tipicamente capitalistas.

Do ponto de vista analítico, ao ignorar essas unidades econômicas,

cuja rentabilidade é inferior ao seu real potencial, nivela-se por cima, criando a

ilusão de que, no Brasil, o agronegócio é hegemônico em todos os sentidos. Fato

sintomático é o vocabulário que lhe é característico, o qual pode ser resumido em

um termo amplamente difundido: agrobusiness.

Assinalar a extemporaneidade dessa expressão não deixa de ser

pertinente, já que nos parece bastante impróprio utilizá-la para referendar a

comparação a que se propõe. Por mais que já se tenha avançado na compreensão

de que modelos fechados atravancam o conhecimento, flagramos o paralelo entre a

realidade em que originalmente foi forjado e a brasileira. Portanto, é inegável a sua

descontextualização, ainda que se queira destacar setores do campo tidos como

modernos. Assim, é necessário ter clareza de que a mesma denuncia estratégias de

classe. O propósito de operar generalizações acaba por sentenciar o

desenvolvimento da agricultura a um processo linear e homogêneo, como se no

campo não houvesse enormes diferenças culturais, sociais e econômicas.

É nessa perspectiva que o preceito de eficiência produtiva,

automaticamente associado às formas agrícolas tipicamente capitalistas, se torna

vulnerável. Entrementes, a construção do mito parece ter superado a força dos

fatos, já que a produtividade das explorações camponesas, comprovadamente

superior, com freqüência surpreende até seus próprios agentes.

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Dessa maneira, a sustentação de tais preceitos tem um significado,

pois seu conteúdo depõe a favor das regras concentracionistas que aí estão. A via

que legitima o monopólio fundiário é a mesma que destitui de valor as

potencialidades socio-econômicas da agricultura camponesa; provavelmente em

razão da mesma ser portadora de uma racionalidade própria, assentada em

métodos e técnicas que transcendem a perspectiva monetária. São obstáculos como

esses que interditam suas plenas potencialidades, até mesmo na perspectiva da

rara capacidade de inserção social que a mesma pode representar a uma parcela da

população marginalizada exatamente por ter sido expulsa da terra.

Essa é a razão do nosso esforço em desvendar as nuances do

processo de territorialização camponesa, buscando apreender a diversidade e o grau

de importância das estratégias camponesas no Norte do Paraná com vistas à sua

reprodução enquanto classe. Nessa perspectiva, não se dissociam as saídas

encontradas para a manutenção da coesão do grupo familiar e social, conjunto que

constitui aquilo que denominamos fração do território dominada pelos camponeses.

Entrementes, admitir a existência de uma fração do território

capitalista controlada pela classe camponesa, no seio de um dos ícones da

modernização agrícola, como é o caso do Norte do Paraná, não deixa de ser

desafiador. Vimos que o volume de estudos pautados na premissa de que

agricultura capitalista e agricultura modernizada tecnicamente se confundem não é

dos menores, pelo menos em termos de projeção, o que torna mais delicada a tarefa

de identificar variantes técnicas que não sejam tomadas como signos de

descaracterização da organicidade camponesa.

É por essa razão que julgamos conveniente sinalizar para a forte

presença camponesa entre as categorias de produtores rurais nos respectivos

municípios, ainda que se trate de indicadores, já que cada base de dados se

constrói a partir de metodologias e critérios próprios. Para tanto, utilizamos o

Relatório Realidade Municipal da EMATER que, além de atualizado em relação ao

Censo Agropecuário do IBGE, parte de uma classificação diferenciada, distinguindo

empresários rurais, empresários familiares, produtores simples de mercadorias e

produtores de subsistência. Desse modo, para a elaboração da figura 17, tomamos

em conjunto os produtores de subsistência e os produtores simples de

mercadorias1. (Figura 17).

1 São considerados produtores simples de mercadorias aqueles que dispõem de benfeitorias produtivas, bem como de equipamentos de valor não superior a U$ 40.000,00 e cultivam até 50 hectares de terra, próprias ou não, com no mínimo 50% de mão-de-obra familiar.

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Como se pode verificar na Figura 17, a presença dos agricultores cuja classificação

nos remete ao campesinato é majoritária, sendo que em apenas três municípios,

sua participação é de até 61% do conjunto de produtores. É por essa razão que,

para diferenciar a agricultura camponesa da capitalista não basta tomar os níveis

de articulação mercantil ou tecnológica de uma e outra, embora os mesmos se

constituam em indicadores indispensáveis quando se quer identificá-las. Vamos

sim encontrar a diferença na forma como as relações internas se acham

estruturadas.

Considerando que, em ambos os casos, o que está em jogo são as

estratégias através das quais os capitalistas se apropriam da riqueza gerada

unicamente pelo trabalho, cremos ser necessário partir para a distinção entre as

relações tipicamente capitalistas, nas quais a equação salarial garante a sua

apropriação, das formas não tipicamente capitalistas, em que não é o trabalho, mas

o produto que o contem, que irá compor a taxa de lucro dos capitalistas.

Em um contexto no qual os componentes da cadeia produtiva são

gerenciados pelos capitalistas de modo a assegurar a acumulação do capital, claro

está que o elemento primordial é o trabalho vivo, já classificado por Marx de capital

variável, em virtude de sua qualidade singular de criar valor.

Com efeito, esse é o elo mais versátil da cadeia produtiva, foco

permanente de atenção dos capitalistas, que podem se valer de “ajustes” no sentido

de aprimorar sua capacidade de criar riqueza. Nas relações capitalistas

propriamente ditas, quanto mais refinadas forem as estratégias de canalizarem essa

para si, mediante o mecanismo de apropriação da mais-valia, maior será a

vitalidade dos mesmos.

É no compasso da ordem marcada pelo embate entre capital e

trabalho que agentes vivos, capitalistas de um lado e trabalhadores de outro,

recorrem às armas disponíveis para reterem para si a maior fração possível da

riqueza, produto direto do trabalho desenvolvido sob os auspícios do contrato ativo

entre as partes.

Nessa perspectiva, não se pode perder de vista que ao longo do

desenvolvimento das forças produtivas, o poder de barganha dos trabalhadores tem

sido inversamente proporcional ao progresso tecnológico, dada a capacidade

exponencial do último em intervir na produtividade do trabalho, ampliando-a

sistematicamente.

Portanto, vivenciamos o estágio em que os limites para a atuação

dos detentores dos meios de produção são cada vez mais tênues, ainda que

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estejamos diante de uma formação social coordenada por instâncias

regulamentadoras em vários níveis. Aí entra o Estado que, investido da tarefa de

administrar as contradições oriundas do embate entre capital e trabalho, institui

todo um conjunto normativo, do qual convém, por ora, destacar a legislação

trabalhista.

Caso o Estado supostamente se apresentasse como ente acima das

classes, haveria que se deparar com difícil tarefa: controlar a cupidez dos

capitalistas em um contexto de oferta incompatível com a demanda por mão-de-

obra. Contudo, basta concebê-lo como instância derivada da luta de classes, para

que se possa compreender como atuam os mecanismos de distribuição da mais-

valia social. Importa, nesse caso, lembrar os rumos da legislação brasileira que

regulamenta as relações entre capitalistas e trabalhadores.

Algumas mudanças, há pouco propostas sob o despretensioso

rótulo de flexibilização, sugerem que o problema está na legislação, em torno da

qual se erigiu o argumento de que estaria obsoleta. Contudo, os fundamentos

subjacentes a mais essa investida da classe hegemônica estão no próprio rumo

determinado pelo crescimento econômico, o qual criou condições para a supressão

de alguns direitos que, para muitos trabalhadores, nem sequer foram

experimentados.

É dessa forma que o Estado, metamorfose institucional das

pretensões e interesses dominantes, é chamado a intervir. Tão logo o aparato legal

se revele inadequado para a sua salvaguarda, são criadas as condições para que as

devidas mudanças sejam implantadas.

Sendo o trabalho o gerador de toda a riqueza, e sendo esse mesmo

trabalho uma mercadoria dos trabalhadores cedida aos capitalistas mediante um

salário, é indubitável que a essência da batalha entre ambos esteja circunscrita aos

valores monetários envolvidos no contrato trabalhista.

Contudo, o guardião dos contratos é o próprio Estado; por ter como

princípio resguardar certos direitos que, diga-se de passagem, em outros tempos

não figuravam como privilégio, é esperado desse a aquiescência institucional. Em

outras palavras, na perspectiva dos interesses hegemônicos, se há uma legislação

em contraponto ao desequilíbrio do mercado de trabalho, ela deverá ser abrandada,

para que a liberdade em explorar o trabalhador, ao sabor da conjuntura, não sofra

restrições.

Por outro lado, a relação direta com o trabalhador com vistas à

extração da mais-valia (trabalho não pago) é apenas uma das faces do processo de

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acumulação ampliada do capital. Vimos anteriormente que nas formas não

tipicamente capitalistas, especificamente na agricultura camponesa, não é o

trabalho, mas o produto que o contém, que irá compor a taxa de lucro dos

capitalistas.

Portanto, somente o entendimento do processo de produção como

um todo é que nos permitirá entender o sentido da monopolização do território pelo

capital. Conforme já assinalamos, a classe camponesa controla, ao mesmo tempo,

a força de trabalho e os meios de produção, o que a diferencia das demais classes.

Em face dessa especificidade, o campesinato integra o sistema de trocas mercantis

através da venda da sua produção e não do seu trabalho, como o fazem os

assalariados. Em outras palavras, o que os camponeses vendem, no capitalismo, é

o produto no qual está contido o trabalho da família, uma distinção essencial em

relação aos demais trabalhadores, que têm para vender unicamente a mercadoria

força de trabalho.

Isso posto, é necessário lembrar que a relação de assalariamento se

justifica unicamente pela existência de meios de produção que necessitam de força

de trabalho para acioná-los. Assim, para que haja extração de mais-valia, ou

reprodução ampliada do capital, há uma condição prévia: que esse capital já tenha

sido produzido. Assinala Martins (1995, p. 170, 171)

[...] é muito importante discernir entre produção do capital e reprodução capitalista do capital. A produção do capital nunca é capitalista, nunca é produto de relações capitalistas de produção, baseada pois no capital e no trabalho assalariado. Quando o dinheiro, a riqueza entra nesse último tipo de relação, já não estamos diante da produção capitalista, mas da reprodução capitalista do capital. Só a reprodução é capitalista. Mesmo o crescimento deste capital não é produção, mas reprodução capitalista ampliada.

Assim, é preciso identificar os caminhos nos quais se dá a produção

do capital. Ao reiterar que essa não é produto de relações capitalistas de produção,

Oliveira (1986, p. 26), assevera

[...] o desenvolvimento do modo capitalista de produção supõe, na sua essência, a necessidade de criar, de fazer nascer os capitalistas, a sua base social. [...] a ampliação da classe burguesa não se faz apenas pela hereditariedade dos capitalistas, mas sobretudo no processo de produção do capital.

Com isso, esse autor adverte que a chamada acumulação primitiva

é parte integrante e contínua da contraditória reprodução do capital, sendo

equivocada a idéia de que a mesma ocorreu apenas no início do capitalismo.

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Portanto, os próprios capitalistas estão permanentemente envolvidos em dois

processos distintos: na reprodução do capital, via trabalho assalariado e na

produção de capital, através da sujeição da renda da terra. É através deste segundo

mecanismo que os mesmos realizam a metamorfose da renda da terra, produzida

por relações camponesas (não capitalistas, portanto) em capital. Vejamos como

Marx se pronuncia a respeito da renda da terra.

Toda renda fundiária é mais-valia, produto do trabalho excedente. Na forma menos desenvolvida, é diretamente produto excedente, a renda natural. Mas, no modo capitalista de produção, a renda fundiária é sempre sobra acima do lucro, acima da fração do valor das mercadorias, a qual por sua vez consiste em mais-valia (trabalho excedente). Por isso, erra-se quando então se procura explicar a renda fundiária, aí componente particular e específico da mais-valia, recorrendo simplesmente às condições gerais da mais-valia e do lucro. (MARX, 1974, p. 728).

Esclarecida essa questão, convém lembrar que o sentido da

monopolização do território pelo capital está exatamente na sujeição da renda da

terra. Assim, é necessário realçar os mecanismos de geração da renda da terra,

para então passarmos às especificidades do sistema de integração.

No caso em questão, a renda da terra é gerada pelo trabalho

familiar camponês e está contida nos produtos que os camponeses colocam no

mercado. Vimos que interessa aos capitalistas, nos casos em que tais produtos se

constituem matéria-prima para a indústria, ou simplesmente ao intermediarem a

relação entre produtor e consumidor final, se apropriarem da renda da terra. Em

outras palavras, sabendo-se que apenas o trabalho é capaz de criar valor, os

capitalistas dele se apropriam, ao comprar a produção camponesa a um preço

inferior ao valor trabalho nela contido.

Por essa razão, ao se falar em produção do capital, é necessário ter

clareza que a mesma pressupõe a sujeição da renda da terra gerada pelo trabalho

camponês. Não se trata, portanto, de sujeição do trabalho ao capital, mas de uma

relação em que a troca envolve a produção já concretizada. É por essa razão que

convém buscarmos em Martins (1995, p. 173-175), a devida definição dos termos.

[...] a noção de sujeição formal do trabalho ao capital está originalmente relacionada à expropriação dos trabalhadores [...]. Essa sujeição não representaria, nenhuma mudança no processo de trabalho. Ele continuaria sendo realizado exatamente como era na produção artesanal doméstica. Só que agora o artesão, transformado em trabalhador assalariado, já não trabalha para si mesmo, mas para o capitalista [...]. O passo seguinte é o capital se assenhorear não só do resultado do trabalho, mas também do modo de trabalhar [...] na sujeição real do trabalho ao capital, o conhecimento se

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restringe a um pequeno aspecto da produção [...]. Na medida em que o produtor preserva a propriedade da terra e nela trabalha sem o recurso do trabalho assalariado, utilizando unicamente o seu trabalho e o de sua família, ao mesmo tempo que cresce a sua dependência em relação ao capital [...]estamos diante da sujeição da renda da terra ao capital.2

Como vimos, a produção do capital está vinculada à sujeição da

renda da terra. A metamorfose da renda da terra em taxa de lucro (mais-valia,

portanto) para a indústria deriva exclusivamente da quantia de trabalho não pago

contido nas matérias-primas a serem processadas. Assim se explicita a diferença

entre produção e reprodução ampliada do capital, uma vez que a segunda ocorre

apenas no momento em que a mais-valia é extraída diretamente dos assalariados

empregados na produção industrial.

Dessa maneira, além dos capitalistas rebaixarem ao máximo o

salário dos trabalhadores, a outra possibilidade de aumentarem a taxa de lucro

está na capacidade dos mesmos depreciarem os preços das matérias-primas.

No entanto, caso essa relação entre agricultura e indústria seja

travada entre dois capitalistas, haverá uma disputa ferrenha entre ambos em torno

dos preços da produção, pois esse definirá o destino da taxa da mais-valia dos

trabalhadores. Portanto, preços baixos indicam que os capitalistas da agricultura

estão cedendo uma parte de seu lucro (mais-valia) aos industriais. Preços altos

indicam que os proprietários capitalistas estão abocanhando a maior parte da mais-

valia gerada na agricultura, restando aos capitalistas se apropriarem da mais-valia

gerada na transformação dessa em produto final.

Vejamos, porém, os possíveis desfechos quando a relação entre

agricultura e indústria envolve camponeses e capitalistas:

- Ao cair o preço das matérias-primas, uma parte da renda presente na produção

camponesa vai para os industriais que a metamorfoseiam em capital, produzindo e

aumentando assim a sua taxa de lucro (mais-valia). Nessas ocasiões,

freqüentemente o campesinato empobrece.

- Diante do aumento dos preços das matérias-primas, a taxa de lucro dos

industriais pode ser mantida através do aumento proporcional do preço do produto

final. Nesse caso, o campesinato fica com uma parte da riqueza social da sociedade

capitalista e, eventualmente, poderá enriquecer-se.

- Os camponeses podem receber pelas matérias-primas o equivalente ao valor do

trabalho aí contido, ou seja, eles ficam com toda a renda produzida. Isso lhes

2 Grifo do Autor.

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permite se reproduzirem, via-de-regra, como camponeses remediados, enquanto

que os capitalistas mantêm a taxa de lucro oriunda da atividade industrial.

- Cai o preço do produto final e, para permanecer no ramo, os capitalistas manterão

sua taxa de lucro pagando menos pela produção camponesa. Ao entregar barato o

produto de seu trabalho, seja vendendo diretamente aos consumidores, seja

repassando-o aos capitalistas, o campesinato estará doando à sociedade como um

todo uma parte do seu trabalho, a renda da terra. Nessa situação, a tendência de

diminuição dos salários se impõe, porquanto os trabalhadores gastarão menos para

suprir suas necessidades básicas.

Considerando que a elevação da taxa de lucro, ou minimamente a

sua manutenção, é o fundamento do investimento capitalista na indústria, é

evidente que prevalecem as situações em que a maior parte da renda camponesa é

apropriada pelos industriais, através da maior depreciação possível da produção

carreada para a indústria.

Por outro lado, lembramos que os mecanismos de apropriação da

renda da terra não estão restritos às situações destacadas, pois há outras esferas

em que a renda camponesa é apropriada, como na intermediação do capital

comercial, na ação do capital financeiro, no mecanismo de preços estabelecido pelas

indústrias de insumos e máquinas, enfim, são diversas as situações em que essa

transferência se dará.

Posto isso, é possível percorrer as formas de sujeição da renda

camponesa, independentemente das manifestações de incorporação de tecnologia

ou vinculação ao mercado. Como se poderá observar, sua integração nesses termos

está relacionada ao grau de monopolização do território pelo capital.

Ainda que pareça redundante, é bom lembrar que a monopolização

à qual nos referimos não se dá de forma hegemônica dentro da fração camponesa

do território, seja na escala do bairro rural seja no interior das respectivas unidades

familiares. É na combinação de diferentes atividades que se definem os níveis de

sujeição da renda e, por conseguinte, a capacidade que cada família possui em retê-

la.

Desse modo, a diversificação da produção é uma maneira de se

proteger das formas predatórias de extração de renda, perpetradas por diferentes

agentes do capital. Desse modo, quanto maior for a variedade de cultivos, criações e

demais atividades afeitas, menor a vulnerabilidade e maior a possibilidade dos

camponeses se apropriarem da renda gerada internamente. Combinado a isso, um

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caminho possível de apropriação máxima da renda gerada internamente se define

pela eliminação dos intermediários na comercialização da produção.

No entanto, é necessário destacar que a eliminação daqueles que se

interpõem entre tais produtores e os consumidores não é tarefa fácil, sendo poucas

as famílias que conseguem consolidar estratégias nesse sentido. Quando o fazem,

em geral está em jogo apenas um ou outro componente da produção e um volume

inferior à capacidade produtiva dos mesmos.

Por essa razão, impera a monopolização sobre as parcelas

camponesas do território capitalista. Não há dúvida que essa prática se apóia em

diferentes formas de drenagem da renda, que incidem ao mesmo tempo no bairro

ou até no interior de cada unidade camponesa. Em algumas situações, os

fundamentos comuns e as formas de atuação de tais organizações apontam para

aquilo que denominamos intervenção do capital na organização das atividades

internas aos sítios. É sobre elas que nos deteremos.

4.1. A integração como expressão da intervenção capitalista no sítio camponês e a

sujeição compulsória da renda da terra

A parceria com o agricultor poderá contribuir para a redução dos custos de produção dos empresários e para a melhoria da qualidade dos produtos cultivados. O empresário pode estabelecer os critérios de segurança alimentar mais convenientes e o agricultor se beneficia com o salto de qualidade, que talvez levasse anos para conseguir sozinho.(ARCO, 2002, p.17).

O sistema de integração, eufemisticamente designado parceira,

como indica a citação, encontra-se bastante disseminado no Norte do Paraná, com

destaque para avicultura e sericicultura, sendo controlado por empresas dos mais

variados portes, inclusive multinacionais, como no caso da sericicultura. Uma outra

modalidade de integração vem sendo experimentada no interior do sistema

cooperativista: trata-se da fruticultura, cuja produção se destina desde o mercado

regional, no caso das frutas in natura, até o internacional, no caso do suco

concentrado. Por se tratar de uma relação diferenciada, visto que a renda da

atividade é apropriada pelos próprios produtores, a mesma será analisada em

separado.

No contexto da integração empresarial, se limitados pela referida

denominação, poderíamos supor que se trata de uma relação constituída por partes

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que se combinam e se complementam harmonicamente, daí o sentido do seu

funcionamento como sistema.

Contudo, não é possível admitir que a integração seja instituída

nesses termos, em vista da composição de classes da sociedade em que vivemos.

Foi com o intento de apontar seus fundamentos, bem como a maneira como são

distribuídas as vantagens dessa relação, que optamos por resgatar a interpretação

que introduz esse tema.

A nosso ver, a mesma sinaliza para a necessidade de ultrapassar o

caráter formal do código semântico, cuja constituição não deixa de estar vinculada

aos interesses hegemônicos de cada momento histórico. No caso em questão, o

sentido ameno do termo mais se presta à camuflagem de conflitos próprios de

situações que envolvem a apropriação da riqueza gerada nos interstícios da

produção camponesa.

Como vimos anteriormente, um dos caminhos para o aumento da

taxa de lucro dos capitalistas está na sua capacidade de arbitrar os preços da

produção agrícola. Nos casos em que o peso da matéria-prima é alto em relação ao

produto final, como na avicultura e sericicultura, não se trata apenas de definir os

preços, mas igualmente de ter assegurado o fornecimento das aves e casulos.

Portanto, na perspectiva das empresas que as processam, a integração é uma saída

salutar para a elevação da taxa de lucro da atividade industrial, dado o poder que

as mesmas têm em ditar os preços e controlar o fluxo e os padrões da produção

primária.

É essa prerrogativa que nos permite vislumbrar a intervenção das

integradoras na lógica organizativa do sítio camponês, sobretudo no que concerne à

atividade objeto da integração, senão vejamos.

Na integração, há uma série de regras impostas aos produtores, o

que indica que as empresas monitoram diretamente a produção das matérias-

primas que alimentam a indústria, pois a taxa de lucro das integradoras depende

diretamente da equação: qualidade, quantidade e preços das mesmas.

Desse modo, não resta dúvida de que a integração abre caminho

para a produção do capital, através da definição dos preços da matéria-prima, o que

seria o mesmo que admitir que, através da sujeição da renda da terra ao capital, se

está apropriando do trabalho contido na produção camponesa. Eis aí a razão pela

qual esses são tomados pelas integradoras como “parceiros” ideais.

Pelo fato de conservarem os meios de produção, os camponeses

comparecem no mundo do trabalho como entidades familiares. Ao contrário dos

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proletários, necessariamente trabalhadores individuais que se apresentam

descolados de quaisquer prerrogativas e em condições legais de firmar contratos, os

camponeses conservam a unidade entre o trabalhar e o reproduzir-se socialmente,

produzindo uma geografia peculiar no campo, diferenciada tanto em termos

espaciais quanto temporais.

Tendo na família a base de sustentação, há que se supor que os

seus membros concorrem igualmente para a manutenção das respectivas unidades

produtivas, guardadas as conveniências de cada núcleo familiar. Esse contexto

acaba por motivar uma divisão do trabalho, em geral pautada em gênero e faixa

etária, embora não prevaleça uma rigidez intransponível.

Ao contrário da norma capitalista, na qual os contratos são

firmados com base em requisitos pautados na capacidade produtiva dos indivíduos,

faz-se necessário esclarecer que a importância do trabalho camponês não equivale

mecanicamente ao grau de esforço físico despendido; tratamos de uma dinâmica

produtiva peculiar que, de modo algum, pode ter como parâmetro a forma

convencional existente nas empresas.

Na primeira, as necessidades da produção é que definem as regras

de contratação e manutenção dos trabalhadores. A falta de aptidão para o

desempenho de funções predefinidas determina a substituição dos mesmos por

outros que possam fazê-lo a contento, mesmo que as limitações surjam pelo

desgaste de anos de labor do trabalhador.

Aos camponeses, o caráter familiar da exploração impõe outro

ritmo. Em se tratando de famílias nucleares, à força de trabalho do chefe da família

é somada a da esposa e dos filhos, cuja intensidade também varia de acordo com a

conjuntura. Por outro lado, há casos em que a unidade reúne várias famílias

constituídas com o casamento dos filhos, que juntas ou separadamente dividem a

utilização produtiva do sítio. Dessa maneira, indivíduos nas mais diferentes

condições de força física e vitalidade têm um papel produtivo a desempenhar.

Ao ter sob sua responsabilidade a produção da matéria-prima

contratada pela indústria, é a família que se encarrega de fazê-lo. Nos casos de

integração por nós analisados, ficou claro o concurso de vários membros da família,

senão de todos, para a realização das tarefas necessárias.

Ocorre que a unidade camponesa tem como marca a diversificação.

É pouco comum a dedicação exclusiva a uma atividade, de modo que os

trabalhadores dividem o seu tempo, que é regido por um calendário sazonal. Isso

não só dificulta a contabilização do tempo necessário a cada uma delas como

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implica o aumento da produção bruta. Em outras palavras, isso significa que a

margem de manobra na depreciação da matéria-prima aumenta, já que os

camponeses incrementam a renda em outras fontes.

É nesse ponto que a integração se sustenta. Tanto na avicultura,

quanto na sericicultura, as tarefas não são ininterruptas ao longo do dia e

tampouco ao longo do ciclo produtivo. Por isso, várias atividades paralelas se

combinam, o que, por fim, representa aproveitamento máximo da força de trabalho

e, por conseguinte, geração ampliada da renda bruta.

Como pensar essa dinâmica dentro de uma unidade capitalista?

Sabe-se que o sentido das fiações de seda está na produção dos casulos, e o que

alimenta os abatedouros avícolas é a criação dos frangos; no entanto escapa à

racionalidade dessas empresas produzi-los, pois além da inconveniência em se

envolver com atividades paralelas que possam ser conciliadas com o respectivo

tempo ocioso das mesmas, há o parâmetro mínimo de remuneração que permita a

reprodução da força de trabalho.

Hipoteticamente, caso os capitalistas as empreendessem, deparar-

se-iam com períodos de ócio dos trabalhadores assalariados, com o agravante de

que os contratos legais não têm a fluidez que as respectivas atividades requerem.

Isso representaria pagamento de salário por horas não-trabalhadas, em si

incompatível com a lógica de reprodução do capital.

Além disso, é bom lembrar que a agricultura como um todo, e os

setores objetos da integração em particular, têm um ritmo próprio, variável de

acordo com as fases do ciclo produtivo e com algumas demandas que a produção

industrial não conhece.

Isso quer dizer que a geração de bens primários é um processo

gradativo e contínuo, que não permite interrupções. Ademais, como a avicultura e a

sericicultura envolvem criações, é necessário vigilância constante, para assegurar

condições estáveis no ambiente e para que não falte alimento, sendo igualmente

indispensável a prevenção contra ataques de pragas e predadores.

Mesmo mudanças climáticas corriqueiras, como calor ou frio

acentuados, chuvas ou ventanias, podem comprometer severamente a produção.

Portanto, aqueles que se dedicam a tais atividades devem estar disponíveis 24

horas por dia, mesmo que não haja nenhuma ocorrência fora da rotina.

Conciliar essas exigências a um contrato de trabalho não é uma

saída desejável aos capitalistas, regidos por leis fundamentadas na lógica da

indústria. Nessa, tempo de trabalho e tempo de produção coincidem, de modo que

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enquanto o trabalhador estiver realizando suas tarefas, estará criando valor, sobre

o qual apenas uma parte será restituída sob a forma de salário.

No caso da agricultura, esses tempos não são coincidentes. O tempo

da produção é o tempo da natureza, em que a ação humana entra apenas como

coadjuvante. Em outros termos, o trabalho auxilia a produção, mas não pode

realizá-la. Há que se esperar todo um ciclo, que chega a se prolongar por meses e

até por anos.

Enquanto isso, as demandas são as mais diversas. Há fases em que

é necessário trabalho intenso; outras implicam poucos cuidados; por fim, outras

dispensam a intervenção, a não ser que haja uma ocorrência pouco habitual, razão

direta da necessária vigilância.

Marx, ao identificar tempo de trabalho e tempo de produção, e

vislumbrar seus efeitos diferenciados na agricultura e indústria, já trazia indicações

para entendermos o sentido da recriação de relações não-capitalistas na

agricultura.

A dependência das forças naturais interfere na criação de valor,

que, conforme vimos, é um atributo exclusivo do trabalho. Dessa maneira, o tempo

de sua realização se constitui um empecilho ao investimento capitalista, que tem

por meta o retorno imediato. Essa seria uma das brechas abertas ao trabalho

familiar camponês, envolto em uma temporalidade que mais se aproxima do tempo

da natureza do que do tempo real do capital.

É visto que essa dinâmica igualmente se traduz na proporção de

renda embolsada pelos camponeses, porque o tempo da produção não agrega valor

algum ao seu trabalho. Essa é mais uma das condições objetivas que interditam a

especialização da produção camponesa3, receita prescrita por alguns dos arautos

dos métodos produtivistas. É por isso também que a diversificação é uma prática

inalienável entre os camponeses, exceto quando o patamar de renda e a segurança

alimentar fazem da especialização um trunfo, tal qual nos empreendimentos de

escala.

Se, por um lado, a restrição a uma única atividade potencializa a

variável produtividade, por outro, maximiza o fator risco. Contudo, vale a pena

lembrar que os impactos provenientes de condições anômalas não afetam com a

mesma intensidade os diferentes estratos de produtores, pois os lucros auferidos

pelos maiores, dada a escala da produção, permitem a absorção de perdas

3 A especialização aqui destacada tem o sentido inverso da diversificação da produção.

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ocasionais, sem maiores conseqüências. O mesmo não se aplica aos pequenos, para

quem os contratempos da produção ou do mercado afetam severamente o equilíbrio

da unidade, cujas reservas dificilmente são suficientes para suprir as necessidades

de consumo e de investimento para que um novo ciclo produtivo possa ser iniciado

e tenha fim.

Apesar disso, os capitalistas demonstram pouco interesse nas

atividades mais instáveis, nas quais os prejuízos são mais suscetíveis, razão pela

qual pode-se observar nessas o domínio quase que absoluto dos camponeses. Como

veremos adiante, a lógica sobre a qual se estruturam tais unidades funda um ciclo

econômico que, favorecido pela pequena escala, mas não exclusivamente em virtude

dela, conserva muitos elementos da produção artesanal.

A capacidade de dispensar cuidados esmerados às plantas ou

animais, sempre que necessário, ao reduzir o efeito dos fatores de risco, assegura,

em igual medida, o ingresso da produção bruta na unidade. Esse é o diferencial em

relação às explorações capitalistas, que não têm como se adequar a um modelo de

eficiência produtiva nesses termos. Eis aí uma das brechas à recriação do

campesinato.

Com efeito, ao repassar a esses produtores a geração das matérias-

primas que sustentam a indústria, as empresas integradoras se mantêm no ramo

da produção de alimentos sem que tenham que enfrentar o maior desafio: a

instabilidade dos fatores que forçosamente atuam na geração dos bens primários.

Em razão das condições aproximadas em que são desenvolvidas a

sericicultura e a avicultura, preliminarmente as analisaremos em conjunto. Por sua

vez, por representar uma forma diferenciada de integração, a fruticultura será

analisada posteriormente.

As atuais técnicas de criação de frangos e bichos da seda poderiam

sugerir uma aproximação com os métodos da produção em série da indústria;

ambas são realizadas em forma de confinamento, objetivando resguardar o ritmo de

desenvolvimento das espécies sem a interferência de agentes perturbadores.

Nessas, o trabalho não se restringe à higienização e manutenção

dos barracões, alimentação e demais cuidados cotidianos requeridos tanto pelas

aves quanto pelos insetos. A sucessão de eventos sobre os quais não se tem

controle, como chuvas, frio, calor etc., bem como a possibilidade de infestação por

organismos patogênicos, faz com que o acompanhamento permanente seja

fundamental para evitar quebras na produção.

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Por tratar-se de espécies submetidas à seleção genética voltada à

depuração das raças, objetivando o refinamento das características que melhor

atendem as demandas do mercado, ambas estão longe de apresentar uma

adaptação compatível com a instabilidade do ambiente que as envolve. Assim, a

baixa resistência a toda e qualquer perturbação afeta em diferentes proporções os

resultados da atividade, considerando os padrões requeridos pela indústria.

Entretanto, essa tende a desconsiderar as condições de

instabilidade que são próprias da dinâmica produtiva no campo, instituindo

parâmetros a partir de condições criadas em ambiente artificial. Concretamente,

esse é o sentido dos critérios de qualidade, resguardados através de uma avaliação

da eficiência produtiva dos integrados, realizada ao fim de cada ciclo.

É o resultado dessa avaliação que define os valores monetários a

serem pagos pela produção. Portanto, os integrados não têm como calcular o valor

de sua produção, em vista da falta de controle ou da dificuldade em apreender os

critérios fixados pela empresa integradora.

Como veremos, a incompatibilidade entre os modelos de avaliação

estáticos, criados pela indústria em condições artificiais, e a variabilidade dos

fatores que efetivamente atuam no ciclo produtivo, é uma das faces do conflito que

medeia a relação de integração.

Por ocasião da classificação dos lotes entregues na indústria, a qual

definirá os preços a serem pagos, os maus resultados, como produção baixa ou fora

do padrão, são atribuídos a dois fatores: qualidade das instalações e métodos

inadequados de manejo. Embora construída pelos integrados por conta e risco, a

estrutura de produção mais parece uma extensão da indústria. Além das

instalações se prestarem exclusivamente para esse fim, os criadores estão

permanentemente sob pressão para readequá-las conforme os patamares de

produtividade, continuamente redimensionados.

Assim, ao estabelecerem os critérios de preços da matéria-prima, as

integradoras têm como trunfo o argumento de que a baixa rentabilidade resulta da

inobservância das orientações quanto às instalações e ao manejo. Trata-se de um

foco permanente de conflito, pois os camponeses têm dificuldade em renovar os

equipamentos, ao sabor das novidades do setor, até mesmo porque os patamares de

renda alcançados pela atividade são incompatíveis com tais gastos. Se os custos

iniciais para o ingresso na atividade já são altos, limitando o número dos que

conseguem se integrar, o que não dizer da readequação à crescente corrida

tecnológica.

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Nesse quesito, fica bastante claro que as empresas são as

portadoras das necessidades que precisam ser criadas. Cabe a elas apresentar as

novidades, oferecendo orientações e pareceres técnicos que, em essência, se

constituem formas dissimuladoras da constante pressão para que os produtores se

modernizem. É essa estratégia que lhes permite transferir o ônus do

redimensionamento dos padrões de qualidade e produtividade.

Tudo isso impõe aos camponeses uma forma de investimento que

contraria a lógica da versatilidade produtiva, em face do caráter específico das

instalações, que não se prestam a outro fim. Esse é um dos motivos pelos quais,

uma vez integrados, os camponeses tendem a permanecer na atividade, apesar de

todos os percalços. Em relação diretamente proporcional, isso dá margem para que

as empresas possam jogar com o mercado, tanto na perspectiva de estoques quanto

na de preços, pois o respaldo está nos produtores, importantes depositários de

eventuais prejuízos.

Por fim, há que se destacar que os contratos celebrados entre

ambas as partes não atrelam as primeiras aos integrados, por serem meros

fornecedores da matéria-prima que as mesmas necessitam. As cláusulas

contratuais rezam que a vigência dos contratos é proporcional à capacidade de

atendimento das exigências acordadas.

Em outros termos, a condução da atividade em desacordo com as

determinações das empresas podem implicar na rescisão contratual, gerando nesse

caso não apenas a imediata desestruturação das atividades internas, mas também

um tipo de perda de recursos financeiros que não pode ser revertida a curto prazo,

posto que os investimentos contidos nas instalações se perdem na mesma

proporção de sua ociosidade.

Razões das mais diversas podem provocar o “desligamento” dos

integrados do sistema, o que demonstra um desequilíbrio no jogo de forças. É o

deslocamento das estruturas decisórias para fora das unidades camponesas que

acaba alimentando as relações de subordinação que certamente interfere na

autonomia camponesa.

Vejamos então as razões pelas quais os integrados tudo fazem para

se acomodar a ela. Lembramos que, além desses, muitos outros almejam a

integração, não o fazendo em virtude da necessidade de investimentos, em geral

incompatíveis com os recursos disponíveis. É evidente que nesse movimento há

também os que já foram integrados e rechaçam a experiência, da mesma forma

como há muitos que nem sequer cogitam tal possibilidade.

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Aí está em jogo uma questão essencial: a sobrevivência. E entendê-

la por intermédio da integração, prática que aparentemente viola a autonomia

camponesa, seu princípio mais sagrado, requer um olhar mais cuidadoso para a

diversidade de estratégias empreendidas pelos camponeses, o que se fará mais

adiante.

Por ora, nos parece indubitável que a integração é altamente

vantajosa para os empresários, como o indica a citação que introduz esse tema,

bem como as análises subseqüentes que nela puderam se inspirar. Também é

verdadeiro que a adesão dos camponeses à integração se dá livremente, uma vez

que não são coagidos pelas empresas. Conclui-se assim que há conveniências

recíprocas, ainda que em diferentes medidas. A isso Raffestin (1993, p. 38-59)

classifica de jogos de soma não nula, conforme vemos nessa passagem:

As relações podem se dar de infinitas maneiras [...]. Há sempre um certo grau de autonomia, mesmo que ela se inscreva numa situação trágica. Trágica no sentido de que a recusa da relação pode significar a revolta ou a morte para uma das partes [...]. Tudo isso para dizer que o trunfo raramente é único [...] semelhante a jogos de soma nula, no sentido de que se uns perdem, outros ganham [...]. Em outros termos, em situações de soma não nula os trunfos são repartidos. Na verdade, as relações são, na maioria das vezes, semelhantes a jogos de soma não nula.

São indicações desse teor que nos convidam a romper com

entendimentos unilaterais acerca de relações econômicas travadas entre partes

desiguais. Tomar a integração a partir de uma contraposição simplista, pautada no

pressuposto de que se a mesma é vantajosa para a empresa, obrigatoriamente os

integrados só têm a perder, é um equívoco.

Questões derivadas da conjuntura mais geral que envolve a

agricultura, sobretudo a agricultura familiar camponesa, fazem com que os

integrados desfrutem de uma série de benefícios que os demais não conseguem

obter quando da inserção direta no mercado. É o próprio mercado que faz da

integração uma estratégia de reprodução camponesa, senão vejamos:

Vivemos sob a égide do capital monopolista, cuja força oligopolista

dá o tom no mercado. Isso se aplica a todos os setores, mas no caso da agricultura,

os efeitos são bastante visíveis.

Há nesse caso uma ação de mão dupla que alimenta a taxa de lucro

nos dois extremos da produção: de um lado, controlando os preços e ditando as

regras no mercado de insumos e equipamentos indispensáveis para, consumada a

produção, controlar os estoques e os preços ao sabor de suas conveniências.

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A dimensão desse jogo escapa à maioria, que atribui o flagelo da

fome ao estrangulamento na oferta de alimentos. E pensar que a maior dificuldade

dos camponeses é justamente conseguir inserir sua produção no mercado, reinado

soberano da cupidez capitalista! Não é por outro motivo que sobram alimentos

enquanto multidões perecem por não tê-los. Mercado abarrotado é sinônimo de

demanda reprimida pela margem de lucro incompatível com o poder de compra dos

trabalhadores. Tudo isso alimenta um ciclo de baixo retorno monetário aos

produtores que, individualmente, têm pequena expressão.

É evidente que nem todos os produtos agrícolas se comportam

igualmente, nem no tempo nem no espaço. Há uma variação bastante grande na

aceitação dos mesmos, de modo a criar entre os produtores pequenos uma corrida

interminável por opções que garantam maior rentabilidade.

Destacamos os pequenos, porquanto os produtores maiores se

situam em patamares distintos no que tange à escolha do que e como produzir:

além de terem seu perfil produtivo definido em razão da equação custos -

benefícios, eles têm a seu favor a escala da produção e a desobstrução dos

caminhos que conduzem à inserção no mercado.

Esse é outro ponto que depõe a favor da integração, já que, ao

integrarem-se, os camponeses têm um destino certo para sua produção. Além

disso, algumas dessas práticas compreendem um ciclo curto, em que o giro

monetário igualmente é comprimido. Esse é o caso dos sericicultores e dos

avicultores que, num intervalo médio de 30 a 50 dias, respectivamente, já fecharam

um ciclo e reiniciaram outro, tendo recebido o pagamento referente à produção

entregue.

Esse é um diferencial em relação às culturas tradicionais, em geral

de ciclo semestral e anual, sem mencionar o tempo de espera das culturas

permanentes. O ingresso monetário, nesses casos, igualmente se prolonga na

mesma proporção, criando dificuldades para o pagamento das despesas correntes,

como é o caso de energia elétrica, combustível, bem como dos gastos gerais com a

manutenção da família.

Não é de se estranhar, portanto, que a maioria dos camponeses

integrados, ao avaliarem as vantagens da integração, nem chegam a citar o

rendimento global da mesma, mas a garantia de uma renda mensal ou bimestral,

que lhes permite manter-se enquanto se completa o ciclo das demais atividades

desenvolvidas paralelamente.

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Igual conclusão podemos tirar ao observarmos o perfil dos

produtores que, na perspectiva das empresas, melhor se adaptam à integração,

situando-se entre os que produzem melhor do ponto de vista quantitativo e

qualitativo: trata-se dos camponeses que desenvolvem a atividade juntamente com

a família, sendo comum o concurso de atividades paralelas compatíveis com a

atividade objeto da integração, como é o caso de determinados cultivos e criações.

Depreendemos assim que a integração se sustenta entre os mesmos

por se tratar de uma atividade complementar, não sendo raro seu caráter de apoio

às demais. Isso se manifesta na combinação de ciclos de tarefas sazonais ou ainda

na geração de subprodutos de grande valia para a manutenção da unidade, como é

o caso da cama de frango na avicultura.

Dessa maneira, as atividades alvo da integração, em essência

incompatíveis com os métodos e indesejáveis aos propósitos da indústria, até

mesmo pelo custo em adequar as demandas da produção às normas que regem o

trabalho assalariado, são perfeitamente compatíveis com a organicidade

camponesa. Isso porque a segunda está alicerçada em uma estrutura produtiva

multíplice, encerrada num ciclo em que as ações se combinam ao ritmo de um

tempo que não é o da reprodução do capital, mas o tempo da reprodução social.

Enfim, é o caráter complementar da integração que acena para uma

forma de recriação camponesa, que permite ver sob outro prisma a intervenção em

relação a uma atividade específica, para que as demais possam ser desenvolvidas

com menores sobressaltos. Apoiando-nos em Oliveira (1994), entendemos ser essa

uma estratégia de preservação dos meios de produção e, por conseguinte, da

própria autonomia que deriva da diversidade produtiva centrada na unidade

familiar.

4.1.1. A avicultura

Atualmente o Paraná é o maior produtor de carne de frango do

Brasil, sendo produzidas no ano de 2001 um milhão, duzentas e dez mil toneladas,

o que corresponde a 18,4% da produção nacional4. Na região estudada, em 2001,

havia 915 produtores de aves de corte, sendo de mais de 16 milhões a capacidade

de alojamento de aves, respectivamente voltadas para cinco empresas,

4 Cf. Unifrango, 2002.

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todas atuando no sistema de integração.5

É importante destacar que a territorialidade da avicultura está

intimamente relacionada à alocação física das empresas, em vista das restrições

que as distâncias entre os aviários e os abatedouros representam para a

viabilização da atividade.

Nesse contexto, as empresas travam entre si uma luta ferrenha

para a demarcação dos respectivos limites de atuação. Entretanto, como em

qualquer situação em que está em jogo o controle sobre o território, os embates são

permeados por períodos de estabilidade e acomodação. Atualmente ligadas por

dificuldades e interesses comuns, tendo que enfrentar a concorrência de gigantes

do setor, caminham para uma padronização no que se refere às normas e

procedimentos adotados em relação aos integrados, esforçando-se para fazer valer

um acordo que define os respectivos limites de atuação, a fim de evitar

superposições, o que favoreceria a concorrência e, por extensão, os próprios

integrados.

Lembramos que o território respectivamente monopolizado por

essas empresas, em termos de escala, apresenta uma fluidez compatível com a

conjuntura que rege o mercado avícola. Já foi destacado que a sobrevivência delas

deriva da capacidade de arbitrar a produtores autônomos os preços e padrões da

matéria-prima essencial para o seu funcionamento.

Dessa maneira, durante as fases de implantação e expansão da

capacidade instalada, foi empreendido ponderável esforço no sentido de garantir a

arregimentação de um número de produtores aptos a atenderem a capacidade de

abate e colocação da produção no mercado.

Nesse cenário, em que praticamente todas as empresas perseguiam

metas expansionistas, o assédio aos potenciais produtores ou mesmo aos

descontentes foi uma estratégia válida, mas as empresas perceberam que essa

situação de competição por produtores os fortaleceria, tornando mais difícil a

manutenção da integração com base em uma espécie de poder unilateral.

É nesse contexto que a associação para a defesa dos interesses

comuns se articula. Apesar de todos os entraves em sua implementação, as

implicações para os avicultores são enormes, pois o que move a sua constituição é o

rateio do território, com a respectiva homogeneização dos procedimentos e preços.

5 Dados obtidos a partir da compilação dos dados do Relatório Realidade Municipal da EMATER de 2001 de cada um dos municípios pesquisados.

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Esse empenho se explica pela total dependência das integradoras

em relação aos integrados, porquanto se não houver produtores dispostos a criar

aves, elas não têm como funcionar. Contudo, a cadeia avícola se estrutura a partir

de um conflito central, derivado da necessidade de conciliar dois ritmos opostos: a

criação das aves, ponto de partida da cadeia, deve ser rigorosamente controlada por

prazos, ao passo que o destino final do produto industrializado deve se enquadrar

em uma situação em que não há lugar para planejamento eficaz, por depender do

nem sempre previsível compasso da demanda.

A necessidade de rigor no planejamento está atrelada à

artificialidade na qual se sustenta a avicultura comercial, a começar pelo

nascimento das aves. Desde a fertilização e eclosão dos ovos, feitas em ambientes

inteiramente controlados, há uma programação elaborada com base em duas

variáveis: aviários disponíveis e estoque já industrializado. Apesar desse controle

lidar com as duas partes envolvidas na cadeia avícola, o produtor e a indústria, é a

demanda pelo produto que vai definir o volume da criação. Cumpre salientar que

ainda assim essa é uma das atividades mais versáteis da cadeia agroindustrial, em

razão do curto ciclo de criação e da atual capacidade ociosa de alojamento das aves.

Ocorre que a conversão alimentar é a palavra de ordem na

avicultura, ou seja, a rentabilidade da atividade depende da capacidade de produzir

carne com a menor ingestão possível de alimentos. Atualmente, a margem varia de

1,6 a 1,8 kg de ração consumida para cada quilo de frango vivo. Considerando um

ciclo médio de trinta e oito dias, o incremento de peso das aves é progressivo, razão

pela qual essa é a idade considerada ideal para seu abate.

A partir daí, há uma inversão na relação entre ingestão de

alimentos e ganho de peso, situação que torna indesejável a manutenção das aves

vivas. Porém, o abate deve pressupor a capacidade de inserir a produção no

mercado, por tratar-se de mercadorias perecíveis. É esse compasso que afeta

diretamente os produtores, pois dele depende a distribuição dos novos lotes de aves

a serem criadas.

Toda essa dinâmica envolve limites no estabelecimento de tratados

de cooperação entre as empresas concorrentes, já que o princípio da acumulação

ampliada pressupõe produção ascendente para todas. Segundo a Associação

Brasileira dos Produtores de Pintos de Corte, entre junho de 2001 e maio de 2002,

a produção nacional de carne de frango aumentou 18,2%, enquanto que a parte

destinada ao mercado interno cresceu 26,9%, em decorrência da redução do volume

exportado no período.

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Isso explica a razão pela qual cada uma das integradoras

empreende individualmente uma luta sem tréguas por mercados, ainda que em

uma situação na qual a demanda não se expande no mesmo ritmo. Isso evidencia o

fato de que tais empresas transitam em diferentes esferas: se na relação com os

integrados, determinadas conjunturas permitem celebrar alianças, o mesmo não se

dá no momento da venda da produção, quando a competição chega a ser

implacável.

Não obstante, a convergência de interesses é possível pelo fato de

que, ao se associarem, o que está em jogo não é apenas o rateio do território de

atuação e os procedimentos comuns na relação com os avicultores. A união de

forças propicia um fortalecimento nos jogos de interesse em que o Estado está

envolvido. Prova disso é que no ano de 2001, o setor avícola paranaense conseguiu

uma redução de 2% nas respectivas obrigações fiscais, em um cenário marcado

pelo recrudescimento da carga tributária.

São acertos dessa natureza que elucidam o jogo de interesses e de

forças entre o poder privado e o Estado. Apesar da significativa queda dos preços da

carne de frango no mercado mundial6, é possível vislumbrar como a taxa de lucro é

assegurada para a indústria: de um lado, através da parcial renúncia fiscal do

Estado, com a presumida socialização das perdas dela derivadas, de outro lado,

através do ônus que recai diretamente sobre os integrados, em vista da

padronização dos preços e padrões requeridos para a matéria-prima. Por

representar um poder desmesurado em relação aos integrados, a associação das

empresas acaba por instituir uma certa inércia entre eles, chegando a tornar inócua

qualquer mudança dentro do circuito da integração avícola.

Ainda assim, havendo a disposição para a ruptura do contrato, em

virtude de desencontros insuperáveis entre integrado e integradora, é comum haver

trocas de informações entre aquela, com a qual o integrado procura celebrar um

novo contrato e a antiga. Algumas vezes, esses contatos vão além da consulta sobre

a conduta do integrado, prática comum no meio empresarial no que tange às

referências pessoais dos trabalhadores. Na integração, a consulta lembra um aval,

que mais se aproxima da parceria do que da concorrência entre as empresas.

É a capacidade de estabelecerem um procedimento padrão em torno

de questões não conflitantes, e o sustentarem, como no caso em destaque, que

limita a rotatividade dos integrados, tornando-os quase que reféns de decisões

6 Segundo o Relatório FAO/GIEWS - Food Outlook, publicado pela FAO em maio de 2.002, entre os anos de 1996 a 2001, o preço internacional da carne de frango caiu 34%.

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unilaterais. Como vimos, ao não concordarem com elas, às vezes só lhes resta

abandonar a avicultura, com todas as implicações já destacadas.

Todavia, a união de forças para lidar com o elo mais fraco da cadeia

não cria fidelidade suficiente para suprimir as investidas individuais na ampliação

ou preservação do quinhão em termos de mercado. São esses movimentos que

definem a medida possível da parceria e a intensidade da concorrência, delimitando

as respectivas parcelas do território, na perspectiva da integração. Nos períodos

favoráveis à expansão, em virtude seja da conjuntura, seja da situação interna de

determinadas empresas, essas tendem a flexibilizar as normas, de modo a

assegurar o fornecimento ampliado de matéria-prima. É o momento de fazer

concessões aos produtores e, por conseguinte, administrar os atritos com as

demais.

Tudo é uma questão de momento. A empresa só funciona se tiver frangos para abater. Por isso, vamos atrás de produtores onde eles estiverem. Quando está sobrando, a empresa se dá ao luxo de impor a condição que ela quiser...mas quando está faltando é preciso correr atrás. Aí tem que oferecer vantagens, porque se não fizer isso, não consegue aumentar o número de fornecedores.7

Sinteticamente, essa é a dinâmica da monopolização do território

pelas empresas avícolas, cujos limites físicos são desenhados de acordo com a

dispersão das unidades produtoras que se encontram sob sua influência. Em

condições ideais, em que se verifica uma situação de equilíbrio entre a fatia de

mercado controlada por elas e a capacidade instalada dos criadores das aves, a

parcela do território sob a integração compreende um raio de cerca de 60

quilômetros em relação ao abatedouro.

Evidentemente, essa medida não é definitiva nem tampouco

genérica. Ao estabelecer os limites espaciais de ação, as empresas levam em conta o

custo representado pela distância entre as unidades produtoras e a empresa.

Assim, os cálculos referem-se às condições viárias da região, pela necessidade de

trânsito constante de mercadorias e pessoas entre ambos os pólos.

Em relação às primeiras, além das aves recém-nascidas, que exigem

rápida acomodação ao saírem das encubadoras, há também o deslocamento das

aves prontas para o abate. Em ambas as situações, a garantia de um transporte

rápido e seguro até o destino é decisiva na qualidade e produtividade do lote, dada

a sua fragilidade.

7 J.: Funcionário de uma das empresas do setor.

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Além disso, há a necessidade de transporte periódico da

alimentação, em geral duas vezes por semana, para que as aves possam ter sempre

à disposição ração fresca, fato que também interfere no seu desenvolvimento. É por

essa razão que aos produtores interessados em se integrar, não basta morarem

dentro do raio de ação da empresa, sendo imprescindível a existência de vias de

acesso conservadas, adequadas inclusive ao trânsito de veículos pesados, como

caminhões e carretas.

Por fim, há um importante tráfego de pessoal, envolvido no suporte

e prestação de assistência técnica aos produtores, uma das atribuições da empresa.

O distanciamento em relação às condições naturais de reprodução dos galináceos

desencadeia uma situação de ponderável dificuldade de adaptação ao meio, sendo

imperativo o monitoramento dos espaços de confinamento das aves.

Desse modo, as empresas necessitam de um quadro próprio de

técnicos especializados em manejo avícola, sendo estes o elo de ligação entre os

integrados e aquelas. Além de solucionarem os problemas físicos das aves,

intervindo quando há incidência de doenças ou mortes excessivas em virtude de

variações climáticas, fiscalizam o desenvolvimento da atividade, orientando e

cobrando sistematicamente dos produtores os cuidados mais adequados a uma

produção compatível com os padrões da indústria.

Considerando a necessidade da presença constante dos técnicos

nas unidades produtoras que, além de estarem dispersas, são muitas, é

compreensível que as empresas busquem minimizar as distâncias, optando sempre

que possível pela contratação daquelas geograficamente mais privilegiadas. Tais

medidas derivam do esforço em reduzir custos, uma vez que os níveis de dispersão

geográfica definem os gastos com transporte, mas não somente eles, interferindo

inclusive no dimensionamento do quadro de funcionários de campo.

Convém salientar que, uma vez designados pelas empresas, os

funcionários estão investidos de atribuições que vão além da solução dos problemas

técnicos dos avicultores. Além de serem pessoas de confiança das empresas, devem

conquistar a confiança dos integrados, até para que o trabalho possa fluir a

contento.

Esse requisito é tão importante na avicultura, que os técnicos são

figuras estratégicas tanto na relação entre integrados e empresas como entre as

próprias empresas. Isso porque a ação desses é fundamental para dirimir ao

máximo os conflitos derivados das decisões empresariais alheias aos interesses dos

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avicultores. Driblar a insatisfação desses é uma necessidade premente, em razão do

grau de exigência da atividade, no que concerne ao cuidado com as aves.

Todas as empresas estruturadas sob o esquema de integração por

nós visitadas foram unânimes em afirmar que a estabilidade nas relações com os

integrados é fundamental para bons resultados mútuos. A bem da produtividade,

não convém um clima de descontentamento entre os produtores, pois isso pode

afetar a dedicação nas tarefas cotidianas dentro do aviário.

E isso requer ponderação do técnico, porque o contato direto com os

produtores lhes oportuniza uma aproximação com o outro lado da integração. A

capacidade de negociar pequenas coisas em benefício dos integrados, sem que haja

prejuízo para as empresas que representam, pode ser decisiva em algumas

situações. Quando a prática dos técnicos está fundada nesses termos, floresce uma

espécie de reconhecimento por parte dos produtores, a qual se metamorfoseia em

verdadeira fidelidade, não à empresa, mas a esse funcionário específico. Assim, o

fetiche se instala, pois o fato do representante do capitalista tornar-se próximo dos

avicultores contribui para que esses se proponham a contornar insatisfações, o que

não deixa de ser positivo para a integradora.

Pudemos observar, no trabalho de campo, que o vínculo dos

integrados com os técnicos não é incomum, o que torna imperativo para as

empresas mantê-los em seu quadro funcional, sob pena de perderem importante

parcela de fornecedores. Em determinadas conjunturas, isso traria problemas para

as empresas, pois a baixa rentabilidade da atividade, em contraposição aos

elevados custos de implantação dos aviários8, torna desafiadora a tarefa de integrar

novos produtores, de acordo com o perfil desejado pelas mesmas.

Nós procuramos entender as dificuldades dos produtores, porque estamos no dia a dia com eles. Muitas vezes a gente releva algumas coisas, porque se levar tudo a ferro e fogo, acaba perdendo a confiança deles e aí não tem mais jeito de trabalhar. O integrado é mais do técnico do que da empresa. Pra onde ele ir, os integrados também vão. Eu mesmo não era dessa empresa, quando eu vim para cá, a maior parte dos que trabalhavam comigo vieram também.9

Vinda de um dos técnicos que atuam junto aos integrados, essa

declaração permite extrair elementos que podem auxiliar no desvendamento de

alguns dos interstícios do sistema, particularmente os que explicam a adesão e a

8 Em junho de 2002, o custo médio de implantação de um aviário era de R$ 3,00 por frango a ser criado. Considerando que a capacidade mínima de alojamento aceita é de 10.000 aves, o avicultor deveria dispor de, no mínimo, R$ 30.000,00 para esse fim. 9 J.: Técnico de uma das empresas avícolas.

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permanência dos camponeses. Há aí indicações claras de que, na avicultura,

muitas vezes a integração se sustenta por meio de relações que transcendem os

limites das práticas empresariais, eivadas da impessoalidade que garante as trocas

econômicas nos padrões que conhecemos.

É amplamente reconhecido que uma das características que

diferenciam unidades camponesas das demais é o caráter pessoal permeando o

conjunto de suas relações. O universo camponês é regido por um código avesso à

lógica impessoal do mundo governado pelas cifras oriundas das trocas.

Essa particularidade se revela nas mais diferentes ocasiões, desde a

conduta com os estranhos que chegam ao seu reduto até a forma como se

relacionam com os pares. É curioso notar o quanto essa característica lhes é

indissociável, chegando a levar alguns autores a relacionarem a desintegração do

campesinato ao rompimento dos vínculos pessoais, ligados à dominação exógena,

como é o caso dos comerciantes atravessadores, políticos etc.

Nessa linha, Abramovay (1990) destaca que o aparecimento de

grandes atacadistas no Sudoeste do Paraná veio substituir uma relação de

dominação perpetrada pelos comerciantes tradicionais. Em seu entendimento, o fim

da “ajuda”10 dos comerciantes tradicionais aos camponeses, consubstanciada em

adiantamentos monetários em momentos de “precisão”11 ou mesmo para a

produção, acabou igualmente com os laços de dependência. Tudo isso teria sido

decisivo para uma certa desarticulação da estrutura responsável pela sustentação

da condição camponesa na região.

Não desconhecemos que a emergência de uma ordem econômica

orientada por parâmetros estritamente monetários implicou em severos impactos

sobre as formas organizativas das comunidades camponesas, historicamente

envolvidas na produção e trocas simples de mercadorias. Houve, sem dúvida, o

enfraquecimento dos canais tradicionais de drenagem da renda, regidos por uma

espécie de coação extra-econômica, fundada na ética de obrigações mútuas.

Contudo, as contradições derivadas de trocas entre agentes

profundamente desiguais do ponto de vista social e econômico foi revelando aos

camponeses, no mesmo compasso, a dimensão da exploração que as relações

fundadas até certo ponto em mecanismos de dominação pessoal conseguiam

relativizar.

10 Ajuda aqui na perspectiva camponesa. 11 Refere-se aos imprevistos que demandam gastos incompatíveis com a reserva monetária da família.

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É por isso que as mudanças ocorridas no bojo da tecnificação da

agricultura paranaense, consubstanciadas na redefinição das relações de produção,

não podem ser vistas como processo unidimensional, afinado exclusivamente com e

em prol dos agentes que desencadearam tal processo. Há que se supor que no

encontro de lógicas e interesses divergentes, as determinações que aportam não

possuem força suficiente para varrer as estruturas vigentes. Isso somente seria

possível caso a face viva da histórica local, no caso a população, fosse banida, o que

não é o caso. Daí a necessidade de apreender tal dinâmica a partir da perspectiva

de processo, que evolui em um compasso contraditório, em que a combinação entre

o que havia e o que foi imposto deu o tom de uma situação híbrida, manifestada na

capacidade de persistência e acomodação de todos os envolvidos.

Nessa dinâmica está o sentido da recriação da classe camponesa;

ao invés de desaparecer, conforme já fora sentenciado há mais de um século e

sistematicamente reiterado, ela continua se reproduzindo, evidentemente a partir

de constantes modificações internas. Não reconhecê-lo seria, em última instância,

desconhecer que o movimento é o mais elementar princípio da matéria.

Com efeito, apostar em formações camponesas herméticas é se

municiar de pressupostos contrários às leis da dialética. O que não se deve

desprezar é o teor dessas modificações, a fim de averiguar se as mesmas apontam

apenas para redefinições internas ou se a superação dessa formação social já é um

fato consumado.

E para que o campo teórico não se feche em um círculo, servindo

mais de escudo do que de instrumento de análise das pulsações do real, as

investigações no campo não são apenas desejáveis, mas imprescindíveis. É esse

exercício que nos autoriza a situar diferentes estratégias de reprodução no âmbito

da recriação camponesa, e não de sua superação.

Dentre essas, destacamos a não-internalização do padrão de

impessoalidade, amplamente difundido nos espaços onde a mercadoria tem

primazia sobre a pessoa. Aquela postura, que é indissociável da ética camponesa,

gera estranhamentos mútuos ao adentrarem o mundo regido pela ética mercantil,

onde a indiferença deve prevalecer, até mesmo para viabilizar a fluidez dos valores

monetários sobre os demais.

É nas cidades grandes que estão suas marcas indeléveis. Por ser o

espaço privilegiado da produção, circulação e concentração, é também o espaço da

segmentação, própria do abismo interposto entre os que ofertam e os que pagam

pela mercadoria trabalho. Por sua vez, é o espaço da alienação, porque essa divisão

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implica na perda de controle sobre as diferentes etapas envolvidas na geração de

um bem, ocultando o sentido criador do trabalho e de quem o executa.

Ao destacarmos a tendência dos camponeses em quebrarem as

barreiras que negam a humanidade do indivíduo, nos apoiamos em sua condição

singular de trabalhadores: ao contrário dos demais, sua leitura de mundo deriva

diretamente de uma experiência fundada no processo criativo do trabalho, à medida

que o vai reconhecendo na produção das espécies vegetais e ou animais sob seus

cuidados. O controle completo sobre os ciclos produtivos lhes descortina a diferença

entre valor e preço daquilo que têm a ofertar, coisa que a socialização do trabalho

oculta aos operários, submetidos à sujeição real ao capital.

Essa é uma das razões pelas quais a socialização do trabalho,

consubstanciada na divisão de tarefas, papéis e responsabilidades, é difícil de ser

apreendida pelos camponeses, que têm incutido uma visão global daquilo com que

se ocupam. Disso deriva sua dificuldade em transitar sem embaraços em locais

onde a estrutura funcional se mostra fragmentada, na qual cada indivíduo atua

dentro de determinados limites, com restrita ou nenhuma possibilidade de

intervenção no papel dos demais.

Isso é recorrente em suas interpretações, quando narram os

diversos problemas enfrentados em bancos, órgãos públicos e empresas com as

quais mantêm contatos esporádicos. É perceptível a dificuldade, sobretudo nos

mais velhos, em compreender os limites de ação do funcionário a quem se dirigem.

Em várias ocasiões, foram-nos relatadas circunstâncias que envolveriam a má

vontade desses em atendê-los em suas demandas.

A falta de vivência cotidiana com um mundo fragmentado, no plano

do trabalho, sugere-lhes que os integrantes de uma determinada estrutura com ela

se confundem, o que em tese lhes conferiria amplos conhecimentos e poder de

decisão. Assim traduziu um camponês o fato de lhe ter sido negado o pedido de

aposentadoria, após anos de tramitação no Instituto Nacional do Seguro Social

(INSS):

Eu já larguei mão disso, não vou mais correr atrás. Faz mais de três anos que eu dei entrada nos papéis e cada vez que eu vou lá a mulher fala que falta alguma coisa. Porque é que ela já não fala de uma vez que não vai me aposentar? Para quê ficar me enrolando, fazendo eu gastar dinheiro para ir até lá e ainda perder dias de serviço?12

12 A.H.: Água do Pernambuco - Miraselva.

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Como vemos, escapa à sua compreensão o fato de que não é essa

funcionária quem tem o poder de lhe conceder aposentadoria. A complexa

hierarquização de papéis lhe passa desapercebida, porque não reconhece as

instâncias que medeiam a ação da mesma.

Situações parecidas envolvendo entreveros burocráticos com

instituições financeiras, sobretudo bancos oficiais, nos foram relatadas, algumas

delas para explicarem as razões pelas quais não recorriam a nenhuma espécie de

financiamento. Via de regra, algumas decisões que os afetaram foram relacionadas

a deliberações pessoais de determinados funcionários, não merecendo destaque as

diretrizes da instituição na qual tais indivíduos eram meros executores.

São interpretações como essas que indicam porque os camponeses

não reconhecem a impessoalidade derivada da alienação do trabalho. No caso da

integração, ao demonstrarmos situações em que há um estreitamento do vínculo

com o funcionário de campo, procuramos mostrar que a prática dos camponeses se

apóia em dois pontos essenciais: um deles é a concepção de que a empresa é o

técnico, compreensão derivada da associação automática da lógica que move a

empresa aos procedimentos que efetivamente apreende no funcionário. O outro é o

esforço para ajustar a relação de integração à única que lhe parece admissível: a de

pessoa para pessoa.

Contudo, nem sempre isso acontece, posto que nem todos os

funcionários de campo cultivam a aproximação com os camponeses. Em vários

relatos, nos foi possível identificar um estranhamento em relação ao mediador

empresa – integrado, passível de ser associado a uma postura de distanciamento

que emissários de algumas empresas se esforçam em manter. Muitas vezes, o

recurso utilizado para tanto é a explicitação de uma suposta superioridade,

pautada tanto no poder econômico que representam, quanto no saber técnico que

difundem.

Entretanto, salvo em casos extremos, a manifesta insatisfação dos

camponeses não é suficiente para que eles se decidam pela desativação do aviário

ou mesmo pela mudança de integradora. Além dos acordos já destacados, que

restringem a rotatividade dos integrados, há por parte dos camponeses a tendência

em evitar o desconhecido:

Trocar a gente não pensa não. Já faz mais de dez anos que a gente está com essa empresa...nós já estamos acostumados com o jeito

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deles e eles com o jeito da gente. Para trocar, tem que começar tudo de novo, a troco de que?13

Como vemos, as ferramentas utilizadas pelos camponeses para

transitar pelo mundo dos negócios ainda estão muito distantes daquelas das

empresas. É evidente que a lógica que orienta os primeiros não está imbuída do

arrojo que é próprio daqueles que podem apostar em jogos de risco. A integridade

da exploração, dimensionada de acordo com a composição do grupo familiar, não

suporta determinados desacertos, sobretudo por se sustentarem em uma

diversidade de atividades que, via de regra, são complementares entre si. Isso

explica, em parte, a persistência dos camponeses na relação de integração mesmo

quando o estranhamento é explícito.

Os homens estão sempre aqui, mexem numa coisa, mandam fazer outra, falam que deu problema porque a gente não fez do jeito que foi ensinado...até parece que a gente não sabe nada...que a gente nasceu ontem. Tem hora que dá vontade de abandonar isso de vez, mas aí o que nós vamos fazer?14

Podemos depreender dessa fala o nível de conflitualidade derivado

do choque entre dois saberes: o técnico e o prático. Na avicultura, a experiência de

uma vida inteira em contato com o ciclo biológico de uma ponderável variedade de

espécies parece não ter valor. E de fato não o tem, pois as aves sob seus cuidados já

se encontram sob um ciclo tão artificial que somente as intervenções na mesma

direção parecem ser bem sucedidas.

O coeficiente de sanidade exigido pela avicultura é de tal forma

contrário à concepção de força criadora da natureza incutida pelos camponeses que

nem sempre é fácil convencê-los de sua necessidade. Trata-se de universos sem

intersecção. Isso porque eles não são, em sentido estrito, produtores, mas antes de

tudo cultivadores. Como tal, sua tarefa é a de zelar para que os ciclos naturais se

realizem. Assim o fazem na lavoura, no manejo com o gado, enfim, nas diversas

atividades com que se ocupam na unidade familiar. É a relação com o tempo da

natureza que se choca com o tempo da mercadoria que eles estão parcialmente

incumbidos de realizar.

Para as empresas, a palavra de ordem é a tecnificação dos

produtores, item que na visão unânime dos técnicos é o gargalo na avicultura. Do

ponto de vista da seleção genética das aves, do composto alimentar e da infra-

13 P.: Água do Bagé - Guaraci. 14 M.: Prado Ferreira.

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estrutura dos aviários, houve, na última década, enorme incorporação de

tecnologia, com vistas ao aumento da produtividade.

Contudo, esses procedimentos são peças de laboratório, estranhos

aos homens e mulheres integrados na cadeia produtiva. Ao chegarem até eles,

comumente assumem caráter impositivo e não participativo. Incorporar exigências

que em nada se relacionam com sua experiência acumulada não é tarefa fácil e

talvez nem mesmo desejável para muitos. Veremos mais adiante o quanto a

tradição instaurada em torno do saber comum é um elemento capaz de gerar

identificação social e agregar os indivíduos de uma mesma classe.

Do ponto de vista técnico, as interpretações para esse paradoxo são

formuladas na mesma linha do que fizera Kautsky (1980), há mais de um século: os

camponeses teriam dificuldade em apreender integralmente as instruções para a

garantia de patamares ideais de produtividade.

O salto tecnológico na avicultura nos últimos anos foi enorme, tanto em termos de seleção genética quanto de equipamentos. Analisando do ponto de vista da infra-estrutura dos aviários, podemos dizer que uns oitenta por cento dos produtores conseguiram se adequar...mas em termos de consciência só uns trinta por cento chegaram lá...15

Não é nosso objetivo, por ora, questionar os impasses claramente

delineados por duas concepções opostas de trabalho e produção. Interessa-nos,

contudo, extrair dessas variáveis os elementos que sustentam a recriação

camponesa.

Dentro da lógica da produção do capital, a corrida pela eficiência

produtiva não é apenas coerente, mas necessária, sob pena da acumulação

ampliada não se realizar. Dentro dessa premissa, o trabalho camponês contido na

mercadoria carne de frango precisa ser potencializado em escala progressiva, pois

esse define a taxa de lucro das empresas.

Esse é o sentido da corrida por produtividade. Pudemos perceber no

trabalho de campo que a capacidade dos aviários dos contratos mais antigos de

integração são, em média 40%, inferiores ao mínimo aceito pelas empresas para os

novos contratos, hoje em 10.000 aves.

Essa ampliação na escala de produção não está relacionada apenas

à necessidade das empresas diminuírem os custos, pois é a estratégia de repasse

desses que impede a estagnação do setor industrial. Trata-se da necessidade de

garantir a criação das aves.

15 V.: Gerente de Integração de uma das Empresas.

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Embora a capacidade de alojamento nos últimos anos descreva uma

curva ascendente, a renda líquida do produtor só tem diminuído, um sinal da

perda de rentabilidade do setor. Sem a redefinição de escala ora observada, é de se

supor que a atividade já ter-se-ia inviabilizado.

Contudo, o aumento da produtividade é, no discurso das empresas,

o trunfo dos avicultores. Em suas planilhas consta que desde 1996 o preço médio

por unidade criada passou de R$ 0,08 para R$ 0,16, ao mesmo tempo que

aumentou em 30% a capacidade de alojamento de aves por metro quadrado. Isso

poderia sugerir que os avicultores estão ganhando mais com a mesma estrutura de

seis anos atrás, o que não corresponde aos fatos.

Os custos indiretos da produção, a exemplo da energia elétrica e

gás, subiram muito acima da inflação oficial. No caso do gás, utilizado no

aquecimento das aves, houve uma explosão dos preços, em virtude de mudanças na

política energética brasileira16. Segundo os técnicos, somente os aumentos

autorizados no primeiro semestre de 2002 seriam suficientes para inviabilizar a

atividade, se mantida a utilização desse combustível.

Ocorre que há alguns anos os avicultores começaram a buscar

alternativas para o aquecimento dos aviários, muitos dos quais vieram a adquirir

equipamentos movidos a lenha. Contudo, ao serem lançados modelos mais

sofisticados, mais adequados às necessidades das aves, as empresas passaram a

pressionar os avicultores para a sua aquisição. Segundo declarações de uma das

integradoras, até o final de 2002 todos os seus integrados deveriam ter procedido à

substituição.

O caso do aquecedor é emblemático: hipoteticamente, um avicultor

com cinco anos na atividade, naquela ocasião caminhava para a segunda

readequação no aquecimento do aviário, ao comprar esse terceiro equipamento,

vendido a R$ 3.400,00, ou 20.000 frangos. Aos que não dispunham de reservas

para mais esse investimento, as integradoras se propunham a intermediar a

aquisição, mediante o parcelamento em até seis entregas de frango, ou seja, um

ano.

Outra mudança que saiu caro para os avicultores refere-se à

própria infra-estrutura do barracão. Há alguns anos, a rusticidade das instalações

era aceita sem restrições, o que viabilizava o ingresso na atividade dos camponeses

sem recursos financeiros. Para tanto, aproveitavam o que podiam da propriedade

16 Segundo a FIPE, do início do Plano Real a junho de 2002, o gás de cozinha aumentou 398%.

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para construir o aviário, desde madeira até telhas, reduzindo assim os

investimentos iniciais.

Demonstramos, no entanto, que o empenho das empresas em

reduzir custos na etapa de criação das aves está relacionado à própria sustentação

do sistema de integração. É isso que explica a estratégia de ampliação da

capacidade de alojamento dos aviários em cerca de 30%, pois isso representa

incremento nos rendimentos brutos para compensar a queda da remuneração em

relação ao custo das inversões feitas.

No entanto, isso somente foi possível graças a adequações na

estrutura dos aviários, sobretudo no que se refere ao conforto térmico em seu

interior, tanto no inverno quanto no verão. Assim, a concentração maior das aves

impõe, no inverno, a utilização de aquecedores automáticos, que tenham a

capacidade de espalhar calor de maneira uniforme e que não lancem fumaça no

ambiente. No verão, a exigência refere-se ao aumento da capacidade de

resfriamento, com a instalação de ventiladores mais potentes, sob pena das aves

morrerem sufocadas.

Considerando que o funcionamento de ambos implica em gasto de

energia elétrica, gás ou lenha, componentes caros da cadeia produtiva, houve quase

que uma imposição para que os barracões fossem forrados, para potencializar a

ação desses equipamentos.

É nesses termos que a questão dos avanços tecnológicos está

colocada, pois quando se trata de instalações e equipamentos, são os produtores

que acabam absorvendo os custos da ciranda de inovações. Assim se dilui parte da

pequena rentabilidade que a atividade proporciona, conforme se pode observar na

seqüência, segundo os dados que uma das empresas nos disponibilizou,

considerando receitas e custos diretos referentes à criação de um lote de 8.000

aves: 17 (Quadro 1).

17 Tomamos como referência esse número de aves por tratar-se da capacidade média de alojamento verificada entre os camponeses. Os dados são relativos ao mês de junho de 2.002.

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Quadro 1 – Despesas e receitas Compra Cama de Frango 200,00 Energia elétrica 250,00 Gás 350,00

Despesas Diretas

Total das Despesas 800,00 Venda Cama de Frango 350,00 Entrega dos Frangos 1.320,00

Receitas

Total da Receita 1.670,00 Receita Final Receita Final 870,00

Fonte: Trabalho de Campo, 2.002

Como se pode observar, há uma série de insumos que são de

responsabilidade direta do integrado, como é o caso da água, energia, gás18 e a

cama de frango. No caso das aves, a alimentação e medicação necessária representa

um custo oculto, aparentemente sob responsabilidade da integradora, já que cabe à

ela fornecê-las. Evidentemente, trata-se de um fetiche, pois a integradora, na

realidade, os vende aos avicultores, em uma operação de adiantamento, cobrando

pelos mesmos no momento de entrega das aves.

É importante lembrar que os camponeses raramente têm controle

sobre os custos de tais insumos, já que as planilhas de que se servem as

integradoras para pagarem pela produção entregue não são suficientemente claras

para eles. Com relação aos insumos sob responsabilidade direta dos avicultores, as

variações são mais perceptíveis, pelo fato de eles terem total controle sobre os

mesmos. Vimos que no inverno, a manutenção de uma temperatura tolerável às

aves requer aquecimento, enquanto que no verão há a necessidade de resfriamento.

Durante anos, houve um equilíbrio nesses custos, porquanto, no

inverno, o aumento do consumo de gás era compensado pela diminuição do

consumo de energia, e vice-versa no verão. Contudo, em 2002 o aumento dos

custos no inverno foi severo, ocasião em que a maior parte dos avicultores ainda

necessitava do gás para o aquecimento parcial ou total do aviário. Notemos que é

nesse contexto de redução acentuada dos ganhos monetários que eles devem arcar

com um custo extra para a troca do equipamento. No caso dos camponeses cujos

aviários alojam menos aves, é de se supor que ficarão meses impedidos de retirar

qualquer renda da atividade.

18 Deixamos de citar a lenha visto que cerca de 90% dos aviários ainda utilizam os aquecedores a gás. A substituição desses, a princípio, promete uma redução de custos de cerca de 70% com o aquecimento das aves.

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Outrossim, vimos que no campo das despesas, não estão

contabilizados os demais custos de manutenção do aviário, a depreciação do

dinheiro investido e tampouco o trabalho despendido. Se descontados da receita

apurada, depreende-se que a renda na avicultura é baixa, razão direta da

predominância absoluta do trabalho familiar na atividade.

Porém, não se trata de negar a existência de capitalistas atuando na

avicultura; eles são numerosos. Em vista da especificidade da jornada de trabalho e

da rentabilidade destacada, eles têm buscado a parceria para se manter na

atividade.

Contudo, essa prática igualmente se encontra ameaçada, uma vez

que a manutenção da margem de lucro das próprias empresas desloca a atenção

para a máxima otimização dos recursos no ciclo da produção. Isso porque a

apropriação do valor trabalho contido na produção é por demais elevada, o que

deixa uma margem mínima de rentabilidade aos avicultores. Em última instância,

isso pode ameaçar as próprias empresas, pois o desestímulo e a desistência desses

afeta o fornecimento da matéria-prima. Essa é uma das razões pelas quais não

convém às empresas maus resultados na produção.

A presença do avicultor dentro do aviário e a observação sistemática

é fundamental para que ele proceda a uma seleção artificial. A ordem é para que os

pintinhos fracos ou que demonstram desenvolvimento duvidoso sejam sacrificados

já nos primeiros dias de vida, para evitar que o alimento por eles consumido se

perca pela morte antes de completar o ciclo, ou resulte em uma conversão

alimentar incompatível com os padrões estabelecidos. Seguindo a lógica da ração a

ser convertida em carne, sua distribuição precisa ser cuidadosa. Em excesso, pode

haver perdas, ao ser derrubada pelas aves para fora dos comedouros. A falta

igualmente interfere no resultado final da criação: o princípio da avicultura

comercial é que as aves não parem de comer durante todo o ciclo, inclusive à noite,

razão pela qual a iluminação deve ser permanente.

Nesses termos, a dedicação é que fará a diferença na entrega do

lote. Diuturnamente, há que ser monitorada a temperatura do barracão, pois o

conforto ambiental é fundamental para o bom desenvolvimento das aves. É para

isso que se combina o uso de ventiladores, cortinas e aquecedores. Qualquer

descuido nesse sentido pode ter resultados desastrosos: as aves não suportam

chuvas ou alterações climáticas acentuadas.

Quando está muito calor, tem que levantar as cortinas para ventilar, mas não pode descuidar. Já aconteceu de todo mundo estar na roça

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e vir uma chuva de repente. Eu não dei conta de baixar todas as cortinas a tempo...os pintinhos que se molharam morreram. De noite é a mesma coisa. Tem que estar sempre ligado, se vier um vento mais forte ou der uma esfriada tem que acudir...a gente não desliga deles nunca.19

Isso demonstra que, apesar das integradoras estimarem dois

trabalhadores para cada vinte mil aves, o que garantiria uma renda satisfatória, o

mesmo número é necessário para os aviários menores, ainda que em tarefas

espaçadas ao longo do dia. Considerando que a escala é que determina um retorno

monetário satisfatório, os camponeses apenas se mantêm pela articulação dessa

com um conjunto de atividades na unidade produtiva.

São essas condições objetivas que tornam incertas as possibilidades

de permanência dos parceiros no ramo da avicultura. O fato de não serem

proprietários traz restrições à dedicação exigida, bem como limita o incremento de

renda com base no desenvolvimento de outras atividades dentro da propriedade.

Ao considerarmos a integração na perspectiva das estratégias de

reprodução camponesa, temos a avicultura como atividade de ciclo bimestral, que

garante um suprimento monetário importante para o pagamento das despesas

correntes. Contudo, ela não é suficiente para assegurar uma margem de ganho

adequada à satisfação das necessidades da família. É nesse contexto que se coloca

a necessidade de combiná-la com atividades voltadas para o autoconsumo e mesmo

com atividades comerciais, prática comum entre os camponeses por nós visitados.

Em um contexto de múltiplas funções produtivas da unidade

econômica, a avicultura alimenta um ciclo de incremento bruto de renda, bem como

de complementaridade com a lavoura e a pecuária. Nas plantações, ao ser utilizada

parte do esterco produzido pelas aves, se consegue potencializar a renda,

diminuindo ou mesmo eliminando o dispêndio monetário com a aquisição de

adubos, em cujo preço está contido o lucro da indústria. Assim, ao mesmo tempo

que se consegue o aumento da produção sem inversão monetária, também se

alimenta um ciclo de recuperação dos solos através da incorporação de matéria

orgânica.

O nosso ganho com o frango é pouco, porque temos as despesas com energia, gás, mão de obra para carregar os caminhões, fora o trabalho, que é grande...mas tem o esterco, que ajuda muito...você viu o milharal, que lindo? Esse ano a gente não gastou um quilo de adubo nele, deu para estercar seis alqueires...e a terra parece que gosta mais...20

19 P.: Barra do Jacutinga - Ibiporã. 20 A.: Barra do Jacutinga - Ibiporã.

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Nessa articulação, os camponeses calculam cuidadosamente o tipo

de forragem a ser utilizada no aviário, pois para essa há um mercado, cuja

remuneração pode chegar a um terço do que recebem pela criação dos frangos.

Além de servir como esterco, ela é amplamente utilizada na alimentação do gado,

sendo misturada a concentrados e silagem.

Quando o destino é a lavoura própria, há uma preferência pelo

cepilho, resíduo de madeira serrada, gerado especialmente pelo pólo moveleiro

situado em Arapongas. O potencial de fertilização dessa forragem repleta de

excrementos é muito grande, em vista da rápida decomposição e conseqüente

absorção pelas plantas.

Se o destino da forragem utilizada no aviário for a alimentação do

gado, a escolha recai sobre a palha de arroz, que movimenta a maior parte do

comércio de cama de frango, em razão de sua procura para esse fim. Contudo, essa

prática está proibida em todo o Estado, o que não significa que ela tenha recuado.

A razão para tal medida legal está nos compostos utilizados na

ração consumida pelas aves, entre as quais se inclui farinha de carne. Há suspeitas

de que o consumo de tais componentes por animais essencialmente herbívoros

pode ter contribuído para o surgimento da epidemia da vaca louca na Europa,

tratando-se, portanto, de uma medida sanitária preventiva, mas que ainda não

obteve efeitos práticos.

De um modo geral, entre os camponeses tal proibição soa como algo

distante e fora de propósito, sobretudo porque tal composto continua a ser utilizado

sem restrições. Em uma propriedade por nós visitada, constatamos que a família

estava se desfazendo das vacas leiteiras e adquirindo novilhas para engorda,

contando com a cama de frango gerada no próprio aviário para complementar a

alimentação do rebanho.

Estão falando que está proibido dar cama de frango para o gado, mas eu acho que não vai ter jeito de proibir não, porque todo mundo usa. Nós mesmo estamos acabando com as vacas porque o leite não dá mais nada e estamos comprando novilhas para engordar. Sem a cama de frango não tem jeito porque a terra é pouca e pasto quase não tem. 21

Até mesmo nesse aspecto podemos observar o quanto as atividades

são sobrepostas dentro das unidades camponesas, onde a exigüidade de terra não

chega a ser um obstáculo para o desenvolvimento da pecuária, desde que uma

21 A.: Água do Bagé - Guaraci.

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pequena área possa ser utilizada para plantio de forrageiras destinadas à silagem,

tendo a cama de frango como complemento. É a intensidade da fiscalização que vai

determinar a necessidade desses camponeses se readequarem ou mesmo

abandonarem a pecuária.

Outrossim, a expansão da avicultura verificada na última década

tem colocado ao setor avícola o problema da aquisição, seja do cepilho, seja da

palha de arroz, cada vez mais escassos e caros. Por essa razão, as integradoras têm

procurado incentivar os avicultores a utilizarem forragens alternativas existentes na

propriedade, como o capim napier, por exemplo. Contudo, ainda há limitações para

sua implementação, pelas exigências quanto à secagem e trituração, que requerem

equipamentos que nem todos os camponeses possuem. Atualmente, cerca de 10%

dos avicultores já recorrem a esse tipo de forragem.

Essa não é, contudo, a única estratégia utilizada para reduzir os

custos com a cama de frango. Muitos camponeses recorrem à remonta, ou seja,

utilizam a mesma forragem em duas crias. Ocorre que essa prática representa uma

intensificação do trabalho dentro do aviário, pois exige que a palha seja remexida

com redobrados cuidados, para evitar acúmulo de umidade e conseqüente

fermentação.

Cuidar da cama de frango parece não ser menos importante que

cuidar das aves, em vista do seu valor econômico dentro da cadeia produtiva, seja

na propriedade seja fora dela. Sem exceções, os camponeses mencionaram, entre as

exigências da atividade, o zelo que devem ter nesse sentido.

Entretanto, a remonta é cada vez menos aceita pelas integradoras,

por implicar risco sanitário: a palha pode reter organismos patológicos, passando

de uma cria para a subseqüente. Na perspectiva das empresas, ela também tiraria o

lucro do produtor, que deixa de somar, ao fim do ciclo, mais esse ingresso bruto.

Ocorre que há razões particulares para essa prática: todos os

camponeses que mencionaram fazê-la, associaram-na à adubação na própria

propriedade. A dupla utilização dentro do aviário potencializa o poder de

fertilização, aumentando os resultados na lavoura e poupando trabalho em sua

distribuição. Além disso, diminuem pela metade os custos com a cama de frango

por cria.

Com a cama de frango nós fazemos uma remonta sim, a outra não. Uma vez é para usar na nossa lavoura, aí nós colocamos cepilho e fazemos a remonta. O cepilho decompõe rápido, com duas criadas em cima, não tem adubo melhor. Agora quando vai vender, se fizer

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isso dá prejuízo, porque não aumenta o preço...o melhor é trocar toda vez que tira os frangos.22

Esse é mais um dos aspectos da avicultura que coloca em choque a

lógica dos camponeses e os interesses das empresas. E essas últimas tendem a

apertar o cerco sobre aqueles, pela situação atual do mercado avícola, em que a

oferta parece ter suplantado a demanda em consideráveis proporções, pelo menos

na perspectiva da remuneração do capital. Para se ter uma idéia da conjuntura,

entre junho de 2001 e maio de 2002, a produção nacional de carne de frango

destinada ao mercado interno aumentou cerca de 8% a mais que a produção como

um todo, em conseqüência da redução do volume exportado no período23. Em

volume, isso representou a disponibilidade de mais 535.238 toneladas no intervalo

de 12 meses.

Apesar do aumento do consumo interno, que saltou de 2,4 kg per

capita em 1970 para 36 kg em 2001, chegou-se praticamente a um nível de

saturação do mercado, em se considerando os atuais patamares de distribuição de

renda e poder de compra dos trabalhadores.

Somada a essa situação limite de capacidade de absorção, há um

fator complicador, ligado ao mercado externo. Trata-se da ameaça de protecionismo

da União Européia, importante consumidor do frango brasileiro. A capacidade de

colocar, nesses mercados, um frango a preços muito inferiores ao dos produtores

locais foi responsável pela ampliação da avicultura brasileira, cujas exportações já

compreendem cerca de vinte por cento da produção24. Contudo, nesses países a

proteção à produção local é uma das bases do desenvolvimento, de modo que

alguma forma de retaliação certamente virá.

Essa conjuntura é que tem motivado as empresas a empreenderem

esforços para reduzir a produção, não apenas em virtude da ameaça de restrições

no plano externo, mas pela insatisfação com os preços alcançados pelo frango no

mercado nacional. As empresas estão empenhadas em reduzir as respectivas cotas

de produção, a fim de atuar diretamente na oferta, única maneira de conseguir o

reajuste dos preços a níveis que julgam satisfatórios.

Se levada a termo, além do efeito perverso para a maior parte dos

trabalhadores, cujo poder de compra é cada vez mais reduzido, ela atinge em cheio

22 B.: Água da Valência - Ângulo. 23 Conf. Associação dos Produtores de Pinto de Corte, 2002. 24 Conf. Associação dos Produtores de Pinto de Corte, 2002, entre junho de 2001 e maio de 2002, 18,4% da produção foi exportada.

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os avicultores, sobretudo os camponeses que não têm a seu favor os ganhos

derivados da escala de produção.

Apesar das empresas serem categóricas ao afirmar que os

trabalhadores familiares são os mais eficientes, o que acena para a sua

permanência na atividade, juntamente com os grandes produtores, que já começam

a investir em automação nos aviários, a redução da produção é mais um golpe na

sua combalida rentabilidade.

Essa seria mais uma decisão unilateral das empresas, sem grandes

dificuldades em ser implementada. Para tanto, bastaria aumentar o intervalo entre

as crias e diminuir o número de aves quando da distribuição dos lotes. As empresas

já se utilizam desse expediente para controlar os estoques, ainda que de forma

limitada.

Entretanto, o propósito de interferir diretamente na oferta, para que

a lei de mercado possa prevalecer, ainda é um desafio, que não se concretizou

porque o êxito da empreitada depende da adesão irrestrita de todas as integradoras;

em um cenário em que a competição por mercados é severa, a força do acordo é

menor do que as possíveis vantagens caso uns poucos não venham a aderir. Esse é

o cálculo que muitas delas fazem, razão pela qual o compasso ainda parece ser de

espera.

Apesar disso, as integradoras apostam em uma espécie de

acomodação do mercado, mesmo que de forma indireta. Essa acomodação viria na

redução do seu capital de giro, que implicaria menor capacidade de suprir os

aviários de medicamentos e alimentos, mediante o esquema de adiantamento aos

criadores.

Para os avicultores, em geral, e para os camponeses, em particular,

trata-se de um sinistro prognóstico, pelo fato de o aumento da produção nos níveis

verificados somente ter sido possível pelos acenos em termos de rentabilidade que

lhes foram feitos. Isso motivou investimentos altíssimos para a construção de

aviários, muitas vezes superiores ao que os camponeses possuem em terra.

Considerando o custo mínimo de implantação de um aviário e o

preço das terras no Norte do Paraná, pode-se afirmar que o investimento no aviário

equivale ao valor de uma área de cerca de sete hectares. Para os camponeses, a

quem a escassez de terra é a maior limitação, a crise certamente será muito maior

que a sua frustração com a integração, caso os aviários venham a se transformar

em caros memoriais da insanidade do mercado.

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4.1.2. A sericicultura

O Brasil é o quinto produtor mundial de fios de seda, destinando

cerca de 96% da produção ao mercado externo. No Paraná, a sericicultura é uma

das atividades de destaque entre os camponeses; ela está presente em 229 dos 399

municípios paranaenses, envolvendo 7.685 criadores de bicho da seda.

Segundo a Associação Brasileira de Fiações de Seda (ABRASSEDA),

no ano de 2001 foram cultivados 24.441 hectares de amora nesse estado, o que

resultou em uma produção de 9.351 toneladas de casulos verdes. Isso representa

mais de 80% da produção nacional. Entre os trinta e três municípios por nós

estudados, a sericicultura está presente em vinte e dois, com uma área cultivada de

1.450 hectares, a cargo de 487 produtores. Em termos de produção, sua

participação equivale a pouco mais de 5% da produção do Estado.

O processamento industrial dos casulos verdes é feito pelas três

maiores empresas do ramo no Brasil: Bratac, Cocamar e Kanebo, respectivamente

sediadas em Londrina, Maringá e Cornélio Procópio.

Apesar de ser uma atividade cuja produção envolve os produtores

de menores recursos financeiros do campo, a sericicultura não está voltada ao

consumo interno; ela se dirige diretamente aos grandes compradores mundiais. Em

outras palavras, é incipiente o mercado para os fios de seda no Brasil, o que lança

os produtores em um circuito ainda mais instável, em vista das crescentes medidas

protecionistas adotadas, por parte dos países consumidores, na política de

importações.

Tudo isso a torna uma atividade bastante peculiar, totalmente à

mercê das oscilações, que tanto podem resultar de condições internas dos países

compradores, quanto dos movimentos mais gerais da economia mundial. Isso afeta

diretamente os sericicultores, ocasionando, alternadamente, momentos de retração

e expansão da atividade.

É sabido que, nas últimas décadas, o preço de quase todos os

produtos primários vem caindo sistematicamente, salvo breves altas conjunturais,

logo anuladas pela tendência inversa. Isso também se aplica à sericicultura, pois o

quilo do fio de seda da melhor qualidade, que em 1998 era vendido a 45 dólares,

atualmente alcança 24 dólares no mercado internacional.25

Por outro lado, há que se levar em conta que os custos dos insumos

25 Dados fornecidos pela BRATAC em maio de 2002.

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utilizados pelos produtores registraram um movimento inverso, o que nos pode dar

indicativos do encolhimento da renda auferida na atividade. Evidentemente, essa

perda não foi distribuída eqüitativamente entre todos os componentes da cadeia

produtiva; como é próprio da ordem econômica vigente, coube aos criadores do

bicho da seda, elo mais frágil da cadeia, absorvê-la em grande medida.

Contudo, esse não tem sido o único desafio enfrentado por eles. A

pequena participação brasileira no mercado internacional exige saídas para a

própria sobrevivência das empresas citadas, por causa da sua limitação em jogar

com preços e estoques, coisa que grandes produtores, como a China, podem fazer e

efetivamente o fazem. Resta-lhes concorrer em mercados diferenciados, que

privilegiam a qualidade superior do produto. Portanto, são esses nichos que elas

têm explorado, garantindo até então a colocação de sua produção que é

considerada uma das melhores do mundo.

Ocorre que a posição desfrutada pelas fiações brasileiras está longe

de ser confortável, sobretudo porque a China está perseguindo o incremento de

cerca de 10% da sua produção, o que em termos reais pode suplantar toda a

produção brasileira. Assim, em um mercado abarrotado e com tendência à

expansão da oferta, a pressão para a melhoria da qualidade e redução dos custos é

severa.

Não há dúvida de que o ritmo frenético do mercado obriga as

empresas a se adequarem, sob pena de cerrarem as portas. E isso recai com igual

intensidade sobre os criadores, já que a qualidade do fio da seda é determinada, em

grande medida, pelos processos subjacentes à produção dos casulos, ainda que as

diferentes condições físicas com que operam as fiações também interfiram no

produto final.

É esse o cenário com o qual se deparam os integrados na

sericicultura. Enquanto não havia limites precisos no mercado internacional de fios

de seda, a conquista de produtores foi fundamental para a consolidação das

empresas fiadoras. No caso do Paraná, esse processo teve início nos anos setenta,

com a implantação da atividade, e se estendeu até meados dos anos noventa, com

mais de 8.000 sericicultores integrados, que chegaram a responder por produção

superior a 13.000 toneladas.26

Verificamos, assim, que a expansão da atividade no Estado foi

ponderável, conquanto que, nesse período, o mercado tenha registrado uma queda

26 Segundo a ABRASSEDA, em 1996 o Estado obteve produção recorde, com 13.172 toneladas de casulos verdes.

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progressiva nos preços dos fios de seda. Tal expansão, em um cenário de preços

deprimidos, se deve à diferença cambial: a desvalorização da moeda brasileira em

relação ao dólar acabava compensando, em parte, as perdas reais sofridas no preço

dos fios de seda no comércio internacional.

É aí que sobrevém a grande crise do setor, que coincide com a

mudança cambial atrelada ao Plano Real. Ao serem equiparados os valores da

moeda brasileira ao dólar, de um só golpe a sericicultura, assim como as demais

atividades que se beneficiavam do cambio, tiveram sua rentabilidade reduzida em

quase três vezes. É evidente que o impacto maior recaiu sobre os camponeses, em

face dos parcos rendimentos que já vinham obtendo com a atividade. Os efeitos

sobre os mesmos foram de tal ordem que muitos a abandonaram, com reflexos

diretos na produção, cuja redução chegou a quase um terço nos anos

subseqüentes.

Entretanto, convém lembrar que nos últimos anos, em razão de

mais uma mudança cambial, com conseqüente desvalorização do real, a

sericicultura ganhou um pouco de fôlego, o que não significa, em absoluto, que

esteja havendo um surto de recuperação de renda para os produtores. Para os

proprietários empobrecidos, e para os camponeses sem terra própria, estão cada

vez mais limitadas as alternativas de renda monetária, sobretudo porque as

culturas alimentares destinadas ao consumo interno são comercializadas em moeda

local, com menos da metade do que efetivamente rendem os produtos exportados,

como é o caso dos fios de seda.

Afora essa conjuntura, cumpre destacar que a sericicultura tem a

seu favor o baixo custo de implantação. Segundo informações das empresas e dos

próprios sericicultores, atualmente é possível fazê-lo com cerca de R$ 5.000,00,

evidentemente desconsiderando a terra que deverá ser destinada ao cultivo das

amoreiras. Portanto, é esse frágil balanço que faz com que a sericicultura ainda seja

uma atividade atrativa para os camponeses.

No entanto, a qualidade dos casulos está se tornando cada vez mais

decisiva para a permanência dos integrados no circuito. Como vimos, a dinâmica da

sericicultura no Paraná foi até pouco tempo marcada pela expansão. Nesse

contexto, o desafio colocado às empresas sempre fora a inserção de mais produtores

em seus quadros, a fim de assegurar o fornecimento regular da matéria-prima. À

medida que o mercado internacional caminhava para uma frenagem nessa

tendência, veio a crise cambial, aqui entendida como sobrevalorização da moeda

brasileira. Isso forçou uma acomodação do setor sem que fosse colocada em pauta

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a qualidade da produção. Face o golpe na rentabilidade da atividade, as empresas

continuaram a enfrentar a necessidade de convencer produtores a ingressarem ou

permanecerem em seus quadros.

Esse momento reflete o desencantamento com a sericicultura,

presente na fala de vários camponeses que tivemos a oportunidade de conhecer na

região. Igualmente, os testemunhos desses acontecimentos também estão inscritos

nas parcelas do território pertencentes aos camponeses, sobretudo porque alguns

barracões lá estão, ociosos ou transformados em depósitos de maquinários,

ferramentas e até colheitas. Posteriormente retornaremos a essa questão. Por ora,

convém mostrar que há uma situação nova se desenhando para os sericicultores,

que é a possibilidade real de serem preteridos, caso não consigam se adequar aos

padrões impostos pelas fiações.

Desde que eu trabalho aqui, a sericicultura sempre funcionou assim: o produtor demonstrava interesse pela atividade, entrava e só saia se ele quisesse. Mas isso era porque precisava aumentar a produção e, por isso, a empresa acabava aceitando de tudo. Mas as coisas estão mudando...a empresa já está selecionando os produtores que querem entrar, agora só aqueles que moram na propriedade. Até as propriedades estão sendo selecionadas, porque o que conta são aquelas melhor localizadas, com facilidade de acesso e tudo o mais. A verdade é a seguinte: antes a empresa tinha que lutar para ficar com os produtores, agora são eles que vão ter que lutar para ficar com a empresa.27

É inquestionável, portanto, que a orientação das empresas mudou.

Isso porque a parte do território monopolizado pela sericicultura já se encontra

consolidada, ou pelo menos, há um círculo estável de criadores que asseguram as

metas de produção das fiações. Além disso, o mercado incorporou exigências antes

inexistentes. E para os sericicultores tudo isso tem um nome: seletividade.

Se dantes o embaraço para permanecer na atividade era

proveniente do montante de renda auferida, agora a ele veio se somar a exigência

por padrões pré-estabelecidos de qualidade e produtividade. Em outras palavras,

aqueles que não se enquadrarem deverão ser eliminados dos quadros da integração.

Faz treze anos que eu trabalho nessa empresa e nunca se ouviu falar em corte de produtores. Os técnicos tinham até dificuldade para trabalhar, porque tinha aqueles que não seguiam as orientações técnicas e nada se podia fazer contra eles. Hoje não é mais assim. Daqui para frente, quem não produzir casulos com qualidade não terá como permanecer na atividade. Estamos trabalhando intensamente para recuperar aqueles que ainda têm problemas, porque isso representa prejuízo para a empresa. Eles estão tendo

27 E.: Técnico de uma das empresas de fiação de seda.

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oportunidade de melhorar, mas com base no histórico que temos, se vier um, dois, três lotes sem melhora nenhuma, aí eles serão cortados.28

Há três fatores essenciais na definição da qualidade dos casulos:

tamanho, forma e limpeza. E asseveram os técnicos que isso depende

exclusivamente do manejo dos bichos da seda ao longo das fases sob

responsabilidade dos produtores.

O ciclo desses insetos corresponde a cinco idades. As duas

primeiras se completam dentro das indústrias, que mantêm guardadas a sete

chaves as matrizes e as estratégias de cruzamento, a fim de obter raças híbridas

que apresentem melhores resultados em termos de produtividade de seda.

Sinteticamente, o cruzamento é orientado por duas características básicas: alto teor

de seda e resistência a doenças, respectivamente acentuadas nas raças japonesas e

chinesas. Após a postura, os ovos podem ser estocados por até seis meses, o que

contribui para que a distribuição das larvas entre os criadores obedeça a uma

programação rigorosa.

Após a eclosão controlada dos ovos, o espaço de tempo tolerável

para a alocação definitiva das larvas é curto, pois elas precisam se alimentar

ininterruptamente de folhas tenras. Essas características vitais das mesmas fazem

com que as empresas tenham que definir, na parte do território monopolizado, uma

atuação adequada ao perfeito encadeamento dos procedimentos que, à exceção da

assessoria técnica, se restringem à distribuição das larvas e recepção dos casulos.

Em condições usuais de acesso, o raio de ação compreende uma distância máxima

de trinta quilômetros.

Contudo, a atividade se acha espalhada pela maior parte dos

municípios. Para enfrentar a dispersão dos sericicultores, as empresas trabalham

com uma estrutura de entrepostos, fixos ou eventuais, distribuídos

estrategicamente entre as regiões produtoras. O apelo da geração de emprego e

renda pela sericicultura é tão forte, sobretudo entre os municípios pequenos, que

inúmeros deles cedem espaços físicos públicos para que tais transações sejam

efetuadas, sem ônus para as empresas.

Isso posto, há que se destacar que a exigência dessa atividade, em

termos de valor trabalho contido na produção, certamente torna a integração a

melhor opção para o fornecimento regular da matéria-prima, pois o não-pagamento

28 M.: Técnico de uma das empresas de fiação de seda.

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de todo o trabalho da família camponesa contido nos casulos é decisivo na

composição da taxa de lucro da indústria.

Em um exercício hipotético, é fácil compreender a razão pela qual

os camponeses são os produtores, por excelência, do bicho-da-seda. Considerando

os cuidados que a atividade requer, caso a mesma fosse realizada mediante o

assalariamento, o preço da matéria-prima obrigatoriamente subiria, uma vez que a

legislação trabalhista estabelece jornadas máximas e adicionais noturnos.

Como se poderá observar, caso os camponeses utilizassem esses

parâmetros, mesmo em se considerando o salário mínimo vigente, a renda obtida

na atividade obrigatoriamente deveria ser maior. Portanto, o valor trabalho que lhe

é subtraído, nos preços pagos pela sua produção, é maior do que se subtrai nas

condições limites de exploração do trabalho nas relações tipicamente capitalistas,

senão vejamos.

Entre as atividades desenvolvidas na área pesquisada, a

sericicultura é, sem sombra de dúvida, a que mais requer cuidados diferenciados,

considerando a cadência que extrapola o ritmo habitual das atividades no campo,

regidas pela luz do sol. Isso porque o dormir e o acordar dos bichos-da-seda se

articulam num ciclo completamente alheio à alternância das noites e dias. Em

suma, esses insetos regem, quase que nesse compasso, toda a rotina das famílias

que os criam.

A fragilidade da espécie determina que nenhum resvalo seja

cometido durante o manejo, especialmente nas três últimas fases, que ocorrem sob

cuidados dos criadores, posto que até então, elas acontecem em ambientes

artificiais rigorosamente controlados.

Conforme mencionamos, os entrepostos são os pontos de

distribuição das larvas, cabendo aos produtores irem retirá-las nas datas e horários

estipulados. Lembramos que as larvas são vendidas em um esquema de

adiantamento aos criadores, cabendo-lhes saldar essa dívida no momento da

entrega dos casulos. Via de regra, os mesmos dispõem de veículos precários,

quando os possuem. Para que cheguem ao destino, em condições de transporte

nem sempre convencionais, são utilizadas caixas de papelão com dimensão variável

entre 1,20 e 1,50 m2 . Essa é a medida para o dimensionamento da atividade, que

não é padronizado entre as empresas, variando de 33.000 a 40.000 larvas por

caixa.

Considerando a duração dos ciclos, diretamente relacionados com

as estações do ano, a terceira idade compreende um período médio de 72 horas em

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que as lagartas ficam ativas, seguidas de 36 horas de sono. Ao acordarem,

ingressam na quarta idade, com igual duração de atividade e sono. Assim, passados

cerca de nove dias, as lagartas adentram a quinta idade, fase em que permanecerão

acordadas ao longo de seis ou sete dias, perfazendo um período de atividade de

aproximadamente 160 horas. É o momento em que elas param de se alimentar e

iniciam a subida aos bosques, onde tecerão os casulos.

Durante os períodos de sono, as lagartas se mantêm imóveis, presas

aos galhos de amoreira que serviram de alimento. São as fases de menor

intensidade de trabalho para os criadores, já que os cuidados se restringem a três

aplicações diárias de cal hidratado sobre as mesmas, a fim de evitar a proliferação

de fungos, altamente prejudiciais ao seu desenvolvimento. Todavia, há a iminência

de ataque de predadores, que são os mais variados: pássaros, roedores, répteis,

insetos etc., de forma que a vigilância deve ser constante. Segundo as empresas,

cerca de 30% de perda de lagartas está relacionada a ocorrências dessa natureza.

Não é por motivo diverso que a sericultura é uma das atividades

quase que indissociáveis do trabalho familiar camponês, viabilizada justamente

pelo envolvimento dos membros da família, desde as crianças até os idosos em

atribuições que não requerem grande esforço físico. É o que verificamos nessas

fases de dormência, quase sempre a cargo dos indivíduos de menor vigor físico,

ficando os demais liberados para os trabalhos mais pesados, seja na lavoura da

amoreira ou em outras, dentro ou fora da propriedade.

Se, enquanto dormem, os bichos da seda dão uma relativa folga aos

sericicultores, quando estão acordados, exigem cuidados intensivos. Na corrida pela

melhoria da qualidade essa é, sem dúvida, a etapa decisiva. E dentre os requisitos

dessas fases, a alimentação adequada é aquela que, de longe, vai definir os

resultados. Em outras palavras, a produtividade da sericicultura depende

diretamente da forma como são alimentados os bichos da seda, com suas

exigências alimentares variando concomitantemente ao seu desenvolvimento.

Dessa maneira, o cultivo das amoreiras, alimento exclusivo da

espécie, deve ser conduzido com esmero. Tudo isso implica em trabalho e custos,

visto que a disponibilidade de nutrientes no solo é fundamental para a manutenção

de arbustos resistentes e viçosos, mesmo diante da exposição a podas sistemáticas.

Assim, as adubações orgânicas e ou químicas são indispensáveis, observando-se

certos critérios, pois havendo retenção de substâncias estranhas nas plantas, elas

fatalmente serão ingeridas pelas lagartas, podendo afetar severamente a cria.

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Isso se aplica também ao controle das espécies invasoras que não

pressupõe, sob nenhuma hipótese, o uso de componentes químicos, como

pesticidas e herbicidas, devendo-se recorrer exclusivamente ao manejo manual das

pragas. Em vista da intensidade do trabalho no barracão e da dimensão da lavoura,

que nos casos da exploração camponesa normalmente compreende cerca de três

hectares de cultivo, a tração animal é um recurso quase que obrigatório para sua

manutenção.

Durante a primavera, verão e outono, estações propícias à criação

do bicho da seda, entre os marcos indicativos do domínio sericícola no território

temos os densos amoreirais, muito verdes e brilhantes, em meio dos quais sempre

se pode ver uma imagem que muitos supõem ser coisa do passado: homens

cuidando da lavoura com o auxílio de animais, como mostra a foto a seguir.

Foto 1 – Trabalhando no amoreiral

Ocorre que a incapacidade apresentada pelos bichos da seda para

tolerar substâncias químicas não se restringe ao alimento ingerido. O ambiente

circundante deve ser inodoro e igualmente livre de partículas tóxicas. Esse é um

dos motivos pelos quais a atividade tende a se concentrar em bairros rurais. Por

tratar-se de locus privilegiado dos camponeses, prevalece a policultura fundada em

um manejo apenas parcialmente apoiado em agrotóxicos, mesmo porque os custos

do pacote tecnológico são proibitivos à maioria.

No domínio das monoculturas, ainda que haja enclaves

camponeses, a sericicultura é praticamente inviabilizada, em decorrência da

concentração regular de veneno no ar, derivada das pulverizações nas plantações.

Tivemos a oportunidade de visitar alguns camponeses no município de Lobato que

tiveram que abandonar a atividade em virtude da introdução de agentes

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desfolhantes no manejo da cana-de-açúcar, em franca expansão na região. A

utilização de insumos altamente agressivos não se restringe a essa cultura, estando

eles presentes em praticamente todas as lavouras cerealíferas.

Na ausência de interferências exteriores como essas, o desafio para

que os sericicultores possam alcançar índices satisfatórios de produtividade está

nas técnicas de corte e distribuição da amoreira para as lagartas.

Vimos que ao chegar na propriedade, cada caixa contém de 30.000

a 40.000 larvas, o que em termos de peso representa de 10 a 20 gramas. Isso pode

nos dar uma idéia do seu diminuto tamanho, bem como da sua restrita necessidade

alimentar ao adentrar a terceira idade. Contudo, só aparentemente essa seria uma

facilidade aos camponeses, pois a fragilidade das larvas pode constituir-se em uma

armadilha, senão vejamos.

Os bichos da seda não enxergam, o que os impossibilita de

buscarem o seu próprio alimento. Assim, é este que deve chegar até eles e em

condições que os mesmos possam identificá-lo. É o cheiro da amoreira que os atrai

e esse cheiro exala somente das folhas frescas. Portanto, ao murcharem, deixam de

lhes servir de alimento.

Ocorre que o acúmulo de folhas murchas é altamente favorável à

fermentação e proliferação de fungos, que geralmente são fatais aos bichos.

Considerando que, enquanto acordados eles devem comer sem parar, a quantidade

servida deve ser exata, ainda que as três aplicações diárias de cal hidratada sobre

as camas de criação tenham por objetivo reter o excesso de umidade e, assim,

minimizar os riscos de contaminação.

O dimensionamento da criação vai depender diretamente das

condições da lavoura mas, em média, cada caixa de larvas requer cerca de um

hectare cultivado, isso após dois anos do plantio, quando os arbustos já conseguem

responder mais rápido às podas. No primeiro ano de cultivo, o número de caixas a

serem criadas necessariamente deve ser menor.

Para a terceira idade, as folhas devem ser tenras, tendo como limite

a parte superior dos galhos, cujos talos ainda estão verdes. Ao adentrarem a quarta

idade, a consistência ideal das folhas está nos galhos uns 30 centímetros abaixo do

limite anteriormente mencionado. Por fim, na última idade devem ser servidas as

folhas mais duras, presentes na parte imediatamente inferior dos galhos.

Vemos assim que uma boa produção exige uma seleção cuidadosa

do alimento disponibilizado aos bichos da seda. É isso que orienta o corte

diferenciado das amoreiras, de acordo com as várias idades e respeitando o manejo

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em talhões. Para garantir alimentos nos oito meses em que é possível criá-los,

procede-se a três podas, a primeira no final de maio, quando o ciclo anual é

encerrado, repetindo-se no início de julho e início de agosto. Assim, é possível

adequar o estágio do vegetal à retomada da atividade, em meados de setembro.

Já mencionamos anteriormente que a sericicultura comporta um

calendário peculiar e isso interfere no ritmo e na divisão do trabalho no interior da

unidade produtiva. Nas fases em que as lagartas devem ser alimentadas, isso é por

demais evidente. Nesse período, a incidência de luz solar é que vai reger o trabalho

dos diferentes membros da família. Conforme destacamos, as folhas a serem

servidas devem estar frescas. Desse modo, não é possível buscá-las na lavoura

enquanto houver sol, pois nessas condições elas tendem a murchar rapidamente. É

por isso que todo barracão de criação deve possuir um depósito para os ramos de

amoreira.

No alvorecer, os homens saem para a lavoura a fim de proceder ao

corte de toda a amora necessária à alimentação das lagartas ao longo do dia. Para o

transporte até o barracão são utilizadas carroças puxadas por animais, sendo

necessário tantas viagens quanto a capacidade diária de consumo das mesmas.

Enquanto alguns se ocupam dessa tarefa, outros já estão envolvidos na distribuição

do alimento para os bichos, geralmente idosos, mulheres e crianças, que assim

permanecerão em vigilância ao longo do dia, distribuindo mais ramos sempre que

necessário e regando as que se encontram no depósito para que não murchem. À

noite, é comum todos se revezarem nessa tarefa. É o que se ver na foto seguinte,

que mostra pai e filho distribuindo a amora aos bichos.

Foto 2 – Alimentando os bichos-da-seda

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O sol não é referência apenas para a colheita da provisão alimentar

diária da cria, regendo igualmente a cadência do trabalho dentro dos barracões.

Isso sem falar no ciclo biológico do bicho da seda, cuja duração está diretamente

relacionada à incidência de luz e calor. Entre os meses mais quentes e os meses

mais amenos, essa diferença chega a ser de até cinco dias.

Os lotes de larvas são dispostos longitudinalmente no barracão, de

forma a garantir espaço de circulação para as pessoas que cuidam da alimentação e

assepsia do local. A necessidade de distribuição de alimento varia com o ritmo da

temperatura, diretamente relacionada à conservação das folhas em condições de

serem consumidas pelas lagartas.

Por essa razão, no período da manhã o trabalho é mais intenso, pois

há um consumo maior de folhas. À medida que o calor se intensifica, as folhas

rapidamente deixam de ser atrativas, razão pela qual as lagartas comem menos,

impondo tratos mais regrados. Quando o sol se vai, o ritmo de consumo novamente

se intensifica e assim se estende por toda a noite. Nas fases em que as lagartas

estão maiores, sobretudo na quinta idade, o som que produzem ao devorar as

folhas é surpreendente. No silêncio da noite, a sensação que se tem dentro do

barracão é que está chovendo.

Como vemos, o ritmo da sericicultura é bastante peculiar,

demandando atenção e cuidados extremados, pois que há a hora certa e a forma

certa de distribuir os ramos de amoreira. Havendo excesso, as folhas murcham

antes de serem consumidas, dificultando o saneamento no barracão. Por outro

lado, a quantidade insuficiente vai interferir diretamente no desenvolvimento das

lagartas e, conseqüentemente, na qualidade e quantidade dos fios de seda.

A experiência ímpar em relação à sucessão dos eventos naturais,

associada à presença quase que permanente dentro do barracão, torna os

camponeses profundos conhecedores do ritmo biológico dessa espécie. Como se

pode inferir, trata-se de um calendário ordenado de acordo com o tempo que rege as

necessidades vitais e o tempo de maturação das lagartas. A tudo isso os criadores

devem estar atentos, inclusive porque, ao final do ciclo, elas buscam

instintivamente um local para se instalarem, no caso os bosques, e assim passarem

pelo processo que as transformaria em crisálidas, caso não fosse interrompido. É

nessa fase que tecerão o casulo em um único e extraordinariamente longo fio de

seda, cujo comprimento varia de 900 a 1.200 metros.

Os bosques são estruturas quadriculadas de papelão, comportando

cada quadrícula apenas uma lagarta e, conseqüentemente, um casulo. Não basta

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aos criadores baixá-los a uma altura que as lagartas possam alcançá-los. É preciso

cuidar para que mais de uma não se aloje na mesma quadrícula, pois isso

produziria casulos duplos, sem valor comercial. O mesmo se aplica aos casulos

deformados e manchados, o que exige dos sericicultores extremos cuidados com os

bosques, o equipamento mais caro dentro do barracão. Para se ter uma idéia do seu

custo em relação ao rendimento que a atividade proporciona, as empresas até há

pouco tempo se comprometiam a financiá-lo aos integrados, ao prazo médio de três

anos. Posteriormente demonstraremos como o poder público assumiu esse

compromisso.

Por tratar-se de um equipamento material e estruturalmente frágil,

sua durabilidade é de no máximo oito anos, quando observados cuidados especiais

na estocagem, montagem, desmontagem e manuseio após a retirada dos casulos,

devido à deposição de excrementos das lagartas durante os sete dias em que ali

permanecem. Assim, ao serem retirados os casulos, os bosques devem receber sol

até secarem completamente, caso contrário haverá comprometimento do artefato.

Cada quadrícula deformada ou suja não poderá mais alojar lagartas nas crias

subseqüentes, sob pena dos casulos não terem qualquer valor comercial.

As condições de alojamento das lagartas nos bosques, se observado

o manejo adequado durante sua permanência no barracão, é que definirá a renda

dos produtores. Isso porque desconsiderando o seu peso e saúde, já determinados

anteriormente, no decorrer de seu desenvolvimento, a qualidade é mensurada pela

aparência do casulo entregue à indústria. Nesse caso, os critérios são forma perfeita

e limpeza irretocável. Isso lhes impõe não apenas o trabalho de pré-seleção antes da

entrega dos casulos, mas, sobretudo, um trabalho artesanal de retirada e

realocação de todas as lagartas que se acomodaram em quadrículas defeituosas ou

em dupla, a fim de evitar ao máximo as perdas. Lembremos que essa tarefa se

aplica a um universo próximo a cem mil lagartas, o que faz com que a conservação

dos bosques seja imprescindível.

Quanto à pré-seleção feita pelos sericicultores, ela vai determinar,

em parte, o ganho da atividade, por causa da variação de preço entre os casulos de

primeira e de segunda. Por isso é conveniente proceder a uma boa seleção já no

barracão, para garantir lotes homogêneos, de modo que os melhores possam se

enquadrar nas melhores classificações. Uma das estratégias das indústrias para

obter a melhoria da qualidade está no pagamento de prêmios escalonados sobre o

preço bruto do quilo de casulo, fixado a partir de um padrão mínimo de qualidade.

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Abaixo desse, os preços podem chegar à metade do que efetivamente se paga pelos

melhores casulos.

Os critérios de classificação se pautam por duas variáveis: peso e

aparência. Para definir o peso, determinado pelo tamanho da lagarta, toma-se uma

amostra de meio quilo, contando-se a quantidade de casulos que a compõem. A

partir daí são definidos os prêmios, que variam de dois a dez por cento do preço

bruto, em ordem inversamente proporcional ao número levantado, limitado a 290

casulos por amostra.

Nessa mesma amostra é feita a seleção, a fim de se levantar o índice

de casulos abaixo do padrão. Do mesmo modo, são adicionados percentuais de dois

a dez por cento do preço base até o limite de 5% de descarte daqueles imperfeitos.

É por essa razão que uma seleção bem feita no barracão evita a

definição de uma qualidade média, que deprime sobremaneira o preço do

percentual com padrão de qualidade superior.

Até então, o contrato de integração reza que todos os casulos serão

recebidos pela indústria, mas os engenheiros de produção afirmam que atualmente

o processamento daqueles pequenos, mal formados ou sujos representa prejuízo

para as empresas, ainda que o preço pago aos produtores seja muito baixo,

chegando a menos de um dólar por quilo29.

Casulos menores implicam em fios de seda menores, que no

processo de enrolamento requerem mais emendas. Além das emendas depreciarem

o preço alcançado pelo fio industrializado, oneram os custos com mão-de-obra, uma

vez que a industrialização nada mais é do que o desenrolamento do fio de cada

casulo e o posterior enrolamento, até atingir enormes carretéis de fios de seda.

Cumpre salientar que todos os fios são emendados manualmente e exclusivamente

por mulheres, dada a delicadeza da tarefa.

Como se pode observar, as exigências da atividade são de tal ordem

que a sua viabilidade requer trabalhadores especiais, sobretudo no campo, cujo

envolvimento com as necessidades diretas e indiretas dos bichos vai interferir em

toda a cadeia produtiva. Sem nos equivocarmos, podemos afirmar que as demandas

desses ditam, quase que sem restrições, a rotina e o ritmo de trabalho dos

camponeses.

É por isso que o trabalho familiar camponês é absoluto na

sericicultura. E à medida que se vão intensificando as exigências no tocante à

29 Em maio de 2.002 os preços pagos aos produtores variaram entre R$ 2,78 a R$ 5,00 por quilo de casulo verde, sendo que o rendimento por caixa de larvas criadas variou entre 50 e 70 quilos.

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qualidade, a seletividade entre os próprios sericicultores vai se colocando em outro

patamar.

Com efeito, durante o processo de expansão da capacidade

instalada das indústrias fiadoras, a criação de bichos da seda por camponeses

proprietários nem sempre teve importância relevante. A parceria na sericicultura foi

amplamente difundida, chegando a responder por mais de 80% da produção de

casulos verdes em alguns dos municípios por nós estudados, a exemplo de Astorga.

Nesse regime, muitos detentores de pequenas propriedades já

radicados na cidade, viram nessa atividade a possibilidade de auferir renda sem

envolvimento direto e com limitadas necessidades de investimentos. É importante

destacar a existência desses elementos diferenciais da sericicultura em relação aos

esquemas usuais de parceria na agricultura, pois a primeira requer pequena

parcela de terra, bem como de recursos financeiros, ao mesmo tempo que o retorno

monetário é mensal, exceto no período de entressafra, que se prolonga de maio a

setembro.

O cultivo da amora e o manejo dos bichos se fazem com baixíssima

utilização de insumos e intensa ocupação de mão-de-obra. Como o ônus monetário

da atividade realizada em parceria tende a recair sobre os proprietários das terras,

a quem em geral cabe a aquisição de insumos, contra a força de trabalho que

oferece o parceiro, depreendemos que, na sericicultura, muito pouco em termos

monetários é exigido do proprietário.

Portanto, além de se tratar de uma atividade que praticamente

inverte a lógica da agricultura atual, pautada na intensificação dos fatores técnicos

em detrimento da força de trabalho efetivamente envolvidos na produção, a mesma

tem um ciclo bastante curto. Daí o ponderável giro monetário para os proprietários,

coisa que não acontece nas demais culturas, em razão dos ciclos mais longos de

produção.

Em um cenário onde os ganhos, em geral, são determinados pela

escala de produção, a lucratividade das pequenas propriedades ocupadas com

atividades convencionais e exploradas sob bases tipicamente capitalistas tem sido

cada vez menor. Assim, as particularidades destacadas tiveram importante peso na

implementação da parceria, ainda que essa relação implique a fixação das famílias

na propriedade, situação rechaçada pela maioria dos proprietários, pelos vínculos

que a mesma pressupõe.

Do ponto de vista dos sericicultores parceiros, a ausência de meios

de produção próprios é driblada pela referida relação, a qual tem garantido a

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preservação de sua condição camponesa. Aliás, a persistência dessa relação é por

demais evidente, não se limitando apenas à sericicultura.

É por isso que decretar o desaparecimento do campesinato ante a

desestruturação da tradicional economia cafeeira norte-paranaense tem sido um

equívoco. A nosso ver, o mais apropriado é buscar na dinâmica produtiva as

possibilidades da recriação. A recriação a que nos referimos propõe exatamente

contemplar as estratégias a que recorre a classe camponesa, renovadas sempre que

as condições mantenedoras de sua autonomia se desintegram, e sabemos o quanto

elas são recorrentes.

No caso em questão, o cenário que atualmente se insinua merece

destaque. Os acordos30 de parceria que foram propulsores da sericicultura são cada

vez menos interessantes para as indústrias, justamente porque apresentam

fundamentos diferenciados em relação à atividade desenvolvida pelos camponeses

proprietários, a começar pela alteração na lógica da produção, pois que essa passa

a envolver três sujeitos sociais: o capitalista da indústria, o proprietário da terra e o

parceiro. Desse modo, a disputa entre o camponês parceiro e o proprietário será

pela retenção da renda da terra gerada pela atividade e igualmente perseguida pelo

capitalista da indústria. Portanto, o camponês parceiro passa a sofrer uma dupla

relação de exploração.

Esse conflito se manifesta principalmente no desencontro entre as

expectativas de renda pelos que cedem a terra e por aqueles que conduzem a

atividade, não raro criando situações de descontentamento em ambas as partes.

Evidentemente, isso se reflete no empenho com que a criação do bicho da seda é

conduzida e, em geral, se manifesta sob duas formas.

Uma delas diz respeito ao manejo das amoreiras, que exigem

adubações periódicas a fim de preservar matéria verde em quantidade e qualidade

adequadas. Isso demanda gastos, razão pela qual muitas vezes os proprietários as

negligenciam, havendo implicações diretas no desenvolvimento das lagartas e,

conseqüentemente, na qualidade dos casulos.

Está ficando cada vez mais difícil para a gente que é porcenteiro, porque o adubo subiu mais do que os casulos e não é todo dono de terra que aceita empatar mais dinheiro numa coisa que rende cada vez menos. Mas é a gente que sofre mais ainda porque a amora sente... aí tem que pegar menos bichos para criar, sem falar que nem sempre dá para tirar uma classificação boa na indústria31.

30 Deixamos de utilizar o termo contrato por ser limitante nos casos estudados, em vista da predominância dos acertos verbais entre proprietários e sericultores. 31 N.: Tupinambá - Astorga.

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Nesse caso, parece inequívoco que a barreira está na resistência do

proprietário quanto ao investimento monetário na atividade, submetido ao cálculo

geral que pressupõe o retorno de uma taxa média de ganho. Nesse caso, além da

perda monetária, os sericicultores sofrerão uma intensificação do trabalho, pois

menos folhas ou folhas impróprias exigem mais cortes, transporte e distribuição

mais abreviada no barracão.

Por outro lado, vimos que os cuidados dentro do barracão são

igualmente decisivos na qualidade dos casulos. Embora as recomendações técnicas

contemplem um ritmo de trabalho passível de ser desempenhado por cerca de duas

ou três pessoas, considerando a média que é 2,7 caixas de larvas por criador, o

trato pode e é conduzido de diversas maneiras. Se na jornada diurna o que faz a

diferença é o esmero na distribuição do alimento, o diferencial está no período

noturno, quando os bichos continuam se alimentando incessantemente. Apesar de

não haver imposições no sentido de que haja distribuição de amora no intervalo

entre dez horas da noite e cinco horas da manhã, a prática é considerada desejável,

por implicar em ponderável incremento na produtividade.

De um modo geral, são os camponeses proprietários que se

submetem a uma rotina que sacrifica o sono noturno, especialmente na quinta

idade, quando a voracidade dos bichos da seda se manifesta com a máxima

intensidade. Nessa fase, o barracão se encontra praticamente tomado pelas camas

de criação, em vista do seu extraordinário crescimento. Para se ter uma idéia dessa

variação, basta lembrarmos que no ciclo, a caixa que contém cerca de dez gramas

de larvas produzirá, no mínimo, cinqüenta quilos de casulo, dos quais mais de

oitenta por cento correspondem ao peso físico das lagartas metamorfoseadas.

A determinação explícita das empresas em ir eliminando

gradativamente os parceiros dos quadros da integração se apóia justamente nesses

pequenos detalhes. É óbvio que não passa despercebido às mesmas o fato de que as

condições objetivas daqueles que controlam integralmente a atividade são mais

favoráveis, e de fato se manifestam nos resultados finais das crias.

Ao concorrer a possível negligência dos proprietários do negócio, aos

quais nem sempre importa a diferença monetária entre a melhor e a pior

classificação, com a indiscutível diferença de estímulo dos sericicultores que retêm

para si apenas parte dos rendimentos da atividade, em geral fixada em 40% do

preço alcançado pelos casulos, a qualidade da matéria-prima, via de regra, é

afetada. Daí a tendência da parceria na sericicultura se inviabilizar.

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Se do ponto de vista dos detentores da terra mercadoria isso

representa apenas uma mudança de atividade, é certo que aos camponeses

parceiros isso implicará em novos desafios para sua própria reprodução, o que não

significa, contudo, que para os sericicultores proprietários os desafios sejam

menores, sobretudo para aqueles que não se adequaram aos novos padrões

impostos pelas integradoras.

É evidente que o frágil equilíbrio monetário resultante de uma

situação cambial instável, somado à crescente pressão por melhoria da qualidade,

sem a necessária contrapartida em termos de renda, não afastam do horizonte de

vários camponeses a necessidade de adotar novas estratégias para a reprodução

familiar centradas na manutenção da propriedade.

Contudo, convém lembrar que nem a confirmação dessa situação

hipotética seria suficiente para decretar o fim do campesinato enquanto classe.

Primeiro porque a dinâmica da realidade não pode ser confundida com um

arrastão, supostamente capaz de conferir um destino comum a unidades

produtivas cujo trunfo está exatamente na sua diversidade.

Segundo, porque a recriação dos camponeses não ocorre como

dádiva, tampouco como concessão do capital, mas como situação objetiva que

combina uma série de variáveis que culminam na energia de encontrarem saídas,

sempre que necessário. No limite, isso se reflete no próprio processo de

diferenciação interna à classe.

A sericicultura, para não fugir à regra das demais atividades

primárias, igualmente se encontra submetida a ciclos de expansão e retração. Não

foram poucos os camponeses que a abandonaram num passado próximo, assim

como não são poucos os que estão ingressando na atividade.

Ao mesmo tempo que encontramos algumas famílias em fase de

implantação da atividade, alguns começando a cultivar a amoreira, outros já em

fase de construção do barracão, tivemos a oportunidade de visitar várias famílias

que optaram pela desativação da sericicultura em favor da combinação do café com

leite, café e cereais, muitos dos quais vieram a colher a primeira safra somente no

quarto ano após o plantio, em virtude da forte geada do ano 2000. Outros a

substituíram pela policultura, outros pela olericultura e até mesmo pelo cultivo e

produção artesanal da vassoura, vendendo diretamente ou delegando a outros a

venda da produção nas cidades próximas, mediante porcentagem.

Enfim, os camponeses recorreram às mais variadas estratégias para

fazer frente à ultima crise na sericicultura. Contudo, um traço comum entre eles

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parece ser a disposição em colocá-la como alternativa derradeira, caso as atuais

opções produtivas se esgotem. Pudemos observar que essa posição não é derivada

apenas da desilusão que a súbita insustentabilidade econômica provocou em um

passado recente. Aliás, isso é um fato comum na agricultura e os camponeses estão

fartos de prová-la, abandonando e retomando os diversos cultivos de acordo com a

dinâmica dos preços.

Entre os fatores arrolados para justificarem o estranhamento em

relação à sericicultura, está a dificuldade em combinar a diversificação com as

exigências dessa cultura. Nesse sentido, a argumentação mais incisiva girou em

torno do fato de a considerarem uma atividade invasiva, que os obriga a abdicar do

lazer e das práticas sociais difundidas na comunidade.

Falar que a gente nunca mais vai criar bicho da seda a gente não fala, porque o agricultor nunca sabe o que vai ter que fazer nessa vida. Mas que a gente só volta a fazer isso quando não tiver mais nada para fazer aí a gente fala de coração. E não é por causa do preço, porque agora está bom de novo. É porque a gente deixa de viver para cuidar do bicho. Não dá para fazer diversificação, não dá para ir às missas do domingo, um jogo, uma visita para os parentes... Você acha que isso é vida? 32

É esse nível de exigência que torna a sericicultura uma atividade

desinteressante e, porque não dizer, incompatível com as relações tipicamente

capitalistas, pois, como vimos, os custos salariais certamente estariam em

desacordo com as taxas de lucro consideradas satisfatórias tanto para os

proprietários quanto para os industriais.

Cremos tratar-se de uma clara manifestação de que a integração se

sustenta e se expande nas atividades intensivas cuja taxa de lucro para a indústria

é assegurada pela apropriação desmesurada do valor trabalho contido na produção

da matéria-prima básica. Prova disso é que as empresas classificam como

sericicultores ideais aqueles que são proprietários e desenvolvem atividades

paralelas, inclusive de autoconsumo. Portanto, para se manter, os camponeses

devem ter renda acessória, em geral obtida com a diversificação interna e produção

parcial de alimentos, pois o retorno monetário da sericicultura não é suficiente para

a compra de todos os víveres e satisfação das demais necessidades básicas da

família.

Com essa situação de reprodução social, pautada nos mais baixos

índices de rentabilidade, contrasta a posição da indústria que dela se alimenta.

32 A.: Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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Primeiro, porque a indústria possui extraordinária capacidade de agregar renda à

produção primária, com destaque para o fato de que o processamento industrial

permite o aproveitamento integral dos casulos, enquanto que o cálculo para o

pagamento da matéria-prima aos produtores está centrado exclusivamente no teor

de seda.

As lagartas enclausuradas, mortas pelo choque térmico aplicado

aos casulos, para evitar a evolução para crisálidas, possuem propriedades protéicas

das mais elevadas, sendo totalmente aproveitadas para fabricação de ração para

peixes. Por outro lado, a parte final dos casulos, que não permite a extração da seda

em forma de fio, é submetida a um processo de fiação associada a fios de algodão,

dando origem à viscose, de grande aceitação no mercado têxtil.

Em segundo lugar, concorrem para a garantia das taxas de lucro as

relações das mesmas com os recursos públicos. Asseveramos anteriormente que o

financiamento dos bosques para os sericicultores foi amplamente difundido pelas

empresas. Contudo, em uma conjuntura em que os produtores considerados

ineficientes tendem a ser eliminados, o vínculo derivado de adiantamentos como

esses sujeita-os inapelavelmente às empresas e vice-versa, pois isso implica manter

o contrato de integração enquanto a dívida não for quitada, independentemente da

qualidade da produção entregue.

Essa é uma das razões pelas quais as integradoras estão recorrendo

à linha de crédito denominada Agregação de Renda à Atividade Rural (AGREGAR), a

qual é vinculada ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

(PRONAF). Trata-se de uma linha de crédito voltada às empresas integradoras de

um modo geral, por causa das baixas condições de renda dos produtores a elas

vinculados, os quais são, ou deveriam ser, os alvos privilegiados desse Programa,

como se verá no quinto capítulo.

Destarte, as integradoras são beneficiadas com um empréstimo

mãe, por assumirem a parte burocrática vinculada à solicitação de crédito para

cada um dos sericicultores, encarregando-se de formular e encaminhar os projetos

nos moldes previstos pelo PRONAF. Desse modo, os recursos globais são creditados

à empresa, que se encarregará de repassá-los aos integrados.

Apesar de haver uma tendência geral entre os camponeses de

associarem tal medida a uma boa ação das empresas, na prática as empresas é que

são fortalecidas por ela. Primeiro porque ao deixar de adiantar recursos próprios

para os sericicultores, elas preservam o poder decisório sobre a pertinência ou não

de mantê-los no quadro de fornecedores.

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Segundo, porque as empresas se beneficiam de um recurso público

para incrementar o seu capital de giro a um custo monetário baixíssimo, visto que

os juros para essa modalidade de empréstimo são de 4% ao ano. Trata-se da

mesma taxa subsidiada a que têm direito os agricultores mais empobrecidos, como

se verá mais adiante.

Enquanto que para as empresas essa é uma benesse, os

camponeses que obtêm o repasse através dessa intermediação perdem o direito de

se beneficiarem com uma outra linha de crédito do PRONAF, o Pronafinho, o qual

concede um rebate de cerca de 18% do montante emprestado aos que pagarem as

parcelas em dia.

Como se pode observar, enquanto foi possível manter a taxa de

lucro independentemente da qualidade da matéria-prima, as empresas se

dispunham a adiantar dividendos aos integrados, mesmo porque se não o fizessem

certamente não teriam como viabilizar a própria atividade, posto que muitos

camponeses não dispunham de recursos para os investimentos iniciais. A

exacerbação da competitividade no mercado de fios de seda, com a respectiva

necessidade de reduzir custos e ganhar em qualidade, transformou em amarras

essa prática tradicional: débitos de sericicultores implicam em manutenção dos

contratos até a sua quitação, ainda que a qualidade da matéria-prima seja

insatisfatória.

São situações dessa natureza que explicitam a privatização dos

lucros e a socialização das perdas. Ao disponibilizar crédito para a viabilização da

atividade, a intervenção do Estado não modifica o patamar de renda dos

sericicultores: para esses, saldar os débitos sem o rebate e ainda acrescidos de

juros, ainda que módicos em relação às taxas correntes, não é tarefa fácil, em vista

da compressão da renda na atividade. Some-se a isso o fato de que as empresas são

totalmente livres para rescindir os contratos, mesmo que os investimentos

realizados pelos sericicultores ainda não tenham sido resgatados.

Por outro lado, esse subsídio público dá margem para que as

mesmas continuem implementando estratégias que asseguram a extração de taxas

médias de lucro. Entender a integração nesses termos é reconhecer que estando o

limite para o empreendimento em bases tipicamente capitalistas no custo das

matérias-primas, a monopolização das parcelas camponesas do território é, sem

sombra de dúvida, uma saída estratégica.

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4.2. O paradoxo do cooperativismo

Em contraponto à teoria marxista da luta de classes para a

superação da exploração e desigualdades capitalistas, nasce em meados do século

XIX o cooperativismo moderno. Inspirada em ideólogos como Saint Simon, Charles

Fourier e Robert Owen, a doutrina cooperativista pregava a transformação gradual

e “sem traumas” da sociedade, através da racionalidade instituída a partir da

cooperação mútua nas mais diversas instâncias econômicas.

É indubitável que tal perspectiva, ao preconizar uma transformação

social pacífica, desconsiderou a dinâmica de uma sociedade de classes. Aí está o

equívoco, por não ser plausível apostar que a classe detentora da posição

hegemônica faça voluntariamente concessões que impliquem na perda dessa

condição. Passados cerca de um século e meio da experiência pioneira, isso é por

demais evidente, pois as cooperativas se multiplicaram e se difundiram

mundialmente, mas não conseguiram tocar significativamente nas desigualdades

sociais existentes.

Não há dúvida que em plena Revolução Industrial o sistema

cooperativista se inscreveu como um movimento de insurreição às precárias

condições de reprodução social dos trabalhadores e, por conseguinte, de

enfrentamento do já desmesurado poder dos capitalistas. Entretanto, no decorrer

do processo de consolidação mundial do mesmo, pode-se afirmar que as

cooperativas mais foram influenciadas do que influenciaram a ordem que se

propunham transformar.

Isso fica patente nas sucessivas alterações sofridas pelos princípios

originais do sistema cooperativista, que atualmente podem ser resumidos em seis

preceitos: adesão livre e voluntária - gestão democrática pelos próprios cooperados -

limitação da taxa de juros sobre o capital social, face ao pressuposto de que esse é

meramente fator de produção - distribuição das sobras líquidas proporcional à

participação - constituição de fundo para a educação cooperativa - ativa integração

entre cooperativas.

A História se encarregou de demonstrar a utopia da proposta de socialização contida na doutrina cooperativista [...]. A dialética da interação entre o movimento cooperativista e as forças propulsoras do capitalismo não só frustraram a proposta de transformação da sociedade, como possibilitaram a incorporação do cooperativismo na própria dinâmica da expansão do capital, enquanto elemento de complementação à economia de mercado. (SCHNEIDER, 1981, p. 11).

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No caso brasileiro, o sistema cooperativista basicamente

experimentou todos esses processos ao longo do século XX. Apesar da diversidade

dos setores envolvidos na organização cooperativa, centraremos nossa atenção na

cooperação agrícola, iniciada em 191533, com a constituição da célula do que viria a

ser a Cooperativa Agrícola de Cotia, hoje extinta.

Até meados do século passado, afora algumas experiências isoladas,

as cooperativas se constituíam basicamente de unidades independentes, com baixa

capacidade de influência territorial, geralmente restritas ao município de origem. A

diversificação produtiva e a descentralização da produção foram decisivas para o

surgimento da maior parte delas, pois a organização dos agricultores derivou

predominantemente de sua disposição em contornar as dificuldades encontradas

para a colocação da produção no mercado. Além de eliminar a cupidez dos

atravessadores, a soma de esforços otimizaria o transporte da produção,

viabilizando ainda a implantação de infra-estrutura para seleção e armazenamento

adequados. Enfim, propiciaria qualidade e volume que pudessem assegurar uma

comercialização mais remuneradora. No Norte do Paraná, pode-se creditar o

surgimento das cooperativas ao café, se proliferando basicamente ao ritmo de

expansão dessa cultura.

Contudo, o projeto de tecnificação agrícola, gestado pela e para a

indústria, vislumbrou nessas cooperativas uma porta de entrada para o campo,

dada a sua penetração ímpar entre os agricultores potencialmente tecnificáveis. Nas

décadas decisivas para a transformação da base técnica da agricultura, o capital

industrial teve nas cooperativas importantes agentes de intervenção e

disseminação.

É evidente que um projeto dessa envergadura não se realizaria sem

o concurso efetivo do Estado. Fiéis à pressão exercida pelos países centrais, arautos

de uma linha de cooperativismo que procurava dissimulavar a acumulação

ampliada do capital, as políticas públicas do período investiram na lapidação do

caráter empresarial das cooperativas. É nesse contexto que se promulga a Lei

5.764/1971, sob pretexto da necessidade de reestruturação econômica das

mesmas.

Segundo Loureiro (1981, p. 136-137), essa Lei, que até hoje rege o

33 A Cooperativa Agrícola de Cotia originou-se da mobilização de alguns olericultores em Moinho Velho-SP contra a ação dos intermediários e se tornou uma das maiores cooperativas agrícolas do Brasil. De acordo com Nascimento (2002, p.7), somente no Norte do Paraná chegou a congregar 8.000 cooperados. Em 1994 foi declarada sua falência, cuja dívida, somente com os produtores, foi avaliada em cerca de dez milhões de dólares.

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sistema, representa o rompimento de alguns dos princípios básicos do

cooperativismo. Com relação a esses princípios, destaca-se o fato de que os

imperativos da rentabilidade passam a ter primazia sobre os demais, a exemplo da

abertura dada pela Lei à associação com empresas não-cooperativas. Além disso, a

Lei altera os mecanismos de representação dentro da administração das

cooperativas. A renovação do conselho de administração passa a ser trienal, porém

aplicável somente a um terço dos componentes. Por não haver normas que

assegurem o rodízio dos membros do conselho, praticamente é bloqueada a

oxigenação democrática das estruturas administrativas.

Posto isso, é inquestionável o fato de que o próprio Estado

regulamentou a profissionalização dos dirigentes das cooperativas, pois com o

respaldo da Lei, a permanência de até dois terços dos membros se tornou possível,

havendo casos em que o revezamento nos cargos lhes permite se manterem ad

infinitum no poder.

A título de reestruturação das cooperativas, os objetivos inerentes à

intervenção do Estado não são outros senão a incorporação controlada de um

instrumento de expansão do capitalismo para o campo. Isso se confirma nas

palavras de um Ministro de Estado do governo militar:

É o sistema cooperativista uma das mais viáveis alternativas para uma agricultura moderna, fundamental exigência do atual estágio de desenvolvimento do Brasil. Consciente disso, o Governo Federal tem procurado estimular a formação de cooperativas em bases empresariais, permitindo-lhes, assim, oferecer melhor prestação de serviços e maior remuneração para o produtor associado. (PAULINELLI, apud LOUREIRO, 1981, p. 136).

Vemos assim que, ao preconizar o sistema cooperativista em bases

empresariais, a cooperação acaba sendo destituída de significado, sobretudo aos

cooperados cuja prática não é orientada por essa concepção, como é o caso dos

camponeses. Se como empresa a mesma deve atuar a partir da prioridade dada aos

dividendos, os cooperados inseridos em uma lógica de reprodução contrária à

primazia do negócio têm dificuldade em se identificar como partícipes da

organização.

Assim, a burocratização das estruturas oriundas da orientação

empresarial representou, na prática, a fissura entre os cooperados capitalistas e os

camponeses em seu interior. Se para os primeiros a mesma se apresentou como

canal privilegiado de fortalecimento, dada a similaridade das concepções que

orientam as práticas econômicas, aos camponeses tornou-se um instrumento de

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aparente subordinação, pois esse estranhamento os impede de participar, em pé de

igualdade, tanto do processo de tomada de decisões quanto dos encaminhamentos

cotidianos da ação cooperativa.

[...]no afã de sobreviver à competição que lhe foi sendo oferecida pela empresa privada capitalista, o cooperativismo passou a lançar mão dos mesmos métodos organizacionais e operacionais de que se valiam as demais empresas, com o fim de atingir graus de eficiência econômica compatíveis com as situações de mercado, com que se defrontava. Isto resultou na transformação gradativa de muitas cooperativas [...] em organizações de porte avantajado e de estruturas organizacionais cada vez mais complexas, levando muitas a inviabilizar o princípio da participação efetiva e do controle democrático da organização por parte dos seus associados. [...] na medida em que a organização cooperativa se expande enquanto empresa e consolida sua sobrevivência em meio a uma ordem essencialmente competitiva, ela tende a se descaracterizar como cooperativa, porquanto inviabiliza um dos princípios básicos que a definem como tal[...]. A tendência é a do sistema se confundir cada vez mais com a lógica e a racionalidade da empresa capitalista em geral, transformando o produtor associado num mero cliente dos seus serviços. (SCHNEIDER, 1981, p. 32-33).

Portanto, a intervenção estatal foi claramente orientada para a

integração vertical das células independentes, via instrumentos legais e creditícios,

com vistas ao fortalecimento da agricultura empresarial, tida como indispensável

para a viabilização das unidades agroindustriais.

Nessa perspectiva, a mediação dessas cooperativas para a aquisição

de máquinas e insumos requeridos pela agricultura de escala atendia os interesses

de uma minoria de cooperados, ao passo que se mostrava cada vez mais incapaz de

dar respostas às demandas de uma maioria de produtores. Houve assim um

distanciamento recíproco, pois ao mesmo tempo que os camponeses deixaram de

buscar soluções no interior da cooperativa, essa se constituía em agente contrário à

cultura de excedente, que comparecia como empecilho à especialização produtiva

requerida pela agroindústria.

Nesse contexto, muitos dos fundamentos que atraíram os

camponeses à organização cooperativa foram-se desvanecendo em ritmo

diretamente proporcional às mudanças projetadas, culminando em uma estrutura

bastante distanciada dos princípios da ajuda mútua e gestão democrática.

Não obstante, a despeito do aprofundamento do esquema

competitivo em detrimento do caráter solidário e participativo, trata-se de um

sistema cooperativo, no qual o princípio de cotas assegura aos participantes das

assembléias equanimidade nas decisões. Trata-se do princípio de que cada

cooperado tem direito a um voto. Assim, pelo menos em tese, o poder emana de

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todos, diferentemente das sociedades anônimas, pelas quais o peso das decisões

está diretamente relacionado à quantia de ações (poder econômico, portanto) de

cada um dos participantes. Portanto, os canais de participação estão legalmente

assegurados, estando os camponeses igualmente investidos do poder de decidirem

os rumos da cooperativa.

Em outras palavras, apesar das mesmas atuarem, em grande

medida, no sentido de favorecer a acumulação primitiva para um grupo restrito de

produtores, sistematicamente fortalecidos como capitalistas, é necessário ponderar

que a inserção dos camponeses no sistema cooperativo implica na eliminação de

intermediários que se apropriam da renda da terra. Dessa maneira, ainda que a

mediação da cooperativa não represente, de imediato, ganhos superiores em relação

à mediação de empresas privadas, parte dessa diferença será canalizada para

reinvestimento nas estruturas da cooperativa, da qual são partícipes. Assim, a

menos que essa venha a falir, a renda que seria retida pelos intermediários pertence

aos camponeses cooperados.

A dificuldade dos camponeses se reconhecerem como reais

proprietários e depositários da renda retida pela cooperativa está no fato de que a

distribuição das sobras é algo raro, assim como a infra-estrutura construída

atende, em grande medida, as necessidades da agricultura empresarial.

Prova disso é que a agricultura camponesa, basicamente voltada à

produção de alimentos para o consumo interno, raramente privilegiada pelas

políticas públicas, tem perdido esse que poderia se transformar em um instrumento

de fortalecimento. Schneider (1981, p. 23-25) assevera que foram justamente as

cooperativas que centraram seus esforços nas chamadas culturas nobres que

conseguiram se diferenciar econômica e empresarialmente.

[...] as cooperativas vêm se consolidando e se expandindo na medida direta da sua maior ou menor integração nos subsetores mais dinâmicos da economia brasileira. [...] É o cooperativismo, capitalizando em cima de estímulos creditícios e de preços voltados preferencialmente para a agricultura comercial ou empresarial. [...]Em contrapartida, o cooperativismo incide apenas marginalmente nos subsetores voltados para a produção de alimentos básicos, setores estes geralmente preteridos e marginalizados pelas políticas de preços e estímulos que emanam do setor público.

A despeito de tais tendências, muitos dos agricultores, ocupados

com as culturas de menor valorização, continuam a integrar os quadros das

cooperativas, conforme os dados o demonstrarão mais adiante. Porém, não resta

dúvida que sua participação é menor, em razão do montante individual da receita

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movimentada dentro da cooperativa. Segundo Schneider (1981), uma estrutura que

abriga sujeitos profundamente desiguais, ao ser dimensionada a partir do critério

de proporcionalidade, tende a reforçar essas diferenças, inclusive no plano dos

serviços que presta aos associados. A título de exemplo, se no caso de assistência

técnica, o deslocamento de um técnico for justificado em função da dimensão da

área cultivada, os camponeses poderão ser preteridos.

Assim, Schneider (1981) conclui que a atual estrutura cooperativa

reforça a desigualdade entre os pequenos agricultores e os grandes proprietários,

visto que a mesma tende a incorporar relações de dominação e subordinação

presentes na sociedade maior. Na cooperativa, essa situação se manifesta no

exercício do poder pelo grupo economicamente mais poderoso, que tende a se

revezar nos cargos administrativos da mesma.

Uma das formas de evitar essa situação seria a reconstrução do

espírito cooperativo, que ampliaria o leque de lideranças passíveis de ocuparem os

postos administrativos. Aliás, os comitês educativos das cooperativas foram

projetados para, entre outras funções, gerar lideranças que pudessem manter a

rotatividade na direção da cooperativa. Contudo, sob o pretexto de redução de

custos, esses comitês estão sendo gradativamente desativados, ainda que, no

sistema cooperativo, 5% da receita deva ser aplicada em educação. Segundo

Pelegrino (2002, p. 20), no Paraná, das 64 cooperativas ativas, apenas 22 ainda os

mantêm.

A nosso ver, não é por causa dos custos que tais comitês perderam

importância dentro do projeto cooperativo, mas sim em razão dos princípios de

participação democrática. Enfim, sua desestruturação se inscreve no conjunto de

readequações perseguidas pelas cooperativas para atenderem as exigências do

mercado, necessariamente conflitantes com as demandas da maior parte dos

cooperados. É preciso assinalar que, a despeito dos princípios de participação

equânime, a limitada mobilidade geográfica e social dos camponeses empobrecidos

dificulta o acesso às instâncias normativas e deliberativas da cooperativa.

Assim, é preciso evidenciar que, apesar da importância do sistema

cooperativista, particularmente na área estudada, esse não tem sido um canal de

expressão compatível com os anseios e necessidades prementes dos produtores

pequenos, ainda que esses componham majoritariamente os quadros do sistema.

Segundo o Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado do

Paraná (OCEPAR), em cada três produtores paranaenses, um está inserido no

quadro cooperativo agrícola. Além disso, em um universo de 98.348 cooperados no

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Estado, 85% são proprietários de até 50 hectares, o que evidencia a importante

presença camponesa no sistema. Por outro lado, a presença das cooperativas na

economia paranaense é respeitável: em 2001, as 64 cooperativas agropecuárias

ativas no Estado movimentaram R$ 7,8 bilhões, soma que corresponde a 50% do

valor bruto da produção agropecuária estadual. Em termos de participação no

volume da produção, os dados são os seguintes:

1527 35

5768

90 91

0

20

40

60

80

100

Su

ínos

Ave

s

Milh

o

Leit

e

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o

Alg

odão

Figura 18 - Participação das cooperativas na produção Paranaense em 2001 (%)

Fonte: OCEPAR, 2.002.34

Com esses índices em 2001, a participação do sistema cooperativo

no Produto Interno Bruto do Estado foi de 15%, sendo alcançado igual percentual

no que tange às exportações, dados inequívocos de sua importância em termos

econômicos. Considerando o histórico papel da agricultura no equilíbrio das contas

externas, questão dimensionada com o Plano Real, é de se supor que as

cooperativas são peças imprescindíveis para o bom funcionamento da máquina

administrativa, razão direta da sua permanência na agenda dos investimentos

públicos.

O fato de terem-se fortalecido à sombra de um tratamento

preferencial, face à intervenção estatal com vistas a uma configuração empresarial,

teria outros reflexos: as políticas de crédito subsidiado aliadas às administrações

cativas acabaram gerando gestões corruptas e ou incompetentes, que chegaram a

recorrer aos empréstimos bancários para garantir a distribuição de “sobras” entre

os cooperados. Na década de noventa, ao serem modificadas as condições de acesso

ao crédito, inclusive com a aplicação de índices de correção nas respectivas dívidas,

34 Cf. Casado, 2002, p. 15.

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os rombos no sistema vieram à tona, levando muitas delas a cerrarem as portas.

Contudo, isso não implicou em moralização automática das

administrações, uma vez que a Lei em vigor ainda é aquela que, de certo modo,

interditou a transparência, ao minar a participação democrática dos cooperados.

Valendo-se da legislação pouco restritiva, houve casos em que a elite das

cooperativas falidas se rearticulou sobre as ruínas de dívidas impagáveis, através

do mecanismo de “arrendamento” parcial ou integral das estruturas existentes.

Nesse sistema, graças à mudança da razão social e de alguns

dirigentes, as recém-criadas organizações passam a operar com a maior parte dos

recursos outrora existentes e livre das dívidas, pois juridicamente são reconhecidas

como novas cooperativas. Cabe-lhes apenas pagar pela utilização da infra-

estrutura, sendo esse dinheiro destinado ao abatimento das dívidas incidentes na

razão social anterior, as quais prescrevem em 20 anos. Como se pode observar, há

brechas na legislação, as quais favorecem a ingerência e dificultam a

responsabilização dos poucos beneficiados pelas transações ilegais, porquanto para

a maior parte dos cooperados, a falência das cooperativas é, sem sombra de dúvida,

prejudicial.

Todavia, não estamos sugerindo que esse quadro se aplica a todas

as cooperativas que surgiram após percorrer o caminho destacado. Há articulações

entre ex-cooperados bastante capitalizados que, aproveitando-se das estruturas

ociosas daquelas falidas, constituíram novas cooperativas. Isso porque o

fechamento das primeiras deixou um hiato no mercado e mesmo entre os próprios

agricultores, o que tem sido decisivo para o rápido crescimento das mesmas.

Esse é o caso da Cooperativa Agropecuária de Produção Integrada

do Paraná, que surgiu em 1995, nas instalações da Cotia, falida em 1994.

Organizada por um grupo de 28 ex-cooperados e funcionários, assessorados pela

OCEPAR, fixou sede em Londrina e atualmente já opera em 25 municípios do

Paraná, mediante o pagamento pela utilização de parte das instalações da Cotia.

Atua na comercialização de grãos, produção de fios de algodão e no processamento

de subderivados do milho, desde farelo até cereais matinais. Segundo Nascimento

(2002, p. 7), em 2001 já contava com 3.000 cooperados, tendo comercializado

713.000 toneladas de cereais e faturado 311 milhões de reais nesse mesmo ano.

Cumpre salientar que esse caso não deve ser tomado como regra,

pois em uma situação de mercado absolutamente instável, a mudança das normas

para o setor cooperativo, no que concerne aos subsídios públicos, efetivamente o

tornou vulnerável, levando aos mais diferentes desfechos.

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Além dos mencionados, há experiências que mostram que as

cooperativas se organizaram sob a forma de Confederações, como é o caso da

Cooperativa Central Agroindustrial (CONFEPAR), com sede em Londrina, a qual

agrega oito cooperativas coligadas.

Essa articulação revela uma estratégia de fortalecimento ante a

crescente competitividade no setor de laticínios, oriunda da expansão de gigantes

multinacionais, aliada à política do Governo FHC de importação de leite e

derivados. Ao optarem pelo fechamento dos laticínios isolados, a fim de direcionar

os investimentos para a modernização de uma única indústria, foi-lhes possível

reduzir os custos operacionais e obter um salto de qualidade, imprescindíveis para

a permanência no agronegócio leiteiro.

Entretanto, cabe salientar que as experiências até aqui exitosas

não se pautaram exclusivamente pela visão empresarial dos administradores, pois o

fundo público mais uma vez foi acionado. Através da Medida Provisória

1.715/1998, o Estado veio em socorro do sistema cooperativista, instituindo o

Programa de Revitalização de Cooperativas de Produção Agropecuária (RECOOP).

Com ele, disponibilizou-se um fundo de crédito capaz de custear a modernização

dos parques industriais das cooperativas, mediante a aprovação dos projetos de

reestruturação apresentados pelas mesmas. O objetivo desse programa é a

recuperação do caráter competitivo das cooperativas. Conforme vimos, isso

interessa ao Estado, por contribuir para o equilíbrio da balança de pagamentos,

devido a sua importância na produção exportada.

Afora todos os recursos já liberados, a projeção para o ano de 2002

é a aplicação de 250 milhões de reais em novos projetos de modernização das

cooperativas, contratados a juros de 10,75% ao ano, sem que haja a incidência de

qualquer correção monetária sobre os empréstimos.35 Essa é só uma pequena parte

dos recursos disponibilizados pelo Governo Federal nesse ano para a agricultura, e

em particular ao setor cooperativo, cujas condições são das mais vantajosas. Mais

adiante voltaremos ao tema, analisando as conexões do Estado com os setores

sociais mais enriquecidos do campo.

Em nossa área de estudo, atualmente há oito cooperativas ativas,

as quais atuam em praticamente todos os ramos da produção primária. No que

tange as atividades agroindustriais, duas cooperativas se destacam em razão da

diversificação atingida, enquanto as demais têm uma atuação mais limitada, seja

35 Cf. Casado, 2002, p. 18.

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no processamento industrial, seja na comercialização da produção dos cooperados.

Fios de algodão, seda e poliéster, óleos vegetais e seus derivados,

derivados do milho, suco de laranja e uva (em implantação), açúcar e álcool, leite

em pó, in natura e derivados, café torrado e ração animal são os principais produtos

dessas cooperativas, além da comercialização a granel dos cereais produzidos na

região.

Como se pode observar, a capacidade de comercializar a produção e

agregar valor a muitos produtos primários já é uma realidade no sistema

cooperativo da região. Apesar da racionalidade da cooperativa estar, via de regra,

distante da lógica de reprodução dos camponeses, a articulação mútua é

inquestionável. Desse modo, a mediação da cooperativa contribui para que parcelas

do território sejam controladas pelo campesinato. Ao impedir que a lógica da

monopolização do território camponês pelo capital prevaleça, a mesma permite que

a territorialização dos camponeses se realize, contraditoriamente.

No entanto, paira entre os camponeses a compreensão de que a

atuação da cooperativa ora se confunde com o capital comercial, ora com o capital

industrial. Essa aparente similaridade em relação ao capital comercial se manifesta

nos métodos empregados pela cooperativa diante da entrega da produção. Ao

receber as colheitas, a cooperativa estabelece parâmetros de classificação da

produção de acordo com as possibilidades de negociação no mercado, pagando

preços iguais ou até ligeiramente inferiores aos agentes privados.

Todavia, os eventuais desníveis de preços ao produtor em relação

aos demais intermediários da cadeia produtiva se explicam pelos custos de

armazenagem, pois a cooperativa não compra a produção, apenas a negocia no

momento em que o produtor julgar oportuno. Além disso, ela atua no mercado

futuro da bolsa de produtos agrícolas, o que explica diferentes cotações num

mesmo dia.

Quanto aos produtos indispensáveis à produção comercializados

pela cooperativa, como é o caso de rações, medicamentos para as criações,

agrotóxicos, ferramentas etc., a demanda individual dos camponeses, via de regra,

não permite transações vantajosas, quando comparadas aos preços e prazos

praticados pelo mercado local. As condições não atrativas dessas mercadorias se

devem, em grande medida, ao fato de que a cooperativa nem sempre consegue

competir com os comerciantes especializados, que geralmente conseguem preços

melhores por causa do volume que movimentam.

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Entretanto, a percepção de que a cooperativa nem sempre é o

melhor lugar para comprar algo ou entregar a produção faz com que muitos

recorram às estruturas paralelas sempre que isso for mais vantajoso. Por outro

lado, as próprias cooperativas não conseguem impor o cumprimento fiel do

estatuto, por não haver respaldo na cobrança de fidelidade quando a cooperação se

apresenta como fator de desvantagem imediata aos cooperados.

Isso não significa que o estatuto não seja acionado para punir

transgressões, sobretudo os desvios de colheita. Chegamos a encontrar um

camponês que fora excluído dos quadros da cooperativa por comercializar parte de

sua colheita de café com terceiros. Por haver uma desconfiança antiga desse em

relação aos métodos de classificação do café entregue, a medida da cooperativa foi

tomada como retaliação.

Teve uma vez que numa carga só acharam seis classificações, sendo que o café foi colhido, seco e ensacado tudo junto. Agora esses dias eu fui lá comprar veneno e eles disseram que eu só podia comprar à vista, sendo que eu sempre paguei adiantado, nunca fiquei devendo um centavo. Acho que é porque esse ano eu vendi o café para um comprador de Arapongas. Isso me deixou desgostoso, porque dar a cooperativa não dá nada não, mas se puder, tira da gente...36

Parece indubitável que o alijamento da condição de cooperado,

expresso pelo corte do crédito, esteja atrelado ao desvio da colheita, mas não

elimina a possibilidade de se tratar de uma estratégia de calar discordâncias em

relação à prerrogativa que a mesma tem de estabelecer critérios, nem sempre

claros, na avaliação das colheitas.

Esse mesmo fato pode explicitar a reprodução das desigualdades no

âmbito do sistema cooperativista, pois o desligamento de um camponês de poucos

recursos certamente não tem por objetivo resguardar a sustentação econômica da

cooperativa, mas sim de resguardar as normas estatutárias, ocasionalmente

desrespeitadas por todos os segmentos de cooperados. A nosso ver, essa medida

sugere um esforço de disciplinar as relações de poder no seu interior, não raro a

partir de uma hierarquização influenciada pela condição econômica de cada um dos

cooperados.

De qualquer modo, a força do Estatuto impõe a fidelidade à

cooperativa. No caso dos produtos perecíveis, que exigem fornecimento contínuo

para que a indústria funcione, a obrigatoriedade da entrega da produção

exclusivamente à cooperativa é observada com extremo rigor. Esse é o caso do leite,

36 J.: Prado Ferreira.

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em que as cooperativas por nós visitadas deixaram claro que desvios da produção

não são aceitos, sendo punidos indistintamente.

Por outro lado, nos setores que admitem estocagem da matéria-

prima, como é o caso do café e dos cereais, as cooperativas por vezes parecem

transigir, pois conseguem planejar o estoque de acordo com as necessidades da

indústria. No que concerne a esses produtos, não é raro constatar entre os

cooperados, não apenas os camponeses, a entrega de apenas parte da produção

para a cooperativa, sendo o restante negociado diretamente nas indústrias da

região ou até mesmo no próprio sítio, onde ainda atuam atravessadores de menor

porte.

Conforme asseveramos, nem sempre a cooperativa representa, pelo

menos em termos imediatos, o melhor caminho para a negociação das colheitas.

Além disso, a agregação de valor, inerente ao processamento industrial, nem

sempre é revertida em favor daqueles que a supriram de matéria-prima. Diante da

visão empresarial, que leva administrações a privilegiarem o investimento e

postergarem a distribuição das sobras, que em última instância é uma parte da

renda da terra retida na comercialização ou processamento das colheitas, as

cooperativas correm o risco de se distanciarem perigosamente da base que as

sustenta.

4.2.1. A fruticultura no sistema integrado cooperativista

Apesar do Brasil comparecer como um dos maiores produtores

mundiais de frutas, a geração de divisas derivada de sua participação no comércio

internacional do produto in natura ainda é pequena, tendo movimentado apenas 1%

da produção em 200137. Para essa situação contribui a incidência de algumas

espécies de pragas, como é o caso da mosca das frutas, o que dá margem para a

manutenção de barreiras fitossanitárias nos principais mercados consumidores

internacionais.

No caso do Paraná, a fruticultura comercial ainda é pouco

expressiva, contribuindo com apenas 2,1% da produção nacional. Desse montante,

os cítricos ocupam posição de destaque, participando com 55% do volume

produzido no Estado38. Cumpre salientar que a predominância desses não se dá

37 In: Fruticultura no mundo, 2002. 38 Conf. Andrade, 2002.

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apenas em escala local, pois situação análoga pode-se verificar no setor frutícola em

todo o mundo.

Segundo a FAO, os cítricos são responsáveis por 22,8% da produção

mundial de frutas. Entre esses, a laranja pode ser considerada a mais consumida,

participando com 63,2% da produção mundial de citros39. Em se tratando do

Paraná, no ano de 2000 cerca de 10.800 hectares estavam ocupados pelo cultivo

comercial da laranja, envolvendo 4.393 produtores.

Cumpre salientar que o rótulo de fruta mais consumida no planeta

inclui tanto o estado in natura quanto a versão industrializada sob a forma de suco.

No caso brasileiro, é exatamente esta que movimenta a maior parte da cadeia

agroindustrial de frutas. O fato do processamento industrial eliminar vetores e

parasitas que justificam as barreiras fitossanitárias erigidas pelos países

consumidores faz do suco de laranja concentrado o quarto produto da pauta de

exportações brasileiras. Com isso, o país domina o setor no comércio mundial,

sendo responsável pela metade da produção do planeta e por 80% do volume

comercializado no mercado internacional.

No processo de extração do suco, há ainda subprodutos de

importante valor comercial, como é o caso da polpa cítrica, utilizada para ração

animal, bem como para óleos, essências e outras substâncias utilizadas na

indústria química, farmacêutica, alimentícia e de cosméticos. No ano de 2001 foram

exportadas 737.852 toneladas desses subprodutos e 1.055.266 toneladas de suco

concentrado40.

No Paraná, três indústrias atuam na produção de suco concentrado

para exportação, duas das quais sediadas no Noroeste do Estado, mais

especificamente em Paranavaí, maior pólo citrícola do Estado e a terceira em

Rolândia, situada no norte-paranaense. Dessas três, apenas uma se caracteriza

como empresa privada, pois a Paraná Citrus, atuando em Paranavaí, pertence à

Cooperativa de Cafeicultores de Maringá (COCAMAR). A terceira, sediada em

Rolândia, pertence à Cooperativa Agropecuária de Rolândia (COROL), a qual nos

interessa de perto, por atuar em nossa área de pesquisa.

A implantação do projeto de citricultura da COROL teve início em

1994, ainda que a indústria de extração de suco tenha sido inaugurada somente

em 2001. Esse projeto se insere entre as diversas estratégias de diversificação

agroindustrial da cooperativa, que serão melhor analisadas posteriormente. Por ora,

39 Conf. Neves, 2002. 40 Conf. ABECITRUS, 2002.

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merece destaque o fato de que o fundamento de sua implantação está nas

características peculiares da região em apreço, a qual reúne duas condições

bastante satisfatórias para a fruticultura: predominância de pequenos proprietários

e condições pedológicas e climáticas salutares para a citricultura.

A conjuntura em que se deu a idealização do projeto também não é

de somenos importância, visto que a decadência da cafeicultura tradicional deixou

um hiato em termos de culturas permanentes nas pequenas propriedades. Notemos

que a retomada do café, agora no sistema adensado e semi-adensado passou a ter

importância em meados dos anos noventa, posteriormente ao encaminhamento do

projeto de integração citrícola.

Entender o significado das culturas permanentes entre os

produtores pequenos é ponto de partida para compreender o audacioso projeto da

cooperativa, devido à presença de verdadeiros oligopsônios sediados no Estado de

São Paulo, os quais praticamente dominam a industrialização e exportação do suco

de laranja brasileiro.

Apesar disso, as condições para o ingresso da cooperativa no setor

eram favoráveis, pois havia uma demanda reprimida por uma atividade que viesse a

ocupar, pelo menos em parte, o vazio deixado pela decadência da cafeicultura. A

sistemática subordinação dos produtores às mais variadas estratégias capitalistas

de apropriação da renda, além de colocar limites à reprodução camponesa, tem

dificultado o investimento produtivo, notadamente quando se toma por referência a

agricultura tecnificada. Nessa perspectiva, além da rentabilidade estar associada à

escala da produção, incompatível com a quantidade de terras sob seu controle, há a

dificuldade em arcar com os custos das lavouras temporárias, amplamente

assentadas na mecanização.

Ao recorrer às lavouras permanentes, como é o caso da laranja, os

camponeses podem prescindir, em grande medida, de máquinas, ainda que lhes

seja possível o cultivo intercalar de lavouras comerciais enquanto a cultura

principal se desenvolve. Considerando que o intervalo entre a implantação do

pomar e a primeira colheita é longo, a cultura intercalar viabiliza a utilização

intensiva da terra, garantindo renda direta ou indireta.41 Nesse sentido, a

disponibilidade de equipamentos entre os camponeses acaba interferindo na

escolha dos cultivos, não sendo raro a lavoura de excedente, passível de ser

41 Entende-se por renda direta o incremento monetário derivado da destinação parcial ou integral da produção extraída para o mercado. Já a renda indireta expressa a economia com aquisição de alimentos derivada da retenção da produção para o consumo da unidade camponesa.

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empreendida mediante pequena inversão em insumos e no recurso à tração animal.

Particularmente no caso da citricultura, há uma vantagem

adicional, porque a alteração do ciclo climático regular, tão cara à maior parte das

culturas, raramente poderá comprometer a lavoura e apenas ocasionalmente

interferir no volume da produção. Portanto, é a possibilidade de articular tal

atividade, considerada de baixo risco, com as culturas temporárias e ou a criação

de animais, que a tornou atrativa para muitos camponeses da região, os quais

dominam, em termos numéricos, os quadros da citricultura norte paranaense.

O hiato entre plantio e colheita é um dos elementos que melhor

explicam a razão pela qual a cultura da laranja tem-se mostrado uma atividade

atrativa aos camponeses. Trata-se da própria lógica que os move, contrariamente à

lógica capitalista, na qual um dos fatores decisivos para a canalização dos

investimentos é o retorno por curto prazo.

Na atividade em questão, além do elevado investimento para a

implantação dos laranjais42, há a necessidade de tratos culturais sistemáticos, sob

pena da cultura perecer. Isso impõe gastos adicionais em insumos e em trabalho,

adiantamento de dinheiro, portanto. Por essa razão, a atividade tem sido pouco

atrativa para os capitalistas na região, que tendem a optar pelas lavouras

mecanizadas. O mesmo não ocorre em São Paulo e no Triângulo Mineiro, onde os

pomares cultivados em bases tipicamente capitalistas têm-se expandido.

Como destacamos, o tempo de espera pela primeira colheita é longo,

pois apesar da possibilidade de colheitas já no terceiro ano, a produção é muito

baixa, não sendo suficiente sequer para cobrir os gastos com insumos. Considera-

se que isso somente será possível por volta do sexto ano, quando os laranjais

atingem a plena capacidade produtiva, se conduzidos adequadamente. Em outras

palavras, a demanda por investimentos não se esgota com a formação do pomar,

sendo desejáveis formas paralelas de utilização produtiva dessas terras, para que se

possa custear parte das despesas enquanto o porte das laranjeiras o permitir43.

Da possibilidade de extrair parte dos recursos gastos na formação e

manutenção dos laranjais nos próprios limites geográficos dos pomares, pouco se

valem os capitalistas, em vista da baixa versatilidade que sua estrutura produtiva

impõe. Esse é o resultado da especialização, característica básica da exploração

42 Segundo a COROL, em maio de 2002, o custo de implantação de um pomar, excetuando-se a terra, estava calculado em R$ 10,00 por pé de fruta. 43 A recomendação dos técnicos é que se desenvolvam culturas mecanizáveis nos dois primeiros anos, especialmente soja e trigo, em razão de sua rentabilidade. Posteriormente, o sombreamento do pomar estabelece limites para culturas intercalares intensivas.

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capitalista, a qual é determinada por um conjunto de variáveis, passando pela

demanda por mão-de-obra, posse de maquinários, além da própria dinâmica de

preços dos produtos com que se ocupam. É isso que estabelece limites para a

diversidade produtiva do empreendimento.

A idéia de implantar a citricultura na região já era antiga na cooperativa, pelo fato da nossa região possuir as condições ideais para isso. Além do predomínio da pequena propriedade, temos aqui um dos melhores solos do mundo e regularidade de chuvas. Mesmo as geadas não preocupam, pois a laranja é uma das espécies que mais resistem a ela. A laranja veio para ocupar um espaço ocioso na propriedade, onde não dá para mecanizar nem para plantar café porque queima...então a cooperativa apostou na laranja como mais uma forma de diversificação. Mas nós sempre frisamos que ela é só uma fonte de renda complementar, porque só a laranja não vai garantir renda suficiente ao produtor.44

Observamos assim que, tal qual as atividades destacadas

anteriormente, a cultura da laranja se viabiliza entre os camponeses no Norte do

Paraná pelo fato de ser possível a articulação com uma série de outras atividades

no interior da propriedade, as quais possibilitam a otimização dos recursos a partir

de um ponto essencial: a presença permanente da força de trabalho.

Não queremos com isso sugerir que tal atividade seja

exclusivamente camponesa, posto que grandes proprietários também têm investido

na citricultura. Contudo, sua condução rompe com a forma capitalista pautada na

contratação direta da força de trabalho necessária ao empreendimento. Para isso, a

mediação da cooperativa tem-se mostrado fundamental, já que a mesma se

encarrega do fornecimento de mão-de-obra para as etapas que mais a requerem.

Desse modo, se no caso da sericicultura e da avicultura, a

estratégia dos capitalistas para a condução da atividade é a parceria, a qual elimina

os entraves trabalhistas e permite a apropriação da renda da terra, no caso da

laranja a solução é oferecida pela própria cooperativa, que se acha vinculada a igual

organização de trabalhadores temporários. Isso lhe permite gerenciar as principais

fases da citricultura: a colheita e o transporte até a indústria.

Para a cooperativa, a iniciativa representa, além da receita

suplementar oriunda da intermediação de tais tarefas, a garantia de que a colheita

se fará com base em suas próprias orientações e será integralmente depositada na

indústria.

Do ponto de vista dos citricultores, recorrer a esse tipo de prestação

44 J.C.: COROL.

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de serviço elimina por completo os problemas de gerenciamento e transporte da

colheita, assim como elimina quaisquer responsabilidades para com os

trabalhadores ocupados na atividade. Enfim, trata-se de uma forma de

absenteísmo, evidentemente que a um custo maior do que teriam, caso se

dispusessem ao envolvimento direto no processo.

Essa prestação de serviço aos citricultores é mais uma das

expressões da política de diversificação dessa cooperativa, que articula uma série de

atividades, de modo a maximizar os rendimentos passíveis de serem obtidos com

base em uma estrutura física e funcional preexistente.

De qualquer forma, essa espécie de terceirização explicita um dos

paradoxos da agricultura capitalista, que é a necessidade de escala para a obtenção

do lucro médio, condição para a sua permanência na atividade. Não obstante, a

condução da citricultura nas condições descritas implica em gastos muito

superiores àqueles feitos pelos camponeses citricultores, mesmo que esses

recorram à mão-de-obra suplementar para a colheita.

Depreende-se, assim, que a disposição dos proprietários em

absorver custos que, aos olhos dos camponeses, são absolutamente desnecessários,

revela que a cultura em escala compensa as perdas proporcionais. Trata-se de

condições objetivas opostas: se para os camponeses o trabalho é a própria condição

de sua existência, aos proprietários essa forma de absenteísmo é aceita sem

restrições, desde que a margem de lucro do negócio seja satisfatória.

Em outras palavras, transferir para a cooperativa o gerenciamento

da colheita é uma forma de se desobrigar de quaisquer preocupações, sobretudo

trabalhistas. Ao fazê-lo, ao final da safra lhes é repassado o rendimento monetário

líquido a que fazem jus, sem que se tenham envolvido na administração das tarefas

ou despendido recursos, visto que o acerto de contas é em espécie, abatendo-se da

produção obtida.

Cumpre salientar que a cooperativa não assume os tratos culturais

da laranja, fase em que é possível a completa mecanização, tanto para controle das

ervas daninhas quanto das pragas. Porém, essas tarefas dispensam contratos

regulares de trabalho, sendo comum a contratação do serviço por empreita.

Essas diversas estratégias de cultivo da laranja na região são

reveladoras da coexistência entre formas capitalistas e camponesas na agricultura.

Trata-se de evidências que possuem um alcance não apenas geográfico ou

econômico. É no ponto de vista político que julgamos residir seu maior significado,

pois apreender as várias faces do desenvolvimento capitalista no campo é verificar o

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quão limitante é o pensamento binário que temos visto se propagar, agora sob o

estigma de agricultor-proletário parcial.

A nosso ver, o entendimento do campo passa necessariamente pelo

abandono (tardio) de idéias maniqueístas, cuja renovação ainda parece limitar-se

aos rótulos, agora baseados num esquema ideológico que propõe o animismo do

mercado. Conforme já asseveramos, a refutação do conceito de camponês implica

no desconhecimento da composição triádica das classes no capitalismo,

contrariando a noção de formação econômico-social presente no pensamento

marxiano. Ainda que esse debate pareça inócuo, faz-se necessário ter clareza de que

a obliteração da classe camponesa, a princípio no plano das idéias,

necessariamente afeta os sujeitos concretos que a compõe.

[...] a noção de formação econômico-social permitiu alargar a concepção de capitalismo, além dos limites da noção de modo de produção, abrangendo as relações apoiadas na produção mercantil simples. [...]a lei da formação econômico-social é a lei do desenvolvimento desigual. Ela significa que as forças produtivas, as relações sociais, as superestruturas (políticas, culturais) não avançam igualmente, simultaneamente, no mesmo ritmo histórico. (LEFEBVRE, apud MARTINS, 1996, p. 16-17).

São esses pressupostos que nos permitem compreender não apenas

as formas concretas de reprodução camponesa, mas os expedientes a que têm

recorrido as empresas para se manter no circuito da produção capitalista. Isso

impõe um esforço no sentido de buscar a unidade no diverso, pois o projeto citrícola

destacado revela a conexão de três situações aparentemente contraditórias: o

trabalho camponês como base de sustentação de uma forma de produção do

capital, a qual se acha sob controle de uma cooperativa. Isso indica que a renda da

atividade deverá retornar, proporcionalmente, aos citricultores, o que inclui os

camponeses.

Quando da crise econômica das cooperativas, em virtude da

gradativa diminuição dos incentivos governamentais, concomitantemente à

desarticulação da economia regional baseada na cultura cafeeira tradicional,

algumas cooperativas, em particular a COROL, passaram a direcionar seus esforços

no sentido de controlar o ciclo produção-industrialização-comercialização. Ao

atrelar o projeto de reestruturação econômica ao esforço de agroindustrialização,

seus proponentes tinham clareza do salto de acumulação que a agregação de valor

aos produtos primários sob seus cuidados proporcionaria. A nosso ver, esse

momento coincide com a redefinição do caráter que, originalmente, fora decisivo

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para a adesão dos produtores, muitos dos quais camponeses, para a constituição

da cooperativa.

O projeto da citricultura pode ser tomado como um dos melhores

exemplos dessa mudança, por ter sido instituído dentro de um conceito gerencial

próximo ao da avicultura e sericicultura anteriormente analisados. Cremos ter

explicitado que a integração é um dos caminhos mais seguros para a viabilização da

indústria, sem que ela tenha que se comprometer com a produção da matéria-

prima essencial ao seu funcionamento e, acima de tudo, gozando da prerrogativa de

arbitrar os preços da mesma. Após nos determos nas práticas de empresas

privadas, passaremos a analisar como tem sido essa experiência no interior do

sistema cooperativista.

Não podemos esquecer, porém, que a diferença fundamental da

experiência de integração entre a cooperativa agroindustrial e as empresas avícolas

e sericícolas está no destino da renda da terra. Enquanto nestas, a renda acaba

determinando o aumento da taxa de lucro da indústria, no caso da cooperativa

agroindustrial integradora, os depositários da renda da terra são os próprios

integrados, entre os quais os camponeses.

Iríamos mais além, uma vez que o grande salto na agregação de

valor está no processamento industrial, o que indica que os camponeses, por

exemplo, irão beneficiar-se de uma fatia da mais-valia dos trabalhadores

diretamente empregados na indústria e mesmo de uma fração da mais-valia social.

Entretanto, vimos que a estratégia da cooperativa tem sido o reinvestimento em

detrimento da distribuição das sobras, o que significa que esses ganhos são mais

potenciais do que reais, por estarem projetados para o futuro.

Por outro lado, é bom lembrar que esse é um dos projetos mais

arrojados da cooperativa, pelas especificidades do ramo agroindustrial no qual ela

se propôs a ingressar. E para adentrar um mercado dominado por megaindústrias,

há alguns requisitos fundamentais: garantia de matéria-prima e preços que

pudessem tornar o suco industrializado competitivo, daí o recurso à integração.

Não resta dúvida de que a grande dificuldade, a princípio, foi

arregimentar produtores dispostos a fazê-lo, pois ao ser apresentado o projeto, não

havia marcos concretos que pudessem servir de estímulo a um investimento de

longo prazo e de retorno incerto45. Não é por acaso que a bandeira da cooperativa

45 Por causa do intervalo entre a implantação dos pomares e sua produção efetiva, a construção da indústria foi projetada para quando a produção dos laranjais a sustentasse, fato que veio a ocorrer em 2001, sete anos após o início do projeto. Até então, o processamento das primeiras colheitas foi terceirizado, sendo realizado em uma indústria citrícola de Paranavaí.

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tenha sido a utilização dos espaços e mão-de-obra ociosos da propriedade. Além

disso, foi disponibilizado crédito para a implantação dos pomares com base na

equivalência em produto.

Em uma situação de recursos financeiros escassos, em que muitos

camponeses se encontravam ávidos por uma atividade que acenasse com a

possibilidade de ingresso extra de renda na propriedade, a oferta de crédito

suficiente para a formação dos pomares foi por demais atrativa. Contudo, o

esquema de contratação, diverso da lógica monetária das instituições financeiras, é

que foi decisivo para a adesão dos mesmos ao sistema de integração proposto.

Quando começou a correr a notícia da laranja, a gente não foi atrás porque não acreditava...mas quando eles falaram que podia financiar e pagar com a laranja do pé financiado, aí a gente se animou. Assim parece mais fácil de pagar, porque da lavoura a gente zela e sabe que um ano pelo outro vai colher. Agora, se o negócio fosse no dinheiro não dava para entrar nessa não... A gente está cansado de ver onde é que vai dar um financiamento.46

Como se pode constatar, para convencer os camponeses a plantar,

em escala comercial, uma cultura até então cultivada apenas em seus quintais para

consumo próprio, foi necessário recorrer a mecanismos diversos da lógica

dominante. O fato da cooperativa se permitir negociar em espécie revela uma dupla

conveniência. Para ela, tratava-se de uma antecipação de compra, portanto de

formação de um mercado fornecedor cativo, indispensável em um ramo de atividade

marcado pelo monopólio de poucas megaempresas, para os camponeses, de uma

rara oportunidade de ingressar em uma atividade passível de se articular com a

diversidade já existente, tendo mercado garantido e sem intermediários.

Além disso, pagar o empréstimo da forma destacada é algo que não

os assusta, pois a forma de abater o financiamento tem como referência um

elemento concreto: a própria fruta produzida. O fato de eles dominarem a produção

lhes permite vislumbrar o volume destinado ao abatimento do débito com a

cooperativa. É essa operação pautada em dados concretos que lhes confere clareza

no processo e, por conseguinte, controle sobre a dívida contraída.

Notemos que o empréstimo bancário é algo sobre o qual os

camponeses não têm controle algum. Para produtores simples de mercadorias,

assumir uma dívida em dinheiro acrescida de juros é deveras desafiador, uma vez

que nem mesmo colheitas abundantes podem assegurar retorno monetário

46 M.: Água Canabi - Pitangueiras.

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suficiente para quitá-la. Além da instabilidade do mercado, há a própria

instabilidade de preços e da produção, os quais tornam imprevisível a capacidade

de honrar compromissos futuros.

A disposição em adequar procedimentos a um código de trocas tido

como seguro pelos camponeses parece ter sido decisivo para que a cooperativa os

tenha atraído para os quadros da integração. Contudo, há ainda desafios a

enfrentar nesse sentido, a saber: o projeto pressupunha o plantio de 1,225 milhão

de mudas, a serem distribuídas em 3.500 hectares, dos quais foram implantados

cerca de 2.400, estando ainda 32% aquém da meta47. Considerando que a indústria

foi dimensionada para esse volume e que nem todos os laranjais se encontram em

plena produção, ela está operando com ponderável capacidade ociosa, elevando

assim o custo do suco produzido.

Como o sistema de integração acertado prevê o rateio proporcional

dos resultados líquidos, primordialmente definidos pela produção do suco, já que a

comercialização da laranja in natura é de somenos importância, o retorno monetário

depende efetivamente da ampliação dos pomares.

Entre os que apostaram na atividade como mais uma forma de

diversificação, essa ociosidade da indústria, somada aos maus resultados das

primeiras colheitas, não foram suficientes para desestabilizar a unidade produtiva.

Considerando o período de 1997 a 2000, intervalo em que a produção evoluiu até a

plena capacidade dos laranjais implantados no início do projeto, o preço médio

alcançado pela caixa de 40,8 quilos entregue na cooperativa foi de R$ 2,62.

Por outro lado, o custo médio de produção por hectare foi de R$

4.521,7448, com a tendência de aumento progressivo no período considerado.

Diante desses fatos, alguns camponeses afirmaram ter tirado dinheiro do bolso no

ano de 2000, ocasião em que os preços da laranja foram os menores do período.

Entre aqueles que a viram como cultura redentora, ou a elegeram

como principal atividade da propriedade, essa situação gerou enorme desencanto. A

frustração nas primeiras safras, após anos de expectativa e investimentos, só não

os fez desistir pelo fato de terem um contrato assinado com a cooperativa, no qual

se comprometem com a manutenção da atividade por um período de 15 anos.

Nesse aspecto, a posição da cooperativa agroindustrial integradora

revela uma cautela compatível com as implicações do projeto implantado. A

começar pela sua participação no que tange à oferta de crédito necessário à

47 Dados de março de 2002. 48 Dados obtidos junto à COROL.

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implantação dos pomares. Some-se a isso os investimentos a título de custeio para

a colheita, estipulados a partir da projeção da produção. Assim, trata-se de um

adiantamento calculado sobre o desembolso aproximado que o citricultor terá que

fazer para que a laranja chegue à indústria, o qual compreende cerca de 40% dos

preços correntes da matéria-prima. O restante será repassado ao final da colheita,

quando serão proporcionalmente rateados os ganhos entre todos os citricultores

cooperados. Observemos que o contrato e a mediação da cooperativa visam

assegurar o fornecimento de laranja em volume que viabilize a indústria.

A finalidade do contrato é a garantia de que vai ter laranja na indústria em qualquer situação de preço. O investimento para a construção da indústria foi enorme, ela vai ter que funcionar muitos anos até que se recupere o que foi gasto. E na agricultura é assim, quando uma coisa está dando, todo mundo planta, quando vai mal, todo mundo abandona. Com a laranja isso não pode acontecer. 49

Assim, diferentemente da sericicultura e avicultura, nas quais a

integração se sustenta na apropriação do valor trabalho contido nas matérias-

primas, no sistema agroindustrial cooperativista, a indústria não comparece como o

intermediário que irá se apropriar da renda da terra, mas sim como instrumento

que assegura aos produtores cooperados a retenção da renda da terra, ainda que

uma parcela dessa seja convertida em reinvestimento na indústria.

Além disso, convém lembrar que a integração na citricultura é

praticamente livre de pressões, a pretexto da qualidade, como se verifica nas

primeiras. A cooperativa agroindustrial se limita a fornecer orientações técnicas e

monitorar a produção, a fim de garantir que toda a laranja colhida seja entregue na

indústria. O desvio de parte da produção se constitui infração dos termos

contratuais, sendo passível de sansões legais. Com isso, a cooperativa procura se

resguardar das oscilações, pelo fato de que, em determinadas ocasiões, o mercado

de fruta in natura se apresenta mais vantajoso. É o momento de assédio dos

atravessadores, que saem a campo na tentativa de conseguir uma negociação

paralela com os integrados.

Se fosse para vender a laranja inteira, a gente pegava um preço melhor do que esse que a cooperativa paga. O problema é que não tem garantia se vai vender ou não. Quando falta laranja, os negociantes jogam o preço lá no alto, mas é só até eles conseguirem o que precisam, depois a preço de banana é caro. Na cooperativa o ganho é pouco, mas pelo menos a gente tem a certeza que vai entregar tudo o que colheu. É melhor pingar do que secar, não é?50

49 J.C. - COROL 50 A.: Pimpinela - Pitangueiras.

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Vemos assim que, apesar das implicações que uma rescisão

contratual forçada tem para os camponeses, esse não é o principal elemento que os

mantém na citricultura. Assim como na avicultura e sericicultura, a integração é a

possibilidade de eliminar a maior dificuldade com que se deparam: a colocação de

sua produção no mercado. Suas histórias de agricultores são repletas de

experiências com colheitas fartas que se perderam na roça. Nessas ocasiões, não

lhes faltaram condições para colher, mas sim lugar onde entregar. Com a indústria

cooperativa, a entrega da produção é um dos problemas com os quais eles

definitivamente não se preocupam. Assim, essa é mais uma das condições que

precedem e conferem sentido ao contrato de integração.

Nessa perspectiva, as implicações desse contrato são de menor

importância, pois a segurança de um mercado, ainda que não haja retorno imediato

de parte da renda, pode ser decisiva na ocorrência de maus resultados em uma ou

mais atividades desenvolvidas concomitantemente. Assim, a aparente subordinação

torna-se uma efetiva cooperação.

Portanto, diferenças à parte entre a integração cooperativista e a

integração com empresas privadas, esse sistema tem comparecido como recurso

para que a reprodução da família seja assegurada. Por isso, apenas uma situação

insustentável os faria romper os contratos e, com isso, macular seu compromisso

pessoal com a integradora, além de lançar por terra todos os investimentos feitos.

Vemos assim que a integração permite a convergência de interesses contraditórios:

se na perspectiva das empresas capitalistas ela possibilita a produção e reprodução

ampliada do capital, por outro lado viabiliza muitas unidades produtivas

camponesas. Particularmente no caso da fruticultura, configura-se uma estratégia

de retenção da renda da terra por essa classe.

Contudo, não há uma regularidade nos rendimentos em nenhum

dos casos de integração destacados, tendo em vista a sua dinâmica própria, bem

como a instabilidade do mercado. Se em determinadas conjunturas, a extração da

renda camponesa chega ao limite, em outras é possível embolsar parte ponderável

dela e, particularmente no sistema cooperativista, se apropriar quase que

integralmente da mesma, ainda que de forma indireta. São essas ocasiões

favoráveis que permitem a recriação camponesa, razão pela qual a sua ética é a da

poupança de quaisquer recursos dispensáveis para a reprodução imediata. São

situações e estratégias dessa natureza que explicam a razão pela qual os

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camponeses conseguem suportar fases em que praticamente não há ingressos

monetários na unidade produtiva.

No caso da citricultura, isso é emblemático, uma vez que após sete

anos sem retirar praticamente nada da atividade, chegou-se ao segundo ano

consecutivo de bons resultados, o que mais uma vez reabastece um segmento de

classe que resiste tanto à abundância quanto à escassez.

Paradoxalmente, a melhora dos preços aos cooperados integrados

não reflete um cenário favorável ao suco de laranja concentrado, pois na safra

2001/2002, os preços alcançados por ele no mercado internacional foram os mais

baixos dos últimos dez anos51. Trata-se, portanto, de uma vantagem interna que

deriva exclusivamente da diferença cambial aplicada aos produtos exportados, face

à desvalorização da moeda local frente ao dólar. Aliás, é este mecanismo que tem

enriquecido o setor agrícola capitalista que produz para o mercado externo.

O fato da maior parte da laranja produzida no sistema de integração

ser transformada em suco contribui para isso, posto que somente condições

excepcionais de preços da fruta in natura no mercado interno fazem com que a

cooperativa a ele se volte. Considerando que todo o suco concentrado produzido

pela integradora se destina à exportação, a progressiva desvalorização do real tem-

se refletido nos preços pagos aos citricultores.

Todavia, essa situação reflete um frágil equilíbrio, sobretudo porque

a diferença entre oferta e demanda no plano internacional tem representado, para o

suco de laranja, assim como para a maior parte das mercadorias, mercado

abarrotado. Segundo a Associação Brasileira de Exportadores de Citros (2002), o

volume exportado nessa safra foi o mais baixo dos últimos sete anos. Com isso, de

um modo geral as indústrias citrícolas estão trabalhando com estoques elevados,

particularmente as gigantes do setor, sediadas no Estado de São Paulo.

A questão dos estoques do produto ainda não está afetando a

integradora em questão, sobretudo pelo seu tempo de operação, bem como a

pequena escala de produção, se comparada às grandes indústrias. A sua

perspectiva ainda é a expansão dos laranjais, o que possibilitará à indústria operar

com plena capacidade.

Embora esses desafios ainda estejam pela frente, a situação cambial

relatada interfere diretamente nos custos da produção, sabendo-se que a maior

parte dos componentes de consumo obrigatório na lavoura está alinhada à moeda

51 Nesse ano, o preço médio da tonelada de suco concentrado foi de U$705,48.

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norte-americana. Particularmente na laranja eles são expressivos, sobretudo

porque a cultura é extremamente vulnerável ao ataque de pragas. Mensalmente é

necessária uma pulverização com cobre para evitar o alastramento do cancro

cítrico, além do uso regular de fungicidas e outras substâncias contra diferentes

pragas que incidem no laranjal.

Quando nós falamos da nossa intenção de plantar laranja um vizinho falou: vocês estão loucos? A laranja demora para dar e nela só não dá catapora e sarampo. É claro que isso é uma brincadeira, mas a verdade é que sem veneno ela não vai... 52

Dessas palavras é possível depreender que a cultura se mantém

pela força dos agrotóxicos, sem os quais as infestações podem ter conseqüências

imprevisíveis. Considerando a tendência de seu progressivo aumento e a situação

de mercado para o suco da laranja, em termos de oferta e preços, é de se supor que

o desnível entre dólar e real continuará a ser o maior aliado dos citricultores

cooperados.

Contudo, levando em conta as práticas de integração no Norte do

Paraná, podemos afirmar que essa é a atividade menos exigente e mais próxima da

experiência camponesa, uma vez que a sua cadência é a das demais lavouras,

regida pelo tempo circular. Embora exigente do ponto de vista dos tratos culturais,

os camponeses não vêem a laranja com estranhamento, pois a mesma se enquadra

em um ritmo de trabalho habitual, geralmente delimitado pela luz solar.

A exceção se refere às pulverizações que devem ser feitas na

ausência do sol. Essa é a única tarefa que sacrifica uma parte do sono noturno,

estando a sua duração associada à posse de equipamentos mais ou menos

sofisticados.

Quando nós começamos com a laranja foi difícil...o pior mesmo era o veneno, que tem que ser passado à noite para um efeito melhor. Quantas vezes nós quatro varamos a noite no meio da roça trabalhando. Agora ficou mais fácil, porque nos já temos um atomizador. Agora o serviço rende, e nem precisa de todo mundo aqui...só os dois homens dão conta. 53

Apesar da ausência de equipamentos adequados ser uma das

razões de dificuldades a que se refere nossa interlocutora, ela não é a única. Para

os camponeses, de um modo geral, implantar a fruticultura exigiu uma renúncia

ainda maior em termos de bem-estar da família. Isso porque a necessidade de

52 T.: Água da Areia - Prado Ferreira. 53 L.: Água da Areia - Prado Ferreira.

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tratos culturais no período que antecedeu as primeiras colheitas impôs não só a

transferência de recursos monetários das outras atividades da propriedade, como

implicou em sobretrabalho para a família. Essa longa fase de dificuldade

representou mais trabalho e menos dinheiro, esforço que se manteve em nome do

tempo camponês, regido pela esperança no devir.

É por essa razão que a colheita de 2001 “lavou a alma de muita

gente”54. Após cinco anos de transferência de recursos para a laranja, a região

sofreu devastadora geada. Embora na aparência os estragos nos pomares tenham

sido pequenos, os camponeses se mantiveram apreensivos até que puderam ver as

laranjas vingadas no ano seguinte.

Tivemos a oportunidade de visitar uma propriedade em plena

colheita. Apesar do trabalho ter começado às sete horas da manhã e ter se

estendido até as cinco horas da tarde, apenas com o intervalo das refeições, na

própria roça, as atividades seguiam em um ritmo de festa. A colheita era feita por

dois irmãos e suas respectivas famílias, ajudados por alguns vizinhos. Não havia

neles expressão de desânimo ou cansaço. Em meio às conversas animadas, piadas

e brincadeiras, o compasso do trabalho era intenso. Em suas próprias palavras,

aquilo era considerado uma festa. Festa porque a colheita era farta e os preços

bons, em sua avaliação. Festa porque não é comum o camponês ver seu trabalho se

materializar em renda “que dá e sobra”. A foto a seguir mostra a colheita da laranja.

Foto 3 – Colheita da laranja

Cumpre salientar que essa situação somente se aplica àqueles que

se diversificaram significativamente, como nesse caso. Em pouco menos de

54 Avaliação de um técnico da EMATER.

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dezessete hectares de terra há laranja, café, culturas temporárias (soja, trigo e

milho) e um aviário. Duas famílias a trabalham em conjunto, ao todo dois casais e o

filho adolescente de um deles. Os outros filhos ainda são pequenos, embora já

participem ocasionalmente de pequenas tarefas.

Entre os camponeses, a divisão do trabalho varia de acordo com a

mão-de-obra disponível e a exigência em termos de força física. Há tarefas que

tendem a ser masculinas e outras femininas. Contudo, essa divisão não é rígida,

posto que nas ocasiões em que o serviço “aperta”, o limite de gênero deixa de existir.

Isso já ficou evidenciado anteriormente, ao nos ser relatado o concurso de dois

casais, noites a fio, para pulverizar o pomar. Com a aquisição de equipamento mais

eficiente, passar veneno passou a ser uma tarefa masculina, que pode deixar de ser

se as condições assim o exigirem.

Na colheita, momento de intensificação máxima das atividades, a

divisão tende a ser a seguinte: as mulheres trabalham na saia da laranjeira e os

homens no alto, onde é preciso o uso da escada. Cabe aos homens esse trabalho

por ser mais pesado, sendo necessária a mudança constante da escada ao redor da

laranjeira, bem como de pé em pé. Todas as laranjas colhidas são atiradas ao chão.

Apenas após obter-se o volume acertado para ser entregue ou o suficiente para uma

viagem de caminhão, as frutas são transferidas para sacolas que serão

transportadas por um trator capaz de circular no meio do pomar. Daí elas seguem

até um caminhão estacionado na estrada. Feito isso, as frutas são despejadas,

seguindo para a indústria a granel. Carregar e descarregar sacolas, bem como

dirigir o trator é uma tarefa na qual geralmente todos se revezam.

Para evitar que as frutas murchem, deve-se colher diariamente

apenas a quantia programada para processamento na indústria, o que exige um

cálculo cuidadoso sobre a quantidade média por planta para se chegar ao número

de pés a serem colhidos.

A garantia de frutas frescas e de um fluxo de matéria-prima

compatível com a capacidade da indústria se dá através de um planejamento

cuidadoso realizado pela cooperativa, que inclui não apenas cotas diárias de

entrega, mas a própria composição dos pomares. Ao articular o plantio de quatro

variedades de laranja, cujas colheitas variam entre precoce e tardia, a indústria

consegue funcionar cerca de seis meses ao ano, estendendo-se a colheita de abril a

outubro.

Aos camponeses, dada a pequena extensão dos pomares,

normalmente é designada apenas uma variedade, pois isso facilita o manejo.

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Quando as áreas são mais extensas, combinam-se as variedades, a fim de que a

produção possa ser absorvida sem sobrecargas. Esses procedimentos são

fundamentais para a viabilização de uma indústria que nasceu sob os auspícios do

planejamento.

E em função desse, algumas readequações estão sendo feitas. A

primeira delas refere-se à distância máxima de 100 quilômetros entre o pomar e a

indústria, embora os custos de transporte sejam de exclusiva responsabilidade dos

integrados. Dentro da mesma lógica coloca-se a exigência quanto à área de

implantação: estabelecida a princípio em seis hectares, atualmente é de no mínimo

12 hectares. A nosso ver, essas medidas sinalizam para a perda de rentabilidade da

atividade, a qual exige não só ampliação da escala, mas também a redução dos

custos.

É por essa razão que os camponeses têm lugar privilegiado nessa

forma de integração. O fato da atividade ser conduzida pela família faz diferença,

não apenas do ponto de vista dos custos, mas da própria produção, o que nos

permite inferir que esses elementos permitem uma margem de retenção da renda

que os capitalistas somente podem ter ao apostarem na escala.

Por outro lado, a necessidade de reduzir custos lança a cooperativa

em outro projeto paralelo: a viticultura. Visando o aproveitamento da estrutura

industrial durante a entressafra da laranja, já está em andamento um projeto de

produção de suco de uva.

Para tanto, a cooperativa conseguiu a adesão de um número de

produtores cuja área contratada (250 hectares) já é suficiente para viabilizar a

indústria, a qual necessita apenas de algumas adequações para essa dupla função.

Cabe lembrar que não se trata de novos integrados, mas os próprios

do circuito da citricultura. Sabendo-se das especificidades da viticultura,

excessivamente exigente em termos de cuidados, são os camponeses que

preencherão, de forma preponderante, os quadros da integração da uva. Por outro

lado, por tratar-se de uma cultura intensiva, essa não deverá comprometer o

esquema de diversificação que eles já praticam.

No limite, isso pode representar a necessidade de mais força de

trabalho disponível dentro da propriedade. Apesar desse projeto ainda se encontrar

na fase de seleção e preparação para o plantio, isso somente vem confirmar um

dado: a recriação camponesa não é peça de um exercício utópico, mas do próprio

movimento da realidade, o qual tem lançado por terra o decreto que preconizava o

fim de uma classe social. Portanto, estas experiências que os camponeses

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cooperados integrados estão fazendo recoloca a necessidade da discussão sobre as

cooperativas.

4.3 Sistemas agrários camponeses e a sujeição da renda da terra

Afora as particularidades do sistema cooperativista, vimos que sua

interferência na ordenação interna do sítio camponês se caracteriza por um grau

menor de rigidez em se tratando do sistema de integração. Não obstante, as

análises empreendidas até então sinalizam para uma autonomia relativa dos

camponeses no que concerne às atividades integradas.

Particularmente no caso da avicultura e sericicultura, o fato de lhes

serem impostos rígidos padrões de manejo evidencia que, nessas atividades, o

controle do seu tempo e do seu espaço cede lugar à necessária observância do

tempo do capital, materializado no artificialismo com que se revestem os processos

produtivos. É por essa razão que evocamos o conceito de intervenção ao

analisarmos tais experiências de integração, pois os camponeses que não se

enquadram nos processos definidos externamente devem/podem abandonar a

atividade.

Por outro lado, a intermediação, fundamento sobre o qual irão

estruturar-se as reflexões subseqüentes, é concebida como uma ação que não

define a organização dos sistemas agrários camponeses. Apesar do imperativo da

produtividade, com todas as relações que lhe são inerentes, os camponeses

continuam senhores de seu tempo e de seu espaço, de modo que os tentáculos do

capital os afetam na exata medida em que esses a incorporam.

A simples menção ao fator incorporação já estabelece um divisor de

águas em relação ao fator imposição, indiscutivelmente presente nas relações de

integração destacadas. Assim, ao incorporar certas determinações, supõe-se que o

sujeito as internalize e de certa forma as redimensione de acordo com seus

interesses.

É justamente o sentido dessa incorporação que torna difícil uma

análise compartimentada de cada uma das atividades que se fazem presentes na

parcela do território dominada pelos camponeses. Assim, a lógica da

complementaridade invariavelmente remete a uma combinação na qual a hierarquia

nem sempre pode ser confundida com primazia. Daí a pertinência de recorrermos à

categoria de sistemas agrários camponeses.

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193

Por outro lado, reiteramos que as atividades analisadas

anteriormente de forma alguma podem ser excluídas do conjunto, posto que as

mesmas se inscrevem igualmente no contexto das combinações existentes nos sítios

camponeses. Enquanto individualmente se diferenciam, no conjunto manifestam

uma articulação que revela a própria lógica de reprodução camponesa.

Não obstante, a concepção de sistema remete a um padrão orgânico

que, além de ser comum à maior parte dos sítios camponeses, tem nas atividades

citadas um caráter estruturante, visto que um conjunto de atividades paralelas a

elas se articulam, assumindo um sentido de complementaridade.

Vimos também que esses sistemas não são mutuamente

excludentes dentro dos sítios, tampouco indicam a drenagem da renda da terra por

um único setor capitalista, seja o industrial, o comercial ou o financeiro, quaisquer

que sejam seus agentes específicos. Trata-se na verdade de um emaranhado de

estratégias adotadas de acordo com as condições internas mais apropriadas. Por

fim, essas se manifestam para além da produção, culminando em variações

conjunturais nos níveis de geração e apropriação da renda.

Por isso, passaremos à análise das atividades que, do ponto de vista

da hierarquia presente no tempo e no espaço camponês, comparecem como aquelas

que, de certa forma, assumem o caráter estruturador do sítio. Porém, de antemão

julgamos conveniente apresentar alguns dados que permitem uma visão geral do

uso do solo na área estudada. Passemos aos dados sobre o número de produtores

ocupados com cada uma das principais lavouras cultivadas em 2001. (Figura 19 ).

172

487

538

622

940 1562

1613

1697

1999 32

72

5593 78

57

010002000300040005000600070008000

Alg

odão

Am

ora

Can

a

Man

dioc

a

Fru

tas

Trig

o

Arr

oz

Ole

rícu

las

Feijã

o

Caf

é

Soj

a

Milh

o

Figura 19 - Principais lavouras segundo o número de produtores em 2001

Fonte: EMATER, Realidade Municipal 2001.55

55 Dados extraídos do Relatório Realidade Municipal – EMATER, 2001.

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194

Como se pode observar, as lavouras que são próprias dos

camponeses, como arroz, feijão, café e milho, estão entre as que têm maior número

de cultivadores. Entretanto, ao se verificar a área que as mesmas ocupam,

chegamos às evidências de que as lavouras mecanizadas são predominantes, por

razões a serem discutidas posteriormente. Observemos, pois, a extensão de cada

um desses cultivos na área de pesquisa como um todo. (Figura 20).

1450

1868

2093

3053

3081

3969

8351 26

407 69

420

8707

9

1666

91

2448

68

0

50000

100000

150000

200000

250000

Am

ora

Ole

rícu

las

Alg

odão

Arr

oz

Fru

tas

Man

dioc

a

Feijã

o

Caf

é

Trig

o

Can

a

Milh

o

Soj

a

Figura 20 - Principais lavouras segundo a área cultivada em 2001 (ha.)

Fonte: EMATER, Realidade Municipal 2001.

Portanto, é possível observar que as lavouras mecanizadas são

absolutamente dominantes, ainda que, na média, não se estaria diante de áreas

muito extensas, indicando o quanto os camponeses estão envolvidos com as

mesmas. Notemos que no milho, a relação é de pouco mais de 21 hectares por

cultivador, lembrando que se trata de uma lavoura de ciclo curto, em geral em

rodízio com a soja, o que reduziria a necessidade de terras disponíveis pela metade.

Evidentemente, o fato de haver grandes proprietários envolvidos com essa lavoura

interfere nesses números, elevando a área média dos pequenos cultivadores.

Quanto à soja, a área média é de pouco mais que o dobro, o que

mostra que essa é o cultivo preferencial dos médios e grandes proprietários; o

oposto se verifica entre os cultivos próprios dos camponeses, que serão analisados

mais à frente. Para que se possa ter uma visão da importância das lavouras em

cada município, apresentamos a Figura 21, construída a partir da participação

percentual da área ocupada com a soma das lavouras temporárias e permanentes.

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196

Cumpre salientar que tomamos os dados das lavouras como um todo, embora haja

particularidades geográficas que não podem ser desconsideradas. Nesse sentido, na

área de estudo a diferença em termos de solo não deve ser desprezada na definição

dos diferentes sistemas agrários.

Grosso modo, dois padrões agrários sobressaem, tanto em termos

de extensão geográfica quanto de importância para a reprodução camponesa: a

pecuária leiteira na área dominada por solos do arenito e as lavouras onde

predominam os solos derivados do basalto.

Porém, antes de evidenciá-las, convém indicar brevemente a

constituição dos solos. Na área estudada, são três os solos derivados do arenito

caiuá: Latossolo Vermelho-Amarelo, Latossolo Vermelho-Escuro e Podzólico

Vermelho-Amarelo. Em linhas gerais, tais solos são porosos, tendem à elevada

acidez, baixa fertilidade natural além de serem bastante suscetíveis à erosão. Já os

solos originados de rochas do derrame basáltico, Latossolo Roxo e Terra Roxa

Estruturada, basicamente se caracterizam pela alta fertilidade natural, baixa

susceptibilidade à erosão e grande capacidade de retenção de água, estando entre

os solos mais férteis do planeta. Por fim, incidem em menor proporção os Solos

Litólicos, bastante rasos, o que os torna altamente susceptíveis à erosão e de difícil

mecanização. Para efeito de análise, consideramos a sua distribuição a partir dos

tipos agregadores, como se poderá observar na figura subseqüente. (Figura 22).

Ao apresentarmos a Figura 22, não pretendemos apregoar noções

deterministas ou negligenciar a unidade que transcende diferenças pedológicas,

pois isso deporia contra o nosso próprio esforço de identificar a relação dialética

entre unidade e diversidade. Há que se destacar, dessa maneira, que as diferenças

não são meramente físicas, o que pode ser verificado na figura apresentada na

seqüência (Figura 23), a qual está baseada na participação percentual das lavouras

e da pecuária nos respectivos municípios.

Conforme se pode verificar na Figura 23, enquanto que as áreas

ocupadas com lavouras são mais expressivas, em termos percentuais, nos solos

derivados do basalto, as pastagens incidem em maior proporção nos domínios do

arenito caiuá. Por outro lado, as formas predominantes de uso do solo entre

camponeses e capitalistas também se manifesta na pecuária: enquanto que a

marca da grande propriedade é a pecuária extensiva de corte, os camponeses

tendem a se ocupar da pecuária leiteira. É por essa razão que nos deteremos nessa

atividade.

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4.3.1. A pecuária leiteira

Após evidenciarmos as formas de uso do solo na área de estudo, é

necessário ressaltar que a opção pela produção de leite entre os camponeses não

tem uma explicação passível de se limitar à proposição: aptidão dos solos.

Com efeito, uma das marcas da parcela do território dominada pelos

camponeses é a combinação de diversas modalidades de emprego da força de

trabalho familiar, sendo essa uma das explicações para sua sustentação. Nesse

sentido, os critérios de diversificação não são aleatórios, mas definidos com base em

uma análise criteriosa da conjuntura que os envolve. Distingue-se, nesse ponto, da

lógica capitalista, por subordinar a avaliação do que é mais rentável não à situação

de mercado, mas às próprias condições produtivas internas.

É sabido que os camponeses são agentes perpetuadores de uma

estrutura pautada na indivisibilidade entre produção econômica e reprodução

social. Em outras palavras, as atividades econômicas são dimensionadas de tal

forma que possam ajustar-se às condições objetivas da unidade familiar. Nessa

ordem, a avaliação de como proceder à utilização produtiva da terra é submetida a

uma série de quesitos, cuja combinação possa culminar, pelo menos em tese, na

melhor resposta possível à reprodução da família.

Considerando que o recurso à pecuária leiteira é recorrente entre as

unidades camponesas, especialmente nos domínios do arenito, é de se supor que a

mesma seja positivamente avaliada a partir de um julgamento pautado nas

condições objetivas internas e do próprio mercado. Desse modo, não é o solo a

variável determinante, mas uma combinação de fatores em que a equação custos-

renda-riscos comparece como preponderante na referida escolha.

Dizer que o leite está bom, não está não. Mas a gente já tocou muita roça e sabe que está cada vez pior. Qualquer coisa que for plantar é um gasto que não acaba mais, porque hoje sem adubo, sem veneno e sem maquinário não dá para fazer nada. E o pior, quem garante que depois a gente não vai perder tudo? É aquela agonia se a chuva está sendo de mais ou de menos, é o preço na hora de vender...quem toca roça não consegue dormir sossegado. Agora com o leite não têm perigo de deitar rico e amanhecer pobre. O gasto é pouco e um dinheirinho para pagar as despesas sempre entra. Quando aperta, aí a gente vende um bezerro.56

A nosso ver, esse depoimento invalida o argumento de que é o solo

arenoso que os impele à pecuária leiteira. Observemos que a limitação colocada no

56 A.: Água do Boiadeiro- Munhoz de Melo.

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200

centro da argumentação é a necessidade de dispor de dinheiro que pode se perder

ao longo do processo produtivo. A agonia, a perda do sono, não são tomadas como

explicação para a perda do investimento, antes, está explícito que o mesmo não

almeja riqueza, mas a sobrevivência sem grandes sobressaltos. Amanhecer pobre

significa perder tudo e isso se choca frontalmente com a saga da reprodução

ancorada na manutenção dos meios de produção, logo, em uma lógica combinada a

partir da autonomia do trabalho.

Seu relato da experiência passada com lavouras permite refazer o

ciclo histórico de ocupação dessa região, que se confunde com a própria história da

família. Não podemos esquecer que, outrora, a fertilidade natural derivada da densa

cobertura vegetal abatida sustentou, por décadas, uma agricultura de baixo uso de

tecnologia, assentada nos cultivos de excedente articulados ao café. Entretanto, à

medida que os solos começavam a dar sinais de esgotamento, modificava-se a base

técnica da agricultura na região, com a expansão das lavouras mecanizáveis. Como

se viu, essas mudanças vieram articuladas a um oneroso pacote tecnológico,

restritivo à grande parte dos camponeses.

Ao mesmo tempo, a lavoura comercial que os sustentava impunha

cada vez mais limites, seja em razão da queda de produtividade em face do

esgotamento dos solos, seja em virtude dos preços, em acentuado declínio. É nesse

momento que se define a escalada inversa entre volume e preços descendentes das

colheitas e custos ascendentes para a produção. Ao longo dos anos, esse

descompasso levou a uma redefinição das estratégias de existência, com destaque

para a opção por atividades comerciais em que a combinação entre custos e riscos

não viesse a ameaçar a autonomia do trabalho familiar, centrada na propriedade

dos meios de produção, notadamente na terra.

Portanto, não é o solo arenoso que determina a pecuária, pois à esta

sucedeu um sistema agrário mais diversificado, conforme indicamos. É a busca de

estratégias produtivas que permitem a ocupação da mão-de-obra familiar, sem a

realização de grandes inversões de dinheiro com retorno incerto, que a tornou a

substituta mais adequada aos cultivos tradicionais. Por outro lado, nos domínios do

basalto, onde a fertilidade natural dos solos ainda é elevada, os camponeses

continuam tendo como atividade comercial predominante as lavouras, ainda que a

pecuária esteja presente, especialmente como atividade de autoconsumo.

Cremos ter demonstrado que essas estratégias desmistificam a tese

de que os camponeses têm aversão aos riscos. Conforme vimos, o cuidadoso cálculo

que fazem é no sentido de definir um limite para o jogo travado com o mercado,

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201

limite esse que consiste na manutenção dos meios de produção. Balizados por uma

experiência histórica entre demandas e possibilidades das diferentes atividades,

além do presente nível de acumulação e disponibilidade de recursos materiais e

força de trabalho, eles vão delineando um perfil produtivo, até que novas condições

objetivas sinalizem mudanças necessárias ou promissoras. Anteriormente já

demonstramos como a sericicultura e a avicultura se enquadram nessa lógica.

É nessa perspectiva que a pecuária leiteira comparece como uma

alternativa, o que não quer dizer que ela dispense investimentos. Se os altos custos

de implantação e as exigências da matriz cerealífera tecnificada foram e ainda são

de certa forma proibitivos, a conversão para a pecuária leiteira permitiu, ao menos,

uma parcial utilização de recursos já existentes, aliados àqueles da própria

natureza, como é o caso da proliferação do rebanho com base na retenção das

próprias bezerras nascidas na propriedade.

Entretanto, a progressiva queda nos preços pagos ao produtor tem

requerido, na mesma proporção, o aumento da produtividade, e isso somente se

alcança através de sistemáticos investimentos na atividade. Em outras palavras,

nas atuais condições de mercado, é cada vez mais limitada a sua sustentação sem

um melhor manejo genético e alimentar do rebanho, o que evidentemente supõe

custos.

Por outro lado, há que se ponderar que tais condições de mercado

não são obra do acaso, mas resultado direto da monopolização, pelo capital, da

parcela do território dominada pelos camponeses, em que o leite é mais um dos

casos emblemáticos.

Dentro da política de controle de preços de itens estratégicos para a

viabilização da economia urbano-industrial, esse era um dos produtos submetidos

ao tabelamento oficial dos preços, tanto ao produtor quanto ao consumidor final.

Foram 45 anos de controle do governo sobre esse setor, o que preservou uma certa

margem de ganho aos produtores, mesmo porque esse é um dos produtos da cesta

básica e, como tal, de vital importância dentro do processo mais geral de

acumulação.

Todavia, as próprias demandas dos grupos tornados hegemônicos

pelas políticas anteriores que culminaram em sua consolidação, pressionaram no

sentido da liberalização, ocorrida em 1991. Na prática, isso representou a plena

transferência do poder de deliberação dos preços para o setor privado, tanto no que

se refere aos produtores quanto aos consumidores, medida comparável à fábula do

galinheiro aos cuidados da raposa.

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202

Não resta dúvida de que a liberalização já se deu em um contexto de

grande concentração de capitais na cadeia agroindustrial do leite que, assim como

em praticamente todos os setores da economia, já haviam agregado forças

suficientes para pressionar a guinada nas políticas públicas, no sentido de sua

plena anuência ao irrestrito controle privado das forças produtivas. Trata-se da

reconstituição da tese liberal, sepultada nos 70 anos que se seguiram a mais séria

crise de acumulação até então desencadeada pela “racionalidade” das livres forças

do mercado. No dourar da pílula, não foram poucos os produtores que acreditaram

que a substituição do governo pela suposta ação redentora do mercado lhes seria

benéfica.

Quase todos os países desenvolvidos do mundo estabelecem mecanismos de proteção aos seus produtores primários, e isto vale no caso do leite para os EUA, Canadá, Europa, Japão etc. No Brasil, abriu-se o mercado sem limites e o que vimos foi uma vil espoliação dos produtores [...]. Num determinado momento, as indústrias se prevaleceram ou se prevalecem do seu poder de fogo e, agora, outro ator mostra a sua força, no caso as grandes cadeias de varejo, que chegam até a se sobrepor às poderosas indústrias, os algozes de outras épocas.(FONSECA, 2002, p, 1).

Assim, ao abdicar da prerrogativa de regular o setor, o poder

público abriu caminho ao fortalecimento dos oligopólios, com reflexos diretos no

progressivo rebaixamento dos níveis de renda, especialmente dos produtores

pequenos. Essa diminuição não ocorreu, tão somente, pelo aviltamento dos preços

pagos, mas igualmente pelo aumento dos custos. Nesse caso, o salto verificado

resultou das variações gerais da economia, somadas à política de modernização do

setor encampada pelas indústrias, que basicamente transferiram o ônus aos

produtores.

Mais recentemente, a corrida pela redução de custos tem levado as

grandes indústrias a diminuírem o número de fornecedores. Segundo a Empresa

Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (EMBRAPA), os dezesseis maiores laticínios,

que juntos processaram 32% da produção nacional em 2001, o que corresponde a

6,57 bilhões de litros, reduziram em 18,6% o número de fornecedores nos últimos

dois anos, ao mesmo tempo em que a média diária de leite entregue por produtor

passou de 109 para 156 litros.57

Esses dados nos interessam de perto, posto que entre as quatro

principais indústrias que atuam como receptoras da produção na área pesquisada,

57 Conf. Denardin, 2002.

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duas delas estão incluídas entre as 16 gigantes do ramo englobadas pela referida

pesquisa.

Quanto às outras duas, trata-se de cooperativas, que serão

destacadas na seqüência. Por ora, advertimos que essa tendência de concentração

na captação de leite responde ao imperativo da redução de custos, demanda que

explica inclusive a Edição da Portaria 56 do Ministério da Agricultura, a qual

instituiu o Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite (PNMQL).

(...) a implantação do PNMQL deve ser discutida com bastante cautela e não como uma panacéia que irá resolver todas as históricas chagas do setor leiteiro. Neste momento, torna-se premente a necessidade de uma maior responsabilidade dos governos em relação às políticas para o Complexo Agroindustrial do leite. Deve-se entender que um programa de melhoria na qualidade do leite no país passa necessariamente pela criação de uma infraestrutura adequada; pela educação das pessoas envolvidas; pelo monitoramento das relações de poder entre os elos do complexo; por uma política consistente de financiamento e proteção de mercado contra práticas desleais de comércio (leia-se subsídios e triangulação de produtos importados); pela capacitação técnico-administrativa dos consultores, que hoje tem se apresentado como presas fáceis de discursos tecnicistas e; somente após todos estes problemas estarem devidamente equacionados, devem ser direcionados esforços para o combate à informalidade. (SOUKI, 2002).

Verificamos que tal Portaria transfere o ônus da qualidade do leite

ao elo mais fraco da cadeia: os produtores. O Estado, ao legislar nesses termos, não

apenas se desobriga de interferir nos problemas que a própria desregulamentação

criou, mas também beneficia diretamente as indústrias, as grandes interessadas na

Portaria, pois terão a seu dispor matéria-prima com qualidade monitorada, com o

intocável direito de arbítrio sobre os preços aos produtores.

Todavia, é preciso que se esclareça que esses não são afetados por

essas mudanças de forma equânime: ao estabelecer critérios de qualidade baseados

na realidade dos grandes produtores, por força da qual os custos são diluídos, as

medidas afetam sobremaneira aqueles que não têm a seu favor uma produção em

escala.

Entre esses critérios, está a obrigatoriedade do resfriamento do

produto e a granelização, a qual acaba com o tradicional esquema de

acondicionamento e transporte em latões. O novo sistema pressupõe a deposição do

leite in natura em resfriadores, sendo diretamente aspirado para caminhões com

tanques isolados termicamente, seguindo daí para a indústria. A seguir verificamos

os dois sistemas, o uso do resfriador e, na seqüência, o sistema tradicional dos

latões à porteira, aguardando a passagem do leiteiro.

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204

Foto 4 – Leite no resfriador e leite no latão.

Com os resfriadores, os custos de transporte são drasticamente

reduzidos, pois a coleta não precisa ser diária, sendo dimensionada a partir da

capacidade de acondicionamento dos caminhões-tanque. Assim são redefinidas as

linhas, que correspondem às áreas geograficamente delimitadas em função das vias

de acesso e do volume da produção. 58

Não obstante, antes mesmo da referida Portaria entrar em vigor,

esses procedimentos já estavam amplamente difundidos na região, inclusive entre

os produtores pequenos. Como o que está em jogo é o lucro das indústrias, as

medidas relativas à melhoria da qualidade do produto que processam há muito já

vêm sendo tomadas: o fim do transporte em latões, o ingresso de fornecedores que

não se enquadrem dentro das novas normas vetado e o pagamento diferenciado

pelo leite resfriado e pelo leite na temperatura ambiente têm forçado os produtores

a se adequar. Como exemplo do poder de persuasão pautado nesses termos,

citamos o caso da Cooperativa Cativa, sediada em Londrina: 78% dos produtores

58 As linhas de leite compreendem uma divisão das áreas produtoras de acordo com a capacidade de coleta. Por vezes, esse trabalho é realizado por caminhões da própria empresa e, por vezes, essa é uma tarefa terceirizada, embora o vínculo dos camponeses seja com a indústria.

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205

com média diária de até 100 litros já possuem o resfriador, um equipamento caro

tanto do ponto de vista da aquisição quanto da manutenção, especialmente para

essa escala de produção.

Segundo Carvalho (2002), a diferença de custos para o resfriamento

de leite é inversamente proporcional ao volume resfriado. Essa diferença de custos

se aplica tanto à aquisição do equipamento quanto a seu funcionamento.

Observemos os valores levantados em abril de 2000 a partir dos quatro modelos

mais vendidos no Brasil. (Quadro 2).

Quadro 2 – Custos para o resfriamento do leite (R$) Capacidade em litros 220 520 1.550 2.050 Aquisição- preço por litro a ser resfriado 13,41 7,40 4,74 4 ,15

Utilização de 100% da capacidade 0,020 0,014 0,011 0,011 Manutenção-custo por litro resfriado Utilização de 50% da capacidade 0,040 0,028 0,023 0,021 Fonte: Carvalho, 2002.

Como se pode observar, o menor resfriador, justamente aquele mais

procurado pelos camponeses, custa mais que o triplo do maior equipamento, em

termos proporcionais à respectiva capacidade. Some-se a isso o fato de que o custo

do resfriamento diário do leite aos produtores pequenos é praticamente o dobro em

relação ao dos grandes produtores.

Ao mesmo tempo que tais exigências resultam na elevação dos

custos, conforme demonstram os dados, os camponeses se deparam com um

cenário de incerteza no tocante à sua permanência como fornecedores dessas

indústrias, isso sem mencionar a questão dos preços a serem recebidos pelo leite

entregue. Cumpre destacar que os produtores somente tomam conhecimento do

valor de sua matéria-prima cerca de 30 dias após a entrega, momento em que são

realizados os pagamentos. Essa forma de transação é fonte recorrente de surpresa

para os camponeses, em vista da baixa remuneração obtida com a entrega do

produto.

Nesse aspecto, os métodos das indústrias e das cooperativas são

bastante próximos. Ainda que se deva considerar a diferença essencial entre ambas,

em razão do destino da renda da terra gerada na atividade, não tem sido possível

aos camponeses experimentar cotidianamente essa distinção, visto que, apenas

eventualmente, a relação cooperativista têm se revertido em vantagens palpáveis.

Como já temos assegurado, os imperativos do mercado, aliados à opção pela gestão

empresarial das cooperativas tem protelado o usufruto imediato da renda a que os

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206

produtores fazem jus. Na ciranda da modernização dos parques industriais, a

distribuição das sobras tem sido reiteradamente adiada.

A gente só continua com o leite porque não vê muita saída. Se o leite está ruim, a roça nem se fala. Nesse mês eu fiquei devendo 27 reais para a cooperativa, porque uma vaca adoeceu e eu precisei pegar os remédios que o veterinário passou. Agora, você calcule, a gente trabalhou o mês inteiro, sem domingo, feriado, sol ou chuva e ainda ficar devendo? Acha que isso tem cabimento?59

Esse depoimento revela que o cooperativismo não tem conseguido

amenizar os problemas enfrentados pelos pequenos produtores de leite. Estamos

diante de um contexto de rebaixamento intenso do preço das matérias-primas,

entre as quais o leite, para que a equação taxa de lucros seja preservada em favor

da indústria. Embora se trate de uma indústria cooperativa, parece-nos que,

mesmo em termos proporcionais, os camponeses dela não estão se beneficiando, ao

menos de imediato. Além das estratégias das administrações já destacadas, não se

pode ignorar que o sistema cooperativista não consegue alterar a dinâmica geral de

acumulação ampliada do capital. Em outras palavras, são vários os canais de

drenagem da renda camponesa.

A começar pelo nível de depreciação da matéria-prima leite em

relação aos produtos industrializados: vimos que, no depoimento, trata-se de

medicamentos utilizados no tratamento de um dos animais. Cumpre salientar que o

depoente entregou no referido mês 1.500 litros de leite. Se considerarmos tão

somente os gastos que o mesmo teve com energia elétrica consumida pelo resfriador

e os custos com a alimentação do rebanho, depreendemos que o nível de exploração

a que o mesmo está submetido é extremamente elevado e isso se aplica aos

produtores pequenos em geral.

Pudemos colher durante os cinco meses dedicados ao trabalho de

campo estórias e histórias não muito diferentes dessa. A rapina da renda

camponesa, em muitos casos, atinge níveis insuportáveis, obrigando-os a substituir

a atividade que não mais assegura retorno monetário e ou encontrar formas

alternativas de renda.

Numa indignação mal contida, muitos nos apresentaram não

apenas relatos, mas também documentos que comprovam o achatamento dos

preços, combinados com os crescentes custos de produção.

59 F.: Água Azul - Santa Inês.

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A gente nem gosta de falar assim, porque parece que está reclamando à toa....mas eu te mostro as notas, faz quase cinco anos que eles pagam o mesmo preço pelo leite...o mesmo não, porque eles diminuíram de quatro para dois meses a entressafra e ainda assim pagaram menos que no ano passado. Só que o sal, o adubo, os remédios, a energia, tudo já dobrou...triplicou. Como é que a gente vai conseguir agüentar?60

A angústia derivada dessa situação certamente não pode ser

expressa em palavras, posto que está em jogo a sobrevivência da família. E não se

pode esquecer que nos dois mandados de FHC, a tônica foi o “controle” da inflação.

Como se sabe, esse se limitou, na prática, a um certo congelamento de preços dos

alimentos básicos, produzidos essencialmente pelos camponeses. Sabendo-se que,

para a manutenção da taxa de lucros da indústria, diante da queda dos produtos

finais, o caminho é a depreciação máxima da matéria-prima, é possível avaliar o

quanto essa classe doou graciosamente à sociedade o seu trabalho, através da

transferência desmesurada da renda da terra.

Assim, a taxa de lucro do capital foi preservada pela total anuência

institucional em relação ao arbítrio das indústrias em torno dos preços das

matérias-primas. No caso do leite, o limite parece ter sido colocado pelo expediente

a que as indústrias estão recorrendo, ao diminuir o período de entressafra para

efeito de cálculo do preço aos produtores. Durante anos, os técnicos os estimularam

a investir na mudança do perfil produtivo, sobretudo nos meses de pastagens

escassas, com a promessa de preços remuneradores.

Em razão disso, a maior parte dos camponeses passou a investir em

silos, plantio de volumosos alternativos e mesmo melhoria das pastagens. À medida

que esses esforços se traduziram em uma relativa estabilização na captação ao

longo do ano, a diferença paga pelo litro de leite, bem como a vigência da

entressafra, foram sendo reduzidas drasticamente, retirando uma das poucas

oportunidades de compensação aos preços depreciados no chamado período das

águas.

Sinceramente está muito difícil... eu não quero saber de amontoar, o que a gente quer é preço que dê para a família sobreviver. Até há pouco tempo o leite dava para tocar a vida, agora a gente precisa vender bezerro para acudir a precisão. Eu nunca tive ambição de possuir...possuir. Eu não troco essa vida por nada, mas como é que vai ficar com o leite nesse preço? A gente até tinha esperança no resfriador, porque falaram que o preço do leite gelado ia compensar. Mas cadê? É só mais uma despesa.61

60 S.: Água do São João - Santo Inácio. 61 J.: Água do Bagé - Guaraci.

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As dificuldades relatadas por esses camponeses não estão baseadas

em impressões individuais. Segundo Nogueira (2002), somente no ano de 2001, os

preços básicos caíram 17% em relação ao ano anterior. Contudo, há que se advertir

que a vulnerabilidade a que foram expostos os camponeses não atinge os

produtores como um todo. Considerando que os grandes produtores são igualmente

movidos pela lógica do lucro, é de se supor que, se as indústrias não lhes acenasse

com preços remuneradores, teriam que baixar as portas por falta de matéria-prima.

Evidentemente, a precedência do lucro igualmente se aplica aos grandes produtores

de leite cooperados, razão pela qual as cooperativas se viram diante da mesma

contingência. Assim surgiu o sistema de bonificação sobre o preço base, com

variação proporcional ao volume entregue.

Campos filho (2002), ao analisar o impacto da bonificação sobre os

fornecedores da Nestlé em 2001, verificou que, enquanto os produtores com média

diária de até 50 litros receberam R$ 0,186 por litro, aqueles com produção de

1.000 litros receberam R$ 0,303 por litro. Isso sinaliza claramente o esforço das

indústrias em concentrar a produção, pois com a granelização, os custos são

inversamente proporcionais à escala de produção. Portanto, essa foi a saída que

elas encontraram para assegurar a taxa de lucro, arranhada pelo aumento do custo

da matéria-prima dos grandes fornecedores.

Entre as Cooperativas, ilustramos a experiência da Cativa, cujo

esquema de bonificação não é tão díspar quanto o da Nestlé, embora os acréscimos

percentuais em relação ao preço básico sejam significativos. (Quadro 3).

Quadro 3 - Bonificação de acordo com o volume (em litros) entregue Até 50 51-100 101-200 201-300 301-400 401-500 501-600 601-700 Acima 700

0 1% 4% 5% 7% 9% 11% 13% 18%

Fonte: Dados fornecidos pela Cativa, 2002.

Diante desses dados, podemos depreender que a lógica empresarial

da cooperativa tem prevalecido sobre o princípio cooperativo, razão por que os

pequenos produtores estão sendo chamados a arcar com os custos diferenciais que

a sua escala de produção impõe. Portanto, nesse aspecto não se poderá falar em

benefícios de cooperação, restando a esses a parte da renda que a eliminação de

intermediários no processamento industrial de sua matéria-prima pressupõe.

Com relação às empresas privadas, a bonificação se revela um

instrumento de segmentação, de modo que os camponeses, elos mais frágeis da

cadeia de fornecedores, sofrem a extração máxima da renda da terra. De certa

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forma, esse mecanismo alivia os efeitos na taxa de lucro que os preços mais altos

da matéria-prima dos demais produtores proporciona.

Assim, é possível admitir que, após terem sido agentes do processo

de concentração verificado na cadeia leiteira, as indústrias estão recorrendo

livremente ao expediente que transfere o seu ônus aos produtores mais

enfraquecidos. Observemos o grau de participação dos produtores pequenos no rol

dos fornecedores das mesmas. (Figura 24).

63

2017

76

11 13

69

17 1423

30

47

0

20

40

60

80

Cativa Coovap Lider Vigor

Figura 24 - Captação diária de leite segundo o número de produtores (%)

Até 100 litros De 101 a 200 litros Acima de 200 litros

Fonte: Dados fornecidos pelas empresas, maio de 2002.

A partir desses dados, é possível verificar que, numericamente, a

participação dos produtores pequenos é preponderante. Contudo, não se pode

esquecer que o setor lácteo está passando por um processo de concentração da

produção, processo aliás verificado desde o início dos anos noventa, com o fim do

controle exercido pelo governo. Desde então, a taxa média anual de crescimento da

produção brasileira tem sido de 4%, uma das maiores do mundo no período.

Segundo o IBGE, em 2001 foram produzidos 21 bilhões de litros, volume 45%

superior à produção de 1990, o que elevou o país à condição de quinto produtor

mundial de leite. Especificamente em relação ao Paraná, em 2001 foram produzidos

2,1 bilhões de litros, o que corresponde a 9,1% da produção nacional, elevando

igualmente este estado à categoria de quinto produtor nacional62. Lembramos que

na área de estudo, afora os camponeses com produção exclusiva para o

autoconsumo, no ano de 2001, 4.934 produtores comercializaram leite,

movimentando nesse ano um volume diário de 437.742 litros, em média.63

62 Cf. Denardin, 2002. 63 Cf. Relatório Realidade Municipal – EMATER, 2001.

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Não resta dúvida de que esses números refletem o imperativo da

produtividade, como alternativa para minorar os efeitos da queda de rentabilidade

da atividade leiteira. Diante da limitação dos fatores produtivos, como terra e

dinheiro, certamente são os camponeses os que mais encontram dificuldade em

atingir uma escala de produção que permita a manutenção dos percentuais de

renda verificados anteriormente. É o que se pode observar na Figura 25.

2218

61

23

11

67

2221

57

412

84

0

20

40

60

80

100

Cativa Coovap Lider Vigor

Figura 25 - Captação diária segundo o volume de leite (%)

Até 100 litros De 101 a 200 litros Acima de 200 litros

Fonte: Dados fornecidos pelas empresas, maio de 2002.

A análise conjunta das duas últimas figuras evidencia que, apesar

da presença maciça dos produtores pequenos no fornecimento de leite para as

indústrias, o volume por eles movimentado é pouco significativo. Todavia, esse grau

de participação não significa que os produtores pequenos são passíveis de descarte,

seja pelas cooperativas, seja pelas empresas. Nota-se que eles são numericamente

preponderantes, inclusive na Líder, empresa privada que atualmente é a maior da

região e a oitava maior empresa do setor lácteo no Brasil.

E não se trata de uma situação peculiar à região, já que estudos

baseados na realidade das gigantes do setor lácteo mostram que a tendência à

concentração na captação de leite não é regra geral e, ainda assim, se mantém

sobre uma base média de 135,5 litros diários por produtor64. Isso sugere a

necessidade de considerar as diferentes conjunturas internas e externas às

empresas, que acabam por definir o ritmo da captação e processamento do leite65.

Para ilustrar melhor essa questão, indicaremos a produção diária de leite por

município. (Figura 26).

64 Dados referentes ao ano de 2000. Cf. Carvalho, 2002. 65 Cf. Carvalho (2002), entre 1997 e 2000, os cinco maiores laticínios do Brasil diminuíram o número de fornecedores, ao passo que os sete subseqüentes mantiveram a tendência de redução do volume por produtor.

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Apesar da grande disparidade em termos de produção diária por município,

conforme indica a Figura 26, não se pode desconsiderar que a concentração da

captação nos níveis verificados está inserida dentro de um processo mais amplo em

que o aumento se deu não apenas na produção, conforme já destacamos

anteriormente, mas também na produtividade. Segundo o IBGE, entre 1990 e 2000

a produção média anual das vacas aumentou em 45,6%, ultrapassando a média

diária de 4 litros66.

No caso das duas grandes indústrias não-cooperativas que atuam

em nossa área de pesquisa, os dados revelam quão variáveis são as políticas em

torno da captação. A Líder registrou nos anos noventa um aumento de 72,9% na

produção67. Essa expansão se deu graças à ampliação de seu raio de ação, visto que

o município sede, Lobato, responde com apenas 2,5% da captação da empresa68.

Atualmente a mesma traz do Estado de Goiás importante parcela do leite que

processa. Porém, esse crescimento não se deve à concentração na captação, já que

no período de 1997 a 2000, o número de fornecedores foi reduzido em 5%. No

intervalo entre 1999 e 2000 essa redução reflete o aumento de apenas 3,5 litros/dia

entregues por produtor.

Por outro lado, a Vigor, instalada em Santo Inácio, tem mostrado

uma tendência oposta, ou seja, de concentração efetiva na captação de leite.

Considerando apenas o intervalo entre 1999 e 2000, houve um aumento médio de

39,1 litros na captação diária por produtor69. Essa tendência de concentração na

captação expressa pela Vigor é notável inclusive nos dados apresentados na Figura

24, sendo essa a que apresenta a maior disparidade em termos de volume e

participação numérica dos produtores pequenos no fornecimento da matéria-prima.

Conforme se pode observar, apenas 8,3% dos fornecedores estão no estrato de até

50 litros por dia, os quais respondem com apenas 0,8% do volume processado pela

indústria.

Diante de tais tendências, é necessário questionar o papel do

cooperativismo na cadeia leiteira, bem como as diferentes estratégias utilizadas

pelas indústrias na monopolização do território, pela sua interferência nas parcelas

do território dominadas pelo campesinato. Embora a expressiva maioria dos

técnicos e administradores sentencie o desaparecimento dos pequenos produtores

de leite, algumas vozes que ecoam pelo e para o referido consenso, parecem indicar

66 Conf. Carvalho, 2002 67Idem, ibidem. 68 Relatório Realidade Municipal EMATER, 2001- Lobato. 69 Conf. Carvalho, opus cit.

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o contrário. Vejamos a avaliação do diretor da empresa de laticínios que apresenta a

maior concentração na captação de leite no Brasil: “Se a empresa concentrar muito

a captação em poucos produtores de grande porte, pode ter problemas com pressão

por preços.”70

Essas palavras são suficientes para explicitar a farsa da auto-

regulamentação do mercado. Parece óbvio que se do ponto de vista da empresa, o

exercício do monopólio junto aos produtores é salutar na definição de seus lucros, o

reverso surge como um fantasma, razão pela qual a mesma passa a se sentir

ameaçada pela estrutura de captação montada em torno de poucos produtores.

Nesse caso, a indústria se torna duplamente vulnerável, primeiro

porque seu poder de definição dos preços esbarra na exigência de lucratividade que

mantém os grandes produtores, igualmente capitalistas, na atividade. Em segundo

lugar, quanto menor for o número dos fornecedores, maior a capacidade de se

articularem entre si e ditarem para a indústria o preço do leite. Assim, o que está

em jogo é a sobrevivência da indústria, pois uma insatisfação maior ou mesmo a

emergência de uma atividade mais lucrativa pode representar sérios problemas

para a obtenção da matéria-prima.

São essas contradições da lógica capitalista que possibilitam a

recriação do campesinato, embora no caso em tela muitos não compreendam, ou

rejeitem, as evidências de que há uma intercomplementaridade contraditória entre

camponeses e capitalistas. Conforme salientamos, os técnicos e executivos por nós

entrevistados foram bastante taxativos quanto ao fechamento das portas para os

produtores pequenos no circuito formal do leite.

Embora o sistema cooperativo preconize o apoio mútuo, vimos que a

corrida pela diminuição dos custos com a captação do leite tem levado suas

administrações a atuarem no mesmo fluxo das empresas privadas, conforme se

depreende dessa declaração: “Eu sei que tem que olhar o pequeno, mas não dá...ele

só dá prejuízo para a cooperativa”.71

Essa sentença enfática foi tomada apenas para evidenciar o cenário

pouco promissor para os camponeses que não têm escala na produção de leite.

Aliás, ela apenas reforça a tática socialmente perversa que está sendo levada às

últimas conseqüências: a política das bonificações. Ao mesmo tempo que essa

estimula o aumento da produção, inviabiliza aqueles que não alcançam uma

margem desejável.

70 Diretor da Ipilsa, indústria detentora da marca Vale Dourado. Apud Ventura, 2002. 71 A.- Funcionário de uma das cooperativas estudadas.

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Observemos que as próprias administrações das cooperativas estão-

se furtando à necessidade de propor uma solução em outros termos, certamente

por estarem convencidas de que o negócio deve preceder os benefícios da

cooperação. É o que podemos depreender da declaração vinda de um funcionário de

outra cooperativa, conforme segue:

A preocupação da cooperativa não é resolver problemas sociais, mas se viabilizar enquanto empresa. Se ela conseguir resolver o problema do pequeno, ótimo. Mas isso é só uma conseqüência.72

O que está em jogo, portanto, é a viabilização da indústria, também

no caso de indústrias cooperativas, o que evidentemente coloca a discussão sobre a

apropriação da renda em outro patamar, já que nesses casos ela deverá ser retida

pelos próprios cooperados.

Em se tratando da viabilização da agroindústria, é necessário

aprendê-la a partir de sua atuação em vários flancos: apropriação da renda dos

produtores, exploração direta dos trabalhadores a seu serviço e capacidade de

manter seu produto no mercado. Em última análise, são esses interstícios que

permitem a apropriação do trabalho social não pago, mais-valia, portanto.

Não sem razão, a cadeia formal do leite expressa ojeriza à

informalidade, recurso comum entre os camponeses dessa região. No quinto

capítulo detalharemos melhor essa prática, mas por ora devemos lembrar que é

através da eliminação dos intermediários que todos os trabalhadores parecem sair

ganhando: os camponeses porque conseguem vender o leite até ao triplo do que

obteriam com a entrega nos laticínios; os consumidores, trabalhadores de baixa

renda, que conseguem comprá-lo a um preço inferior ao daquele industrializado.

Cremos não ser os riscos de perda de mercado o principal fator de

repúdio à comercialização direta do leite, já que o conjunto desses consumidores

não tem poder aquisitivo para se manter como assíduos compradores do produto

industrializado. Além disso, o volume ofertado pelos camponeses na informalidade

nem sequer arranha a escala que as indústrias movimentam. A nosso ver, o

combate feroz é contra o efeito pedagógico dessa transação, que escancara a um só

tempo a usura praticada nas duas pontas da cadeia, afetando a um só tempo os

produtores e os consumidores.

72 J.C. - COROL, maio de 2002.

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4.3.2. A cafeicultura

Entre os sistemas agrários camponeses, atualmente a importância

do café é inquestionável. Vimos anteriormente o quanto a expansão dessa cultura

está atrelada ao processo de territorialização camponesa no Norte do Paraná.

Entretanto, não se pode perder de vista que essa cultura se inscreve, igualmente,

em uma dinâmica em que a variação dos preços interfere na expansão e retração da

área cultivada e, conseqüentemente, na produção.

Após as sucessivas crises que culminaram na expansão das

culturas mecanizadas, o café cedeu lugar ao algodão que, por mais de uma década,

se manteve como o principal cultivo comercial entre os camponeses do Norte do

Paraná.

Entretanto, a opção política pela importação do produto nos anos

90, sobretudo após a edição do Plano Real, implicou em rápida decadência da

cotonicultura, o que mais uma vez forçou os camponeses a encontrarem uma

alternativa que se adequasse aos meios de produção disponíveis. Eis que a escolha

recaiu novamente sobre o café, devido à reação dos preços e à procura do produto

no mercado internacional, bem como ao incentivo do Governo do Estado, que

passou a apoiar a implantação de viveiros e disseminação de mudas.

Com o fracasso do algodão, muitos se lembraram novamente do café. Aqueles que tinham insistido com ele foram os que mais se deram bem. O café sempre foi uma raiz que não devia ter acabado. Nós demoramos mais, tentamos, maracujá, amora... Só em 97 é que decidimos tentar de novo. Agricultor é assim mesmo... está sempre experimentando.73

Esse relato é quase que uma síntese da saga camponesa, delimitada

pelas possibilidades de produção material e reprodução social centradas na posse

da terra. Observemos que todas as culturas experimentadas são intensivas, ou seja,

podem ser desenvolvidas em pequenas áreas. É o que a retomada do café por

aqueles que o haviam deixado evidencia.

Segundo o critério de satisfação das necessidades da família,

mediado pela pertinência em transformar os produtos da lavoura camponesa em

alimento para a família ou bem de troca, pode-se afirmar que existe uma

hierarquização dos cultivos. Enquanto alguns são estritamente comerciais, outros

operam com a lógica da retenção parcial na unidade e finalmente há aqueles que

73 A.: Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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não se destinam ao mercado.

Entretanto, do ponto de vista da organização do espaço produtivo, o

café muitas vezes permite essa ordenação de forma articulada, sob a forma de

culturas intercalares. Nesse caso, são as nesgas de terra aproveitáveis entre as ruas

que dão lugar às leguminosas, tubérculos e cereais que responderão pela satisfação

das necessidades alimentares da família e, freqüentemente, serão responsáveis pela

geração de excedentes passíveis de serem transformados em renda monetária.

Nesse caso, a hierarquização se revela na escolha por cultivos que

não venham a competir com o cultivo principal, sendo descartados aqueles que

possam implicar em perda da vitalidade dos cafezais.

A terra aqui é pouca, está toda ocupada com café, menos o piquete das criações. Se o preço fosse justo, dava para tocar, porque uma vantagem do café é que a gente pode combinar ele com as outras lavouras. Você veja, quase não tem pasto para as criações, mas o milho que eu planto no meio vai para as vacas. Eu tiro leite que dá e sobra uns dez litros...eu tenho o lugar certo de entregar numa firma. Feijão também sempre sobra para vender. Agora arroz é só pro gasto mesmo, não compensa vender. E têm as miudezas, amendoim, ervilha, batata doce, pipoca...é tudo coisa que não precisa comprar.74

Vemos assim que a importância do café reside justamente na

capacidade de mantê-lo como atividade comercial sem prejuízo das lavouras de

excedente. Além disso, na própria perspectiva do consumo, o café ocupa uma

posição intermediária, por pressupor a retenção de uma pequena parte para o

consumo da família, ao contrário do algodão, que se presta exclusivamente para a

venda.

Isso sem mencionar o fato de que o café é uma cultura de

exportação que também tem um respeitável consumo interno, o que lhe

proporciona dupla potencialidade, diante de mercado garantido dentro e fora do

país.

Não obstante, não se iguala aos produtos alimentares como arroz,

feijão, milho, mandioca, importantes trunfos na majoração da renda camponesa,

por permitirem uma organização interna do consumo articulada aos preços ao

produtor. Essa estratégia possibilita jogar com o mercado de maneira inversa à que

se joga com a monocultura, voltada fundamentalmente à comercialização.

Diferentemente dessa, um produto que compõe a cesta básica pode

ou não ser vendido, uma evidência de que a comercialização nem sempre deve ser

74 J.: Prado Ferreira.

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definida de antemão. Dessa maneira, a quantia destinada a quaisquer vias (interna

ou externa) pode obedecer às conveniências do momento: se os preços estiverem

ruins, a produção pode ser retida para o consumo da família, sem prejuízo da

premissa básica que é a alimentação.75

Portanto, o café não permite o equilíbrio nesses termos; como

componente acessório da cesta de consumo, não é possível incluí-lo no rol de

produtos cuja comercialização somente se fará em condições mais remuneradoras.

É por essa razão que os camponeses que o cultivam, sobretudo os de menor renda,

não podem prescindir das lavouras de excedente.

O consumo socialmente necessário do grupo doméstico, o gasto da casa76 é um referente contínuo, um pressuposto que atinge as próprias condições sociais de produção. Os produtos podem vir pela produção direta do grupo doméstico [...] podem vir com a venda a dinheiro da produção doméstica e a aquisição posterior do consumo necessário [...] podem vir das n combinações possíveis dessas produções[...]. Todas as decisões sobre produtos a cultivar [...] e o destino levam em consideração os preços monetários e suas flutuações. Mas não se trata de um estoque de valor que se procura valorizar, de um estoque de dinheiro que por seu movimento específico engendra crescimento do estoque de dinheiro de seu possuidor, mas de pessoas a reproduzir mediante o produto da mobilização do esforço produtivo deste mesmo conjunto de pessoas. (GARCIA JÚNIOR, 1989, p. 122).

A vantagem do café é que em situações de preços baixos, é possível

mantê-lo armazenado aguardando condições mais propícias para a comercialização.

No entanto, apesar de comparecer como um dos produtos agrícolas de mais baixa

perecibilidade, suportando anos de estocagem, nem sempre os camponeses podem

tirar vantagem disso, em vista das baixas rendas que, via de regra, os obriga a se

desfazerem das colheitas para reinvestirem no ciclo produtivo.

Atualmente, é com esse cenário que os mesmos estão se

defrontando. Há no mercado mundial uma oferta elevada de café, situação que aliás

se aplica à maioria dos alimentos e demais matérias-primas transacionadas

internacionalmente. Apesar da fome e miséria amplamente disseminadas, o que

mais ameaça a estabilidade do sistema é justamente a sobra de mercadorias,

resultado direto do baixo poder aquisitivo da maior parte dos trabalhadores. Não é

por outro motivo que a corrida por mercados consumidores é a tônica do

capitalismo. A acumulação de capital depende inteiramente da circulação das

75 Tal estratégia é classificada por alguns autores de alternatividade. Cf. Garcia Jr. (1989) e Abramovay (1990). 76 Grifo do Autor.

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mercadorias, pois é nessa etapa que a apropriação da riqueza gerada pelo trabalho

se concretiza.

É a cupidez dos oligopólios que se sustentam da renda da terra,

convertida em taxa média de lucro, que impõe enormes desafios à comercialização

da produção camponesa. Portanto, o valor trabalho contido na produção da família

camponesa, renda da terra, portanto, é que se constitui em alvo da cobiça

capitalista. Evidentemente, no processo geral de acumulação, as formas de

apropriação desse valor trabalho não se restringem à comercialização das colheitas,

como se verá mais adiante.

E são exatamente os níveis de renda auferidos pelos camponeses

cafeicultores que atualmente adquirem contornos dramáticos na área estudada. Por

se tratar de uma cultura permanente, a sua implantação pressupõe uma

ponderável renúncia no nível de bem-estar das famílias de menor renda. Isso

porque não se trata apenas de considerar os investimentos necessários para o

plantio, mas a conjugação desse com o intervalo em que não haverá colheitas, que

atualmente é de três anos, em média.

É por essa razão que poucos se dispõem a erradicar a cultura de

imediato, ainda que os preços estejam altamente depreciados. Desse modo, as

crises na cafeicultura obedecem a um ritmo próprio, onde o comportamento dos

preços possui efeito retardado, tanto em termos ascendentes quanto descendentes.

Salvo a intervenção de políticas públicas específicas, isso significa que o mercado

responde mais lentamente aos ajustes decorrentes da própria diminuição da oferta.

Em outras palavras, ainda que haja a migração de parte dos

produtores para atividades mais remuneradoras, elevando o preço do produto em

virtude da diminuição da oferta, serão necessários alguns anos para equilibrar o

balanço em relação à procura. Não é por outra razão que uma vez plantado, não

convém erradicá-lo em qualquer situação de preço.

É por isso que o café está profundamente vinculado às estratégias

de reprodução do campesinato no Norte do Paraná. Dessa maneira, a

“contribuição” esperada pelo mercado, no sentido de que o equilíbrio somente será

alcançado com a diminuição da oferta, de sua parte não deverá vir da erradicação.

Antes, o reflexo que se fará sentir é a queda da produtividade, já que a diminuição

dos rendimentos na atividade afeta diretamente a capacidade de investir nos tratos

culturais indispensáveis para a vitalidade dos cafezais e, conseqüentemente, nas

colheitas subseqüentes.

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219

Em uma perspectiva de curto prazo, os dados falam por si: segundo

a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Paraná (2002), entre janeiro de

1999 e setembro de 2001, esse foi o balanço das despesas e receitas na

cafeicultura: enquanto os gastos aumentaram 84% com adubo, 67% com

agrotóxicos e 26% com contratação de mão-de-obra temporária, os preços pagos ao

produtor caíram 29%. Assim, considerando que entre os camponeses essa é uma

das principais fontes de renda monetária, a dificuldade de manter a lavoura dentro

dos parâmetros tecnicamente recomendados é por demais evidente.

Contudo, pode-se inferir que a espiral da crise ainda não afetou a

oferta, posto que os preços praticados atualmente são os mais baixos dos últimos

30 anos. De um lado, a explicação para o fato está no aumento da produção

mundial: Em 1995 foram colhidas 83 milhões de sacas; em 2000 a produção

mundial foi de 115 milhões de sacas. Nesse mesmo ano, somente no Brasil foi

registrada uma expansão de 27% da área cultivada, atingindo a marca de 6 bilhões

de cafeeiros, ocupando respectivamente 2.600.000 hectares. Outrossim, os reflexos

dessa expansão ainda estão por vir, já que os cafeeiros novos ainda não atingiram

plena capacidade produtiva.

Especificamente em relação ao Paraná, verificou-se um

extraordinário aumento da produtividade, o qual guarda íntima relação com a

incorporação das técnicas de cultivo adensado. Segundo a EMATER, entre 1994 e

1999, a produção passou de 1,36 milhões para 2,4 milhões de sacas, enquanto a

área cultivada recuou, passando de 191.000 para 156.000 hectares. Entretanto,

esse Estado, que durante décadas se sustentou como o maior produtor de café,

nesse período participou com apenas 8% da produção nacional. Na área

pesquisada, em 2001 estavam ocupados com o café 26.407 hectares, envolvendo

3.272 unidades produtoras.77 Vejamos a sua distribuição nos municípios

pesquisados. (Figura 27).

Diante dos dados dessa figura, é possível verificar a perda da

característica monocultora do café, cuja área ocupada foi suplantada pelas

pastagens, pelas lavouras mecanizadas bem como pela cana-de-açúcar. Não

obstante, esses dados evidenciam a importância dos camponeses na cafeicultura

do Estado, uma vez que os capitalistas da agricultura migraram em massa para

atividades de escala baseadas em baixa utilização de mão-de-obra.

77 Dados extraídos do Relatório Realidade Municipal – EMATER, 2001.

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Porém, é bom lembrar que essa característica da cafeicultura paranaense não se

aplica ao Brasil como um todo, pois há Estados que se tornaram grandes

produtores em bases tipicamente capitalistas, a exemplo de Minas Gerais.

Por outro lado, creditar a atual situação de preços meramente à

oferta é um equívoco, já que no âmbito das trocas, uma das prerrogativas dos

Estados nacionais é o jogo com os estoques, que permitem substanciais

modificações na alocação internacional da renda oriunda de tais atividades.

O café, após o petróleo, é a matéria-prima mais transacionada no

mundo. Todavia, é extremamente vulnerável às baixas temperaturas, o que impede

a sua produção em regiões frias. Não é por acaso que os países produtores estão

situados no hemisfério sul, onde se estima que a sobrevivência de cerca de 100

milhões de pessoas, a maior parte camponeses, depende exclusivamente do seu

cultivo. Alguns países produtores, sobretudo da África, dependem quase que

exclusivamente da exportação do café para a obtenção de divisas.

Com exceção do Brasil, que além de maior produtor, possui o maior

mercado mundial para o produto, consumindo cerca de 13 milhões de sacas por

ano, os países centrais são os grandes consumidores de café, dependendo

exclusivamente da importação para abastecerem seus mercados. Porém, esse é um

circuito altamente monopolizado, no qual apenas 20 empresas controlam cerca de

75% das exportações mundiais, sendo que apenas uma delas está sediada em um

país produtor.78

Nesse contexto, o poder das mesmas na definição dos preços

internacionais é inquestionável. Cumpre salientar que a marca da política de seus

países é o favorecimento à compra da matéria-prima bruta, para que a agregação de

valor se mantenha sob seu controle. Estima-se que do preço pago pelo consumidor,

apenas 8% seja destinado à remuneração do produtor.

Assim, é necessário utilizar com ponderação a variável tomada

como panacéia para a explicação da abrupta queda de preços nesse início de

milênio. Prova disso é que o aumento da produção não tem sido suficiente para

suprir os estoques dos países produtores, que nunca estiveram tão baixos.

Portanto, essa conjuntura é o reflexo direto das práticas oligopolizadas no comércio

internacional, sob o manto de governos e mesmo agências financeiras

internacionais.

Premidos pelas exigências em equilibrar as contas externas, os

78 Cf: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Paraná, 2002.

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países produtores, todos da periferia mundial, têm recorrido a maciças investidas

nas exportações. Além da injeção anual das novas colheitas, o Brasil assim

procedeu com o café, aproveitando-se inclusive dos estoques reguladores internos.

A partir de 1996 a Política de Garantia de Preços Mínimos começou a trocar os instrumentos de Aquisição pelo Governo Federal (AGF) e Empréstimo do Governo Federal (EGF) pelos instrumentos de Prêmio para Escoamento da Produção (PEP) e contratos de Opção de Venda. Esta substituição de instrumentos traz como espinha dorsal a diretriz de não formação de estoques por parte do governo. Portanto, não há mais como lançar mão de estoques governamentais para complementar o abastecimento em períodos de escassez. A formação de estoques num mercado aberto é transferida aos parceiros comerciais. (GUIMARÃES, 2002, p. 10).

Como se pode observar, a tônica neoliberal alardeada pelos países

centrais deve aplicar-se aos países periféricos, porém não internamente, por razões

óbvias. Assim, a concentração da oferta no mercado internacional, provocada em

grande medida pela mudança da política brasileira, fez não apenas com que os

preços despencassem, mas permitiu aos países compradores a constituição de um

estratégico estoque regulador.

Essa situação é um espelho do mecanismo de trocas desiguais,

porquanto os países compradores foram duplamente beneficiados: primeiro, por

adquirir o produto ao preço mais baixo da história, segundo, porque a ampliação

dos estoques em condições privilegiadas lhes têm assegurado ampla margem de

manobra para continuar pressionando a queda dos preços. Prova disso é que entre

1995 e 2000 os mesmos conseguiram duplicar seus estoques.

Esse cenário só não é mais sombrio para a classe camponesa em

virtude da lógica que preside a organização da produção:

No café é assim, você tem que ganhar dinheiro quando ele está bom e suportar quando ele está ruim. O café bom de preço é excelente e ruim de preço é bom, porque nós plantamos café para cuidar dele, para ter uma boa lavoura, então tratando bem da lavoura, ela tem boa produtividade. 79

Notamos que para nosso interlocutor a variação dos preços não

causa surpresa, é algo incorporado à experiência da inserção no mercado. A

aparente resignação quanto a essa instabilidade na verdade oculta uma estratégia

de classe: é a partir de eventuais situações favoráveis que os mesmos conseguem se

prover para que não venham sucumbir logo mais à frente.

79 D.: Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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Até na bíblia está escrito que tem o tempo das vacas gordas e o tempo das vacas magras. Então é isso, na roça todo mundo sabe que no tempo das vacas gordas a gente tem que se preparar para o tempo das vacas magras...80

Essa racionalidade em que a abastança e a carência não se

excluem, mas se encadeiam a partir de um ritmo contraditório, é mais uma

evidência de que a classe camponesa opera a partir da perspectiva de sua

reprodução. Na lógica capitalista, a idéia de “suportar” os tempos difíceis é por

demais incongruente, tendo em vista que a razão de ser do empreendimento é a

remuneração do capital a partir da taxa média de lucro. A partir do momento que

essa equação não se realizar, inevitavelmente outras oportunidades de

investimentos deverão ser buscadas.

Entre os camponeses, a indissociabilidade entre as esferas da

produção econômica e a reprodução social não permite a mobilidade nesses termos,

porém em determinadas ocasiões surgem como verdadeiros trunfos: o café é uma

cultura que exige mão-de-obra intensiva, sendo esse um dos quesitos mais

importantes na composição dos custos do produto. Além disso, essa é a única

cultura na região estudada onde a colheita coincide com o inverno. Isso significa

que o pico na demanda por mão-de-obra ocorre justamente num período de baixa

atividade no campo. Como vimos, é possível combinar o café com outros cultivos,

potencializando a geração bruta de renda mediante a utilização da mão-de-obra

familiar. Nos sítios camponeses por nós visitados, essa qualidade foi a que mereceu

importante destaque quando inquiridos sobre os critérios utilizados na opção pelas

atividades produtivas.

Além disso, há a variável qualidade a seu favor: o preço do café está

diretamente relacionado ao aroma da bebida, característica essa que resulta de dois

fatores essenciais: técnicas de colheita e variedade dos cafeeiros.

Quando maduros, os frutos tendem a fermentação, o que interfere

negativamente na composição aromática do café. Por essa razão, a secagem

adequada é decisiva para a classificação. Não resta dúvida que os camponeses,

melhor que ninguém, podem recorrer a procedimentos de colheita diferenciados:

como os frutos não amadurecem todos ao mesmo tempo, é desejável que sua

retirada seja feita no tempo certo, pois quanto mais permanecerem no pé ou caírem

no chão, maiores os efeitos da fermentação.

Se repassar os talhões de acordo com a maturação dos frutos é uma

80 S.: Água do Pirapó - Sabáudia.

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imposição da qualidade, isso implica em ponderável intensificação de trabalho.

Dada a pequena variação em termos de preços, essa prática por vezes chega a ser

inviável dentro das unidades capitalistas, as quais dependem inteiramente da

contratação de mão-de-obra.

Entretanto, o fato do trabalho familiar camponês comparecer como

vantagem adicional não provoca a eliminação automática da concorrência com as

unidades tipicamente capitalistas, em se tratando de qualidade e custos de

produção. Apesar dos limites da colheita seletiva, os capitalistas podem compensar

essa deficiência caso disponham de secadoras. Aliás, ao final do processo, a

secagem artificial do café resulta em qualidade superior à da secagem nos terreiros,

mesmo que a colheita tenha sido feita observando-se os procedimentos adequados.

Na seqüência, podemos observar dois métodos diferentes de

secagem do café. No primeiro, o tradicional terreiro, no qual os grãos devem ser

revolvidos sistematicamente para a secagem uniforme. No segundo, o terreiro

suspenso, o qual garante uma secagem mais eficiente e menos trabalhosa.

Foto 5 – Para secar o café.

Além da secagem, outro fator decisivo para o aroma do café é a

própria variedade dos cafeeiros. Há no mercado uma importante oferta de

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variedades com alto índice de cafeína e sabor inferior, porém mais resistentes e

menos exigentes em termos de nutrientes. Por provocarem o rebaixamento dos

preços, inclusive dos cafés de melhor qualidade, está aberta uma discussão sobre a

necessidade de rotular o produto de modo a explicitar a sua composição.

O Brasil produz o melhor e mais barato café do mundo. Essa estória de que o Vietnã é responsável pelo rebaixamento dos preços não convence. A produção deles não chega a um terço da nossa e eles só têm café da pior qualidade. A verdade é que o Brasil está vendendo muito mal o seu melhor café. O que falta é competência para comercializar.81

O café da melhor qualidade a que se refere nosso interlocutor é o

coffea arábica, dominante na produção paranaense. Há um projeto de lei no Estado

que prevê a obrigatoriedade das indústrias indicarem no rótulo a composição do

café segundo as variedades. Isso projeta uma vantagem para os produtores da

arábica, porém contraria o interesse das torrefações, que ao longo dos anos vêm

alterando, no produto final, a composição mediante a mistura da bebida aromática

e a denominada bebida de enchimento, de qualidade inferior.

Segundo uma das indústrias visitadas, atualmente apenas algo em

torno de 30% do café utilizado nas torrefações é arábica de boa qualidade, inversão

ocorrida em poucas décadas, quando o recurso ao café de enchimento era

incipiente no Brasil. Por outro lado, nesse período houve importante incorporação

de técnicas mais apropriadas, sobretudo no que se refere às colheitas, o que

implicou num salto de qualidade geral na produção do café. Assim, até mesmo

grãos considerados de má qualidade permitem a produção de uma bebida mais

saborosa que aquela com classificação similar no passado. Portanto, a elevação dos

padrões de qualidade trouxe benefícios para a indústria, permitindo-lhe adquirir

uma matéria-prima de melhor qualidade a um preço cada vez menor.

É indubitável que essas variáveis, forjadas no complexo

emaranhado de relações dominadas pelos grandes capitais, afetam diretamente os

camponeses, os quais se deparam com a necessidade de incorporar padrões

crescentes de qualidade, sem que isso seja revertido em preços mais

remuneradores.

Não obstante, entre os cultivos comerciais da região, sobretudo nos

domínios do basalto, o café ainda é um dos mais adequados às condições

produtivas das unidades camponesas que dispõem de pouca terra. Além de

81 P.G: Funcionário da COFERCATU - Porecatú

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dispensar a mecanização, por tratar-se de cultura permanente, é possível combiná-

lo com uma policultura de excedente, em muitos casos desenvolvida de forma

intercalar, conforme já demonstramos. Entretanto, essa combinação fica

inviabilizada no sistema adensado, o que explica a resistência de muitos

camponeses em implementá-lo.

De qualquer modo, seja no sistema adensado seja no tradicional,

entre as culturas comerciais mais comuns na região, é o café que mais ocupa

trabalhadores. Além da colheita, o controle das ervas daninhas em geral é feito

manualmente, através das capinas, sendo menos comum o recurso à tração

animal. Entretanto, vimos que a elevada demanda por força de trabalho não é um

empecilho, antes é um dos elementos de sustentação na cadeia produtiva

camponesa, dada a sua abundância em relação aos meios de produção disponíveis.

Foto 6 – Colhendo café

Assim, os tratos culturais algumas vezes se confundem com ritos de

jardinagem, tal o cuidado dispensado, o que eventualmente pode compensar a

baixa capacidade de investimento dos camponeses. O recurso a procedimentos

meticulosos, ainda que pontuais, evidencia intensificação do trabalho, demanda

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incompatível com as explorações tipicamente capitalistas. Alguns cuidados, como o

relatado a seguir, ultrapassam os limites das meras implicações monetárias, sendo

pouco provável a sua realização fora do círculo produtivo familiar.

Você está vendo esse cafezinho mais novo? Aqui tem dois mil pés. Nós plantamos há dois anos, quando teve aquela seca feia. Para salvar, juntou eu e os meninos, todo dia depois que o sol esfriava a gente ia de trator pegar água num poço que fica a uns dez quilômetros daqui. A gente parava na beira da roça e cada um com um balde ia aguando pé por pé. Quando a água do trator acabava ia buscar mais. Acho que nós fizemos isso mais de mês, mas valeu a pena, porque praticamente conseguimos salvar toda a lavoura...82

Como vemos, a falta de um conjunto de irrigação não foi suficiente

para destruir a lavoura camponesa, justamente porque a família se expôs a um

sobretrabalho, servindo-se de baldes para a rega individual dos cafeeiros.

Procedimentos desse tipo são adotados sempre que as culturas estiverem em risco,

ocasião em que todos os meios ao alcance da família serão mobilizados para salvá-

las.

Assim, intervenções dessa natureza podem representar, ao fim de

um ciclo agrícola, um acréscimo de renda bruta imprescindível para a manutenção

do equilíbrio econômico da unidade, pois em sendo possível contornar perdas,

menores serão as necessidades de investimento no período. É por isso que a

quantidade de recursos, em si, não servem como referência única para

entendermos a reprodução da família.

Isso se aplica à terra, posto que sua exigüidade não tem

determinado a saída indiscriminada dos filhos. No sítio em questão, em pouco mais

de setenta hectares, foram encontradas três gerações de produtores: o patriarca,

seus dois filhos e quatro netos, todos com famílias constituídas. A lógica de

reprodução que o preside se combina com um preceito derivado do código moral

que sustenta a hierarquia familiar: ao patriarca, os demais pagam renda de 25%

sobre a produção obtida, o que garante a sobrevivência do casal, cuja idade

avançada impede o trabalho na lavoura.

Costumes dessa natureza são bastante comuns nos sítios

camponeses em que a idade dos genitores não é um empecilho para que eles

tenham casa e vida independentes, ainda que os impeça de responderem sozinhos

pela sua manutenção. Portanto, a perspectiva econômica é claramente insuficiente

para aprendermos a reprodução do campesinato, pois a teia de relações que os

82 E.: Água do Caçador - Cambé.

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camponeses instituem ultrapassam esse limite. Essa questão, que merecerá uma

análise aprofundada mais adiante, por ora será tomada para lembrarmos que tal

lógica se reflete na própria organização geográfica dos bairros camponeses e mesmo

no interior dos sítios, inconfundíveis pela combinação e hierarquização singular dos

cultivos, das instalações e dos próprios laços familiares e comunitários.

Enfim, as parcelas do território dominadas pelo campesinato se

exprimem através de marcos visíveis a quem quer que circule pelas estradas:

embora não seja um fator excludente, onde houver café, os encontraremos, na

maior parte das vezes, proprietários das terras cultivadas, às vezes proprietários e

porcenteiros ao mesmo tempo e, em menor proporção, apenas porcenteiros.

A combinação proprietário-porcenteiro é resultado de uma situação

pretérita de mercado envolvendo três categorias: preço da terra, demanda de força

de trabalho e preço do café. Sua origem remonta ao período em que esse cultivo

assumiu caráter de monocultura comercial, ocorrendo em propriedades de todas as

dimensões. Conforme já o demonstramos, aos médios e grandes proprietários, a

parceria foi a forma encontrada para viabilizar a atividade sem dispêndio monetário

com força de trabalho.

No seio da instabilidade inerente à cafeicultura, anos de colheitas

fartas e bons preços permitiram aos cultivadores acumularem o suficiente para

comprarem seu pedaço de chão. No entanto, o preço da terra sempre esteve além

dos rendimentos habituais, sendo necessários longos anos de economia para a

aquisição dos lotes. Aqueles cujas terras compradas são por demais exíguas, às

vezes um, dois hectares, não conseguiram viabilizar integralmente a reprodução da

família no próprio lote. Assim, a porcentagem no café acaba contribuindo para a

complementação da renda familiar.

Cumpre destacar que, nesses casos, a escolha pelo cultivo de café

na terra própria parece dominante. Não obstante, a autonomia sobre a terra própria

se reflete na presença obrigatória da policultura que, via de regra, é desenvolvida no

sistema intercalar.

Atualmente, a recriação de novas unidades camponeses a partir de

situações como essa estão bastante limitadas, já que o preço da terra, em termos de

equivalência produto, tornou-se praticamente inacessível. Tomando a produtividade

média da cafeicultura e os preços correntes no mercado fundiário regional,

chegamos ao seguinte dado: para a compra de um hectare de terra seria necessário

dispor de uma quantia monetária equivalente à produção integral obtida em cinco

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hectares83. Como o esquema de porcentagem pressupõe a entrega de 35 a 60% da

produção aos proprietários das terras, é muito difícil aos porcenteiros reservarem

parte do que lhes cabe para esse fim, em vista da necessidade de sustento da

família.

Por essa razão, para essa categoria de cafeicultores, o sonho da

terra própria tenderá a ser uma alquimia, pelo menos enquanto perdurar o

descompasso entre custo da produção e preço.

Apesar disso, na região estudada persistem áreas expressivas de

cafezais exploradas nesses termos, embora o teor dos contratos seja dos mais

diversos. É nas grandes propriedades exploradas por essa categoria de

trabalhadores que ainda subsistem colônias, como se pode observar na foto

subseqüente.

Foto 7 – Colônia

Tivemos a oportunidade de visitar uma delas no período da colheita.

Diante de um grupo de casas, nos deparamos com um enorme terreiro, no qual

estavam depositados inúmeros montes de café, cada qual pertencente a uma

família. O fato da propriedade dispor de secadora viabiliza essa organização, já que

o espaço é utilizado apenas para pré-secagem, sendo freqüentemente realimentado

com a chegada dos frutos colhidos ao longo do dia. Ao eliminar a umidade do café,

esse equipamento permite a armazenagem por longos períodos, sem que a

qualidade seja alterada.

Convém lembrar que recentemente a conjugação de duas variáveis

aprofundou a vulnerabilidade dos cafeicultores, sobretudo os porcenteiros: os

preços baixos e a destruição dos cafezais, provocada pelas geadas em 2000. Nesse

83 O cálculo considera a produtividade média do café na região: 26 sacas ao preço de R$ 85,00 cada. Quanto à terra, os preços médios giram em torno de R$ 11.000,00 o alqueire ou R$ 4.600,00 o hectare. Dados referentes a agosto de 2002.

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ano, com exceção de algumas partes altas e bastante ensolaradas, o restante dos

cafezais foi praticamente destruído.

Isso implicou em dupla tarefa, sem qualquer incremento de renda: o

corte na altura do tronco, para eliminar a parte afetada e a posterior seleção dos

brotos novos. A desbrota, que é fundamental para a recuperação do cafeeiro, exige

uma técnica adequada: é necessária a seleção de apenas duas guias, voltadas para

faces opostas, a fim de dar equilíbrio para o arbusto. Assim, são escolhidos os

melhores brotos, sempre no sentido do arruamento, pois caso cresçam

perpendiculares ao espaço entre as ruas, qualquer vento poderá quebrá-los. Além

do vento, esse sentido é impróprio tanto por tornar as plantas mais vulneráveis à

circulação dos trabalhadores na manutenção e colheita, quanto pela

impossibilidade de realizar a cultura intercalar, em virtude do sombreamento.

Por serem necessários cerca de dois anos para que o cafezal podado

venha a atingir novamente a capacidade produtiva, fase que não dispensa nem

cuidados e tampouco insumos, os camponeses passaram por graves dificuldades,

tendo que recorrer a formas alternativas de renda.

Assim, chegamos a uma situação em que, aos camponeses

proprietários, as parcas sobras monetárias são aplicadas em investimentos

imprescindíveis para as safras seguintes. Adubações e pulverizações estão sendo

mais espaçadas, havendo inclusive aqueles que nem isso estão fazendo, seja por

estarem depauperados, seja por terem de fato desanimado com o café.

No caso dos porcenteiros, estes ficam a mercê das decisões dos

proprietários, que cada vez se mostram menos dispostos a investir nessa atividade.

Não foram poucos os que optaram por erradicar o café após a geada. Entre os que o

mantiveram, parece pesar o destino dos camponeses que ali vivem, muitos dos

quais há dezenas de anos.

É bom lembrar que os atuais preços inviabilizam a observância das

recomendações técnicas para a cultura, que preconiza, em média, seis aplicações

anuais de adubo, duas de fungicidas e cinco de inseticidas. A redução dessas

operações pode afetar não apenas as safras seguintes, mas a própria vitalidade dos

cafeeiros. Nesse item, as variedades desenvolvidas para o sistema adensado são

mais frágeis, exigindo mais cuidados e insumos. Esse é mais um fator que leva

muitos camponeses a manterem as lavouras antigas, a despeito da baixa

produtividade.

Diante desse cenário, notamos que as estratégias a que recorrem os

camponeses são as mais diferenciadas, adequando-se às particularidades de cada

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unidade produtiva. Muitos dos que foram severamente afetados pela conjugação

dos fatores geada e preços costumam avaliar a crise através de uma perspectiva de

tempo longo. Inquiridos sobre as dificuldades ou possibilidade de recorrer a outros

cultivos, eles nos respondem com uma análise do mercado e do tempo.

Quem planta café já sabe que é assim mesmo... vem o preço ruim... vem a geada...que parece ser o fim do mundo. Mas depois o café brota, o preço reage e a gente respira de novo, esquece os anos difíceis e investe com toda fé.84

Nessa perspectiva, o que parece ser resignação é, na verdade, força

para prosseguir calcada na esperança em dias melhores. Não se poderá

compreender a reprodução camponesa dissociada desse traço: o campesinato é

uma classe movida pela fé no devir. Assim, com a sabedoria de quem conhece os

ciclos da natureza e do mercado, os camponeses prosseguem com o café, a cultura

por excelência da pequena propriedade. Na esperança de anos melhores, eles

empregam a maior parte dos recursos materiais e humanos nessa cultura.

4.3.3. A policultura

Vimos que a geografia norte-paranaense remete a uma ocupação

hierarquizada do espaço agrícola. Essa hierarquia se manifesta nos diversos

gradientes de rentabilidade que as atividades propiciam e que, ao contrário do que

já fora intensamente propagado, não define o lugar das classes em si. Como se

poderá observar mais à frente, as lavouras “nobres”, aqui entendidas como mais

rentáveis, são reservadas aos que desfrutam de melhor situação econômica, o que

não implica em uma distinção entre camponeses e capitalistas.

Outrossim, se na lógica capitalista o desenvolvimento dessas

culturas invariavelmente é premido pela escala da produção, o mesmo não se pode

dizer quando são os camponeses que dela se ocupam. A versatilidade própria de

uma organicidade voltada à reprodução das condições de existência, comporta

lavouras cujas dimensões não se sustentariam sob formas tipicamente capitalistas.

A foto na seqüência evidencia essa combinação singular. Podemos observar a

articulação de três lavouras: no alto o café, recém-desbrotado. Sobre o terraço, no

qual não é conveniente mecanizar, vemos o feijão e, na parte mais baixa do sítio,

vemos o trigo, quase no ponto de ser colhido.

84 J.:Água da Marrequinha - Londrina.

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Foto 8 – Uso camponês do solo

Arranjos como esses são comuns. Além disso, há que se ressaltar

que a área reservada pela maior parte dos camponeses ao cultivo da soja/milho no

verão e da variante milho/trigo no inverno é de 20 a 30 hectares, havendo, no limite

mínimo, sítios com até cinco hectares mecanizados. Isso mostra que as escolhas se

definem de dentro para fora do sítio, ou seja, as condições internas é que vão

delinear a via e a intensidade da participação no mercado. Ao projetar os esforços

de acordo com a ordem, da família para a terra e dessa para a família, é possível

eliminar a primazia do mercado como elemento estruturador da reprodução

familiar. É exatamente essa capacidade de transformá-lo em elemento subsidiário

que confere tal versatilidade, a qual se manifesta nas escolhas que possam

assegurar, ao menos potencialmente, os melhores resultados.

Isso explica a manutenção das lavouras comerciais menos

rentáveis. Constatar sua presença marcante nos convida a não fazer vistas grossas

ao fator fertilidade do solo na viabilização dos cultivos camponeses: se nos domínios

do basalto, cinco hectares comportam o cultivo da soja-milho-trigo, em iguais

condições de gastos, os solos arenosos não o permitem.

Não estamos afirmando com isso que tais características

pedológicas sejam incompatíveis com as referidas culturas, mesmo porque o arenito

tem se constituído na nova fronteira da soja Paranaense. Trata-se, no entanto, de

um programa firmado entre grandes plantadores e pecuaristas. Sua motivação está

nos níveis de degradação das pastagens e dos próprios solos após décadas de

pecuária extensiva. A baixa capacidade de suporte das mesmas expõe cada vez

mais a semi-ociosidade das terras, tornando-as vulneráveis à ocupação pelos

movimentos organizados dos trabalhadores sem-terra.

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Portanto o programa “soja no arenito” se inscreve no esforço de

conservação das estruturas agrárias que, ao invés de contemplar os camponeses, os

penaliza ao limite da diferenciação social. Os efeitos predatórios do direito de

propriedade ilimitado não se manifestam apenas nos solos degradados pela

ausência de práticas de conservação das pastagens, mas também no cerco à

reprodução autônoma do campesinato, do qual uma parcela se encontra submetida

a formas precárias de acesso à terra.

Isso é bastante evidente na cultura do algodão na região do arenito,

onde a mesma aparece como atividade típica de pequenos cultivadores. Entretanto,

lembramos que não é o algodão que está limitado aos camponeses, mas o contrário,

quando a posse precária da terra e os parcos recursos não lhes deixam muitas

opções. Assim, esse é um dos cultivos em que a presença de camponeses

arrendatários empobrecidos é marcante. No ano de 2001, nos 33 municípios

pesquisados a área cultivada foi de 2.093 hectares, envolvendo 172 cultivadores.

O caráter de cultivos itinerantes, condicionados à existência de

terras arrendáveis, os quais raramente ultrapassam dez hectares, evidencia a

vulnerabilidade daqueles que deles se ocupam. Via de regra, os cotonicultores são

camponeses sem terra expulsos para a cidade em um passado recente. Por não

terem um pedaço de terra para morar e dividir entre a lavoura comercial e as

atividades de autoconsumo, encontram-se no limite da proletarização.

Assim, o algodão tem sido o último recurso para rendeiros que têm

garantido a reprodução autônoma do trabalho, através do acesso à terra nessas

condições. Nesses casos, a sobrevivência passa a depender também da venda da

força de trabalho no campo ou na cidade, onde houver ocupação, pelo menos para

alguns membros da família.

Você pensa que só com o algodão dá para viver? Não dá não. Eu toco uns três alqueires por ano, mas a gente precisa fazer outras coisas para ganhar a vida. Eu tenho um ônibus para levar bóias frias para a usina, minha mulher também trabalha para fora. A vantagem do algodão é que não pode descuidar só quando vem as maçãs, aí é veneno toda semana. Do contrário, a gente consegue zelar e fazer outras coisas também. Pra colher eu já tenho as pessoas certas que me ajudam, é pouca coisa, não precisa de muita gente. O ano passado eu tirei 350 arrobas em um alqueire, vendi a nove reais a arroba, então quer dizer que mesmo tendo muito gasto, alguma coisa sempre sobra não é?85.

Como se pode observar, a possibilidade de combiná-lo com outras

85 O.: Tupinambá - Astorga.

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ocupações pode ser tomada como uma das explicações para a resistência dessa

lavoura. Além disso, há uma articulação comum entre plantio de algodão e reforma

de pastagens, o que explica a razão pela qual essa cultura tornou-se itinerante, tal

qual seus cultivadores, que em geral a cada dois anos tem que mudar de área.

Por outro lado, esse rodízio de terras de certa forma tem viabilizado

o cultivo, pois o custo do controle das pragas é diretamente proporcional às vezes

em que a mesma área é utilizada, sendo desejável a mudança a cada colheita. Não

podemos esquecer, que entre as lavouras temporárias citadas, essa apresenta um

dos mais elevados níveis de infestação, exigindo uma carga excessiva de veneno,

mesmo quando se toma por referência as demais, sabidamente dependentes de

agrotóxicos.

...além de não dar quase nada, tem o problema da intoxicação. Antes de iniciar o algodão, em todos os rios da região tinha peixe. Em seis anos, que foi o tempo da febre do algodão, não sobrou nada. Para você ter uma idéia, em cinco meses, que é o tempo que leva o algodão para estar pronto para a colheita, é preciso umas doze passadas de veneno. Na soja a média é duas. E o pior é que hoje os grandes plantadores de algodão estão pulverizando com avião...mas a gente vê que isso não é viável...isso mata tudo, passarinho, inseto, peixe...não sobra nada86

Nosso interlocutor, que já foi cotonicultor no passado, indica que a

baixa rentabilidade, aliada aos riscos do veneno, faz do algodão uma escolha de

poucos que possuem terra própria. Conforme vimos anteriormente, a escolha

desses tende a recair sobre o café, combinado com o arroz, feijão, milho etc.

Paradoxalmente, esse mesmo algodão é que permitiu a muitos camponeses a

transição da condição de camponeses rendeiros a camponeses proprietários, no

auge dessa cultura.

Não é por menos que a denominação ouro branco, alusiva ao

algodão, está tão integrada à história de alguns municípios norte paranaenses

quanto a do ouro verde, alusiva ao café. Bairros, estabelecimentos, empresas são

testemunhas de um tempo em que o algodão viera preencher a lacuna deixada pelo

café.

...tudo o que abria ia para a frente, porque todo mundo tinha dinheiro no bolso por causa do algodão. Qualquer criança de nove, dez anos apanhava algodão para livrar o dinheiro do seu doce...no tempo da colheita a cidade era uma ferveção. Depois que o governo começou a comprar de fora, a festa acabou, porque o algodão dava serviço para todo mundo. No lugar veio a soja e essa não precisa de gente, é tudo na máquina. Pra não morrer de fome, agora o pessoal

86 A.:Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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tem que ir todo ano para Minas, lá eles ficam enquanto tiver café para colher, depois voltam e ficam aí, tem gente que pede pelo amor de Deus para você dar um dia de serviço para eles, mas a gente também não pode, se for pagar, da roça não sobra nada...é perigoso da gente ficar até devendo.87

Esse relato nos remete a um quadro quase nostálgico, retratado por

agricultores que viram o algodão dinamizar a economia local, sobretudo a das

cidades pequenas da região, muitas das quais têm registrado perda absoluta da

população nos últimos anos, em vista da estagnação em que se encontram. Nesse

caso, a interferência das políticas públicas é por demais evidente, pois, no caso do

algodão, o estopim da crise está diretamente relacionado à opção do governo

brasileiro pela importação dessa matéria-prima a partir de meados dos anos

noventa, o que praticamente inviabilizou a sua produção a preços remuneradores

aos pequenos cultivadores.

A menção ao fato de que todos tinham dinheiro remete a uma

situação não muito distante em que a renda circulava localmente, uma vez que a

utilização de mão-de-obra é intensiva nessa cultura. Por ser o componente

majoritário na geração da renda, os trabalhadores, bem ou mal, eram contemplados

na partilha do excedente. Com a emergência das lavouras mecanizadas, nas quais o

trabalho vivo é incipiente, praticamente todo o excedente passou a ser canalizado

para os complexos industriais e comerciais, de modo que tais culturas muito pouco

contribuem para a movimentação da renda local.

Para os expulsos do campo, esse processo implicou na mais

completa precarização das condições de existência, justamente pela negação do

trabalho. É por essa razão que, enquanto o componente básico da cultura cafeeira

for o trabalho, a migração pendular atuará como válvula para a pressão social que,

nessas cidades, possui vínculos estreitos com os processos agrários.

A extensão desse empobrecimento é ilustrada pela situação

daqueles que outrora empregavam dezenas de trabalhadores na colheita e hoje só

insistem na cotonicultura se não houver muitas alternativas. E para que não paire

dúvidas de que se trata de transferência de renda, basta lembrar que, nos últimos

anos, a produtividade do algodão dobrou, sem que os produtores conseguissem

sequer manter o nível de renda do passado88.

O algodão deu, mas depois tirou dobrado da gente, porque nós tivemos que vender vinte e quatro alqueires de terra, além de trator e

87 M.: Água Canabi - Pitangueiras. 88 Em julho de 2002, o preço médio da arroba de algodão ao produtor no Paraná era de R$ 10,30, sendo a média de preços dos últimos cinco anos de R$ 8,41, o que mostra a estagnação dos preços.

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caminhão para pagar dívidas. De 95 para cá ficou difícil, nunca mais conseguimos nada com a agricultura. O pior é que na nossa região o pequeno não pode plantar soja, porque como vai fazer se não tem maquinário para plantar, nem para colher? O ano passado nós ainda tentamos. Arrendamos 50 alqueires para plantar algodão, mandioca e milho e não virou nada. Esse ano eu falei pro meu irmão: rapaz, eu não vou plantar, eu não estou devendo para ninguém, então eu vou ficar quieto.89

Como se pode observar, as dificuldades relatadas não se limitam ao

algodão, embora esse tenha causado grandes prejuízos a partir de meados dos anos

noventa, em razão de três fatores combinados: importação para forçar a queda dos

preços, aumento dos custos e quebra das safras.

Entre os camponeses, a lacuna deixada pelo algodão foi preenchida,

em grande medida, pela mandioca industrial. Seu cultivo registrou rápida expansão

no final dos anos noventa em vários municípios da região estudada, sendo decisiva

para essa expansão a crise provocada pela decadência do ciclo algodoeiro, a qual

deixou a maior parte dos camponeses endividados e ávidos por uma alternativa que

pudesse se ajustar tanto às condições produtivas de seus sítios, quanto às

condições econômicas. E nesse sentido, a mandioca surgiu como cultivo alternativo.

Além de se tratar de uma cultura altamente adaptada aos solos

arenosos, os custos de implantação eram baixos, restritos praticamente à

preparação do solo; as mudas podiam ser produzidas internamente e, salvo ataques

esporádicos, praticamente era dispensável a utilização de insumos.

Some-se a isso o aumento da procura pelo produto em razão da

instalação de pequenas farinheiras na região, além de uma multinacional do setor

em Paranavaí, município situado à oeste da região estudada. Entretanto, os preços

remuneradores passaram a atrair grandes plantadores, tornando-se cada vez mais

comum lavouras de 100 ou mais hectares ao lado das pequenas lavouras

camponesas.

Obviamente essa expansão da oferta passou a interferir nos preços,

que ano a ano foram caindo, concomitantemente a uma crise no setor industrial,

que se refletiu no fechamento da maior parte das pequenas farinheiras. Nesse

contexto, a referida multinacional se fortaleceu, tornando-se praticamente a única

alternativa de mercado para aqueles que insistiram em mantê-la.

Em 2001, a área ocupada por essa cultura era de 3.969 hectares,

envolvendo 622 cultivadores. Diante da colheita de 426.300 toneladas, os preços

despencaram, chegando a R$ 30,00 a tonelada entregue na indústria, o que

89 G.: Água da Gruta - Itaguajé.

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representa menos de um terço do que fora praticado nos anos anteriores.

Entretanto, os custos no período aumentaram, tanto com a proliferação das pragas

em virtude da própria disseminação da cultura quanto pelo aumento dos custos de

preparação do solo e transporte.

Nós resolvemos colher, porque falaram que a fábrica estava pagando trinta e cinco reais e já que plantou tem que colher. Hoje a gente começou cedo, arrumou o caminhão e até gente para ajudar. Mas já tivemos que parar, porque o caminhão chegou lá e era trinta reais. Não paga nem a diária e o carreto. É melhor deixar na terra.90

Como se pode observar, a mandioca industrial também deixou de

ser alternativa para os camponeses, a não ser que a migração dos capitalistas para

outras atividades venham a implicar na redução da oferta. É com essa possibilidade

que contam aqueles que continuam plantando.

Essa situação evidencia o quanto a avaliação dos fatores produtivos

internos está em primeiro plano entre os camponeses, a despeito de uma

conjuntura de mercado que obrigatoriamente mediará o resultado de seus esforços.

Paradoxalmente, no mesmo mês em que registramos a desistência de uma família

de continuar com a colheita, fotografamos camponeses com a terra preparada e já

cortando as ramas para o plantio de mandioca, como se poderá observar a seguir.

Foto 9 – Para plantar

Desses eventos é possível extrair elementos que convergem para a

lógica camponesa, senão vejamos: por mais contraditório que possa parecer, o fato

90 H.: Água da Gruta - Itaguajé.

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de uma família abdicar da colheita e a outra iniciar o plantio revelam um

investimento baseado na referência do tempo camponês: um tempo medido pelas

possibilidades e riscos de sobrevivência da família.

Vimos anteriormente que o fato da família não ter tido sucesso nas

colheitas anteriores, mas também não ter tido insucessos, esse último medido pela

ausência de dívidas, a conduz à seguinte escolha: “ficar quieto”. Essa expressão, tão

comum entre os camponeses, não expressa a abdicação dos cultivos, mas sim dos

investimentos mais pesados. Dessa maneira, as lavouras comerciais, que implicam

custos reais e retorno incerto, ocasionalmente podem ser sacrificadas91 para que os

recursos possam ser direcionados às atividades que, além de garantir a

sobrevivência da família, não interferem na preservação dos meios de produção tão

caros à sua autonomia.

É nesse sentido que identificamos a mesma lógica em atos opostos:

a mandioca é uma cultura bastante versátil, pois, apesar de estar pronta para a

colheita no primeiro ano, ela pode permanecer na terra por dois anos, sem que a

qualidade seja comprometida. Aliás, esse tempo maior de espera pela colheita pode

propiciar o aumento da produção, em virtude do encorpamento das raízes. Assim,

desistir da colheita não significa destruir a lavoura, mas jogar para o futuro os

riscos e possibilidades.

Todavia, não se pode deixar de considerar os desdobramentos dessa

decisão: sabemos que um dos limites para a reprodução camponesa é a escassez de

terras e, nesse caso, pode-se afirmar que num ciclo anual, a terra não proporcionou

qualquer espécie de renda. Mesmo havendo um aumento da produção, este é

desproporcional aos rendimentos passíveis de serem extraídos em duas colheitas.

Dessa maneira, prescindir de uma parte do sítio que poderia ser ocupada com

outras culturas tem reflexos diretos nos níveis de bem-estar da família.

A escassez de terra, portanto, que já se constitui um empecilho à

reprodução camponesa, ocasionalmente remete a desequilíbrios nem sempre

passíveis de serem solucionados com base nos recursos internos. Em geral, são

momentos de frustração de safras que obrigam os camponeses a lançar mão de

outros recursos que impliquem em incremento de renda.

É nesse sentido que a venda da força de trabalho se inscreve no rol

de estratégias de preservação da condição camponesa, uma vez que nem todos

conseguem implantar culturas diferenciadas. Como vimos, há limitações internas,

91 Sacrificadas não no sentido de abandonadas ou destruídas, mas no sentido de exclusão em um futuro próximo.

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derivadas do nível de investimento que novas atividades requerem, bem como

externas, em virtude da dificuldade de colocação dos produtos no mercado, a um

preço que garanta o mínimo de retorno.

De qualquer forma, a resistência camponesa tem-se manifestado

nas diversas estratégias adotadas para superar as dificuldades e continuar se

reproduzindo, a despeito dos embustes do mercado e da escassez de terra. Assim,

entre a heterogeneidade de formas passíveis de produzir renda, destacamos a

fruticultura, além do sistema de integração já mencionado.

Há uma enorme variedade de frutas cultivadas pelos camponeses:

desde as de ciclo curto, como melancia e maracujá, até culturas permanentes,

como uva, manga, laranja, caqui etc. Na área de estudo, em 2001 havia 3.081

hectares cultivados com frutas comerciais, respectivamente a cargo de 940

produtores.92

A fruticultura é uma atividade que potencializa os fatores

produtivos, porém exige certos níveis de rendimento. As frutas de ciclo temporário

demandam gastos recorrentes com a sua implantação e manutenção. Via de regra,

esses são bastante elevados, por causa das quantidades elevadas de insumos que

requerem, sobretudo adubo e fungicidas. O fato de não haver produção o ano todo

explica a razão das mesmas estarem articuladas com outros cultivos cuja época de

colheita não coincide.

Quanto aos cultivos permanentes, deve-se considerar, conforme

análises anteriores, que o tempo de implantação dos pomares e espera da primeira

colheita é longo, exigindo dos camponeses um esforço maior na diversificação ou

até mesmo nas formas de obtenção de renda externas à propriedade, como o

assalariamento temporário.

Nesse caso, ao adentrarem a fase produtiva, novas demandas lhes

são colocadas. Por tratar-se de culturas cuja produção é de época, estas exigem um

esquema de comercialização ancorado no grande mercado atacadista, sejam os

grandes supermercados, sejam as Centrais de Abastecimento (CEASA), pois não é

possível estabelecer uma clientela como o fazem os olericultores, cuja produção se

estende ao longo do ano.

É por essa razão que a fruticultura é viabilizada basicamente nos

sítios em que a diversificação é grande. Alguns camponeses podem até ser

classificados de fruticultores, pois combinam variedades de frutas que asseguram

92 Dados extraídos do Relatório Realidade Municipal – EMATER, 2001.

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colheitas, logo renda, o ano todo. Outros, porém, recorrem às mais variadas

combinações de atividades comerciais combinadas com as frutas, incluindo-se

desde o cultivo de cereais até a pecuária leiteira. Evidentemente, o tamanho da

propriedade é o limite. Via de regra, considera-se que quanto menor o sítio, maior a

necessidade de recorrer às alternativas que impliquem na intensificação do uso da

terra e da força de trabalho.

Na perspectiva do cultivo do solo, a potencialização máxima desses

dois fatores se materializa na olericultura. Em 2001, eram 1.868 hectares voltados

à sua produção comercial, em 1.697 unidades produtoras. Como se pode observar,

trata-se de uma atividade de pequenas dimensões, pois em média, a área era de

pouco mais de um hectare por unidade de produção.

Assim como em todas as atividades destacadas anteriormente, a

implantação dessa se define em função de um conjunto de variáveis internas a cada

grupo familiar. Em alguns casos, a olericultura aparece em meio a uma grande

diversificação. Tivemos a oportunidade de encontrar em uma única propriedade a

sua combinação com outras seis atividades, todas com destinação parcial ou

integral ao mercado. Dessas, pode-se afirmar que quatro são fundamentalmente

comerciais: avicultura e sericicultura no sistema de integração, cafeicultura e

fruticultura. Além dessas há a suinocultura e pecuária leiteira, inseridas no circuito

do excedente.

A gente não pode ficar preso a uma coisa só, porque se não der nada, como é que vai se manter? O sítio é pequeno então tem que fazer um pouco de tudo. Tem um pouco de café, vaca de leite, uns porquinhos e mais uma granja e um barracão de bicho-da-seda. Também tem verdura e acerola que a gente entrega no CEASA de Maringá. É pouco, então junta os vizinhos que também têm, para compensar o carreto. Bem dizer aqui tem de tudo. Quando um filho reclama, porque o serviço é muito e dinheiro a gente quase não vê, eu falo que não tem nada melhor que essa vida livre, onde a gente é patrão da gente mesmo.93

A partir desse relato nos é possível verificar que a diversificação

destacada está quase que inteiramente ancorada em atividades intensivas, que

demandam pouca terra. A exceção ficaria a cargo do gado leiteiro, mas aqui há que

se fazer observações. Dentro dos sítios camponeses que não têm a pecuária leiteira

como principal atividade comercial, sua presença é um indicativo de uma situação

mais estável da família.

93 V.: Água do Boiadeiro - Munhoz de Melo.

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Para entendê-la é preciso levar em conta a geografia da região,

materializada na integração entre condições do terreno e malha fundiária. Como

vimos, nos projetos originais das glebas comercializadas, a maior parte dos sítios foi

cortada em faixas longitudinais, delimitados na cabeceira pela estrada e no fundo

pelos rios ou ribeirões. Via de regra, há uma transição do perfil das vertentes, pois

na proximidade dos cursos d’água, o terreno se mostra bastante acidentado,

portanto impróprio aos cultivos. Ainda que sejam observadas as restrições impostas

pela legislação no que tange às matas ciliares, é possível destinar o restante para

criações de grande porte.

Na pesquisa de campo, pudemos constatar que na existência dessas

condições, é quase que obrigatória a presença de algumas vacas de leite. Mantê-las

representa a potencialização máxima das condições produtivas do sítio. Conforme

já demonstramos anteriormente, os camponeses proprietários, por menor que

sejam as áreas, procuram destinar uma parte aos pastos, pois isso diminui o custo

de reprodução das famílias e aumenta os recursos disponíveis para giro, caso

aconteça algum imprevisto.

Ao mesmo tempo que são confinadas a uma área que “não dá para

outra coisa”, há o provimento diário de leite, sem contar as crias anuais. Mesmo

que sejam poucas cabeças, o incremento de renda é notável: além da sobrevivência

direta, o esterco se presta à fertilização da lavoura e os bezerros se constituem uma

espécie de poupança dos camponeses.

Dispor de gado é um signo de situação mais equilibrada. Aos que

detêm mais terras, e isso raramente ultrapassa o limite de 30 hectares por família,

é possível combinar procedimentos que asseguram tanto uma maior produtividade

do rebanho quanto um investimento menor na fertilidade do solo. Mantém-se assim

um ciclo criações-lavouras que tão bem ilustra a irracionalidade de separarmos a

agricultura da pecuária, quando tratamos de explorações camponesas. Essa divisão

é adequada para as unidades capitalistas onde a economia de escala dificulta,

quando não impede, a articulação entre as duas atividades.

Via de regra, a sua ausência nos sítios se explica a partir de duas

situações extremas: total falta de recursos financeiros, ao nível do

comprometimento das atividades de autoconsumo da família ou taxa de

especialização que compensa a aquisição de seus derivados no mercado.

No sítio em questão, não se pode perder de vista que a pecuária se

insere numa articulação mais ampla, a começar pela forragem (cama de frango)

utilizada no aviário: uma parte é destinada para estercar o café, cultura que

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permite uma excelente conexão com a sericultura, pois os ciclos de intensificação

do trabalho são complementares – a colheita do café coincide com a entressafra do

bicho-da-seda.

O restante da cama de frango é utilizado para complementar a

alimentação do rebanho, já que há pouco pasto. Favorecidos pela localização

geográfica, um tanto próximos da cidade, os camponeses não têm dificuldade em

vender o leite direto para os consumidores, deduzida a parte do “gasto”.

Esses mesmos consumidores acabam se constituindo na freguesia

que também consome a carne suína, sempre que as têm, já que não se trata de

uma criação de escala. Comumente, no momento em que há animais prontos para

o abate, são feitas as encomendas, de modo que a carne já é preparada de acordo

com os pedidos.

Por outro lado, a alimentação dos porcos é basicamente garantida

pela olericultura, que produz muitas sobras. Por fim, a mesma estrutura de

transporte e comercialização é aproveitada simultaneamente pela olericultura e pela

fruticultura. Por envolverem pequenas quantidades e baixo valor monetário, essas

duas últimas atividades se sustentam na ajuda mútua entre os vizinhos, que

repartem o custo do frete. No próximo capítulo, daremos a devida atenção a essa

prática.

Sabemos, no entanto, que esse nível de diversificação, em que a

olericultura é apenas uma entre tantas atividades, não se aplica a todos os sítios

camponeses. São três os fatores que explicam sua viabilidade: família extensa,

propriedade não muito pequena e razoável nível de rendimentos.

Há que se ponderar que nos casos de extrema exigüidade de terras,

pouco resta em termos de alternativas que assegurem a sobrevivência da família.

Considerando a capacidade de absorção interna da mão-de-obra familiar, a

olericultura é, sem dúvida, a principal delas.

Cumpre destacar que a exigüidade aqui destacada pressupõe

propriedades muito pequenas, que os próprios camponeses convencionam

denominar chácaras. Na pesquisa de campo, verificamos a relutância generalizada

dos mesmos em classificarem como sítios, propriedades de menos de cinco

hectares. É importante frisar que aqui está sendo operada uma conversão, já que a

unidade de referência comum entre eles não é o hectare, mas sim o alqueire94.

Não obstante, tais termos estão carregados de significado, e isso

94 Um alqueire equivale a 24.200 m2 e um hectare equivale a 10.000 m2.

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pode ser verificado na pesquisa, nas ocasiões em que o termo chácara foi evocado.

Quando inquiridos sobre a diferença, a essência da resposta se manteve: os sítios

são concebidos como propriedades que comportam a reprodução da família com

base em atividades tradicionais, como lavouras e criação de gado. Por outro lado, a

designação chácara foi condicionada a propriedades que interditam o exercício da

tradição produtiva camponesa.

Em última instância, essa diferenciação transcende o uso

econômico da propriedade, atingindo as possibilidades concretas de recriação do

campesinato. Não é sem razão que, entre as auto denominações encontradas, o

conceito de camponês se manifesta no termo sitiante, ou em sua variação

vocabular, situante.

...eu fui criado na fazenda, onde a gente era porcenteiro... na verdade, na verdade nós temos sítio aqui faz oito anos, então nós trabalhamos quase 20, tocando terra arrendada, vivendo na terra do sogro, pagando porcentagem para ele... Então situante mesmo, agricultor só faz oito anos... então eu acho que nós já fizemos bastante em oito anos.95

Assim, podemos observar que “situante” é aquele que ultrapassa a

condição camponesa precária, que se considera situado por alcançar a autonomia

representada pela propriedade da terra. Um “situante” é um sujeito cuja

representação de si próprio não exclui o lugar, ou seja, ele está de tal forma preso à

terra que se situa, que não existe separado dela.

Por outro lado, embora nenhum dos entrevistados tenha se

autodenominado chacareiro, a chácara freqüentemente evoca condições mais

precárias de reprodução camponesa. Portanto, nesse termo está subsumida a

negação das condições plenas de reprodução autônoma.

Vimos, no entanto, que a denominação enfática da propriedade se

opõe completamente ao termo que remeteria ao seu proprietário. Ao não

conceberem o rótulo de chacareiros, os camponeses assumem a sua condição de

classe, sem deixar de exprimir o quanto a pouca terra os afeta.

Dessa maneira, essa que poderia parecer uma simples questão de

nomenclatura é na verdade uma questão conceitual, que emite sinais de que não

basta aos camponeses exprimirem resistência no plano econômico: essa é visível

nas “chácaras” que garantem a sua sobrevivência. Trata-se de um esforço de

manifestarem resistência no plano político, resistência essa instituída nos liames da

95 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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consciência de classe.

Vimos que a olericultura tem-se constituído uma via de recriação

em porções de terra exíguas, cujo equivalente não comporta muitos dos quintais de

residências urbanas de luxo. Na pesquisa de campo, pudemos captar, na história

dos olericultores, o quanto isso é duplamente significativo. Se a permanência da

condição camponesa nessas condições já é uma expressão inconteste de sua

recriação, o que não dizer ao se constatar que a maior parte das unidades

estudadas é um registro concreto do processo de diferenciação às avessas do que

preconizaram Lênin e seus adeptos!

Em outras palavras, praticamente todas as minúsculas

propriedades que não comportam outra atividade senão a olericultura foram

compradas pela própria família que a empreende atualmente. Isso não mudaria os

fatos se não considerássemos que, salvo exceções, seus proprietários até um

passado recente trabalhavam em terras alheias como porcenteiros ou até mesmo

como empregados.

Eu sempre trabalhei para os outros, agora está melhor, quer dizer, agora a gente faz e desmancha. Está muito melhor... se tivesse mais um alqueire, não precisava de mais nada nessa vida.96

Esse relato não deixa dúvidas de que se há um processo de

diferenciação, o mesmo não se dá em um único sentido. Trilhar o caminho inverso

tem um sabor de conquista que só os camponeses podem exprimir. Ao afirmar que

mais um alqueire de terra seria o suficiente, nosso interlocutor apontava para um

projeto de expandir o número de bananeiras, o cafezal, precisamente 9.600 pés

combinados com a cultura intercalar de milho e mandioca, além da horta,

confinados em menos de meio alqueire de terra, uma vez que dessa parte deve ser

deduzida a área ocupada com duas casas, a sua moradia e a de um filho casado,

além de um celeiro, um pomar doméstico e as áreas de circulação.

Tomamos esse caso para demonstrar que números e medidas nada

significam fora do contexto em que são gerados. Outrossim, o mesmo pode ser

tomado para ilustrar a existência de olericultores fora do circuito comercial dos

CEASAS.

Trata-se de camponeses que vendem a sua produção diretamente

aos consumidores. No caso em questão, os produtos são entregues de porta em

porta, onde o contato direto acaba gerando uma freguesia fixa que, comumente, faz

96 D.: Centenário do Sul.

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suas encomendas. São estratégias que, ao final, implicam em incremento de renda,

por lhes oportunizar uma programação em termos de volume a ser colhido e

freqüência dos deslocamentos para a cidade, poupando trabalho e recursos.

Outro sistema de venda direta aos consumidores é viabilizado pelas

feiras livres. Em relação ao primeiro, a principal desvantagem dessa se deve à

dificuldade de prever o consumo, já que não se trata de consumidores fixos. Ainda

que esses camponeses também consigam constituir uma freguesia, os laços são

mais frouxos, pois vários fatores podem interferir na ida desses consumidores à

feira e, conseqüentemente, interferir negativamente nas vendas. Isso é motivo de

perdas freqüentes de mercadorias que, por serem altamente perecíveis, não

admitem qualquer tipo de estocagem. Enfim, os prejuízos só não são maiores se

transformados em alimentos aos animais, daí o esforço dos camponeses em mantê-

los.

O fato das verduras apresentarem baixo valor monetário muitas

vezes torna o transporte automotivo proibitivo. É por essa razão que a carroça

ainda é muito utilizada pelos camponeses que comercializam diretamente a sua

produção. No entanto, aquilo que comparece como renda adicional, pela economia

com o transporte é, em última instância, uma sobrecarga maior dos trabalhadores.

Isso porque o maior tempo de deslocamento exige que nos dias de feira a família

comece o seu dia de trabalho mais cedo e o termine mais tarde.

Na pesquisa de campo, encontramos uma família que se desloca

vinte quilômetros, entre ida e volta, duas por semana, por ocasião da feira. Além

disso, apenas uma pessoa pode ir de carroça, em virtude do volume transportado.

Já faz 14 anos que nós mexemos com horta, mas está cada vez mais difícil, porque tem mais gente vendendo e menos gente comprando. Na horta não tem domingo nem feriado...todo dia tem que trabalhar. E para ir para a feira é aquela vida, eu vou de carrinho e ele vai a pé ou de bicicleta... quando chega lá, já está cansado. Se a gente tivesse um carro, seria bem mais fácil.97

O relato nos permite inferir que a atividade, assim como a maior

parte daquelas com que se ocupam os camponeses, proporciona parcos

rendimentos. E isso reproduz um ciclo de sobretrabalho e diminuição do bem-estar

da família, conforme ficou evidenciado.

Por outro lado, é importante lembrar que a transferência da renda

camponesa nem sempre segue a via clássica; no destaque, a transferência é feita

97 L.: Água da Jupira - Colorado.

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diretamente para a sociedade. É por essa razão que concordamos com Oliveira

(1994, p. 49-50) ao postular uma estratégia defensiva, no sentido de reduzir ao

mínimo sua dependência externa, como possibilidade de um trilhar menos

aviltante.

Não resta dúvida que, diante da situação patrimonial de muitos

casos aqui destacados, de propriedades com menos de dois hectares, preconizar a

autosuficiência interna não passa de quimera. O impasse está, pois, na posse da

terra e é exatamente a sua sobrevivência nela, mesmo em condições tão adversas,

que evidencia a extraordinária capacidade de resistência, que tanto é econômica

quanto política. Não se curvar aos ditames do capital, mesmo que circunstâncias

como essas sugiram que a proletarização talvez fosse menos penosa, é uma

demonstração inequívoca de que o capitalismo efetivamente não conseguiu romper

o invólucro que sustenta a recriação da classe camponesa: o sonho de autonomia.

E é essa mesma autonomia que abre brechas, possibilitando o

fortalecimento de frações da classe camponesa. Nos deparamos com uma família

que, após passado da condição de empregados para camponeses autônomos e daí

seguir uma trajetória muito parecida com a mencionada, conseguiu adquirir um

veículo. A conseqüência mais imediata foi uma extraordinária ampliação do número

de consumidores. É isso que permite a sua manutenção, pois a diluição dos custos

é diretamente proporcional ao volume da atividade.98.

A posse do veículo oportuniza as vendas de porta em porta. Além

dos desdobramentos já apontados anteriormente, há que se considerar que o

dimensionamento da atividade pode ser mais objetivo, de tal forma que o cultivo

das variedades é definido na mesma proporção da demanda. Ou seja, a distribuição

das verduras na horta obedece ao critério da aceitação pelos consumidores. Quando

esses consumidores são fixos, é possível traçar um perfil da demanda muito

próximo ao consumo real, sendo raro o retorno com mercadorias.

Sobrar não sobra. Eu nunca voltei para casa com verdura. A gente sabe mais ou menos quanto vai sair de cada coisa...mas sempre leva a mais... Quando às vezes encontra uma pessoa pobre, que a gente vê que tem vontade, mas não tem dinheiro para comprar, a gente dá.99

Esse relato mostra que, além da estratégia que organiza a sua

produção, nosso interlocutor manifesta um componente que é próprio da ética

98 As entregas são feitas em Lupionópolis, Guaraci, Porecatú e Centenário do Sul, município onde reside. 99 D.:Centenário do Sul.

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camponesa. Apesar de lidar com produtos que são a essência da sobrevivência da

família, os mesmos não incorporam o sentido estrito de mercadoria. Dar verduras a

quem não pode comprá-las, mesmo que seja um ato ocasional, indica que nosso

interlocutor está distante das práticas exclusive dos mercadores.

Outro aspecto que chama a atenção é a capacidade de lidar com a

diversificação em áreas absolutamente restritivas. O milho e a mandioca cultivados

no meio do café se destinam tanto ao consumo quanto à comercialização, assim

como as bananeiras, que se acham junto ao pomar. Esses três produtos integram a

cesta de produtos in natura comercializados juntamente com as verduras. O fato de

comercializar a mandioca já descascada, assim como o milho verde em espigas,

garante uma extraordinária valorização, considerando o sistema usual de

comercialização, baseado em sacas e toneladas.

A marca camponesa também se inscreve no circuito da produção.

Veremos adiante como os camponeses envolvidos com as mais diferentes lavouras

dispensam um tratamento diferenciado em relação aos cultivos de autoconsumo,

particularmente em relação à horta doméstica. Invariavelmente, aí não entra

veneno. A importância atribuída aos alimentos livres de agrotóxicos é a face oposta

do contato direto com as lavouras comerciais, nas quais o seu consumo parece ser

inexorável.

Na olericultura que ainda se sustenta sem a intermediação dos

capitalistas, a apropriação integral da renda pode dispensar as imposições da

produtividade, a qual, aliás, tende a ser majoritariamente canalizada aos próprios

circuitos capitalistas. Dessa maneira, o esforço em garantir uma produção orgânica

não revela qualquer aspiração no sentido de obter a certificação que atualmente se

constitui nicho de mercado, mas um costume de evitar ao máximo o uso de veneno,

para obter alimentos saudáveis, mesmo que nem sempre tão “bonitos” quanto os

“contaminados”.

É o que se pode depreender ao considerarmos o circuito em que

atuam esses olericultores. Seus consumidores possuem um padrão de vida que

atesta uma distância abissal em relação às demandas dos consumidores de

produtos orgânicos das médias e grandes cidades. No entanto, as verduras são

produzidas exclusivamente com adubo orgânico e o combate de pragas é feito

majoritariamente mediante técnicas naturais.

A cinza do fogão a lenha melhora o PH do solo e comparece como

importante aliada do controle biológico das pragas, sendo regularmente aplicada

sobre as variedades suscetíveis a ataques. Pés de fumo são plantados no meio dos

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canteiros para que o odor exalado evite a aproximação da maior parte dos insetos

disseminadores das pragas. Suas folhas são utilizadas na fabricação de um

inseticida natural que elimina as invasoras mais comuns da horta, como lagartas e

pulgões. Na foto seguinte, podemos ver um pé de fumo (à esquerda) dentro da

estufa repleta de variedades de verduras e legumes. Esta horta é cultivada sem

qualquer agrotóxico, sendo as verduras vendidas diretamente aos consumidores.

Foto 10 – Natural

Além disso, são mantidos rústicos minhocários para a produção de

húmus, que combinado com esterco bovino, garantem a fertilidade necessária ao

bom desenvolvimento das verduras.

Assim, os custos da atividade são baixos, basicamente restritos à

aquisição das sementes, além da manutenção das estufas. Somadas ao transporte

das verduras, essas são determinantes na elevação dos custos da atividade, já que

a cada dois anos é necessário substituir o plástico, que acaba danificado pela ação

do sol e do vento.100

Dessa maneira, parece não haver dúvidas de que a manutenção da

olericultura nesses termos é possível face ao corte de custos, tanto no que diz

respeito aos agrotóxicos quanto ao transporte e à pequena margem de perdas. Não

obstante, o sistema assim descrito não pode ser generalizado entre os camponeses

que se ocupam da olericultura, mas sim àqueles que apresentam uma escala menor

de produção, o que igualmente exige a diversificação da produção e venda direta

100 Em junho de 2001, a renovação de cada estufa custava cerca de R$ 400,00.

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aos consumidores. Trata-se das raras ocasiões em que a renda da terra é

integralmente retida pelos mesmos.

A outra face da olericultura tem como principal diferencial a

ausência da comercialização direta; nessa, os camponeses se encontram enredados

num circuito mercantil altamente monopolizado por atacadistas, cuja base de

atuação são os CEASAs e, de forma menos expressiva, as redes de supermercados

das cidades maiores, visto que nas pequenas a comercialização das verduras se dá

basicamente nas feiras livres ou pequenas mercearias.

A efetiva presença de intermediários no setor olerícola talvez seja a

melhor evidência da mediação perversa do capital comercial na produção

camponesa. A alta perecibilidade desses produtos elimina qualquer possibilidade de

jogar com o mercado, no sentido de conservar a produção até que os preços

garantam um patamar de rentabilidade satisfatório.

Dessa maneira, independentemente do valor praticado pelos

comerciantes, uma vez chegado o momento da colheita, não há nada que possa ser

feito para pressionar por melhor remuneração. Restam duas alternativas: realizar a

colheita e entregá-la de acordo com a oferta corrente ou perdê-la na roça.

Assim, nos momentos em que as condições gerais da produção são

propícias, os atacadistas conseguem atuar com tamanha tranqüilidade no setor,

que acabam pagando aos camponeses preços muitas vezes inferiores ao custo da

produção. Lembramos que aqui estamos nos referindo aos custos monetários, posto

que os camponeses comumente não incluem o trabalho familiar nesse cálculo.

O preço está relacionado com a oferta. Tem mais coisas no mercado do que as pessoas podem comprar. O que todo agricultor quer é um aumento de preço daquilo que eles têm para vender, mas pode esquecer, os preços não vão subir... se duvidar, vão baixar ainda mais. O que o agricultor tem que fazer é se virar, arrumar um jeito de vender aquilo que tem mais valor, vender direto para as pessoas que vão comer aquilo. O atravessador não aceita ganhar pouco, é por isso que nada tem valor para aqueles que produzem. Isso não vai mudar... 101

Como se pode observar, os camponeses estão familiarizados com os

mecanismos do mercado, bem como com a ganância daqueles que se interpõem

entre eles e os consumidores. Ao evocar a necessidade de escapar dos mesmos,

nosso interlocutor explicita com toda clareza o motivo dos preços não subirem: os

atravessadores não se satisfazem com pouco.

101 J.: Água do Monjolo - Centenário do Sul.

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Conhecem também a razão da “sobra” de mercadorias, tão comum

para aqueles que se ocupam da olericultura. Os camponeses sabem que essa

situação, conhecida como “enchente”, exprime um flagelo para os produtores, que

são premidos a destruir a produção, perdendo absolutamente tudo o que fora

investido em termos materiais e humanos. Por fim, sabem que está sobrando

porque os rendimentos da maior parte das pessoas que vivem nas cidades são

incompatíveis com os preços impostos por aqueles que “não aceitam ganhar pouco”.

A denominada “enchente” expressa circunstâncias de crise

profunda nas unidades camponesas, pois não é possível prever com antecedência o

que vai acontecer com as mercadorias enviadas ao CEASA. Assim, o fato da

olericultura estar assentada na utilização intensiva dos fatores produtivos, em

alguns casos vitais para que a autonomia seja mantida, não torna mais amena uma

de suas características primordiais: o alto risco.

E o risco se manifesta na permanente ameaça de perda da

produção, menos por fatores climáticos do que pela força dos oligopólios. Muitas

vezes, os camponeses se submetem a entregar a produção a um preço até mesmo

inferior ao do frete, fazendo-o para diminuir o prejuízo.

Nós tivemos que passar o trator em cima de quase 70.000 pés de repolho. Só de semente, a gente tinha gasto 390 reais. Quando chegou lá no CEASA, tinha dado enchente....para cada dúzia, que devia dar uns 30 quilos, só estavam pagando 0,70 centavos. Nós ainda tivemos que tirar 60 reais do bolso para pagar o carreto. Então para não perder ainda mais, passamos a grade em tudo. Isso é muito ruim, porque além do prejuízo que a gente já levou, tem que esperar um pouco para poder plantar outra coisa porque o repolho na terra fermenta....então é prejuízo dobrado...102

Pudemos verificar in loco os sinais desse flagelo instituído pela

ganância capitalista. Ao chegarmos a uma comunidade, à qual pertence nossa

interlocutora, encontramos, além da sua, mais duas roças destruídas, como mostra

a foto seguinte: da mesma forma, os preços praticados no CEASA não cobriam os

custos do frete.

Nessa plantação havia cerca de 20.000 pés de repolho, destruídos

nas vésperas de nossa visita. Pertencia a uma família de porcenteiros, relação

bastante disseminada na comunidade visitada. Perder a lavoura nessas condições

fere profundamente a manutenção dessas famílias, uma vez que a exigüidade de

terras não comporta qualquer cultivo para o autoconsumo nem criações. Nem

mesmo galinhas é possível criar: elas estragariam a plantação.

102 B.: Bairro dos Moreiras - Tamarana.

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Foto 11 – Repolho perdido

O fato de não ter animais que possam “aproveitar” pelo menos um

pouco dos alimentos que não puderam ser comercializados torna a situação mais

agressiva para os camponeses, cuja lógica é completamente avessa ao desperdício.

Quando se trata de alimentos em perfeitas condições de consumo, eles parecem não

se conformar.

Dá uma revolta ver a lavoura nessa situação. Se todo mundo tivesse comida, talvez a gente não incomodava tanto. Mas enquanto nós temos que tombar a horta, vai num mercado e o repolho que eles não querem comprar nem por um real a dúzia, lá está custando quase isso por quilo. Mas isso veio antes de Cristo, não é? Ele não falou que era mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um rico se salvar? São esses ricos que querem tudo para eles e não tem dó de ninguém...103

O fato de estarem distantes dos mercados consumidores contribui

para que a situação chegue a esse limite. Na comunidade destacada, praticamente

todos os camponeses são olericultores, de modo que não há com quem distribuir a

produção que o mercado não absorve. Ao serem inquiridos se não era possível doá-

la, ao invés de destruí-la, eles nos explicaram que o fariam sem qualquer embaraço,

porém os necessitados, que em sua visão comparecem como legítimos depositários

de um trabalho que nem pode ser classificado de gratuito, em face do investimento

monetário ali contido, não teriam condições de chegar até eles.

Da mesma forma, eles nos explicaram que a comercialização direta

é proibitiva. Primeiro porque são raros aqueles que possuem veículo próprio e a

distância e o tempo que a mesma demandaria é incompatível com o pagamento de

frete. Além disso, trata-se de uma produção especializada, em que a diversificação

103 R.: Bairro dos Moreiras – Tamarana.

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cedeu lugar à quantidade. Isso igualmente inviabiliza a comercialização direta.

Nesse caso, a produção em quantidade e de reduzida variedade

torna-se um imperativo da inserção no esquema de comercialização do CEASA, cujo

sentido são transações envolvendo um volume bastante grande das respectivas

hortaliças. Além disso, é bom lembrar que cada situação, em termos de mão-de-

obra familiar e recursos materiais, acaba interferindo na decisão sobre o que

cultivar. Esses são alguns dos fatores que acabam conduzindo os olericultores para

a especialização da produção.

À mercê do mercado, há pouco o que fazer nessas circunstâncias. A

foto seguinte mostra uma lavoura de abobrinha, estimada em 500 caixas de 25

quilos cada, igualmente destruída. Pelo pouco que conseguiram colocar no CEASA,

receberam três reais por caixa. Ironicamente, no exato dia em que fotografamos a

abobrinha destruída na terra, três supermercados por nós visitados em Londrina a

comercializavam a um preço que variava entre R$ 1,10 e R$ 1,37 por quilo104.

Foto 12 – Abobrinha tombada

A despeito das demonstrações inequívocas das dificuldades

enfrentadas pelos olericultores, é necessário lembrar que não se trata de um fato

novo, o que poderia sugerir que esses não resistiriam à mediação predatória do

mercado. Tamarana se tornou importante pólo do setor olerícola da região, por

agregar características que a favorecem tanto pelo aspecto físico quanto pela

localização. Por estar situada a maiores altitudes, apresenta temperaturas bem

mais baixas ao longo do ano, o que favorece por demais a olericultura. Além disso,

há maior quantidade de terras impróprias para a mecanização, face à declividade

104 Os supermercados visitados foram: Atacadão, Super Muffato e Carrefour.

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do terreno e presença marcante de solos litólicos, terras essas desvalorizadas no

mercado fundiário. Além disso, dista 60 quilômetros de Londrina, maior mercado

consumidor da região.

Esses fatores têm permitido não só a recriação camponesa, como a

recriação com base na autonomia conferida pela compra da terra própria. As

propriedades da maior parte dos olericultores não ultrapassam cinco hectares,

sendo a maior parte delas comprada pelos próprios, muitos dos quais trabalhavam

como empregados ou até parceiros nas hortas do entorno.

Por outro lado, aqueles que possuem um pouco mais de terra

continuam mantendo o esquema de parceria, no qual entram com a terra e as

famílias contratadas entram com o trabalho. As despesas da produção são

deduzidas e a parte restante é dividida. Apesar de todos os percalços, os parceiros

conseguem se manter porque não há qualquer custo com moradia, além de

conseguirem reduzir os custos da alimentação com os produtos cultivados.

Quanto àqueles que os empregam, a maior parte também está

envolvida com a olericultura juntamente com a família. Porém, já possuem maiores

rendimentos, primeiro porque a área maior permite a utilização das partes mais

acidentadas para pastagem. A presença do gado permite absorver melhor essas

situações em que a produção não consegue ingressar no mercado.

É por essa razão que estes já desenvolvem a atividade em melhores

condições. Possuem caminhão para o transporte e até mesmo “pedra”105 no CEASA

de Londrina. Embora isso não elimine os custos, certamente os reduz, o que lhes

garante mais estabilidade na atividade. São essas, portanto, as múltiplas faces da

olericultura, a qual se encontra envolta num círculo que se reproduz

continuamente.

Enquanto alguns empobreceram com a atividade, abandonando-a

quando a área disponível o permitia, outros transgrediram as barreiras da

proletarização, assumindo a condição autônoma exatamente por se dedicarem à

ela. Enfim, por se tratar de uma atividade pouco atrativa para os capitalistas, em

razão dos riscos e da pouca renda gerada, é improvável que a mesma se torne

incompatível ou venha a fechar as portas para a recriação camponesa.

105 Pedra refere-se ao espaço onde cada olericultor ou comerciante mantêm as mercadorias a serem comercializadas. Em outubro de 2001, a menor pedra custava cerca de R$ 2.000,00, sendo cobrada uma tarifa adicional de R$ 8,00 por cada ingresso com mercadorias dentro do CEASA.

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4.3.4. As lavouras mecanizadas de soja, milho e trigo.

Assim como o leite e o café, as lavouras temporárias são quase que

obrigatórias entre os camponeses. Conforme advertimos, há uma série de

combinações que as incluem, sempre mediadas pela situação monetária da família,

pelas necessidades internas de consumo, além da própria conjuntura de mercado.

Vimos que, combinadas com o café sob a forma de cultivos

intercalares, predominam o arroz, o feijão e o milho, culturas alimentares que

pressupõem um jogo com o mercado, no sentido da pertinência em retê-las para

consumo próprio ou vendê-las quando os preços forem remuneradores. Por outro

lado, há também aquelas em que essa estratégia não pressupõe o consorciamento,

sendo destinados espaços distintos do sítio para cada uma delas, seja porque

prevaleceu a opção pelo sistema adensado do café, seja porque a terra disponível

permite tal organização. Por fim, há aquelas de caráter eminentemente comercial,

como é o caso da soja, milho106 e trigo, combinadas com a aveia preta, uma cultura

de inverno cuja função é a proteção e a fertilização do solo.

Nos solos de origem basáltica, essa tripla combinação é

predominante, inclusive entre os camponeses “fortes”, sendo necessário recorrer a

marcos pontuais, do ponto de vista da escala, para que se possam diferenciar os

domínios camponeses dos capitalistas.

Analisemos, pois, como a fração do território apropriada pelos

camponeses se organiza quando a reprodução depende majoritariamente dessas

culturas. A princípio, faz-se necessário esclarecer que as lavouras temporárias

pressupõem um ciclo curto, em geral de quatro a cinco meses, o que permite

combinações tão variadas quanto a própria condição socioeconômica dos

produtores.

A chegada do inverno é um momento ímpar para identificá-las: nos

domínios das lavouras mecanizadas, o campo lembra um imenso tapete em vários

tons de verde, com incrustações quebrando tal hegemonia e revelando espaços

forjados pelas relações camponesas de produção.

Esses sinais se manifestam na quebra da monotonia da ocupação

dominante. São leirões107 cultivados com feijão em meio ao trigo, são as cabeceiras

106 No caso do milho, há dois sistemas agrários diferenciados, a produção em escala, combinada à soja e ao trigo e a produção de excedente. 107 Os leirões nada mais são que os terraços construídos em curva de nível, cuja finalidade é a retenção das águas da chuva. A altura e a distância entre eles são definidas em função da declividade do terreno. Em alguns casos, as máquinas não conseguem trabalhar sobre os mesmos, deixando um espaço ocioso.

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reservadas ao café e seus complementos, são os conjuntos de casas e pomares mais

freqüentes, enfim, são os marcos da presença viva de pessoas e trabalho que essas

mesmas culturas, quando implantadas como monoculturas, varrem do campo.

Aliás, a própria distribuição dos cultivos já nos remete à diversidade

das relações que lhes são subjacentes, a começar pela aveia preta que, apesar de

não ser de cultivo comercial, traz inúmeras vantagens econômicas. Aliás, sua

simples presença nos remete às características geográficas peculiares da região em

apreço, o que não exclui a conjuntura à qual estão submetidos os produtores, em

particular os camponeses.

Isso porque tal cultivo apenas excepcionalmente visa colheitas,

ocasião em que são extraídas as sementes para comercialização. Uma de suas

funções é a cobertura do solo nu, a fim de evitar os efeitos erosivos do vento, bem

como das chuvas, ainda que essas sejam menos intensas no inverno. Por tratar-se

de um cultivar adaptado às baixas temperaturas, pouco vulnerável à ação das

geadas, é tomado como alternativa de cobertura vegetal ao trigo e ao milho.

Some-se a isso o fato da mesma proporcionar uma reposição parcial

de nutrientes retirados pela soja e ou milho cultivados no verão, atuando como um

regenerador natural do solo. Por conseguinte, há uma diminuição dos custos da

lavoura subseqüente, especialmente com a adubação, proporcionando aumento da

receita ao fim do ano agrícola. Quando integrada a um sistema mais amplo de

manejo do solo, sua capacidade de regeneração acena não apenas para a

diminuição dos custos, mas para a poupança que a preservação do solo como

recurso futuro pressupõe.

Contudo, a escassez de terra comparece como um empecilho para

que os camponeses a cultivem, já que plantar a aveia preta implica em abdicar da

produção comercial de inverno. Mas as próprias variáveis que interferem na decisão

pela utilização produtiva dos meios de produção fazem com que a aveia não seja

descartada a priori.

A começar pelos riscos de perdas de safras, potencializados no

inverno, em vista da mudança do regime pluviométrico e da ocorrência habitual de

geadas. Portanto, entre os camponeses essa conjuntura envolve um cálculo

orientado mais para o que se pode perder do que para o que se pode ganhar com a

lavoura.

Nessa perspectiva, a presença da aveia revela uma estratégia de

minimização dos riscos, justificada como meio de evitar os prejuízos das geadas,

sobretudo a do ano de 2000, de lembrança ainda muito viva, até mesmo porque

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seus efeitos persistem. Nesse ano, não foram devastados apenas os cafezais, mas

também as demais lavouras. Mesmo aquelas adaptadas ao clima frio foram

perdidas, desencorajando alguns produtores a continuarem arriscando, já que os

custos das culturas de inverno são elevados, com exceção da aveia preta.

Geada como essa a gente nunca tinha visto. Até os pés de laranja e manga daqui do quintal matou. A gente olhava a roça e parecia que alguém tinha tocado fogo no feijão, no milho e até no trigo, que não queima fácil. Só sobrou a aveia e era até bonito se ver que ainda tinha vida no meio daquela destruição. Foi nossa sorte, porque o pasto acabou...se a gente não tivesse a aveia, onde ia arranjar comida para o gado?108

É indubitável, portanto, que a combinação das atividades

responsáveis pela sustentação de cada unidade camponesa é que interfere nesse

cálculo, definindo as respectivas escolhas. Além das características já mencionadas,

aos que têm gado leiteiro, a aveia comparece como fonte segura de alimentação, já

que as pastagens escasseiam, mesmo na ausência de geadas.

Veremos que a insegurança quanto às variações climáticas no

inverno leva alguns proprietários de terra a isentarem os arrendatários do

pagamento de renda nesse ciclo, mais uma evidência dos riscos que o envolvem.

Ainda assim, não se vêem terras ociosas, ao mesmo tempo que encontramos

camponeses ávidos pela oportunidade de arcar com os custos e os riscos de uma

empreitada vulnerável, mas que sendo bem sucedida, permite um rendimento

extra.

Entretanto, esse precedente ultrapassa os limites das trocas

econômicas, inscrevendo-se no âmbito das relações pessoais, sobretudo de

vizinhança, muito comum entre camponeses e antigos proprietários absenteístas da

região. É à resistência do código de ética tradicional que se pode tributar essa

prática, pois todos os casos em que constatamos o uso livre da terra no inverno

estão associados à existência de laços construídos na convivência de longa data no

lugar.

Nos casos em que tal prática se difunde em vários pontos da área

delimitada pelos respectivos bairros rurais, essas ligações evidenciam os limites de

análises maniqueístas, as quais se constroem em torno do pressuposto de que não

haveria trocas e conexões entre as formas capitalistas e camponesas.

No esforço de evidenciarmos o caráter de interação, e não de

resquício que a presença camponesa tem no modo capitalista de produção,

108 E.: Água da Jacutinga - Londrina.

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chamamos a atenção para os mecanismos de extração de renda em favor dos

capitalistas, bem como apontamos que esse circuito pressupõe a sua recriação. A

isso Raffestin (1993) chama de jogos de somas não nulas, face às vantagens

recíprocas que se manifestam nas trocas desiguais. Na situação em questão, uma

parcela eminentemente capitalista do território é ciclicamente submetida ao

domínio camponês, situação que se repete a cada inverno.

A gente pega terra para fora porque a nossa é pouca, não dá para lavoura mecanizada. Mas já faz muitos anos que nós tocamos essa aqui e para nós é muito bom... O dono é nosso conhecido bem dizer desde criança, então é fácil de se acertar...ele sabe que a gente cuida o melhor que pode da lavoura, então a renda dele é certa. É por isso que ele só cobra renda da soja. Então no trigo, mesmo que perder num ano, se colher alguma coisa no outro já ajuda, porque o gasto é muito.109

Esse é um exemplo de que as parcelas do território onde impera a

lógica capitalista, como é o caso dessa propriedade, também podem fugir à regra

das determinações que lhe são inerentes, já que os camponeses a utilizam a cada

ciclo anual sem pagar por isso.

Assim, a despeito do acordo não ferir as conveniências do

proprietário, já que a recompensa vem com a soja, sua disposição em ceder as

terras no inverno ao uso camponês implica em abdicação de renda, ainda que

eventual. Não se deve esquecer que a estrita lógica capitalista apontaria para três

caminhos: a interdição do uso, a partilha das sobras ou ainda a cobrança da renda,

independentemente dos resultados da colheita.

Asseveramos que entre as diferentes modalidades de contrato de

arrendamento por nós verificadas, essa última também se inclui, na forma de

pagamento prévio pelo uso da terra e percentual sobre o montante colhido.

Portanto, o relato não deixa dúvidas de que no conjunto das variáveis que

conduzem a cessão gratuita, as relações pessoais têm peso significativo.

Temos visto que o arrendamento é uma estratégia de camponeses

que, a despeito de não possuírem terras próprias ou possuí-las em quantidade

insuficiente, conseguem cultivar as lavouras em questão, mediante o pagamento da

renda. Entretanto, o limite para essa prática está na própria disponibilidade de

terras arrendáveis, em locais cujos custos de deslocamento das máquinas não

inviabilizem economicamente a atividade. Havendo terras disponíveis, essa é uma

prática comum entre os camponeses que já dispõem de maquinários, o que lhes

109 G.: Mundo Novo - Arapongas.

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permite minimizar os efeitos de uma dupla ociosidade, das máquinas e da força de

trabalho da família.

Em relação aqueles cuja quantidade de terras próprias são

consideradas suficientes para a satisfação de suas necessidades, a

imprevisibilidade climática aliada aos custos crescentes da produção fazem com

que a semeadura de inverno com aveia compareça como forma de “zelar” da terra, o

que indica que é a cultura de verão, particularmente a soja, a privilegiada em

termos de investimento. E na atual conjuntura, aqueles que dispõem de terras

mecanizáveis não deixam de ter razão ao elegerem a soja como a melhor opção, pois

conforme se poderá verificar na Figura 28, essa tem-se mostrado a cultura mais

rentável na atualidade.

Embora os preços favoráveis sejam decisivos, essa escolha não

deixa de ser influenciada pela avaliação dos riscos, já que as possibilidades de

perda da safra de verão são reduzidas. E é o risco o que mais pesa no cálculo

camponês, ainda que essa característica não autorize uma associação estrita a um

suposto conservadorismo110.

Nesse caso, é preciso superar certos pressupostos, pois a

ponderação camponesa, quanto aos riscos, se inscreve em uma trajetória delineada

pelo saber vivido e construído na alternância do comportamento da natureza. O

camponês sabe o quanto é recorrente o mau tempo para a lavoura. Assim, salvo em

eventos climáticos intensos, como a referida geada, ele consegue contornar as

variações que se repetem ano a ano, exatamente por tratar-se de um componente

intrínseco às decisões sobre o que, quando, como e onde plantar. Portanto, não se

pode confundir prudência com hesitação, já que a premissa da sobrevivência

precede o cálculo que os mesmos fazem ao se decidir pelos diferentes cultivos.

No inverno posterior à grande geada, aqueles que optaram pela

aveia preta descartaram o trigo e o milho, por avaliaram que na situação de baixos

rendimentos em que se encontravam, grandes investimentos, mediados por riscos

igualmente ponderáveis, seria incoerente. Mergulhados na cadência de uma

concepção particular de tempo, a escolha recaiu sobre a preservação dos recursos

para investimento na safra seguinte, mais rentável e segura.

Nesse sentido, o inverno é o melhor momento para cuidar da terra

semeando aveia. Lembramos que esse esforço de preservação da fertilidade não

comparece em suas falas como uma prática idílica, própria de um segmento de

110 Na origem, esse termo possui carga pejorativa, por ser forjado no interior das concepções acerca do papel político dos camponeses no processo de superação do modo capitalista de produção.

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ecologistas. Antes, revela uma estratégia real da reprodução de sua existência, uma

vez que os mesmos dispõem de pouca terra e praticamente nenhuma mobilidade

patrimonial. Assim, quanto mais ela for poupada, maior a garantia de extrair seu

sustento sem maiores sobressaltos nos anos seguintes.

No entanto, um manejo mais sustentável, do ponto de vista

ambiental, pressupõe a combinação da aveia com o plantio direto, que consiste na

eliminação do revolvimento mecânico do solo. Nesse sistema, a aveia deve ser

semeada após a colheita de verão e dessecada ao fim do inverno. O seu ciclo

vegetativo é de três meses, tempo suficiente para suas raízes quebrarem a estrutura

compactada dos solos e fixarem nutrientes. Posteriormente, a palha e as próprias

raízes serão decisivas para a retenção da umidade, ao mesmo tempo que

minimizam os efeitos erosivos das chuvas. Segundo os agricultores que o realizam,

o plantio direto os tem tornado menos dependentes de chuvas regulares, além de

contribuir com a recuperação da fertilidade e menor dispêndio com as culturas.

Ocorre que esse sistema requer níveis de renda que os pequenos

não possuem, razão pela qual a maioria ainda pratica o plantio convencional,

baseado no revolvimento do solo a cada semeadura. Além da necessidade de

plantadeiras específicas, tratores pequenos não possuem potência suficiente para

acioná-las. Do ponto de vista da aquisição, esse conjunto é proibitivo aos

camponeses, ainda que isso não elimine a possibilidade de realizar o plantio direto

mediante a contratação desse serviço.

Portanto, para que se possa contemplar essa diversidade de

estratégias ligadas às lavouras temporárias, nem sempre é possível fazer uma

análise compartimentada. Aliás, isso se aplica a quaisquer atividades destacadas,

pois em nossa área de estudo, não nos foi possível associar a monoatividade à

reprodução camponesa.

Assim, são diversas as combinações envolvendo as culturas

comerciais de verão e de inverno que, pelas razões destacadas, tornam limitadas as

possibilidades de cultivo da aveia preta. Nesses casos, temos a soja e o milho como

culturas de verão, cuja semeadura se estende de outubro a novembro, e o trigo e o

milho safrinha como culturas de inverno, cujo plantio se estende de abril a maio.

Apesar da cultura de verão pressupor a combinação de soja com

milho, a primazia da soja é inquestionável, face à diferença de rentabilidade entre

ambos. Para se ter uma idéia, no ano de 2001, a área ocupada por essa lavoura foi

de 244.868 hectares, envolvendo 5.593 unidades produtoras. Por outro lado, foram

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registrados 7.857 cultivadores de milho em 166.691 hectares.111

Embora a produção por hectare do milho supere em até 60% a da

soja, os custos são relativamente proporcionais a essa escala, de modo que ao se

considerar a área semeada, superam os da soja. Além disso, a média histórica dos

preços entre ambos tem girado em dois para um, ou seja, ao longo dos últimos

anos, o milho tem sido vendido pela metade do preço da soja.

Por outro lado, o privilegiamento da soja não se pode pautar

exclusivamente nos preços praticados ao produtor, uma vez que há um custo de

produção que não pode ser desprezado. O esgotamento do solo e a perpetuação das

pragas em decorrência do plantio continuado podem ser parcialmente contornados

com a rotação de culturas.

Além disso, com a retirada do milho, o solo fica recoberto por uma

camada de palha, importante aliada da técnica de plantio direto. Porém, há limites

para os camponeses adotarem essa técnica, o que não exclui a necessidade de

alternância entre os dois cultivos. No plano imediato, porém, o estímulo dos preços

tem prevalecido, porque tem havido na região uma retração das áreas cultivadas

com milho em favor da soja. Isso começa a preocupar a cadeia industrial de aves e

suínos, que tem nesse produto um dos principais componentes das rações.

Por fim, é bom lembrar que, como todo produto de exportação, a

soja não está livre das flutuações do mercado internacional. Os preços considerados

animadores refletem a situação das lavouras norte-americanas, que servem como

referência mundial para os estoques e preços desse produto. Em virtude de

variações climáticas, em 2002, seu desempenho foi o pior dos últimos cinco anos, o

que veio a favorecer os produtores brasileiros.

Contudo, essa não é uma situação definitiva, pois tão logo a

produção se normalize, o grau de competição tende a se intensificar, com reflexos

imediatos nos preços. Por outro lado, é bom lembrar que o governo norte americano

está ampliando a margem de subsídios para seus produtores, justamente para fazer

frente à competitividade da soja brasileira. Isso tenderá a forçar a queda dos preços,

estratégia que reflete a política dos países ricos de proteger seus agricultores,

valendo-se do mecanismo das trocas desiguais.

Em relação às culturas comerciais de inverno, vimos que a

combinação passível de se estabelecer é a de trigo e milho. O fato de plantar milho

no inverno igualmente é uma empreitada arriscada, uma vez que, além das geadas

freqüentes, há a irregularidade e insuficiência das chuvas, que afetam diretamente

111 Dados extraídos do Relatório Realidade Municipal – EMATER, 2001.

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a produtividade. Daí a denominação safrinha, que remete à época em que o seu

cultivo proporciona uma safra menor.

Entretanto, salvo a ocorrência de geadas, os riscos com o milho se

circunscrevem à quebra, mas não à perda da safra. Isso por tratar-se de uma

cultura que não só resiste a déficits hídricos, como não é afetada por precipitações

excessivas. Mesmo em condições de ser colhida, pode suportar semanas de chuvas

consecutivas. O risco maior é o vento, pois se as plantas vierem a tombar, a

colheitadeira não conseguirá apanhá-las. Além disso, as espigas em contato com o

solo apodrecem rapidamente.

Quanto ao trigo, os riscos em relação às condições adversas do

clima são exponenciais. Se, por um lado, a sua escolha em relação ao milho parece

mais adequada, por tratar-se de cultura adaptada ao frio, suportando inclusive

geadas, desde que não muito intensas, a vulnerabilidade em relação ao regime

pluviométrico é severa. Necessita de chuva quando está cacheando e sol no

momento da colheita. Quando maduro, três dias de chuvas constantes são

suficientes para a perda da safra, pois os grãos acabam germinando no cacho.

Por ser cultivado especialmente nos solos do basalto, com alta

incidência de argila, mesmo que as precipitações não ocorram nessa freqüência, as

colheitadeiras somente conseguem adentrar a lavoura com a terra enxuta. Isso faz

com que os riscos de perdas sejam maiores, uma vez que o período da colheita

tende a coincidir com o fim da estação seca. É por essa razão que os camponeses,

mesmo com os preços mais remuneradores do trigo, tendem a dividir a área

mecanizável entre as duas culturas. Em 2001, a área ocupada pelo trigo foi de

69.420 hectares, envolvendo 1.562 triticultores.

O agricultor já está malhado, ele já sabe que uma colheita ou outra vai perder. Há quatro anos o trigo estava lindo, colhemos um terço e chegou a chuva. Foram oito dias sem a máquina poder entrar na roça. Então o restante foi vendido como ração, pela metade do preço. Na safra seguinte a semente deu problema, fomos atrás de uma mais barata, mas só nasceu pouco mais da metade. Daí o tempo correu bem, o que nasceu, colheu. No terceiro ano, o sol já tinha atrapalhado um pouco...quando os grãos estavam no leite, veio a geada e eliminou 90% da colheita. Este é o quarto ano, está tudo caminhando para uma boa colheita, só não pode invernar, porque se der três dias de chuva o trigo brota no cacho... é uma cultura de alto risco.112

Vemos assim que o insucesso das culturas de inverno é comum,

razão pela qual alguns camponeses que conseguem se reproduzir mediante o

112 A.: Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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arrendamento de terras no entorno, cultivam gratuitamente a terra nessa estação,

pagando renda apenas pela lavoura de verão.

O fato dos riscos serem maiores na cultura do trigo, em relação ao

milho, é compensado pela equação custos-preços, já que a média histórica do preço

do trigo tem ocupado uma posição intermediária entre o milho e a soja.

A contrapartida desses desafios está no mercado brasileiro, pois há

uma enorme demanda a ser suprida, o que elimina a possibilidade de pressão

negativa nos preços em razão das colheitas. Mas isso não lhes assegura qualquer

estabilidade, pois são as políticas públicas que detêm o poder de regulação do

mercado do trigo. Assim, o privilegiamento à importação em detrimento do produto

nacional, quando os preços externos são mais competitivos, é tão nefasto quanto as

regras impostas pelos importadores dos produtos nacionais.

Aliás, esse expediente foi largamente utilizado após a edição do

Plano Real, que basicamente restringiu o controle da inflação à cesta básica. Tal

estratégia, conhecida como âncora verde do referido plano, foi implementada, em

grande medida, às expensas do campesinato. Mais adiante retornaremos aos efeitos

dessa política interna que, ao ser associada à própria tendência depressiva dos

produtos primários, afetou preferencialmente os camponeses, produtores por

excelência de alimentos.

De qualquer maneira, vimos que o mecanismo de formação de

preços do trigo obedece a critérios diferenciados, guardando íntima relação com a

desvalorização da moeda brasileira. Por refletir as cotações dos produtos cuja

referência é o mercado externo, a sua rentabilidade tem sido considerada bastante

satisfatória. Isso tem propiciado uma relativa recuperação dos níveis de rendimento

aos camponeses envolvidos com as lavouras citadas, já que a escala, em relação aos

custos fixos, é inversamente proporcional. Porém, se de um lado os preços

compensadores de tais produtos atuam na recomposição parcial das perdas

acumuladas pelos camponeses com elas ocupados, por outro lado esse mesmo

desempenho tende a criar barreiras para a recriação camponesa.

No rastro da valorização do trigo, soja e milho, temos visto a

valorização das terras. Na porção basáltica, onde esses cultivos são predominantes,

seu preço vêm aumentando progressivamente nos últimos anos. Por outro lado, nos

solos arenosos, onde predominam as pastagens e a policultura, os preços da terra

têm-se mantido em patamares bastante inferiores, o que evidencia o quanto os

mecanismos de definição da renda da terra estão atrelados à demanda pela

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produção potencial da mesma.113

Outrossim, faz-se necessário esclarecer que, mesmo envolvidos com

culturas privilegiadas do ponto de vista do mercado, a lógica que preside os cultivos

camponeses é diversa da lógica com que operam os capitalistas. A começar pela

combinação dessas com atividades voltadas para o autoconsumo, que variam desde

hortas e pomares até grande diversificação, incluindo-se aí o café e ou a integração

na avicultura e fruticultura como atividades comerciais paralelas.

No extremo, encontramos essa combinação com a indústria

doméstica de vinho, o que indica que a principal marca dessa parcela do território é

a diversidade, ao contrário das unidades capitalistas, em geral homogêneas do

ponto de vista da organização produtiva.

Não obstante, há um padrão de repetição que remete a uma

hierarquização atrelada ao tamanho dos sítios camponeses. Ao trabalharmos com

estratos de área, nos quais foram consideradas pequenas propriedades aquelas com

até 50 hectares, o fizemos para viabilizar uma análise pautada nos dados oficiais

disponíveis. Assim, é preciso esclarecer que a mesma não foi tomada como “camisa

de força”, no sentido de que todos os sítios camponeses devam se enquadrar nessa

medida ou adotem similares estratégias quanto ao uso da terra.

Assim, é necessário considerar a diversidade na malha fundiária da

região estudada, a qual teve origem nos primórdios da mercantilização da terra.

Conforme já se fez referência, na concessão onde atuou a Companhia de Terras

Norte do Paraná, houve uma tendência à maior fragmentação das propriedades.

O limite para a explicação das diferenças unicamente com base

nesse fator é claro, mas é a sua combinação com as especificidades de cada bairro

rural que exprime a diversidade a que nos referimos, cujo reverso é a unidade

territorial dos camponeses no Norte do Paraná. Dessa maneira, o controle sobre as

parcelas do território define limites e possibilidades que, combinados com a mão-

de-obra e os instrumentos de trabalho passíveis de circularem via relações

comunitárias e monetárias, produzem os contornos que se manifestam no plano

geográfico, do espaço transformado em fração singular do território, porém

heterogênea.

Cremos ter demonstrado como as diferentes modalidades de

integração, assim como a pecuária leiteira e a cafeicultura, marcam o

enquadramento dos camponeses em diferentes estratégias que convergem a uma

113 Segundo levantamento realizado pela SEAB/DERAL referente ao ano de 2001, o preço médio por hectare de terras mecanizadas era o seguinte: terra roxa: R$ 4,2 mil, terra mista: R$ 2,3 mil e terra arenosa: R$ 1,9 mil.

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única lógica: a reprodução da família. Nessa perspectiva, a hierarquia que se pode

observar entre as lavouras temporárias resulta dos limites impostos pelos fatores

materiais de produção e sociais de reprodução, entre os quais o fator primordial é a

terra. Num plano ascendente, as culturas de excedente estariam na base e as

lavouras mecanizadas de soja, milho e trigo, no topo.

Em outras palavras, o privilegiamento das lavouras de excedente é

majoritário entre os camponeses mais vulneráveis, os quais raramente possuem

sítios com área superior a dez hectares. Essa escassez de terra, que em si já emite

sinais das condições materiais de quem as possui, impõe barreiras para o cultivo

dos produtos mais rentáveis. Por outro lado, sítios maiores revelam melhores

condições materiais das famílias, o que dá margem para opções mais

remuneradoras, mas que, por outro lado, as tornam mais dependentes das

flutuações do mercado.

É por essa razão que não se pode tomar a modernização da base

técnica da agricultura no Norte do Paraná, especialmente nas culturas da soja,

trigo e milho, como obra exclusiva dos capitalistas. Por outro lado, o fato dos

camponeses se ocuparem dessas culturas, as quais pressupõem bases técnicas

mais sofisticadas, não os torna menos camponeses, pois as mesmas revelam a

menor vulnerabilidade econômica do grupo familiar.

Outrossim, as mesmas ocupam uma posição privilegiada em relação

aos alimentos básicos, por ultrapassarem os limites do mercado nacional, tendo

como referência de preços o dólar114. Embora o trigo e o milho sejam afetados

apenas em parte por essa lógica, por serem destinados majoritariamente ao

consumo interno, a cadeia produtiva na qual estão inseridos envolve o mercado

externo. O milho, na perspectiva da produção comercial de escala, por se constituir

alimento básico das aves e suínos, cujo volume de exportação é considerável e o

trigo, pelo peso da importação na composição de seus preços, já que a produção

nacional é insuficiente para atender o mercado interno.

Vimos, no entanto, que a cultura do milho se enquadra em dois

esquemas distintos: ao mesmo tempo que integra o sistema mecanizado inserido no

rodízio com a soja e o trigo, também se constitui lavoura de excedente,

normalmente no esquema intercalar, cuja finalidade é o atendimento das

necessidades internas de consumo.

114 Em 19 de julho de 2002 os preços médios ao produtor no Paraná eram os seguintes (saca de 60 kg em dólares): soja: U$10,38 – trigo: U$ 7,46 – milho: U$ 4,53; (sacas de 60 kg em reais): soja: R$ 30,00 – trigo: R$ 21,55 – milho: R$ 13,10.

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Esse duplo papel se deve ao fato de que, para comercialização

direta, o cultivo de milho exige escala. Para os grandes plantadores, a combinação

soja e milho permite potencializar ao máximo a utilização das máquinas, já que a

maturação das colheitas não coincide. Assim, distribuindo a área plantada, a

mesma máquina fará as duas colheitas, primeiro a do milho e depois a da soja, o

que não seria possível caso a escolha fosse mutuamente excludente. Nesse caso,

seria necessário duplicar a quantidade de máquinas disponíveis para a colheita.

Segundo a EMATER, uma lavoura de milho com o mínimo de

sustentabilidade econômica pressupõe a produção de pelo menos 250 sacas. Os

camponeses sabem disso, tanto que os pequenos raramente enquadram o milho em

cultivo comercial, mas sim na lógica do excedente. Ele é utilizado para a

alimentação das aves, porcos e os grandes animais, notadamente as vacas de leite,

sendo utilizado tanto para silagem quanto para pastejo na palhada após a

realização da colheita. É o que mostra a foto na seqüência.

Foto 13 – Animais na palhada

Em outras palavras, o milho transformado em carne ou leite pode

ser compensador, mas a granel não remunera o trabalho daquele que tem pequena

escala de produção. Nesse sistema em que a mecanização é baixa, há uma

produção de excedente a ser destinada ao mercado.

O milho eu também vendo um pouco. Eu sempre vendo para um comprador lá de Taquara, o Velho Juca, ele vem buscar aqui. Não dá para a gente mesmo levar lá para a cidade porque o gasto é bastante, tem que pagar carreto e debulhação. Então é melhor fazer assim, porque já vende livre aqui na roça, ele já vem, pesa e paga a gente... já traz o dinheiro aqui em casa. Então a gente às vezes anda atrás de dinheiro muito e perde...115

115 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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É evidente que esse esquema em que atua o pequeno atravessador

representa uma transferência de renda ainda maior do que no caso da

comercialização direta nas indústrias, sendo-lhes vedada em razão de duas

variáveis: dificuldade de transporte e volume a ser ofertado. Apenas as colheitas

maiores viabilizam esses canais de comercialização, visto que uma produção maior

já garante a diluição dos custos de transporte, com a plena utilização da

capacidade de carga dos caminhões. O mesmo se aplica no caso das cooperativas.

Quanto à soja, trata-se de um produto de exportação por

excelência, o que não quer dizer que o mercado interno não retenha parte dessa

produção, notadamente o óleo. Não se deve perder de vista, contudo, que esse

produto é originalmente um subproduto que foi praticamente imposto à cesta de

consumo dos brasileiros a partir dos anos setenta, passando a substituir

paulatinamente a gordura suína e os óleos vegetais de amendoim e algodão.

A modificação dos hábitos alimentares foi motivada exatamente pela

natureza das trocas no mercado externo: a demanda estava centrada no farelo de

soja, largamente utilizado para a alimentação animal, especialmente nos países

onde a pecuária está baseada no confinamento dos animais. Assim, uma forma de

incrementar os lucros seria o aproveitamento dos resíduos do processamento

industrial, no caso o óleo.

Tanto falaram que a banha de porco fazia mal que quase todo mundo parou de usar. Aqui muita gente desanimou de criar um porquinho caipira, porque o que ia fazer com ele? Mas agora a gente vê como a soja é produzida, é veneno do começo ao fim... A semente já vem envenenada, é veneno na lavoura, uma, duas, três vezes. Já o porco que a gente cria, a gente sabe que não tem nada disso. Me falaram e eu até fiz a experiência ... peguei um litro vazio de óleo e um de quiboa e plantei uma mudinha de pepino em cada um. Você acredita que a da quiboa foi para frente e a do óleo não? É o veneno...116

Embora não seja conveniente entrar no mérito da experiência

descrita pelo nosso interlocutor, seu relato mostra o quanto a propaganda negativa

em torno da gordura animal foi decisiva para mudanças não apenas no

gerenciamento da produção voltada ao consumo, mas inclusive na criação de uma

necessidade a ser satisfeita pelo mercado.

Ocorre que a maior parte daquilo que lhes é apresentado como bem

de uso insubstituível causa desconfiança, pois eles conhecem como poucos as

116 J. A: Nova Granada - Astorga.

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armadilhas do mercado. Isso parece ter-se dado no caso do óleo, pois várias

famílias visitadas, ao nos falarem das atividades para o autoconsumo, fizeram

menção à retomada da gordura após um período de uso exclusivo de óleo de soja.

Contudo, é bom lembrar que essa reconversão ao produto animal

não terá reflexos significativos no mercado da soja, já que estamos diante de uma

sociedade altamente urbanizada, que não poderá recorrer a estratégias

semelhantes. Embora isso não explique, certamente auxilia a compreender a

valorização da soja, pois entre os produtos da pauta de exportações brasileiras,

essa ocupa o primeiro lugar.

Não obstante, essa é uma evidência de que projetos de publicidade

executados com esmero atingem em cheio o alvo desejado. Isso se verifica inclusive

na comercialização dos insumos agrícolas, em que há uma poderosa máquina de

propaganda, sempre investindo em fórmulas que prometem novas soluções para os

problemas da lavoura. Os camponeses são muito vulneráveis a esse esquema, uma

vez que é comum, ante os ataques de pragas desconhecidas ou mesmo o

desenvolvimento das plantas em desacordo com o ciclo habitual, eles buscarem

auxílio técnico nos estabelecimentos que comercializam os agrotóxicos.

Além disso, é comum a visita dos vendedores nas propriedades ou

nos eventos que reúnem grande número de produtores. Como exemplo, citamos os

cursos promovidos pela EMATER e os chamados “dias de campo”,117 promovidos

por cooperativas, órgãos oficiais de assistência técnica e mesmo pelo comércio com

o apoio da indústria ligada ao setor agrícola, ocasiões em que a propaganda de

insumos e equipamentos é intensa.

A forte presença camponesa nesses eventos é o reflexo de seu

envolvimento com as culturas mecanizadas, o que evidencia o equívoco de ignorar,

do ponto de vista analítico, a sua participação nos sistemas agrários pautados em

inovações técnicas. Por outro lado, isso não significa suprimir diferenças sociais e

condições materiais de reprodução, mesmo em se tratando do mesmo ramo de

atividade. As limitações econômicas existem e não passam despercebidas,

especialmente quando se compara a produção camponesa com a dos fazendeiros do

entorno.

Já tem semente de milho que rende quase sessenta sacas a mais por alqueire que essa que eu plantei. Só que ela é mais cara, também precisa de mais adubo... Se eu tivesse o dinheiro para o

117 Os dias de campo consistem em eventos voltados aos produtores para disseminar informações técnicas, produtos e serviços. Em geral, os produtores são levados a uma propriedade referência, tomada como modelo para aquilo que se quer demonstrar.

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investimento, podia ganhar mais, mas é só os fazendeiros que podem fazer isso... Quem tem mais, sempre se sai melhor... Você veja, faz quatro meses que eu entreguei minha soja a 16 reais e hoje tem gente entregando a 24...mas eles podiam esperar o preço melhorar, eu não, daí que o pequeno sempre sai pior.118

Face ao volume de recursos imobilizados no maquinário necessário

ao cultivo dessas lavouras temporárias, é inquestionável que aqueles que têm a seu

favor mais terras, conseguem reduzir proporcionalmente os custos da atividade. E

isso não se aplica somente às máquinas e ao transporte, mas também aos insumos,

cujos preços são inversamente proporcionais à quantidade adquirida. A diferença

de preço do calcário e do adubo em sacas ou toneladas é enorme, mas estes não

permitem estocagem. Do mesmo modo, os agrotóxicos são comercializados em

diferentes tamanhos de embalagens, muitos dos quais têm prazo de validade que

impede a utilização nos anos seguintes.

Assim, mesmo considerando que há uma saturação em termos de

escala, mais terras significa custos diluídos. Trata-se de um circuito em que o

diferencial está nos índices de rendimentos, de modo que mais investimentos

custam menos e propiciam melhores resultados produtivos.

Por outro lado, o contraponto dessa desigualdade está na lógica que

move seus agentes: a agricultura como investimento está limitada à rentabilidade

do capital investido, enquanto que a agricultura como ocupação pressupõe a

reprodução de um modo de vida, cujas dimensões não se esgotam no econômico.

É por isso que lógicas e realidades distintas exigem referenciais

teórico-metodológicos igualmente distintos. Condicionar o entendimento da

realidade norte paranaense à suposta racionalidade econômica do capital é fazer

tabula rasa aos processos que se materializam em um espaço prenhe de

significados. A recriação do domínio camponês do território em um cenário

desfavorável não só o evidencia como mostra que a técnica não pode ser tomada

como elemento fundante para a compreensão da realidade. Ao contrário, é o

conteúdo presente nas diferentes estruturas sociais que conferem significado à

apropriação da técnica.

4.4. A transferência da renda no consumo produtivo camponês

Admitir que a recriação camponesa tem-se dado em meio à

adversidade não serve de pretexto para que deixemos de reiterar a ação predatória

118 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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empreendida em diversos níveis pelos diferentes agentes do capital. Já nos

detivemos nos mecanismos de apropriação da renda camponesa nas esferas em que

todo o trabalho e investimento do campesinato se materializam na produção: são

as cadeias industriais que se sustentam por meio da matéria-prima fornecida por

essa classe, como é o caso da integração; igualmente visível são os interstícios da

acumulação de capital pelas indústrias que recebem o leite, os produtos da lavoura

permanente e temporária. Por fim, a agressiva ação do capital comercial com as

anteriores se confunde.

Falta refletir melhor sobre a sua ação na esfera do consumo

produtivo, ou seja, no monopólio dos preços dos insumos necessários à produção.

Conforme já foi demonstrado, o campesinato de que tratamos não está excluído do

processo de modernização da base técnica da agricultura. Nessa perspectiva, sua

produção comercial pressupõe a utilização de máquinas e insumos, ainda que

numa escala compatível com os recursos materiais de que dispõe.

É justamente a incorporação de tecnologia que o obriga a pagar um

pesado tributo ao capital industrial e comercial, tributo esse representado pelo

consumo das mercadorias que entram no processo produtivo. A título de exemplo,

na área estudada havia, em 2001, 10.966 tratores, 743 colheitadeiras e 1.742

plantadeiras, ao passo que a maioria absoluta dos produtores recorreu a algum tipo

de insumo industrializado, seja pesticidas, herbicidas ou adubos químicos.

Isso pode nos dar uma dimensão do quanto a modernização da base

técnica da agricultura tem sido importante para a acumulação do setor industrial, a

qual tem inclusive se apoiado numa espécie de mediação pelo próprio Estado. Essa

questão será abordada no quinto capítulo, na perspectiva de que o Estado

direcionou, e ainda direciona, a apropriação da riqueza social gerada diretamente

pela agricultura, ao privilegiar, através de inúmeras políticas públicas, o

empresariado da terra, produtivo ou não.

Isso indica que o ônus da produção e da reprodução ampliada do

capital continua recaindo sobre os trabalhadores, entre os quais os camponeses,

diretamente afetados pelo custo crescente para produzir e pela apropriação

decrescente da renda. A Figura 28 é duplamente elucidativa: mostra que os

produtos típicos da lavoura camponesa foram os que apresentaram o maior

descompasso entre custos para produzir e preços recebidos pelas colheitas e, ao

mesmo tempo, indica que a majoração dos produtos da indústria para a agricultura

não está atrelada à política de preços mínimos ao produtor.

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270

Figura 28 - Variação dos custos da produção e preços pagos ao produtor - janeiro de 1999 a setembro de 2001. (%)

74,4

74,4

74,4

65,5

65,7

65,1

75,5

66,3

64,1

75,8

61,3

39,2

20,9

75,9 90

,3186,

9-2

8,7

-29,

3Mandioca Café Feijão Milho Trigo Soja

Gastos com máquinas Gastos com insumos Preços pagos ao produtor

Fonte: SEAB/DERAL/DEB-PR

Conforme evidencia a figura 28, em menos de três anos, a

precarização das condições de sobrevivência dos camponeses atingiu patamares

severos. Lembramos que os dados apresentados se referem à média das variações.

Anterior estava ruim e agora está mais ainda, veja que os recursos que os meninos ganham a gente aplica aqui mesmo...mas o leite caiu de preço, o café também, mas os adubos e inseticidas subiram. O que é da agricultura abaixou, mas o que é da indústria... As indústrias acompanham o patamar, elas não têm prejuízo, elas querem ganho. Eles vão somando os prejuízos e depois sobem os preços e a gente não tem como fazer isso, porque vai vender para eles e tem que vender no preço que está.119

No caso das máquinas, tomamos por referência os custos de

manutenção, incluindo-se aí peças e combustível, bem como a variação dos preços

para aquisição. Notemos que nesse item os custos da lavoura tipicamente

camponesa, como é o caso do café, do feijão e da mandioca, aumentaram, em

média, 74,4%, enquanto aqueles em que a presença da agricultura empresarial é

significativa, como é o caso da soja e do trigo, os aumentos ficaram entre 64 e

66,8%.

Contudo, no que se refere aos preços pagos aos produtores, houve

um comportamento inverso: enquanto que pela soja e pelo trigo foram pagos preços

superiores à escalada dos custos, o café e a mandioca registraram queda real de

preços ao produtor de 29,3 e 28,7% respectivamente, o que indica o quanto está

difícil se manter nessas atividades. No caso do feijão e do milho, apesar do aumento

119 J.: Água Clara – Nossa Senhora das Graças.

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nos preços de 39,2 e 20,9% respectivamente, os produtores ainda tiveram que

absorver importante parte da majoração dos custos.

No que se refere aos insumos, em que se incluem as sementes,

adubos e agrotóxicos, a variação dos custos dos produtos da lavoura camponesa

segue a mesma lógica, ou seja, foram superiores aos demais, lembrando que, em

todos os casos, foram tomados os custos médios entre as técnicas convencionais de

cultivo e o plantio direto, no caso dos cereais, e cultivo adensado, no caso do café.

É importante salientar que nos itens de consumo da agricultura, os

dados refletem a variação de preços na ponta da cadeia produtiva, ou seja,

diretamente aos agricultores. Assim, fica difícil separar qual a fatia de renda

apropriada pela indústria a montante da agricultura, já que os comerciantes locais

também lucram com a venda desses produtos. De qualquer maneira, é de se supor

que o movimento de alta é conduzido pelo capital industrial, cabendo ao capital

comercial repassá-lo aos agricultores.

É nesses meandros que a renda camponesa acaba retida. Conforme

já demonstramos, a mesma lógica prevalece na comercialização das colheitas.

Assim, a monopolização das parcelas do território dominadas pelos camponeses se

verifica em diversos flancos, ainda que isso não represente sentenças apriorísticas

de desaparecimento, já que os camponeses buscam permanentemente alternativas

para preservarem sua autonomia.

Contudo, eles não deixam de observar a situação de subordinação

em que estão enredados, situação essa que foge ao seu controle e, por vezes, parece

ser a única variável capaz de inviabilizar o projeto de reprodução autônoma da

família.

Na lavoura, o pessoal da roça não manda nada, é lá na cidade que eles decidem quanto custa o adubo, o veneno, quanto vai subir. Não interessa para eles quanto custou para a gente produzir.. são eles que colocam o valor na nossa colheita e não tem conversa. Só que a gente acaba entregando assim mesmo porque tem compromissos, não pode se dar ao luxo de esperar melhorar o preço que nem se sabe se vai melhorar ou piorar. Enquanto der para agüentar a gente vai plantando.120

Assim, a acumulação capitalista proporcionada pela transferência

da renda produzida pelos camponeses não se dá serenamente, sem conflitos.

Embora pareça haver uma conformação geral, a indignação entre eles é latente.

Cientes de que são fundamentais no esquema de faturamento das indústrias, tanto

120 B.: Água da Jacutinga - Londrina.

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daquelas que produzem as sementes, insumos e máquinas, quanto daquelas que

agregam valor às colheitas com o processamento industrial, vislumbram a sangria

dos frutos do seu trabalho. Entendemos que é essa percepção de que as trocas são

absolutamente injustas que alimenta uma utopia de insubordinação entre a classe

camponesa.

Está muito difícil, mas tudo isso acontece porque nós da roça somos desorganizados...a gente tinha é que parar de plantar para vender, tinha é que plantar só para comer, porque daqui a gente tira tudo o que é preciso para viver. Se passasse um, dois, três anos sem vender um grão de arroz e feijão você ia ver como as coisas iam mudar...mas a gente tem dó, tem sentimento pelo povo da cidade que trabalha igual e está até pior que a gente...eles que não têm culpa de nada é que iam sofrer ainda mais do que já sofrem.121

Como se pode inferir, nosso interlocutor não é apenas portador de

uma utopia peculiar de justiça, mas inclusive expressa total compreensão de seu

papel político e do potencial, enquanto classe, de desarmar, pelo menos em parte, o

esquema de acumulação estruturado na cidade. Contudo, ele não deixa de

reconhecer na exploração dos trabalhadores urbanos uma condição socioeconômica

mais ultrajante que a sua. É a ética da justiça instituída pelo trabalho que o impede

de formular uma saída revolucionária, pois lhe é inconcebível punir quem é tão

vítima quanto ele do sistema.

É por essa razão que se faz necessário atentar para a inconsistência

dos esquemas teóricos e político-partidários que, em nome da luta pela

transformação rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, se fecham em torno

da pretensa inferioridade política do campesinato. Nesse particular, a posição de

Oliveira (1994, p. 51), é cristalina.

A aliança política entre trabalhadores assalariados e camponeses não pode mais ser pensada na perspectiva da hegemonia política pura e simples dos primeiros sobre os segundos, e muito menos no sentido inverso. Ela deve nascer da compreensão de suas diferenças, e do direito mútuo de cultivá-las. Ela deve nascer da compreensão dos processos contraditórios que o capital desenvolve no campo e atuar no contra-fluxo de sua lógica [...].

Estão equivocados, portanto, aqueles que atribuem à aspiração

milenar por uma ordem social mais justa e igualitária, uma possibilidade fugaz de

mobilização dos camponeses, a exemplo de Wolf (1976). Segundo esse autor, a

permanente recusa dos camponeses em aceitar a extração de excedentes os torna

aptos a compor movimentos revolucionários, mas não os habilita a construírem um

121 C.: Água da Jacutinga - Londrina.

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projeto político próprio. Portanto, trata-se de uma interpretação alinhada à visão

kautskiana de que os mesmos necessitariam de agentes externos para conduzi-los:

A emergência de um mito comum de justiça transcendental pode freqüente e efetivamente levar os camponeses tanto a ações impossíveis como a outras formas de organização. Mas concede-lhes somente uma visão comum, não uma estrutura organizacional para ação. Esses mitos unem os camponeses, mas não os organizam. Se às vezes um bando de camponeses varre o campo como a uma avalanche, do mesmo modo dispersar-se-á na resistência, desintegrando-se se uma liderança adequada não vier de fora. Os movimentos camponeses, como as alianças, são instáveis e rápidos alinhamentos de unidades antagonizadas e autônomas, nascidas momentaneamente de um sonho milenário. (WOLF, 1976, p. 144).122

Notemos que o autor reconhece a capacidade revolucionária dos

camponeses, a qual está inelutavelmente inscrita na história contemporânea.

Contudo, os pressupostos construídos em torno da idéia de que a diferença

necessariamente deve ser enquadrada numa ordem hierárquica é que resvala no

lugar comum dos que confundem a história dos camponeses com a história para os

camponeses. Isso porque negar a capacidade de implementação da utopia

camponesa é definir escalas a priori, desconsiderando que as partes do território

conquistadas por essa classe são estruturadas em torno de um código moral

orientado por esse projeto histórico de justiça.

Por outro lado, atribuir-lhes a incumbência da transformação da

sociedade pautada num conceito de revolução que efetivamente não se enquadra

nessa mesma utopia é incorrer, mais uma vez, na expectativa equivocada de que a

superação do capitalismo virá pelas mãos de uma classe redentora. Gramsci (1987)

já advertia que tal superação requer um projeto conjunto dos trabalhadores sem a

hierarquização das diferenças.

Por fim, cabe lembrar que os projetos camponeses que mais se

aproximaram dessa igualdade utópica não foram compreendidos nem mesmo pelos

arautos do projeto de sociedade socialista. A título de exemplo, citamos as comunas

russas (Mir), que não foram reconhecidas pelo Partido Bolchevique como

experiências passíveis de contribuírem para o projeto socialista123. Assim, deve-se

realçar que não é a ausência de mediadores externos que impede a articulação dos

camponeses em torno de projetos mais igualitaristas, porque eles são inumeráveis.

Antes, são justamente as intervenções vindas de fora que, via de regra, os têm

dilacerado.

122 Grifo nosso. 123 Cf. Fabrini, 2002, p. 48-74.

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CAPÍTULO 5

A PORÇÃO CAMPONESA DO TERRITÓRIO: UNIDADE NA

DIVERSIDADE

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5.1. Políticas públicas e camponeses: encontros e desencontros

O lavrador é o soldado que trabalha na roça, é o soldado braçal que o governo tem. Não é aquele soldado que ele vai pôr lá para dar poder para os industriais, porque os industriais se não tiverem os preços reajustados, eles dão prejuízo...abrem falência e pegam dinheiro do governo. Agora, nós aqui não, se a gente não pagar o dinheiro que pegou, eles querem tomar a terra, por que? Porque a gente é pequeno. Tem muitos aí que a terra já foi tomada, a gente não tem a força... Quando existe um soldado que perde a saúde na roça, ou que não consegue pagar o que pegou no banco por falta de preço justo, ele coloca aquele soldado que está com a arma na mão para destruir... (J.: Água Clara - Nossa Senhora das Graças).

Embora a face mais perceptível da intervenção do Estado no campo

seja a política de crédito e de preços mínimos dos produtos agrícolas (ou a ausência

dela), a interferência das políticas públicas no processo de recriação camponesa é

por demais significativa.

Refletir sobre seus desdobramentos requer, antes de mais nada,

recuperar um pressuposto já destacado anteriormente: trata-se de reconhecê-las

como instrumento privilegiado de mediação de interesses em uma sociedade

dividida em classes, cujos objetivos e necessidades são necessariamente

conflitantes.

Ao assinalar o caráter contraditório do processo de recriação

camponesa no capitalismo, Oliveira (1986) destaca que, não raro, esta vem

revestida da cessão gratuita do trabalho camponês para a sociedade, através dos

preços alcançados pelos produtos que os mesmos colocam no mercado,

notadamente os alimentos básicos.

Deve-se lembrar que os baixos preços deles não são um fato isolado,

mas que se articulam a um processo de desvalorização social dos agentes dessa

produção, perpetuado pela sistemática transferência de renda a outros setores da

sociedade. Nesse particular, o concurso do Estado é inquestionável, seja na

elaboração e execução das políticas de crédito agrícola, seja na definição de preços

mínimos, muitas vezes incompatíveis com os custos da produção e, por fim, pela

própria anuência às relações de mercado predatórias.

O equacionamento analítico desse paradoxo se fará através do

reconhecimento de que a existência camponesa se inscreve em um quadro de

resistência que transcende a esfera econômica, embora seja essa a face mais

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explícita de um conflito primordial: quem irá se apropriar da renda gerada pelo

trabalho camponês.

Assim, é oportuno lembrar que tal conflito se desenrola no plano da

luta de classes, a qual remete à capacidade política de construir o devir que os

camponeses têm demonstrado ao longo dos séculos, a despeito de sua

vulnerabilidade ante os mecanismos de extorsão empreendidos pelas forças

dominantes.

Nesse sentido, há que se ponderar que tais embates comportam

diferentes estratégias, não devendo ser resumidos a meros confrontos diretos.

Embora isso se aplique a situações particulares, notadamente a ocasiões em que os

camponeses vêem a sua sobrevivência ameaçada de fato, outras dimensões da

resistência camponesa, com freqüência, têm passado despercebidas nos estudos,

especialmente quando a tônica do desaparecimento enquanto classe prevalece.

Vimos que, em última instância, essa mesma interpretação remete a

uma concepção histórica de sua suposta inconsistência política, que no plano das

ações revolucionárias, tenderia à cooptação pela classe hegemônica, ou no limite,

revelaria uma inércia obstrutiva, como se a revolução fosse tarefa de uma classe

naturalmente iluminada. Conforme já advertira Oliveira (1994, p. 51), a superação

das formas de exploração capitalistas não pode ser pensada a partir da hegemonia

de uma classe sobre a outra, mas de uma aliança instituída a partir do respeito às

diferenças entre as classes oprimidas.

E trata-se de diferenças por demais significativas. Conforme lembra

Martins (2002), a subordinação ao capital manifesta-se de forma diversa entre

proletários e camponeses: os primeiros são atingidos pela extração do trabalho

excedente, ao passo que, sobre os últimos, pesa a extração da mais-valia social. É

por essa razão que a compreensão desse processo e o encaminhamento das lutas

deve necessariamente divergir.

A fala camponesa que introduz esse capítulo parece dirimir

qualquer dúvida a esse respeito: o fato de conservarem a autonomia sobre os meios

de produção, inserindo-se no circuito mercantil como produtores e, ao mesmo

tempo, consumidores de mercadorias necessárias ao processo produtivo sob seu

controle, remete suas ações e atenções ao plano institucional, mais precisamente ao

governo.

Diferentemente dos operários, cujo vetor de exploração se

materializa diretamente nos capitalistas para os quais vendem sua força de

trabalho, os camponeses conseguem ter clareza que, em última instância, é o

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Estado quem dá o tom da assimetria nas trocas que os envolvem, na medida em

que se alia, ou pelo menos não cerceia as práticas lesivas empreendidas pela classe

hegemônica.

(...) o homem que trabalha na roça não abre mão do seu serviço, ele trabalha e ama o serviço que ele faz, porque ele é um soldado honesto. Agora aquele soldado que ele [o governo] ponha lá para proteger os poderosos, aquele soldado lá não é digno, porque ele acompanha os poderosos. Ele está lá para acompanhar os poderosos que emprestam o dinheiro do governo, se ele não capta dinheiro para pagar, ele fecha a indústria. Se tem três ou quatro mil pessoas trabalhando ele fecha assim mesmo. Agora o governo deixa de aplicar o dinheiro num soldado de garantia, que é o da roça, que é o soldado braçal. Você já pensou quantos mil que não tem que o governo deveria pensar em reajustar os preços daqueles que põem o que comer?1

Essa possibilidade de identificar a parcialidade do Estado em

relação ao trabalho que produz a riqueza que, como vimos, tem sua face mais

explícita no preço das colheitas e nos custos da produção camponesa, faz com que

os camponeses reajam a essa situação de forma pouco convencional, quando a

referência é o universo daqueles que já experimentaram a sujeição real ao capital.

Enfim, o fato de possuírem os meios que os tornam senhores de si, faz com que a

lógica acionada seja exatamente a da preservação desses meios, postura

comumente entendida como conservadora pelos que a analisam de fora.

Considerando que a essência dessa condição está no acesso à terra,

é fácil entender a saga pela conquista e permanência nela. Essa autonomia é de tal

forma prezada pelos camponeses que até mesma a idéia de dignidade está

intimamente relacionada à mesma.

Pelo mínimo, uma família tinha que ganhar o suficiente sem ninguém ter que trabalhar de empregado, pelo menos aquele que tem a terra. Aquele que não tem, que vai trabalhar de arrendatário, tem que ter esperança de ter o suficiente também, porque a pessoa que trabalha de arrendatário é digno também. Como é que pode, o governo vai deixar esse imenso solo fértil parado, perdido em ervas daninhas? Que nem os fazendeiros? ...O governo não quer saber se o soldado da roça vai perder a esperança de trabalhar, se vai perder a única arma que tem, que é a enxada. Eu sou um soldado fiel...eu não vou destruir firmas, bancos, não vou lá mandar parar o banco, eu não vou fazer esse tipo de coisa, porque para mim é mais provável eu morrer quietinho aqui na minha terra. Eu não vou parar nosso país não, eu apenas vou cruzar os meus braços...vou deixar minha propriedade para as ervas daninhas comerem.2

1 J.: Água Clara - Nossa Senhora das Graças. 2 J.: Água Clara - Nossa Senhora das Graças.

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Trocar ações incisivas pelo cruzar dos braços, saída derradeira

defendida pela maior parte dos camponeses que tivemos a oportunidade de

encontrar, evidencia um conteúdo de sublevação de alcance maior do que se

poderia supor: como lembra Oliveira (1994, p. 51), os alimentos produzidos “de

graça” asseguram a redução dos custos com a reprodução da mão-de-obra,

ampliando assim a margem de lucro dos capitalistas.

Embora essa represente o extremo de uma ação possível, daí seu

caráter quase utópico, não se pode ignorar que os camponeses, ao resistirem à

sujeição real, subvertem a ordem ditada pelo capital. A nosso ver, trata-se de um

enfrentamento silencioso, o qual se inscreve em uma perspectiva de classe que

possui uma característica singular: a capacidade de produção dos próprios meios

indispensáveis à sua sobrevivência. É em função dela que os mesmos dispõem de

múltiplas formas de fazer política.

É nesse embate delineado pelos interesses de classe que o Estado

acaba sendo chamado a intervir. Sabendo-se que a produção camponesa é

fundamental para o abastecimento do mercado interno, as políticas públicas

tendem a ser encaminhadas de modo pontual, a fim de amenizar as contradições

para que esse frágil equilíbrio seja preservado.

E entre as frentes de atuação do Estado, alguns programas de

intervenção direta tem sido relevantes. Entre eles, destacaremos aqueles cuja

interferência se faz desde uma escala ampla, envolvendo os municípios e as

instituições de assistência técnica na solução de problemas das comunidades

rurais até aqueles que têm alcance individual, beneficiando apenas as famílias

contempladas com recursos a serem aplicados internamente.

Contrariamente ao que se poderia supor, embora os atuais

programas de responsabilidade do Governo Federal preconizem essa intervenção

mais ampla, verificamos que, na região estudada, ocorre o inverso. Ou seja, o

“Paraná 12 meses”, programa do Governo do Estado, tem se mostrado mais amplo

em termos de modificação das estruturas que dão sustentação à reprodução

camponesa do que o PRONAF. Em tese, este estaria voltado às diversas frentes que

sustentam essa modalidade de agricultura, desde a infra-estrutura comunitária até

os instrumentos de viabilização de crédito para investimento e custeio da produção.

Por fim, nos ocuparemos do Programa Cédula da Terra em sua versão que nos

interessa de perto: o Banco da Terra.

O “Paraná 12 meses” é um Programa estabelecido a partir de uma

parceria do Governo Estadual e o Banco Mundial, com o objetivo explícito de

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diminuir a situação de pobreza no campo e atuar no manejo e conservação dos

recursos naturais. Para tanto, seriam investidos 353 milhões de dólares, sendo que

cada uma das partes financiadoras seria responsável pela aplicação de 50% desses

recursos.

De acordo com o programa, a intervenção se daria a partir de três

instâncias: investimento em infra-estrutura de uso individual e comunitário,

investimento em projetos de geração de emprego e renda e, por fim, investimento

para a preservação do equilíbrio entre as atividades agrícolas e o meio ambiente.

Além do programa Vilas Rurais, foram estabelecidas prioridades no

que se refere à melhoria das condições de saneamento básico e das próprias

habitações rurais, construção ou adequação de abastecedouros e salões

comunitários, construção e ou adequação de unidades artesanais de transformação

da produção para agregação de valor, readequação de estradas, controle de erosão

etc.

Preconizando ações articuladas com os órgãos e programas da

administração federal, o “Paraná 12 meses” contempla várias categorias de

trabalhadores, inclusive os temporários, através das Vilas Rurais, sobre as quais se

fará uma rápida abordagem mais à frente. No que tange aos sujeitos que nos

interessam mais de perto, os mesmos foram enquadrados no programa a partir de

uma classificação entre Produtores de Subsistência (PS) e Produtores Simples de

Mercadorias (PSM), distribuídos de acordo com a participação da mão-de-obra

familiar nas atividades, quantidade de terras, máquinas e benfeitorias disponíveis,

numa escala crescente, como demonstra o Quadro 4.

Quadro 4 – Classificação dos agricultores segundo a condição produtiva Produtores Área (ha.) Benfeitorias U$ Equipamentos U$ Mão-de-obra PS/PSM1 Menos de 15 Menos de 5.000 Menos de 4.000 80% familiar PSM2 15 a - 30 De 5.000 a – 12.000 De 4.000 a- 12.000 50% familiar PSM3 De 30 até 50 De 12.000 a – 40.000 De 12.000 a – 36.000 50% familiar Fonte: EMATER, 2001

Cumpre salientar que esse espectro de agricultores, guardadas

algumas variações em termos de enquadramento e nomenclatura, também se

enquadra no conjunto de beneficiários arrolados pelo PRONAF, o qual será

analisado mais adiante. Por ora, interessa-nos destacar que, diferentemente do

PRONAF, esse programa tem centrado suas ações em torno do público alvo mais

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vulnerável economicamente, como os assalariados temporários e as comunidades

camponesas mais carentes.

Apesar das distorções em nome de um projeto político que não está

e nem poderia estar explicitado no programa, face à sua ambigüidade em relação ao

que está proposto, o fato do mesmo privilegiar as demandas coletivas é que, a nosso

ver, contribuem para o fortalecimento das comunidades. Isso permite um avanço

não apenas do ponto de vista econômico, mas também político, pois as

metodologias de levantamento dessas demandas inserem a comunidade no

encaminhamento das soluções.

Entretanto, é necessário lembrar que esses avanços são tímidos e

isso se deve exatamente aos objetivos não revelados, que vão sendo alcançados à

medida que se espraia o programa Vilas Rurais. O volume de investimentos que tem

sido carreado para as mesmas e a forma como vem sendo aplicado, tem gerado uma

série de protestos das entidades organizadas, inclusive junto aos organismos

internacionais, tendo em vista a co-participação do Banco Mundial no processo.

Além dos problemas internos à construção e gerenciamento das

Vilas Rurais, o que mais preocupa é o caráter desmobilizador e de

descaracterização das lutas camponesas. Basta considerar que o custo de

implantação das Vilas chega a superar, em alguns casos, o dos assentamentos, com

a diferença que essas não geram emprego e renda, em face da exigüidade dos lotes.

Ao mesmo tempo, incorrem em uma irregularidade que elimina a possibilidade de

titulação aos contemplados, já que a área dos lotes é inferior ao mínimo permitido

pelas leis brasileiras.

Essa ressalva é necessária para que possamos compreender os

meandros das políticas públicas que, muitas vezes, a pretexto de desenvolver o

campo, podem reforçar as desigualdades existentes. Entretanto, pode-se afirmar

que, se no plano estrutural, intervenções dessa natureza são contrárias aos

interesses da classe camponesa, no plano imediato das comunidades

contempladas, os efeitos são positivos. Isso é particularmente evidente entre

aquelas mais empobrecidas, especialmente se localizadas dentro das chamadas

zonas de pobreza, as quais podem ser contempladas com projetos de investimento

a fundo perdido.

Tais zonas foram delimitadas de acordo com o Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) dos diferentes municípios. Cumpre salientar que,

embora mais amplo que as formas tradicionais de mensurar a condição de pobreza

de uma dada população, esse critério também tem limitações, por estar assentado

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281

em médias. O fato do Norte do Paraná se apresentar como uma das zonas mais

dinâmicas do Estado, têm trazido embaraços para as comunidades empobrecidas,

que não são poucas. Alguns técnicos da EMATER, órgão oficial de assistência

técnica, nos relataram as batalhas institucionais travadas para que essas

comunidades pudessem ser beneficiadas com a liberação de tais recursos, ainda

que sem alcançar o status de áreas prioritárias de intervenção econômica.

Não obstante, para que essas intervenções se concretizem, o

envolvimento da EMATER tem sido decisivo, estando a seu cargo todos os aspectos

ligados ao gerenciamento das ações. O gerenciamento a que nos referimos implica

na mediação de todo o processo, desde o diagnóstico junto às comunidades para

verificar as necessidades mais prementes, até o encaminhamento dos trâmites

burocráticos para a liberação dos recursos, bem como a fiscalização de sua

aplicação.

Na área pesquisada, pudemos encontrar comunidades beneficiadas

com reformas de moradias, adequação de estradas, obras de usufruto comunitário

como salões de reuniões, abastecedouros de água e até mesmo a construção de

uma indústria doméstica de açúcar mascavo e rapadura.

Embora as demandas ultrapassem em muito essas intervenções

pontuais, não resta dúvida que tais melhorias expressam uma frente de

fortalecimento do campesinato, sobretudo porque evidenciam uma presença que

tem sido capaz de marcar a agenda de prioridades do Estado.

Por outro lado, as obras que não pressupõem contrapartida

monetária, os chamados projetos a fundo perdido, tendem a provocar profunda

desconfiança nos camponeses. Isso se aplica àquelas de interesse individual, como

é o caso da reforma de moradias. É nesse sentido que uma metodologia de trabalho

adotada pela EMATER procura contornar a resistência da comunidade: trata-se do

Diagnóstico Rural Participativo (DRP).

O DRP pressupõe um envolvimento comunitário para a discussão

dos problemas comuns. Feito isso, a próxima etapa consiste na definição de

prioridades para o encaminhamento de soluções, já que os recursos, quando há,

são escassos. A oportunidade de acompanhar algumas dessas dinâmicas nos

evidenciou o quanto as comunidades podem avançar com a união de esforços em

torno de soluções comuns. Além de eventualmente culminarem em alguns dos

benefícios mencionados, fortalecem a disposição em lutar por outras demandas.

Cumpre salientar que, embora a dinâmica seja estimulada pela

EMATER e tenha por princípio a aplicação prioritária de eventuais recursos, a

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cultura do envolvimento comunitário em torno de soluções comuns é uma das

marcas do campesinato. Trata-se da ajuda mútua, que acontece

independentemente desse esforço dirigido, tema ao qual nos dedicaremos mais

adiante.

Outrossim, o envolvimento nesses termos acaba por impor limites à

interferência de agentes externos, inclusive da referida instituição, cujo trabalho

depende efetivamente da aceitação pela comunidade. Situações opostas

constatadas durante a pesquisa de campo assim o evidenciam.

Um dos fatos que, a nosso ver, merece destaque, foi a recusa de um

grupo de camponeses em integrar o projeto de reforma gratuita das moradias.

Advertimos que, nesse caso, não se trata de um estranhamento em relação ao órgão

mediador imediato, no caso a EMATER, cuja legitimidade entre a maior parte das

comunidades é indiscutível, legitimidade essa que resulta de um trabalho de quase

meio século de assistência técnica e extensão rural.

Trata-se de uma profunda desconfiança em relação aos objetivos do

Estado, manifesta na descrença que esse pudesse lhes conceder algo de graça. A

histórica omissão desse, na melhor das hipóteses, foi suficiente para criar na

comunidade esse inusitado mecanismo de defesa.

O agricultor está tão tarimbado com falsas promessas que, às vezes, é difícil eles acreditarem no nosso trabalho. Aqui em Sabáudia, cerca de trinta famílias não aceitaram participar do projeto de reforma de residências custeado pelo Paraná 12 meses. A dúvida deles era a seguinte: se o governo está dando isso para a gente agora, o que ele vai tirar mais para frente?3

Esse recolhimento não se dá apenas nessa situação específica.

Vimos, anteriormente, o quanto os camponeses podem se retrair, temporariamente,

para não perderem sua condição autônoma, ainda que esse ato possa representar

privações severas.

Por outro lado, o grau de legitimidade das instituições pode ser

expresso no plano das representações políticas do município. A candidatura de

técnicos da EMATER a cargos do legislativo nas pequenas cidades não é um fato

isolado. Além de evidenciar a importância dos camponeses na vida econômica das

mesmas, esse fato revela a presença importante de seus agentes nas comunidades

rurais.

Analisemos aspectos reveladores dessa presença, os quais se

3 I.: Técnica da EMATER – Sabáudia.

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manifestam no desfecho do pleito: a existência de técnicos atuando como

vereadores indica mais que a simples aquiescência da comunidade, pois, nas

cidades menores, a visibilidade dos atos do legislativo é maior. Com isso,

verificamos uma tendência desses legisladores atuarem em favor dos interesses das

comunidades camponesas.

Notemos que são algumas intervenções que fazem toda a diferença:

conserto de trechos críticos das estradas rurais, construção de terraços para conter

a erosão dentro das propriedades, construção de açudes e até mesmo preparo do

solo, em geral, são conquistados através da mediação dos vereadores. Lembramos

que tais ações, embora sejam fundamentais para os camponeses, pouco oneram os

cofres públicos, pois as máquinas são da prefeitura e os custos com combustível e

eventuais horas- extras com os maquinistas são pagos pelos primeiros.

Há que se ponderar que, independentemente dos programas

estaduais ou federais, a presença do poder público municipal nas comunidades

rurais é indispensável, sobretudo quando se trata de medidas como as destacadas,

já que a contratação desses serviços, sobretudo de máquinas pesadas, é proibitiva à

maior parte deles. Não nos parece mera coincidência o fato de que a presença do

poder público municipal nas comunidades rurais esteja relacionada à

representação camponesa na Câmara. Evidentemente, é necessário qualificar essa

representação, pois ela somente é válida quando há um compromisso com a

comunidade. É por isso que em alguns municípios, alguns técnicos se mantêm

como vereadores em várias legislaturas, o que não deixa de ser um sinal da

legitimidade que os mesmos gozam no exercício de suas atribuições.

No entanto, esse envolvimento pressupõe uma ética profissional que

nem todos possuem, o que pode muitas vezes trazer constrangimentos para os

camponeses. E para isso nem é necessário a vitória no pleito; aliás, no plano

imediato, a derrota parece ser ainda mais negativa. Quando prevalece a idéia de que

o exercício das atribuições públicas implica em dívida pessoal, a ser paga com

votos, por exemplo, a recusa nas urnas tende a interferir no envolvimento com o

trabalho que cabe ao servidor executar.

Aliás, essa postura já é um indicativo da falta de legitimidade junto

aos camponeses, pois essa não se conquista apenas com o simples exercício técnico

das funções. Na região estudada, pelo menos um evento dessa natureza foi

constatado, ainda que nenhuma das partes tenha feito qualquer menção explícita

ao ocorrido. O fato do esforço de interpretação sobre os avanços e recuos do

processo de territorialização camponesa não dispensar as manifestações políticas

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de lutas e resistências é que nos levou a encontrar essas evidências nas entrelinhas

das conversas com camponeses e técnicos.

A nosso ver, isso evidencia a extraordinária capacidade de

insubordinação das comunidades camponesas aos laços de dominação pessoal, que

também se alimenta do exercício impróprio das funções públicas no meio rural.

Ao fazê-lo, os camponeses demonstram maturidade política para

lidar com eventuais represálias que podem se manifestar na omissão das funções

ou mesmo na obstrução de caminhos que podem conduzir aos benefícios que

dependem da mediação da instituição. Tivemos a oportunidade de acompanhar a

mobilização da comunidade para exigir transparência na elaboração e

encaminhamento de um projeto de abastecimento comunitário de água, já que a

não apresentação do mesmo em tempo hábil implicaria na perda dos recursos do

Estado disponibilizados para aquele fim.

Esse caso isolado pode ser tomado como advertência de que a

classe camponesa nem sempre se curva à hierarquia de funções e saberes e cria

variadas formas de resistência para driblar a prevalência de poder que se nutre

dessa hierarquia.

Desse modo, no plano das políticas públicas, podem ocorrer

desencontros entre as estratégias de intervenção delineadas em gabinetes e sua

aplicação prática. Mesmo que no jogo político, um equilíbrio circunstancial culmine

em programas de interesse dessa classe, ou a conjuntura exija concessões a fim de

mitigar as contradições, quanto maior for a distância mantida, maior a

probabilidade de desacertos.

É por isso que, em diferentes instâncias, equívocos ocorrem, seja no

interior das instituições elaboradoras dos programas, seja no momento de sua

execução. Vimos que na região, essa ponte é feita pela EMATER, órgão público com

histórico envolvimento com os produtores pequenos. Embora as cooperativas e

empresas integradoras também se façam presentes, trata-se de uma intervenção

restrita, basicamente condicionada às atividades econômicas de seu interesse.

A princípio, deve-se lembrar que a própria instituição vem sofrendo

com a ingerência do Estado, empenhado em lhe retirar o caráter de órgão público. A

pretexto de desonerar os cofres, a EMATER vem sendo submetida a um verdadeiro

desmonte, com destaque para a redução do número de funcionários e a

obrigatoriedade de captar externamente os recursos necessários ao seu

funcionamento, com exceção da folha de pagamento, ainda a cargo do Estado.

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Essa diretriz em si já acena para o direcionamento da instituição

para uma solução de mercado, ou seja, a prestação de serviços deve pressupor

contrapartida monetária. No entanto, o montante de renda auferido pelos

camponeses bloqueia essa possibilidade, razão pela qual a maior parte das

prefeituras acaba estabelecendo parcerias com a instituição, de modo a viabilizar

esse trabalho junto às comunidades rurais. Porém, não resta dúvida que a

instituição se acha dividida entre a exigência de captar recursos através da

prestação de serviços aos médios e grandes proprietários e a premência de atender

àqueles que mais necessitam de auxílio técnico, já que não dispõem de recursos

para tanto.

A essa barreira estrutural vem se somar um desencontro que, por

vezes, é materializado na relação entre técnicos e camponeses: em essência, o

mesmo deriva do encontro entre visões divergentes sobre o sentido do trabalho e da

agricultura, senão vejamos.

A formação de toda uma geração de técnicos ligados à agropecuária,

se fez e ainda se dá sob a égide do paradigma tecnicista. Desse modo, a filosofia do

trabalho para o qual foram formados, está embasada no pressuposto de que o saber

camponês deve ser removido em nome da eficácia técnica. Essa ambigüidade, no

entanto, nem sempre é levada ao extremo, pois aqui se está tratando de sujeitos

cuja concepção de mundo necessariamente diverge.

Assim, há técnicos e técnicos. Em alguns casos, a interlocução

entre o saber convencional dos mesmos e o saber tradicional dos camponeses é

praticamente nula.

O esforço de um segmento em implantar na unidade camponesa a

racionalidade da empresa capitalista pode ser apreendida na insistência de uma

contabilidade rigorosa, para a qual a empresa inclusive disponibiliza planilhas e

toda a orientação necessária: “o produtor ainda não sabe que é um empresário

rural. (...) ele tem que ter um controle, saber exatamente quanto está custando para

produzir isso ou aquilo, porque muitas vezes ele está tendo prejuízo e não sabe.”4

A questão parece ser outra que a de criar mecanismos contábeis

para mensurar a eficiência produtiva, mesmo porque os parâmetros não coincidem.

Vimos que a lógica camponesa não pressupõe o encerramento de atividades que, do

ponto de vista capitalista, dão prejuízo. Aliás, isso se explica pelo simples fato de

4 Conferência de um técnico da EMATER em um curso para produtores de café, realizado em Londrina, em junho de 2001.

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que essa variável também é fluida, de acordo com a combinação estabelecida no

interior de cada sítio.

Ademais, há uma explicação particular para não realizar esse

procedimento: “A gente não pode fazer as contas porque, se fizer, vai descobrir que

está trabalhando de graça ou até pagando para trabalhar. Aí vai ter que desistir...e

depois, vai fazer o quê? Enquanto der a gente vai levando.”5

Assim, mesmo sendo inquestionável o propósito de provocar uma

redenção socioeconômica dos camponeses, se essa for condicionada à incorporação

de métodos organizacionais e pacotes tecnológicos prontos, há uma grande

probabilidade de surgirem dificuldades reais.

Trabalhar com eles é difícil...a gente fala que é para fazer de um jeito, eles fazem de outro...quando é a gente que fala, quase ninguém dá crédito, mas se for um deles que fala, aí noventa e cinco por cento confia.6

Notemos que, no relato, o centro do desencontro entre o que

recomenda o técnico e o que executam os agricultores, parece ser a falta de

legitimidade mútua. Da parte dos primeiros, a inobservância das orientações

técnicas tende a ser interpretada como apego ao tradicional ou simplesmente

resistência em mudar para melhor.

Trata-se de uma resposta simples para um problema complexo: o

encontro de duas lógicas contraditórias. Dentro do paradigma tecnicista, a tônica é

o mercado, cuja fruição das supostas benesses se daria através da eficiência em

produzir mercadorias.

Nesse contexto, o trabalho de assistência técnica está centrado no

esforço em fazer valer a observância do receituário que sustenta o pacote

tecnológico, o que em si já pressupõe a prevalência da mercadoria sobre o sujeito.

Disso resulta uma dupla violação da lógica camponesa: num primeiro plano,

instala-se o embate entre a autonomia e a alienação.

Temos visto que a luta pelo controle sobre o processo produtivo é

uma das variáveis que melhor explicam a recriação camponesa. Esse controle

pressupõe tanto a preservação dos instrumentos materiais quanto o domínio sobre

o conjunto de saberes que possibilita a sua consumação.

Não obstante, esse saber endógeno transcende o limite da técnica

em si. Por ter sido gerado no interior de um processo em que a produção material e

5 A.: Água Ouro Fino - Londrina. 6 Y: Técnico da EMATER - Ibiporã.

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a reprodução social são indissociáveis, está impregnado de conceitos e valores nos

quais os camponeses se reconhecem. Aqui, há que se ter cautela para não incorrer

em simplismos, em nome da objetividade que acompanha o status científico, o qual

ratifica apenas o conhecimento submetido aos rigores do método.

A racionalidade camponesa é outra, o que não significa que ela deva

ser atirada na vala comum que costuma ter como referência a oposição moderno e

arcaico. Sendo portadores de um projeto estruturado na lógica da reprodução

familiar, o saber que orienta a prática circula a partir de uma intersecção entre o

que já se provou e o que poderá e ou deverá ser provado.

Em outras palavras, o saber camponês alimenta-se das práticas que

possibilitam a sua recriação, sem que isso signifique necessariamente experiências

diretas, daí que as provas às quais nos referimos, remetem ao duplo significado de

experimento e legitimação.

Trata-se, portanto, de um conjunto de referências inscritas na

história familiar e comunitária que normatizam o presente e orientam as ações

futuras, na medida em que são associadas aos resultados das diferentes estratégias

registradas nessa trajetória. Ao mesmo tempo, tais referências são acionadas de

forma que não se perca o controle sobre algo a ser experimentado.

Nisso consiste a diferença essencial da classe camponesa. Ao

dominar os pressupostos intelectuais e mecânicos do processo produtivo, a mesma

se move dentro de um parâmetro singular de autonomia.

Ora, o que faz o pacote tecnológico é justamente anular essa

prerrogativa, principalmente por ter sido gerado externamente, a partir de

fundamentos técnicos e filosóficos totalmente alheios à sua estrutura organizativa.

Com isso, a lógica produtiva camponesa fica de fora, não se enquadrando no

modelo em questão.

Essa é uma das fontes de conflito a que nos referimos

anteriormente: a importação desse pacote traz consigo componentes da alienação,

na medida em que a mesma supõe uma incorporação automática, livre do crivo

construído no interior das práticas sociais.

Ocorre que a autonomia a que nos referimos está pautada em um

conjunto de práticas e saberes incompatíveis com um descarte automático de

histórias, o que acaba por erigir uma barreira a um engajamento cego ao novo

modelo.

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É nesse contexto que os critérios anteriormente destacados são

acionados pelos camponeses, os quais, em geral, promovem uma verdadeira

filtragem com base naquilo que julgam oportuno incorporar.

Aí reside o desencontro entre a visão mecanicista do processo

produtivo e a lógica que transcende a segmentação na agricultura. Como vimos,

alguns profissionais buscam superá-lo através da invocação dos valores que

desconsideram não apenas o saber, mas a própria lógica de reprodução camponesa.

Nesse caso, há dois desdobramentos possíveis: no primeiro, o

trabalho de assistência técnica dissolve-se parcialmente na resistência camponesa,

gerando combinações práticas que, naquele ponto de vista, deixariam de cumprir os

princípios da eficácia.

Uma situação emblemática verifica-se na pecuária leiteira: a

ortodoxia preconiza a necessidade dos camponeses modificarem a composição

genética do rebanho, recorrendo às raças de maior produtividade leiteira, como é o

caso da raça holandesa.

Nesse caso, impera a lógica de que a obtenção de renda depende da

quantidade de leite passível de ser colocada no mercado. Vimos inclusive que as

próprias empresas aplicam um sistema de cotas de premiação progressiva.

Portanto, do ponto de vista da lógica do mercado, não há dúvida que essa

orientação procede. Vejamos, porém, suas limitações na perspectiva dos

camponeses.

Em primeiro lugar, o êxito desse sistema depende da imbricação de

dois fatores: escala e especialização. Em outras palavras, a rentabilidade depende

da produção em grande quantidade e essa, por sua vez, requer especialização.

Como se sabe, os custos da especialização são bastante elevados, a começar pelos

animais. Além do preço de aquisição ser muito alto em relação ao rebanho mestiço,

o sucesso da lactação está condicionado à inseminação artificial e alimentação

diferenciada.

Por fim, esse sistema é de alto risco, tendo em vista o custo e a

resistência menor dos animais às doenças.

A gente tem o exemplo aqui, do nosso vizinho, que resolveu começar a trocar devagarinho as vacas que davam menos leite por vacas de raça. Para comprar uma holandesa ele teve que vender cinco, entre vacas e novilhas. Não sei se ele achou que podia tratar a vaca do jeito que estava acostumado a tratar as outras ou se foi falta de sorte...só sei que a vaca morreu. Você veja bem, às vezes acontece de morrer uma vaca ou outra, mas cinco de uma vez? O que aconteceu

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foi isso, ele não perdeu uma vaca, mas cinco de uma vez só. É por isso que animal de raça não é coisa para pequeno.7

Como vemos, embora do ponto de vista da racionalidade técnica o

gado holandês seja melhor em virtude da sua maior capacidade de produção de

leite, há que se considerar que essa produção não se viabiliza no mesmo patamar

de custos do gado mestiço. Além disso, por se tratar de raças originárias de climas

temperados, são mais suscetíveis a doenças, sobretudo às infecciosas. Como se

sabe, o custo de acompanhamento de médicos-veterinários, bem como de

medicamentos, é proibitivo aos camponeses.

Por outro lado, o relato remete ao princípio de que a sustentação

camponesa pressupõe a diversificação do capital produtivo, o que permite a

absorção das perdas, que são recorrentes na agricultura. No caso em questão, não

se trata apenas da perda econômica imediata, representada pela morte do animal e

pela diminuição da quantidade de leite. Trata-se dos desdobramentos futuros dessa

situação. Sabendo-se que o sustentáculo da pecuária leiteira entre os camponeses

está centrado tanto no nascimento anual dos bezerros quanto no próprio leite, é de

se supor que os estragos serão maiores a médio prazo.

Portanto, a falta de clareza de que lógicas diferentes não comportam

soluções idênticas pode levar a um resultado oposto ao que se pretendia alcançar

com a assistência técnica.

Tivemos a oportunidade de visitar uma família que acabara de

desativar sua leiteria com produção diária de 400 litros de leite. Nesse caso, a

mesma se encontrava rigorosamente dentro dos padrões técnicos recomendados:

gado holandês, ordenha mecânica, resfriador, estábulo dentro das normas de

higiene, alimentação balanceada com base em volumosos e concentrados na

proporção adequada, manejo rigoroso das pastagens com base em adubação e

pastejo rotacionado etc. Enfim, nem mesmo a observância de todos esses quesitos

foram suficientes para manter a família na atividade. Quanto ao motivo, aquele de

sempre: o mercado. Os custos da atividade estavam sendo incompatíveis com o

preço pago pela indústria de laticínios.

A frustração desse empreendimento representa muito mais que um

insucesso econômico, tão recorrente na agricultura. Representa o sepultar de um

paradigma contido no projeto em que tanto o técnico quanto o produtor investiram

com toda fé.

7 M.: Água do São João - Centenário do Sul

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Ninguém tem mais legitimidade do que eu para falar de leite. Foram anos de trabalho para aproveitar a vocação da região e melhorar a produtividade dos pequenos produtores. E isso a gente conseguiu. Em dez anos nós conseguimos modernizar a atividade e triplicar a produção de leite no município. Mas hoje ela já caiu quase pela metade. O problema é que a indústria está cada vez mais predatória...ela não paga um preço que remunera o produtor.8

Essa situação ilustra a encruzilhada em que é colocada a

assistência técnica. Não basta ter eficiência produtiva, é preciso considerar que o

gargalo da agricultura é o mercado. E se trata de uma lógica que obedece a uma

relação inversamente proporcional: quanto maior for a eficiência do conjunto de

produtores, menor será o preço de suas mercadorias.

A percepção de que abraçar incondicionalmente a racionalidade

técnica é se render aos seus ditames pode fazer a diferença. Num sítio próximo dali,

encontramos uma família que preferiu não acatar integralmente o projeto de

modernização da atividade leiteira.

Teve um financiamento do governo para melhorar a produção de leite e eu peguei...aqui na vizinhança bastante gente pegou. Tinha bastante dinheiro, era no tempo do cruzado, quarenta mil por família, mas eu só quis o suficiente para melhorar a mangueira e comprar mais algumas vaquinhas...peguei doze mil. Na época até o técnico veio aqui, ele achava que tinha que usar o financiamento inteiro, que tinha que melhorar o gado para aumentar mais a produção. Pra quê? Agora só falta mais dois anos para pagar. Pra esse ano eu já tenho o dinheiro e o ano que vem, se for o caso, a gente vende uns bezerros. Agora quem pegou o financiamento inteiro, comprou vacas boas e equipou a mangueira não está agüentando pagar, porque o leite baixou e é do leite que a gente tem que viver e ainda tirar esse dinheiro...9

Essas situações opostas apontam para uma teia complexa em que a

assistência técnica tem que se mover. É necessário advertir que, ao preconizar um

modelo produtivo cujo desfecho pode ameaçar a condição camponesa, ou até

mesmo selar destinos em direção à proletarização, os técnicos de forma alguma

estão sendo inconseqüentes ou algo similar.

Trata-se de um paradigma que norteia não apenas as suas ações,

mas aquelas da sociedade como um todo. Sua força na agricultura é tal que a regra

é acatá-lo sem grandes questionamentos e basta sair a campo para perceber a sua

força.

Assim, desfechos dessa natureza são experimentados de forma

recorrente, envolvendo sujeitos e circunstâncias várias. Porém, por mais que

8 A: Técnico da EMATER - Flórida. 9 P.: Água do Colorado - Flórida.

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abalem as condições de trabalho, os mesmos estão contribuindo para a

consolidação de uma outra visão de assistência técnica e extensão rural públicas.

Ousaríamos afirmar que, na região estudada, a mesma já prevalece. Embora fiel

aos princípios que a justificam, a tônica do trabalho junto aos camponeses já

consiste no esforço de diversificação máxima da propriedade e a retomada da

autosuficiência alimentar, coisa que há tempos atrás soaria como insano na região.

Nos últimos anos, muitas comunidades chegaram a ser engolidas pelas máquinas. Aquela cultura da diversificação praticamente tinha se perdido, a máquina prometia resolver todos os problemas. Agora todo mundo está vendo que esse não é o caminho. A EMATER está resgatando esses valores: no trabalho com as comunidades, a gente procura mostrar a importância de tirar da terra toda a alimentação possível, de encontrar formas domésticas de agregar valor à produção, enfim, de fugir ao máximo das compras na cidade, porque a renda da pequena propriedade não comporta mais isso.10

Não se trata de sinalizar para uma suposta unanimidade entre

aqueles que atuam junto às comunidades, mas assinalar um consenso que já existe

na instituição. Já foi destacado anteriormente que diretrizes somente saem do papel

para serem implementadas no campo através da ação de sujeitos concretos e, nesse

percurso, suas visões de mundo e suas práticas pessoais, inelutavelmente, farão a

diferença.

Essa dinâmica, aliás, encontra-se totalmente imbricada nos

avanços e recuos do processo de territorialização camponesa, haja vista o potencial

de transformação que podem ser portadoras as instituições e organizações. Trata-se

apenas de uma questão de enquadramento em torno dos interesses de classe.

Quando as visões de mundo e os propósitos convergem para o mesmo ponto, as

comunidades tendem a se fortalecer, pois a instituição integra ou pelo menos

transita em esferas que definem a distribuição do fundo público e, no interior

dessas, dispõe de instrumentos que acabam por privilegiar projetos e

investimentos.

Conforme demonstraremos adiante, a liberação de crédito do

PRONAF aos produtores pequenos implica em um trâmite moroso e burocrático, o

qual prevê a elaboração de projetos que evidenciem claramente o enquadramento

das famílias nas regras e explicitem como se dará a aplicação de eventuais

recursos. Além disso, é necessário anexar uma série de papéis e certidões que

somente quem conhece as estruturas burocráticas poderia saber como e onde obtê-

10 I.: Técnica da EMATER - Sabaudia.

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los. Enfim, parece não haver dúvida de que, sem uma mediação externa, esse

processo excluiria os camponeses a priori.

Na região estudada, a primeira batalha dos trâmites burocráticos

para a tentativa de obter recursos do PRONAF é assumida pela EMATER,

instituição que além de estar mais próxima das comunidades rurais, caminha com

as mesmas na busca das soluções mais prementes.

Assim, se cumpridas as exigências formais, à liberação do

financiamento fica condicionada à disponibilização dos recursos pelo Governo

Federal e, por fim, a liberação dos mesmos pela agência bancária credenciada.

Ocorre que a autonomia dessas últimas em liberar os recursos da carteira agrícola

acaba criando sérios entraves aos camponeses.

Primeiro porque as exigências em termos burocráticos que recaem

sobre o agente financiador independe do montante concedido em financiamento, ou

seja, quanto mais pulverizada for a liberação dos recursos, maior trabalho terá a

agência em fazê-lo. Em segundo lugar, os recursos para a agricultura são escassos

e necessariamente disputados entre pequenos e grandes tomadores de

empréstimos. Considerando que os grandes tendem a ser os clientes preferenciais

dos bancos, é de se supor que os demais serão relegados a um plano secundário.

Os bancos não gostam de trabalhar com o PRONAF, aliás os bancos não querem nem saber dos pequenos produtores, é muito pouco movimento para muitos papéis. É mais fácil viabilizar o crédito para um grande produtor do que pequenas porções de crédito pulverizado. O trabalho é o mesmo para um pequeno e para um grande, mas o movimento é diferente. Hoje os gerentes trabalham com metas. Somente aqueles mais conscienciosos viabilizam o PRONAF sem embaraços.11

Durante a pesquisa de campo, pudemos acompanhar um fato que

bem ilustra essa situação: apesar da EMATER encaminhar os projetos ao Banco do

Brasil dentro das normas vigentes, a dificuldade dos camponeses em se

beneficiarem do Pronafinho, uma variação do PRONAF a ser melhor discutida

adiante, já se arrastava há anos, de tal modo que as sucessivas tentativas

frustradas levaram muitos a desistirem do intento.

Contudo, a insatisfação dos mesmos acabou eclodindo no Sindicato

dos Trabalhadores Rurais. Com a eleição de uma nova diretoria, a ação conjunta do

Sindicato e da EMATER em dado momento conseguiu tocar nas estruturas de tal

11 W.: Técnico da EMATER - Jaguapitã.

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forma que a gerência da carteira agrícola foi substituída e os recursos começaram a

fluir.

Essa é uma prova irrefutável de que a mediação do poder público

não pode ser analisada a partir de referências maniqueístas, pois, no caso em

questão, ambas as instituições são públicas, o que parece tornar incongruentes

ações contrárias.

Entretanto, não se pode perder de vista que, nos agentes

financiadores, entre os quais o Banco do Brasil, que domina a liberação de crédito

do PRONAF12, acha-se incrustada a lógica da modernização conservadora. O fato

desses organismos há décadas serem agentes diretos da desigualdade no campo,

pelo crédito privilegiado às camadas mais abastadas, explica a resistência na

viabilização do “Pronafinho”.

(...) há forte dificuldade de liberações de recursos para os agricultores não integrados e estas liberações continuam sendo feitas via uma forma tradicional: através do Sistema Bancário. Especialmente através do Banco do Brasil, que notoriamente tem um viés histórico de liberação que dificulta o acesso aos produtores menos integrados [...] Se o objetivo do programa era ofertar recursos para os produtores familiares com maior dificuldade de acesso a crédito e passíveis de integração econômica, ele não está seguindo esta direção. (CORREA e ORTEGA, 2002, p. 14).

Não se trata de atribuirmos ao sistema bancário a inteira

responsabilidade pela desigual liberação do crédito, uma vez que o objetivo do

programa seria exatamente diminuir essas distâncias em relação à classe

historicamente alijada das políticas de fomento à agricultura.

Esse estrangulamento se dá em virtude de um nó que está na

concepção estrutural do programa, que foi pensado na perspectiva da integração

eficiente ao mercado. Em outras palavras, ao serem definidas as linhas de ação do

programa, dividiu-se os agricultores familiares em segmentos de acordo com a

respectiva capacidade dos mesmos alimentarem o “ciclo moderno” da agricultura.

Não é casual, portanto, que a própria classificação designe os lugares dos mesmos.

A simples utilização do conceito de periférico, conforme consta da

definição do público alvo e a divisão em linhas de atuação com critérios

diferenciados, a nosso ver evidencia a quem o mesmo se destina. Enfim, se a

própria estrutura do programa reproduz hierarquias, como seria possível esperar

12 Segundo Correa e Ortega (2002, p.6) em 1998 o Banco do Brasil foi responsável pela liberação de 79,5% dos recursos para a Região Sul.

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que a longa tradição em privilegiar os menos necessitados em detrimento dos

demais fosse rompida?

É por essa razão que a precisão conceitual não dever ser confundida

com mera questão retórica. A estruturação do PRONAF, ao apoiar-se na definição

agricultores familiares, remeteu o benefício das políticas públicas àqueles que

demonstrem capacidade ou potencialidade de se reproduzirem através da eficiência

em produzir mercadorias. Chega-se assim a um projeto que obstrui o usufruto do

fundo público a um segmento de classe em grande medida responsável pela sua

constituição.

Daí a advertência de que as políticas públicas não se fazem à

margem dos embates teóricos. Em última análise, os mesmos revelam posturas de

classe, cujos desdobramentos podem ser verificados na realidade, nos avanços e

recuos que marcam o processo de territorialização. Enfim, essa dinâmica reflete-se

no caráter contraditório desses programas que, por sua vez, refletem a história

daqueles que os idealizaram e os instituíram.

Contudo, o Estado não é um bloco monolítico, mas a materialização

do poder que se constrói no jogo de interesses divergentes e forças sociais

contrárias que, circunstancialmente, não se encontram apartadas territorialmente.

Assim, as políticas públicas não devem ser entendidas como concessões a essa ou

aquela classe, mas o termômetro do seu respectivo gradiente de força, que acaba

sinalizando para diferentes intervenções.

Nós somos os mais desassistidos de todos os brasileiros. Quando acontece algum desastre na cidade, vem o governo com verbas, a defesa civil socorre os atingidos...no ano passado aconteceu um grande desastre, que foi uma geada que arrasou tudo. Ninguém, mas ninguém mesmo veio ver se a gente precisava pelo menos de um saco de arroz.13

A constatação de nosso interlocutor remete, pois, à posição

subalterna dos trabalhadores na sociedade, com o agravante de que a dispersão

geográfica dos camponeses torna menos explícita a omissão do poder público, até

mesmo nas ocasiões em que intervenções imediatas são imprescindíveis.

Indiscutivelmente, a concentração própria da cidade faz dela o centro das decisões

políticas. Tanto que as situações de calamidade que costumam causar impacto na

opinião pública, levando de certa forma a providências imediatas, mesmo que

emergenciais, tendem a ser urbanas.

13 P.: Barra do Jacutinga - Ibiporã.

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Não obstante, há que se considerar a conjuntura política quando do

evento relatado: a opção por um modelo econômico centrado no controle dos déficits

primários, cuja face mais perversa é o negligenciamento dos problemas nacionais

prementes, em benefício de uma suposta estabilidade. Estabilidade para quem, há

que se questionar, já que em seu nome a produção de alimentos e demais produtos

primários básicos foi submetida à lógica da competitividade internacional, sendo

profundamente penalizada pelas políticas estrangeiras de proteção estratégica

desses produtos, via subsídios públicos.

Essa é uma demonstração de que, muitas vezes, o concurso do

Estado faz com que a apropriação da riqueza social ultrapasse o limite das

fronteiras nacionais. Porém, a evidência de que sua distribuição é desigual, não

torna menos verdadeiro o fato de que as lutas internas permitem que uma parte

dos recursos angariados pelo sistema tributário retorne às classes subalternas.

Essa é a lógica com a qual opera o PRONAF, cuja capacidade de

distribuir uma parte (ínfima) da riqueza produzida pelos próprios trabalhadores não

pode ser ignorada em função das limitações que o envolvem. Entretanto, isso não

implica em desconsiderá-las, pois ao fim, resultam dos mecanismos que

reproduzem internamente os mesmos caminhos que levam ao recrudescimento das

desigualdades sociais.

Em sua origem, o PRONAF nasceu de um estudo publicado em

1996 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em parceria

com a FAO, o qual comprovou a extrema desigualdade no acesso às políticas

públicas pelos diferentes estratos de produtores brasileiros, bem como a

necessidade de uma política de crédito exclusiva para os produtores familiares, que

vinham se beneficiando com cerca de apenas 11% dos financiamentos destinados à

agricultura.

Cumpre salientar que o próprio estudo foi orientado por uma

concepção de agricultura familiar em desacordo com a abordagem desse trabalho,

tendo em vista o estabelecimento de um parâmetro de classificação pautado na

eficiência em produzir mercadorias. Correa e Ortega (2002, p. 2) destacam que o

estudo chegou à seguinte definição: dos sete milhões de estabelecimentos, meio

milhão, ocupando 75% das terras, foi classificado como patronal. Os 6,5 milhões

restantes foram classificados como familiares em três estratos distintos: familiares

consolidados, familiares de transição e familiares periféricos.

Os estabelecimentos considerados familiares consolidados se

diferenciariam dos demais em função da completa integração ao mercado, do

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acesso às políticas públicas, bem como das inovações tecnológicas. Seriam 1,5

milhões de estabelecimentos ocupando cerca de 19% da área agrícola.

Por fim, os estabelecimentos de transição e periféricos seriam

aqueles que, em escala decrescente, teriam restrito ou praticamente nenhum

acesso à assistência técnica e crédito, baixa integração ao mercado e discutível

viabilidade econômica. Embora sendo a maioria dos estabelecimentos, apenas 6%

das terras estariam sob seu controle.

Considerando que a realização desse estudo e a própria divulgação

dos resultados se inscreve na agenda de fortes pressões dos movimentos

camponeses, que desde os idos da abertura política novamente ocuparam a cena

política e deram visibilidade à questão agrária brasileira, a decisão do Governo

Federal em criar um programa específico para a agricultura familiar não pode ser

vista como iniciativa do poder, mas como resultado dessas lutas. Em 1994, ano em

que o estudo foi concluído, foi criado o Programa de Valorização da Pequena

Produção Rural (PROVAP), no interior do qual seria gestado o PRONAF, instaurado

dois anos depois, através do Decreto 1946 de 28/6/1996.

Assim nascia o programa que, preconizando várias fontes de

financiamento, vinculava inclusive os recursos dos próprios trabalhadores, como é

o caso do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Aliás, essa tem sido uma das

principais fontes financiadoras do PRONAF. Segundo Correa e Ortega (2002, p. 4), a

participação dos recursos do FAT no montante disponibilizado pelo PRONAF, nos

anos de 1997 e 1998, foi de 80%.

O PRONAF atua a partir de três linhas: financiamento de infra-

estrutura e serviços, capacitação e profissionalização dos agricultores e

financiamento da produção. Nos dois primeiros casos, trata-se de linhas

enquadradas em uma política diferenciada de crédito, a qual visa ao investimento

na melhoria dos fatores materiais e humanos envolvidos na agricultura familiar.

Nessa perspectiva, a prioridade de investimentos é definida de acordo com as zonas

de pobreza, se concentrando na infra-estrutura e capacitação profissional.

Devemos lembrar que o acesso a essas duas modalidades de crédito

é restrito ao poder público municipal e está condicionado, além do enquadramento

nas zonas preferenciais de investimento, à completa adimplência do município com

a União, bem como ter constituído o Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural

(CMDR), com a participação de representantes de diversos segmentos da sociedade,

dos quais pelo menos 50% devem ser representantes dos agricultores.

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Uma vez contemplado, caberá ao município designar os órgãos,

também públicos, que farão a gestão e o acompanhamento da aplicação dos

recursos de acordo com as prioridades de investimento estabelecidas pelo CMDR.

Entretanto, a perspectiva de descentralização da gestão dos

recursos, em tese coerente, nem sempre assegura a participação democrática dos

camponeses, tendo em vista os vícios de autoritarismo existentes nas relações

locais de poder. Ainda assim, possibilita a ampliação e flancos para a participação

democrática dos camponeses. Vejamos as considerações de Correa e Ortega (2002,

p. 21):

Recursos do PRONAF Infra-estrutura e Serviços, além de alcançar os municípios mais pobres do país, de uma agricultura praticada por agricultores não integrados, representa o incentivo a uma transformação importante na realidade econômica, social e política daqueles municípios. A obrigatoriedade da constituição de um Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural, ainda que constituído muitas vezes num ambiente de dominação de velhas e novas oligarquias locais, acaba politizando uma realidade e criando a possibilidade da construção de um projeto de desenvolvimento alternativo. Essa, portanto, que é uma linha inovadora do PRONAF, recebe anualmente um volume bastante minoritário do total de crédito do programa.

Cumpre salientar que na Região Sul, a liberação de crédito dentro

dessas linhas é absolutamente inexpressiva. Segundo Correa e Ortega (2002, p. 5),

em 1999, apenas 12,1% dos recursos destinados à infra-estrutura foram liberados

para essa região, o que em termos monetários representa pouco mais de duzentos

mil reais.

Advertimos, no entanto, que essa pífia alocação de recursos não se

justifica apenas pelo fato das famílias camponesas do sul desfrutarem de condições

de vida superiores quando comparadas às demais regiões. Conforme se verá mais

adiante, na divisão de recursos no interior do programa, é o PRONAF-crédito que

abocanha a maior fatia, sendo que o Sul acaba sendo a região privilegiada.

Dessa feita, na área estudada, não registramos nenhuma

comunidade beneficiada com projetos de infra-estrutura financiados pelo PRONAF.

Nesse sentido, essa lacuna foi em parte preenchida pelo Paraná 12 meses. Por outro

lado, no que se refere ao PRONAF-investimento e custeio da produção, há duas

linhas de crédito, definidas de acordo com a condição socio-econômica dos

requisitantes, conforme classificação abaixo.

De antemão, devemos salientar que se no PRONAF infra-estrutura e

capacitação a módica alocação de recursos bloqueia uma intervenção

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transformadora, no caso do PRONAF-crédito talvez o maior empecilho seja a forma

como o mesmo está estruturado, já que diferentemente das modalidades anteriores,

não existem prioridades em termos de atuar em bolsões de pobreza ou diminuir as

desigualdades regionais. Assim, ele se conforma como linha de crédito para

tomadores individuais, mesmo na variante Pronafinho, na qual a exigência na

constituição de grupos tem como finalidade viabilizar o aval solidário, conforme se

poderá verificar mais à frente.

Assim, as regras vigentes para efeito de enquadramento do público

alvo e os respectivos limites para o PRONAF-crédito prendem-se ao montante de

renda bruta anual auferida pela família, excluindo-se a aposentadoria rural, bem

como a participação da mão-de-obra familiar nas atividades produtivas, conforme

indica o Quadro 5.

Quadro 5 – Classificação dos agricultores para enquadramento no PRONAF-crédito Grupos Condições para enquadramento Limite para tomada individual de

crédito e prazos para quitação Grupo A Assentados- incluídos em 1999, com a

extinção do PROCERA. Variam de acordo com as condições do assentamento.

Grupo B Unidades com renda familiar anual bruta de até R$ 1.500,00 e mão-de-obra exclusivamente familiar.

Até R$ 500,00 – até 2 anos para pagar e rebate de 40%.

Grupo C Unidades com renda familiar anual bruta de até R$ 10.000,00 e contratação esporádica de mão-de-obra.

Custeio – Até R$ 2.000,00 – 2 anos para pagar – rebate de R$ 200,00. Investimento – Até R$ 4.000,00 e rebate de R$ 700,00

Grupo D Renda entre R$10.000,00 e 30.000,00 e presença de até dois empregados permanentes.

Custeio* – Até R$ 5.000,00 Investimento* – Até R$ 15.000,00 *sem rebate

Fonte: INCRA, 2002.

Como vimos, as condições de crédito para custeio e investimento

são definidas de acordo com os níveis de renda das famílias. Assim, os assentados e

aqueles do grupo B, além de contarem com um rebate maior caso efetuem os

pagamentos em dia, pagarão juros fixos de 1% ao ano. Quanto aos agricultores dos

grupos C e D, os juros são de 4% ao ano, sendo que o Grupo D não faz jus ao

rebate.

Essas condições diferenciadas passaram a ser asseguradas desde

1997, com o desdobramento do programa e a respectiva criação do Pronafinho,

linha especial de crédito do qual estão excluídos os denominados agricultores

familiares consolidados, aqueles classificados no Grupo D. Por outro lado, esse

enquadramento é válido apenas para o crédito rotativo, que consiste no

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investimento e custeio da produção, já que os investimentos em infra-estrutura e

capacitação dos agricultores são regidos pelas linhas de crédito que, em tese, se

voltariam para segmentos mais fragilizados economicamente, a fim de resgatá-los.

Embora ambicioso na acepção do termo, esse programa, na

realidade, atende a uma parcela muito pequena dos agricultores familiares e isso

não se deve apenas aos obstáculos burocráticos ou mesmo entraves colocados pelos

agentes financeiros locais. Trata-se das restrições que estão na sua concepção

estrutural.

Isso fica mais explícito se considerarmos a distribuição do PRONAF

crédito entre as diferentes categorias de agricultores familiares, o qual é carreado

diretamente para os agricultores e não para obras de interesse comunitário.

Segundo Correa e Ortega (2002, p. 12), nos anos de 1998 e 1999, os tomadores do

Pronafinho, agricultores atualmente dos Grupos B e C conforme o quadro anterior,

foram beneficiados com apenas 14,6% e 21,6% dos recursos efetivamente liberados

pelo PRONAF-crédito. Tomamos esses anos para ilustrar a desigual distribuição dos

recursos, já que, nesse período, o Pronafinho estava consolidado, assim como os

assentados não estavam incluídos, por ainda disporem de uma política de crédito

específica.

Parece indubitável que a desigualdade no acesso ao crédito, que

justifica até a própria criação do PRONAF, continua se reproduzindo, ainda que

dentro de um universo formado a partir da identidade agricultura familiar. Essa

situação perpetua-se em função dos próprios critérios que regulam o acesso ao

crédito para custeio e investimento.

Diferentemente das linhas anteriores, em que o critério de

desigualdades regionais é prioritário na destinação dos recursos, nesse prevalece a

lógica convencional, de modo que a liberação é feita diretamente na rede bancária,

sendo condicionada, de um lado, ao pagamento dos subsídios pelo governo para

compensar a menor taxa de juros e, do lado dos beneficiários, à exigência de

oferecerem garantias hipotecárias e serem correntistas.

Sabendo-se que os camponeses de menor rendimento sequer

mantêm vínculos com os bancos, é de se supor que esse é um empecilho a mais

para o acesso ao crédito. Os dados assim o comprovam: segundo Correa e Ortega

(2002, p.10), do montante disponibilizado pelo PRONAF para custeio e investimento

nos anos de 1998 e 1999, apenas 69,7% e 51,3% foram respectivamente captados.

Por outro lado, embora tenhamos destacado a pífia liberação de

recursos pelo PRONAF infra-estrutura para a Região Sul, é necessário evidenciar a

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face completa dessa desigualdade. Vimos que apesar dos investimentos em infra-

estrutura e capacitação atingirem de fato os camponeses mais empobrecidos, sua

participação no volume de transações do PRONAF é irrisória. Considerando o

período de 1997 a 1999, ela foi de 6,8%14, dado inequívoco de que mesmo os

instrumentos criados a pretexto de resgatarem a dívida social com os camponeses

não estão sendo devidamente acionados.

Considerando que essa dívida é maior no estrato de agricultores

classificados originalmente pelo programa como produtores de transição e

periféricos, parece não haver dúvida de que nem mesmo a criação do Pronafinho foi

capaz de resgatá-la. Além dos entraves já apontados, há que se considerar que essa

versão do PRONAF é extremamente restritiva, pois uma vez beneficiado pelo

mesmo, até que a dívida não seja integralmente saldada, o beneficiário não poderá

recorrer a nenhuma outra linha pública de crédito.

Some-se a isso o fato desse tipo de financiamento estar assentado

no aval solidário. Assim, os projetos pressupõem a formação de um grupo de

agricultores que preconize os mesmos fins na destinação do recurso, já que se trata

de um único projeto, portanto de uma destinação comum. Por fim e,

principalmente, o grupo formado deve desfrutar de confiança mútua, pois todos

assumem individualmente a dívida global. Em outros termos, se alguns dos

beneficiários não pagarem o empréstimo, os demais deverão fazê-lo.

A lógica do Pronafinho, portanto, é simples. Como os mais

empobrecidos dispõem de poucos bens passíveis de hipoteca, a somatória dos

patrimônios individuais garante a eventual execução da dívida, ainda que a

inadimplência entre eles seja baixíssima.

Para ilustrar essa lisura tão característica dos camponeses, basta

considerar que nos casos em que há perda da safra financiada ou os preços

alcançados no mercado são insuficientes para saldar a dívida, os mesmos a

refinanciam15, tomando um novo empréstimo. Esse é um elemento complicador,

tendo em vista a impossibilidade de financiar um novo ciclo produtivo, pois o

dinheiro é desviado para o abatimento do empréstimo anterior.

Nós pegamos um Pronafinho para plantar mandioca porque o ano passado o preço estava melhor. Mas essa prestação não tem jeito de pagar porque o que estão pagando não cobre o custo de tirar ela da terra. Então o jeito é refinanciar e pedir a Deus para o preço

14 Segundo Correa e Ortega, 2002, p. 7. 15 Lembramos que isso somente é possível quando não há parcelas em atraso, pois caso contrário os créditos ficam bloqueados até a quitação da dívida.

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melhorar até o próximo ano, porque não vai dar para a gente investir em outra lavoura. 16

Portanto, essa lógica camponesa só vem confirmar aquilo que até os

banqueiros já sabem: o rombo nas carteiras agrícolas não é obra dos pequenos, que

via de regra, pagam religiosamente os empréstimos.

Porém, para conveniência do mercado financeiro, o programa

permite que a responsabilidade de seleção dos beneficiários seja transferida do

agente financiador para os próprios requisitantes, sabendo-se que esses zelarão ao

máximo pela formação de um grupo onde todos tenham condições de honrar o

compromisso.

Além de excludente, esse programa também é perverso do ponto de

vista da estabilidade dos laços comunitários: o fato de serem devedores solidários

igualmente transfere a responsabilidade de fiscalizar o pagamento das parcelas do

agente financiador para o próprio grupo; se, por algum motivo, alguns deles

deixarem de pagar em dia as prestações, todo o grupo será prejudicado, pois

débitos em atraso bloqueiam os recursos para as próximas safras de todos os

integrantes do grupo.

Não é difícil imaginar o que pode acontecer em uma comunidade na

eventualidade de um ou mais componentes do grupo ficarem em pendência com o

banco: ou os demais se unem e assumem as prestações, mesmo que a título de

adiantamento ao faltoso, ou todos são lançados na vala comum da inadimplência.

De uma forma ou de outra, ocorrências dessa natureza podem ferir os laços

comunitários.

Não obstante, deve-se assinalar que, do ponto de vista da relação

custo-benefício, muitos avaliam que a submissão a regras como essas só compensa

em casos extremos. Se os camponeses, de um modo geral, rechaçam a idéia de

recorrer a empréstimos, para não ficarem sujeitos ao banco, o que não dizer de um

programa que parece enredá-los duplamente: ao banco e aos companheiros de

grupo. É por isso que a maior parte deles, sempre que possível, continua a

desenvolver sua atividade com recursos próprios.

Em última análise, isso acaba reprimindo a demanda por

empréstimos e se presta exatamente a camuflar as reais necessidades dos

camponeses em termos de apoio público adequado. Basta lembrar que a diferença

dessa taxa de juros em relação a quaisquer outras linhas de crédito para a

agricultura é menor que cinco pontos percentuais, posto que, no PRONAF, os juros

16 O.: Água da Jupira - Colorado.

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são de 4% contra os 8,75% anuais dos demais contratos. E nem é necessário ir tão

além, já que no interior do mesmo programa, os chamados agricultores

consolidados, conseguem um empréstimo até três vezes maior sem a necessidade

de aval solidário.

Isso é o que se pode chamar de critério de desigualdade pautado no

pressuposto da igualdade. Ao desprezar os investimentos comunitários em favor do

crédito rotativo sem estabelecer critérios adequados ao perfil dos camponeses, o que

faz o Estado é abdicar da prerrogativa de fortalecer a agricultura camponesa.

Notemos que aqueles que se enquadram no Pronafinho têm direito a

um crédito máximo de R$ 4.000,00 para investimento e R$ 2.000,00 para custeio

da produção. Os demais produtores ditos familiares cairão na mesma faixa de

juros, sem uma avaliação se de fato não se trata de agricultores capitalistas, já que

são aceitos dois assalariados permanentes. No Norte do Paraná, esse volume de

mão de obra permanente é compatível com grandes explorações capitalistas, tendo

em vista os índices de mecanização.

Poderia se contestar essa interpretação recorrendo ao limite de área

aceito para enquadramento no PRONAF. Ora, o critério estabelecido pelo programa

não se prende à propriedade jurídica da terra, mas sim à unidade administrativa,

os chamados estabelecimentos. Forjar a fragmentação da propriedade para se

beneficiar desse programa é tarefa até para amadores, coisa que os capitalistas

efetivamente não são.

Aliás, não se trata de trazer suposições vazias, mesmo porque os

dados apresentados são a prova inequívoca de que o PRONAF não veio para tocar

nos mecanismos de reprodução das desigualdades que grassam no campo

brasileiro.

A definição de agricultura familiar a partir da tipologia utilizada pelo estudo FAO-INCRA de 1996 considerou como critérios de classificação: o grau de integração ao mercado, as tecnologias agrícolas, a gestão produtiva, o limite de o controle da terra não exceder 100 hectares. A partir desta perspectiva é que constrói a sua estratificação dos agricultores familiares e sua proposta de política para o segmento. O objetivo é a integração ao mercado. Os que estão fora desta possibilidade estão fora da política de incentivo. O objetivo do programa proposto não é o de manter o homem no campo, não é o de combater o problema da escassez que ronda um enorme número de famílias que se encontra no estrato C de sua classificação (CORREA e ORTEGA, 2002, p. 17).

Some-se a isso a Resolução 2.713 de 2000, a qual modifica a

Linha de Crédito AGREGAR, permitindo assim que as agroindústrias tomem

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empréstimo do PRONAF para repassá-lo aos agricultores integrados. Conforme já

destacamos, as indústrias sericicultoras da região já o estão fazendo, as quais

manifestaram explicitamente o alívio de caixa que essa medida provocou, já que

lhes cabia fazer os adiantamentos para que os camponeses iniciassem a atividade

ou mesmo repusessem os equipamentos.

Notemos que as mesmas igualmente estão se beneficiando dos juros

subsidiados à taxa 4% ao ano, ao mesmo tempo que esses empréstimos-mãe

impedem que os integrados se beneficiem do Pronafinho e, por conseguinte, do

rebate que teriam direito ao pagarem em dia as parcelas. Por fim, essa medida

implica na canalização da maior parte dos recursos para atividades específicas do

setor de integração e concentra o aporte de recursos nas regiões onde tais

indústrias estão alocadas.

Para se ter a dimensão desse fato, basta considerar que a Região

Sul, locus privilegiado da integração, é a recordista na apropriação dos recursos do

PRONAF-custeio. Segundo Correa e Ortega (2002, p. 16), essa região ficou com

65,6% de todos os recursos liberados no ano de 2000, ao passo que a Região

Nordeste, onde a agricultura camponesa é dominante e as condições de pobreza

severas, o índice de repasse foi de apenas 9,3%.

Outrossim, lembramos que esse é apenas um dos meandros das

políticas agrícolas, talvez o mais contundente, por evidenciar o paradoxo de um

programa que se propôs a fortalecer a agricultura familiar. Portanto, deve-se

ressaltar que da forma como está dimensionado, os maiores beneficiários são os

mesmos de outrora, inclusive aqueles do setor de máquinas e insumos. Um

exemplo disso é o Programa Moderfrota, também instituído no ano de 2000 pelo

Governo Federal. Trata-se de uma linha de crédito criada especialmente para

modernizar a frota de tratores e colheitadeiras, à taxa de juros de 8,75% ao ano

para tomadores com renda bruta de até R$ 250.000,00 por ano.

Sem entrar no mérito da pertinência ou não do programa, devemos

destacar que para os produtores pequenos o mesmo é altamente excludente, pelo

simples fato de que, mesmo dispondo de maquinários, dificilmente eles estariam

trocando-os por equipamentos novos. Quanto ao argumento de que esses poderiam

se beneficiar indiretamente do programa, já que os grandes produtores venderiam

suas máquinas quando da adesão ao programa, caberia indagar a razão pela qual

não há uma linha de crédito para esse fim.

Não obstante, os efeitos do mesmo já se fizeram sentir na indústria.

No segundo ano após a implantação do Moderfrota, o crescimento registrado na

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venda dessas máquinas havia sido de 43,8%, mais uma indicação de que as

políticas públicas não são aleatórias.

Evidentemente, esse é apenas um exemplo de que a alocação de

recursos públicos obedece ao jogo de forças da sociedade e, nesse sentido, é

inquestionável a subordinação dos interesses dos trabalhadores em geral, e dos

camponeses em particular, à lógica de acumulação, especialmente em uma

conjuntura em que os mecanismos institucionais de controle são extremamente

débeis.

Contudo, temos reafirmado que o fato do modo capitalista de

produção se reproduzir a partir de relações contraditórias, abre igualmente a

possibilidade de reprodução de uma classe social autônoma, ainda que o fruto do

seu trabalho esteja subordinado à lógica dominante.

A tendência do Estado zelar pelos interesses melhor representados

coloca a necessidade da regulação, pois tão logo as contradições derivadas dessa

forma de apropriação se manifestem em níveis ameaçadores, cabe ao Estado

acionar os meios disponíveis para abrandá-las. Portanto, não se trata de

concessões, mas de contradições que se constroem no interior dos embates

travados.

É na perspectiva da contradição envolvendo as políticas públicas,

que se inscreve o Programa Banco da Terra; na região estudada já havia, em maio

de 2002, 15 projetos instalados e 363 famílias atendidas.

Para entender esse projeto é necessário reportar-se ao desenrolar

das lutas camponesas e às escolhas feitas pelos governos para enfrentá-las. É

sabido que as formas de acumulação de capital, desde os primórdios da

apropriação capitalista do território no Brasil, têm se confrontado com as formas

camponesas de reprodução social, havendo, portanto, uma latência que

sistematicamente explode em diferentes expressões de luta. Após o último regime

autoritário, esse movimento ressurge com uma força compatível com a energia

contida em 20 anos de repressão severa.

Como forma de contê-la, é lançado o Plano Nacional de Reforma

Agrária (PNRA), que nos seus quatro anos de vigência, alcançou apenas 6% da meta

estabelecida. Desse modo, os camponeses adentraram os anos noventa conscientes

de que uma Reforma Agrária não viria pelas mãos do Estado. As lutas ganharam

organização e se ampliaram por todo o território nacional, conquistando

legitimidade e apoio de amplos setores da sociedade.

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É nesse contexto que se pode entender a ofensiva do Estado, a qual

ganha novos contornos em meados dos anos noventa, culminando em uma singular

tentativa de desarticulação desse movimento: a negação do instrumento

constitucional de desapropriação. Notemos que a questão agrária deixa de ser uma

questão de Estado, à medida que o Banco Mundial surge como co-autor do

Programa Cédula da Terra, entrando com 60% dos recursos a serem aplicados na

suposta fase piloto do projeto.

Essa parceria é o melhor indicativo da envergadura e potencial

transformador que as lutas camponesas alcançaram nessa década, a ponto de

mobilizar uma instituição que, em termos de princípios, em nada destoa dos

métodos e objetivos do governo brasileiro, já que a mesma tem sido agente

estratégico de subjugação de muitos povos do planeta aos princípios da

especulação.

Aliás, o esforço do Banco Mundial em lançar as lutas camponesas

nos braços do mercado não é pioneiro no Brasil; antes mesmo de se associar ao

Governo FHC nessa empreitada, já implantara projetos parecidos na África do Sul,

Filipinas e Indonésia, prova inequívoca de que o mesmo atua onde a estabilidade do

sistema se mostra vulnerável às lutas populares.

Além disso, é preciso ter clareza de que não se trata de investidas

isoladas, inclusive dentro do Brasil, pois conforme vimos anteriormente, esse

mesmo banco financia o “Paraná 12 meses”, o qual alimenta igualmente um

Programa de intervenção explícita na capacidade de articulação das lutas

camponesas nesse Estado, o “Paraná 12 meses”.

O Programa Cédula da Terra foi oficialmente implantado em 1997 e,

segundo seus autores, se estenderia por dois anos a título de experiência piloto. Se

coroada de sucesso, se ampliaria e receberia somente desse banco a injeção anual

de 250 milhões de dólares.

Apesar dos veementes protestos das representações camponesas,

cientes das implicações futuras do Programa, em cinco estados foram implantados

os projetos pilotos, quais sejam: Bahia, Ceará Maranhão, Minas Gerais e

Pernambuco. Em 13/4/99, o Decreto 3027 regulamentava o programa, através da

criação do Banco da Terra.

Desde então, esse programa já financiou R$ 981,2 milhões para

compra de terra e implantação de benfeitorias, sendo que o financiamento brasileiro

do programa se fez às expensas dos fundos tradicionalmente carreados para a

instalação de projetos de assentamento.

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Assim, embora a carta de intenções negasse o caráter substitutivo

do Banco da Terra ao mecanismo de desapropriações, não foi o que ocorreu na

prática. Aliás, o próprio nome do programa o denuncia: Fundo de Terras e da

Reforma Agrária – Banco da Terra.

Na prática, o Banco da Terra consiste na disponibilidade de crédito

para que famílias de agricultores sem terra negociem diretamente com proprietários

a compra de imóveis rurais. No lançamento do programa, o crédito disponível era de

até R$ 40.000,00 por família, quantia essa que no Paraná foi sendo reduzida,

estando fixada atualmente em R$ 25.000,00.

Cumpre salientar que esse é o montante total de recursos

disponibilizados para a instalação completa da nova unidade produtiva, o que inclui

compra da terra, construção de moradia, instalação de energia e abastecedouro de

água, cercas, aquisição de instrumentos de trabalho, enfim, tudo o que for

necessário para que uma família possa organizar a propriedade de modo a retirar

daí o seu sustento.

Com as novas medidas do Conselho Monetário Nacional, houve uma

redução na taxa de juros, ainda que permaneça o escalonamento de acordo com o

montante financiado. Atualmente para a quantia disponível de crédito, o mesmo

seria de 5% ao ano, além de atualização monetária, limitados a 12% ao ano. O

prazo é de até 20 anos para pagar com até três anos de carência. Caso os

agricultores paguem as parcelas em dia, há uma possibilidade de rebate nos

encargos financeiros, os quais também são escalonados de acordo com o IDH de

cada município. Das famílias contempladas na região, 201 estão enquadradas no

rebate de 50%, cinco no de 30% e 106 teriam direito a 10% de rebate no montante

de juros e correção monetária incidente em cada parcela.

Como garantia do empréstimo, é dado o próprio imóvel financiado.

Os beneficiários não podem vender as suas terras e as respectivas benfeitorias

enquanto não quitarem o financiamento, salvo para outro beneficiário que preencha

os requisitos do programa, mediante anuência dos órgãos competentes.

Como vemos, trata-se de um programa dimensionado a partir da

estrita lógica de mercado, mas pelas mãos do Estado: os camponeses figuram como

simples tomadores de um empréstimo bancário e os fazendeiros como meros

vendedores de uma propriedade. Se fosse mais uma transação de mercado, típica

da ordem capitalista, pouco se poderia questioná-la.

Não obstante, trata-se de uma política pública adotada como

solução para a questão agrária brasileira. Considerando que na raiz desse grave

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problema está a propriedade especulativa da terra, e que bem ou mal todos os

governos tiveram que enfrentá-la, recorrendo ao mecanismo de desapropriação, eis

que agora advogam uma solução luminosa: uma “reforma agrária ágil, consensual”,

onde todos sairiam beneficiados.

Contudo, não se trata de Reforma Agrária, pois essa é um

mecanismo inalienável de gestão pública do território. Conforme determina a

Constituição, a propriedade fundiária somente é intocável quando cumpre a função

social. Em outras palavras, sobre os pretensos ou legítimos proprietários das terras

improdutivas deve pesar a desapropriação. Notemos que não se trata de uma

simples punição, mas de um mecanismo primário de ordenamento do território, o

qual remete ao usufruto produtivo da terra.

O Banco da Terra representa a completa inversão desses princípios,

tendo em vista a premiação, com dinheiro à vista e sem burocracia, àqueles que se

dispuserem a vender seus imóveis. Além de premiar a especulação, esse mecanismo

faz com que os preços da terra subam proporcionalmente ao aumento da demanda.

Trata-se, enfim, da conversão da renda fundiária em renda capitalizada às

expensas do dinheiro público.

Nos municípios onde se implantou esse projeto, praticamente os

técnicos foram unânimes em afirmar que a simples notícia de que há crédito

disponível para tal, implica no imediato aumento do preço da terra. Foram comuns

os relatos de que os fazendeiros se uniram em torno da elevação artificial dos

preços diante da formalização dos grupos para se beneficiarem do programa. Talvez

seja até desnecessário acentuar quais os reflexos no mercado fundiário da região,

tendo em vista que talvez ninguém, além do Estado, se disporia a comprar grandes

propriedades à vista, ao preço estabelecido pelos primeiros.

O município de Jaguapitã é um exemplo dessa situação. Segundo

técnicos da EMATER, ao ser ventilada a disponibilidade de crédito para a

implantação do programa, imediatamente os proprietários se organizaram, fixando

um preço muito além do que vinha sendo pedido pelas fazendas que se

encontravam à venda, o que acabou resultando na elaboração de um parecer

negativo quanto à viabilidade econômica do Banco da Terra no município. Isso

provocou reações em vários setores, dos políticos aos comerciantes de terra, que se

beneficiariam política e até economicamente de tais transações. Por fim, os próprios

camponeses reagiram fortemente ao veto da instituição, a quem cabe elaborar o

estudo de viabilidade técnica e econômica do projeto. Esses que são os principais

interessados, muitas vezes não têm noção do que estão assumindo ao ingressar no

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Banco da Terra. Para eles, o que importa é a realização do sonho da terra própria,

razão pela qual não atentam, em um primeiro momento, se os preços estão sendo

abusivos.

No caso em questão, a não consumação do negócio provocou

imediato desaquecimento do mercado fundiário, a ponto de uma fazenda ofertada

ao Banco da Terra ter sido vendida, seis meses após o parecer negativo, a um preço

25% inferior ao que fora sua última oferta para o programa.

Além disso, há que se considerar que o poder do latifúndio muitas

vezes pode prevalecer mesmo após a venda da terra. Na pesquisa de campo,

pudemos verificar a concessão feita a um fazendeiro para sua permanência nas

terras incorporados pelo Banco três meses após ratificado o projeto, fato ocorrido

no final de julho. Esse prazo talvez não seria tão significativo se não

considerássemos algumas implicações, a começar pelo fato de que, uma vez

ratificado, começa a correr o prazo para quitação das parcelas.

Por outro lado, a permissão para que os beneficiários começassem a

trabalhar na terra seria dada em novembro, atrasados, portanto, em relação ao

melhor período de semeadura da safra de verão. Ocorre que as terras estavam

totalmente ocupadas com pastagens e, em pleno período chuvoso, acabar com a

grama para iniciar o cultivo é uma tarefa hercúlea, senão impossível, se

considerarmos os métodos habituais.

Cultivar lavouras em áreas ocupadas com pastagens exige a

preparação do solo no inverno; isso é básico quando se preconiza eficácia e redução

de custos: nesse período uma tombação, em geral, já deixa a terra em condições de

cultivo. Ao se transferir essa etapa para o período chuvoso, serão necessárias várias

tombações e nem isso impede a invasão da grama na lavoura, pois a umidade do

solo alimenta sucessivas rebrotas.

Mesmo desconsiderando o custo adicional com o preparo do solo

que essa camaradagem trouxe para os beneficiários, há que se considerar a grande

possibilidade da inviabilização da primeira safra de verão, pois o período de

semeadura já ficara para trás. Não obstante, o projeto de viabilidade previa colheita

nessa safra. É isso que reforça a convicção de que há um galáctico distanciamento

entre as diretrizes dos órgãos envolvidos e as condições reais com que se defrontam

os beneficiários ao entrarem na terra.

Esses são apenas alguns dos desdobramentos da reforma agrária de

mercado, o que não deixa dúvida de que, mais uma vez, os camponeses, em

particular, e a sociedade, em geral, pagarão a conta do latifúndio, já que se trata de

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um programa subsidiado pelo governo federal. Apesar da transferência de renda

nesses termos ser recorrente na história brasileira, entendemos que a novidade do

Banco da Terra é que esse alimenta não apenas a especulação imobiliária, mas

também a financeira, à medida que os bancos intermedeiam a negociação mediante

o subsídio público.

Enfim, embora incautos apregoassem o natural desaquecimento da

especulação fundiária, pela preponderância crescente dos ativos na atual economia,

vemos que a terra continua sendo o instrumento privilegiado dessa conversão. E

nesse contexto, novos desafios são recolocados na agenda de luta dos camponeses.

A começar pelos próprios beneficiários, que ao chegarem à terra

descobrem que o sonho da autonomia, a essência da utopia que os move em

direção à terra prometida, é vedado pelo Banco da Terra. Em outras palavras, o

beneficiário não poderá gerir seu sítio à sua maneira, devendo obedecer ao que está

previsto no projeto aprovado.

Isso porque o programa está estruturado de forma que a liberação

dos recursos que o acompanham está condicionada à comprovada viabilidade

econômica. Para isso, há uma articulação institucional em várias instâncias: O

Conselho Curador do Banco da Terra é a instância máxima, cuja função é a

coordenação nacional do programa; sob responsabilidade dos diversos estados da

federação, há a Câmara Setorial e a Unidade Técnica Executora, que em síntese

gerenciam os recursos e aprovam as propostas de financiamento. Em nível regional,

funciona a Unidade de Assessoria Técnica, a qual coordena as ações regionais e,

por fim, há, na jurisdição municipal, a Unidade de Assessoria Técnica, a qual dá os

encaminhamentos necessários para a instalação do projeto, em vinculação direta

com o Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural.

É nessa instância que o destino dos beneficiários é selado. Primeiro

porque o programa não atende a camponeses isolados, mas a grupos formalmente

constituídos para tal. Há uma série de exigências que devem ser satisfeitas, o que

não dispensa a orientação técnica. Na região, a EMATER é quem participa

ativamente de todas as fases do processo, desde a orientação na composição dos

grupos e escolha da área a ser comprada até a elaboração do projeto técnico de

viabilidade econômica.

É justamente esse projeto que impede a autonomia camponesa no

Banco da Terra. Trata-se de um estudo no qual estão minuciosamente arroladas as

atividades que deverão ser desenvolvidas enquanto os camponeses não terminarem

de quitar o financiamento.

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Assim, esse estudo leva em consideração as condições físicas das

terras loteadas e o comportamento de mercado das culturas que aí se adaptam.

Notemos que se trata de um estudo cujo fim precípuo é identificar as possibilidades

de renda monetária a ser utilizada para pagar as parcelas.

Esse planejamento prévio regerá a vida camponesa ao longo de duas

décadas. Notemos que a sua participação na elaboração desse projeto, na melhor

das hipóteses, é marginal, não prevalecendo os seus anseios na definição de como

se dará o uso da terra.

Assistimos pessoalmente a um entrevero ocorrido diante da

intenção manifestada por um contemplado do programa em mudar o destino dado a

sua terra naquela safra. A resposta de uma das assessoras técnicas foi peremptória:

Nós não vamos permitir mudança alguma, tem que respeitar o que está no projeto. Aliás, eu passei por lá e vi que tem gente plantando o que não está previsto. Vocês sabem que isso é proibido. Nós vamos tomar providências.17

Diante dessa resposta, ao indagarmos sobre a dinâmica que rege a

agricultura e a eventual necessidade de se adequar às mudanças no mercado, a

técnica informou-nos que o projeto somente poderá sofrer alterações após

demorado laudo.

Cumpre destacar que a desavença relatada ocorreu em virtude da

recusa de alguns em plantar algodão, conforme previa o projeto. Entretanto, nos

dois anos que separavam a elaboração do projeto e o acontecido, os preços desse

produto haviam caído cerca de 11%, enquanto que os custos tinham aumentado

cerca de 20%, conforme cálculo da Secretaria de Agricultura do Estado do Paraná.

Cremos ser esse o maior indicativo de que os projetos de viabilidade

econômica são simulações absolutamente irreais, não apenas em função da

variação dos preços agrícolas, mas inclusive porque o mesmo não pressupõe secas,

chuvas em excesso, geadas, enfim, a sucessão de eventos que sistematicamente

afetam a produção.

Tudo isso se constitui camisa de força que pode ser fatal aos

beneficiários. Vimos o quanto a sobrevivência dos camponeses está condicionada à

capacidade de jogar com o mercado, cultivando aquilo que promete maiores

rendimentos. Ocorre que a lógica da sobrevivência, que os torna aptos a, no limite,

sobreviverem com o mínimo de ingresso monetário, não se aplica, pois as

17 F.: Secretaria da Agricultura - Centenário do Sul.

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prestações são altas e vencem anualmente, independentemente dos preços, laudos

e colheitas.

Não surpreende o fato dos beneficiários já começarem a constatar o

grau de limitações do programa. Encontramos um filho de camponeses olericultores

que ao se casar, passara à condição de rendeiro, já que a unidade paterna não

comportaria a reprodução econômica de mais uma família. No entanto, pagar pelo

uso da terra torna ainda mais difícil a reprodução camponesa, o que o tornou

vulnerável ao apelo da terra própria. Assim, num primeiro momento, o Banco da

Terra foi incorporado como possibilidade de fortalecimento de sua condição

camponesa, já que ficaria livre do arrendamento.

Não obstante, não lhe ocorreu que ao aderir ao projeto, ele teria que

abdicar de suas práticas tradicionais. Notemos que ao ser colocado diante da

necessidade de incorporar a atividade descrita no projeto, o camponês passa para a

condição de mero executor de algo que não é fruto da sua decisão. Trata-se, enfim,

da negação da autonomia levada às últimas conseqüências.

Advertimos que essa situação não é vivida por nenhum outro

estrato camponês, sequer por aqueles que cultivam terras alheias cedidas em

contrato verbal ou formal, como é o caso dos rendeiros e parceiros. No limite, esses

podem procurar outras áreas sempre que não quiserem continuar com a atividade

determinada pelos proprietários. Assim também o são os integrados, que conciliam

a diversificação com a atividade objeto da integração e, no limite, podem abandoná-

la mediante o ressarcimento dos débitos com a integradora. O que faz esses

camponeses livres é a possibilidade de disporem livremente do seu trabalho e

eventualmente da terra, mas sobretudo não estarem presos a nenhuma espécie de

dívida.

Aliás, não ter dívidas é um elemento simbólico que reafirma a

autonomia do campesinato, pois todos conhecem de sobejo o quanto essas podem

implicar na restrição do direito de ir e vir. Embora não seja nosso objetivo operar

comparações com esquemas ilegais de privação desse direito, é bom lembrar que,

no Banco da Terra, o mesmo está parcialmente cerceado pelo fato do beneficiário

ser avalista solidário, o que constrange o abandono do projeto. Do ponto de vista

institucional, ele poderá até fazê-lo, desde que mediante a transferência dos direitos

e responsabilidades, condicionada à anuência dos órgãos competentes.

Vimos ao longo desse trabalho que a recriação camponesa é um

tributo à diversidade, instituído a partir de uma ampla combinação de fatores. O

sentido da propriedade camponesa é a liberdade em definir as estratégias

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produtivas de acordo com a composição familiar, com as experiências produtivas e

por que não dizer, da empatia em relação a essa ou aquela atividade.

Faz parte do seu modo de vida articular aquilo que lhe garante a

reprodução com aquilo que lhe dá satisfação e isso se aplica inclusive aos

rendeiros, porcenteiros e integrados, teoricamente mais limitados em suas escolhas.

Em suas conversas vão sendo delineadas as preferências pelas atividades que

empreendem, sempre manifestadas em um gradiente particular de gostos que, na

medida do possível, são privilegiados.

No programa, tanto o trabalho quanto a terra estão bloqueados em

nome da viabilidade que deverá assegurar retorno monetário para saldar os

compromissos assumidos. Nessa perspectiva, o Banco da Terra viola o mais

sagrado dos seus princípios. Isso nos faz questionar até quando o mesmo se

sustentará com base nesse formato, pois a rigidez do programa, efetivamente, não

comporta a versatilidade camponesa.

Some-se a isso o fato de que a renda gerada pela agricultura nessa

escala não é compatível com o valor das prestações, sobretudo se considerarmos a

quantidade de terra comprada em cada um dos projetos, a qual varia de 5 a 15

hectares por beneficiário.

Além disso, predominaram os contratos baseados no teto máximo

dos financiamentos na região, sendo que, no escalonamento de uma dívida de R$

40.000,00, relativa aos primeiros projetos, após dois anos de carência, a primeira

parcela custaria aos beneficiários R$ 3.000,00 e a última, considerando os valores

atuais, já que os encargos podem ser revistos pelo Estado, R$ 9.091,00.

A nosso ver, diante da completa falta de recursos financeiros dos

beneficiários e das próprias condições adversas para a agricultura de pequena

escala, logo à frente se verá que as mesmas são impagáveis.

Aliás, a inadimplência começa a rondar os primeiros projetos já no

vencimento da primeira parcela e isso tende a inviabilizá-lo como um todo, senão

vejamos: por pressupor aval solidário, cada um dos contemplados é

responsabilizado com a dívida global do projeto.

Como forma de resguardar a quitação do financiamento, o

programa atrelou quaisquer créditos para custeio e investimento ao pagamento em

dia das prestações. Dessa feita, em havendo um único beneficiário em atraso,

nenhum componente do grupo poderá ter acesso ao crédito para custeio, como o

Pronafinho, por exemplo.

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Durante a pesquisa, verificamos esse percalço já no vencimento da

primeira parcela do projeto mais antigo da região, o qual conta com 35 lotes de 8,4

hectares, nos quais estão sendo cultivados algodão, feijão, café e uma parte de soja.

A existência de alguns beneficiários inadimplentes bloqueou o acesso ao Pronafinho

para as 35 famílias do projeto, que não puderam contar com esse recurso para

iniciar, no tempo devido, o plantio da safra de verão, a mais importante do ano

agrícola. É assim que os camponeses começam a provar o gosto amargo de um

programa que lhes vendeu a ilusão de que a saga pela terra própria finalmente

estaria concluída a partir do mercado.

Além das dificuldades econômicas por que passarão em virtude da

restrição ao Pronafinho, cremos que os danos à integridade camponesa são

irreparáveis, pois mesmo aqueles que conseguiram pagar a primeira parcela

também estão com os nomes incluídos no cadastro dos maus pagadores e os CPFs

bloqueados para efeito de quaisquer benefícios creditícios. Quando se leva em

consideração o quanto é valorizado na ética camponesa o nome limpo, o não dever

nada para ninguém, que aliás é uma das fontes de reafirmação de sua autonomia, é

de se imaginar as implicações dessa medida legal, sobretudo aos “devedores”

indiretos.

Quando começaram com essa história de Banco da Terra, ele [o filho] se interessou, porque pagar arrendamento pesa. A gente cansou de falar para ele que isso não era bom, mas não teve jeito. Agora bem dizer que ele nem entrou na terra ainda, mas todo mundo está angustiado...porque o outro Banco da Terra daqui já deu problema...teve gente que não pagou e sujou o nome de todo mundo. Sempre vai ter um que não vai conseguir pagar...como é que pode todo mundo pagar por isso? Ele devia ter ficado como estava. Arrendamento é mais livre, ele não devia nada para ninguém e podia continuar fazendo o que estava acostumado... 18

Cremos que um programa que se coloca como alternativa à Reforma

Agrária e, até mesmo aos olhos de camponeses que mal começaram a vivenciar

seus obstáculos, já é considerado pior que pagar arrendamento, não pode sequer

ser confundido com uma política de cunho conservador.

Notemos que ao remeter a liberdade à condição pretérita do filho,

um rendeiro que não só desenvolvia as atividades de acordo com suas experiências

e preferências, mas não tinha dívidas, a mãe sugere que a adesão ao programa o

enredou em duplo cativeiro: das dívidas, ante as sombrias perspectivas de saldá-las

18 I.: Água do São João - Centenário do Sul.

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e da perda da autonomia, na medida em que o projeto já definiu como será utilizado

o seu tempo e o seu espaço.

Entretanto, devemos lembrar que nem todos os beneficiários ou

interessados diretos expressam semelhante compreensão. Ao conversarmos com

rendeiros contemplados em um projeto ainda em fase de instalação, esses

demonstraram enorme entusiasmo com o programa. Sendo os três de uma única

família, pai, filho e genro, os mesmos deverão receber lotes contíguos, o que permite

uma otimização dos fatores produtivos. Ademais, essa é uma família que já

experimentou o circuito completo da diferenciação: nos anos oitenta, o pai vendeu o

pequeno sítio comprado após anos de trabalho como porcenteiro no café. Isso

porque fora levado pela promessa de terras fartas e baratas em Rondônia, onde

perdeu o pouco que possuía. Retornou ao Paraná trabalhando como empregado

durante 12 anos, passando a rendeiro quando a força de trabalho dos filhos já

permitia esse salto. Agora foram contemplados com três lotes do programa,

voltando, pelo menos em tese, à condição de proprietários.

Ao serem inquiridos sobre o impacto das parcelas, eles foram

categóricos em afirmar que é uma coisa com a qual vão se preocupar mais para

frente, após os três anos de carência. Não obstante, sinalizaram para um caráter

complementar do Banco da Terra, já que a prática de arrendamento não será

abandonada.

Essas interpretações ambíguas envolvendo o programa, explicam-se

pela quase ausência de resultados palpáveis, que certamente darão outra dimensão

à avaliação dos futuros interessados. Um dos problemas do Banco da Terra é a

necessidade de pagar pela terra um valor de mercado, na melhor das hipóteses,

acrescido de juros e correção monetária. Enquanto não vencerem as parcelas,

quaisquer problemas serão contornados. Diríamos mais, com a carência, é possível

que a grande maioria não tenha dificuldade em saldar os primeiros débitos, pois

terão mais tempo para poupar. Na seqüência, ficarão na dependência estrita do ano

agrícola para extrair renda suficiente para sobreviverem e ainda saldá-las.

Notemos que embora seja proclamado como política pública para

viabilizar a agricultura familiar, o programa não admite equivalência produto, o que

permitiria aos camponeses saberem exatamente, no momento da adesão, quanto

teriam que pagar pela terra. É isso que nos dá serenidade para questionar se o

mesmo foi pensado para os camponeses ou para o mercado imobiliário e financeiro.

Assim, persistindo a baixa histórica dos produtos agrícolas, nem mesmo os maiores

incrementos de produtividade poderão eliminar a distância entre o que recebem

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pelas colheitas e o que terão que pagar para obtê-las, e deve-se somar, ainda, os

insumos em alta, os eventuais custeios e a própria terra. Aliás, algumas projeções

já vêm sendo feitas, demonstrando o engodo do Banco da Terra.

O problema destes financiamentos não está só na taxa de juros e nos encargos, mas na baixa rentabilidade da atividade agrícola, principalmente das culturas produzidas pelos agricultores familiares. [...] É provável que muitas prefeituras, governos estaduais ou mesmo o governo federal, divulguem dados incorretos ou mal explicados para potencializar e ampliar o uso do Banco da Terra como um instrumento substituto da Reforma Agrária. [...] reforçamos a importância e a necessidade de um crédito fundiário para potencializar a agricultura familiar. Entretanto, as condições de pagamento precisam estar adequadas à rentabilidade da produção agrícola e relacionadas ao acesso à tecnologia, formação profissional, pesquisa, assistência técnica, educação e outros créditos agrícolas. A proposta apresentada pelo Banco da Terra não cumpre nenhum destes pré-requisitos, pelo contrário, poderá levar os agricultores familiares e assalariados rurais já descapitalizados, para uma situação ainda mais crítica. (BITTENCOURT, 2002, s.p.).

Cremos, portanto, estar diante de impasses de conseqüências

imprevisíveis. Ou o Estado assumirá em determinado momento a dívida ou os

bancos a executarão, tomando para si projetos inteiros, já que esses são dados em

hipoteca. A nosso ver, prevalecerá a primeira alternativa, mesmo porque aos bancos

não interessa a terra, mas os ativos potencializados na ciranda dos juros.

Aliás, diante de tantos efeitos nefastos, essa parece ser a única

possibilidade criativa do programa, e registre-se, é aquela com que trabalha a

absoluta maioria dos beneficiários. Dos entrevistados nos diversos municípios, em

projetos instalados e ainda em fase de instalação, todos indicaram claramente ou

pelo menos indiretamente que não acreditam na necessidade de pagar a dívida. Há

uma convicção generalizada de que em breve a mesma será perdoada.

O que mais chama a atenção é o fato de confundirem esse com um

programa de Reforma Agrária. Nesses termos, não concebem a possibilidade de

serem retirados diante de eventual falta de pagamento, mesmo porque a referência

é a primeira, em que os lotes não são vendidos aos trabalhadores.

Os poucos que têm consciência de uma possível execução judicial

asseveram que uma vez estabelecidos, não deixarão a terra sob nenhuma hipótese,

o que indica que esse, provavelmente, não será o caminho a ser tomado pelo Estado

para resolver os impasses criados por esse falacioso “programa de reforma agrária”.

É nessa perspectiva que podemos vislumbrar o seu caráter

paradoxal. Enquanto que do ponto de vista estrutural o Banco da Terra é um

instrumento claramente voltado ao cerceamento do processo de territorialização

camponesa, a resistência ao seu caráter arbitrário manifesta-se nos sinais de

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insubordinação já apontados anteriormente, os quais tendem a interferir nas

diretrizes do programa. Não obstante, é pertinente destacar que a despeito desses

sinais, o acesso à propriedade, via Banco da Terra, tem permitido o exercício da

lógica camponesa, senão vejamos.

Pudemos constatar que, na maior parte dos projetos implantados

na área estudada, famílias e pequenas comunidades foram reagregadas. Como é

sabido, o programa privilegia agricultores que não têm terra suficiente para manter

a família, fato comum entre os camponeses ao contraírem matrimônio. Manter os

filhos na propriedade somente tem sido possível com a implantação de atividades

intensivas, que exigem elevados investimentos, portanto proibitiva para muitos.

Como o projeto surge da formação de grupos, é comum os mesmos

serem constituídos de parentes entre si, irmãos, primos, tios e vizinhos nas

mesmas condições. Normalmente, nos projetos menores, são todos aparentados, ou

unidos por laços de vizinhança. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que

encontramos camponeses que lutaram contra a adesão dos filhos ao programa,

outros os incentivaram, assumindo em conjunto o desafio de pagar as dívidas.

Para alguns deles, essa é a única forma de poderem “encaminhar” os filhos.

Aqui foi implantado um Banco da Terra com doze famílias. São quase todos jovens, filhos de pequenos proprietários do município. Para dizer a verdade, são todos meio aparentados entre si. Os pais estão vendo isso como um investimento para a família. Estão juntos e pretendem trabalhar juntos, aliás eles se comprometeram a ajudar no pagamento. 19

Nesses grupos, a própria distribuição geográfica dos lotes foi

definida pela lógica camponesa: imperou o critério de sorteio apenas para um dos

elementos da raiz familiar, pois os demais seriam alocados nos lotes contíguos, para

trabalharem “juntos”, conforme relata o técnico. Além disso, prevaleceu o acordo

para que os mais empobrecidos, com menor força de trabalho familiar ou mais

idade fossem automaticamente alocados nos lotes melhores, uma forma de

viabilizar o grupo como um todo.

No entanto, nos empreendimentos maiores, essa prática tende a se

perder na heterogeneidade do grupo. Ademais, essas composições mais parecem

estar voltadas para o benefício de uma transação imobiliária para a grande

propriedade do que propriamente a viabilização do projeto, pelo simples fato de que

a identidade e confiança mútua necessárias, já que se trata de aval solidário, ficam

19 E.: Técnico da EMATER - Ângulo.

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bastante comprometidas, senão inviabilizadas. Não por acaso, esses grupos

compostos por 30, 40 e até mais de 50 famílias, muitas das quais sem qualquer

afinidade entre si, são os primeiros a sofrerem com a desagregação interna.

Como se sabe, isso pode ser fatal para o projeto, sobretudo porque

uma tênue linha separa o estremecimento de relações pessoais da disposição em

permanecer no grupo, arcando com o ônus do financiamento. A solidariedade, tão

presente na ética camponesa, não se constrói por decreto nem por aquiescência

forjada. Assim, é improvável que a mesma prevaleça nas situações em que foram

sacramentadas em gabinetes e não na partilha de um estradar comum.

Por fim, há que se considerar que nenhuma política mirabolante

poderá brecar o desencontro essencial: a legião de camponeses diante da cerca do

latifúndio. É por isso que nos furtamos à análise de programas virtuais de Reforma

Agrária, a exemplo do cadastro pelo Correio.

Enfim, não há dúvida que tais programas têm clareza nos objetivos,

inscrevendo-se nas investidas contra a luta pela terra, sendo que na prática

provocam avanços e recuos no processo de territorialização camponesa. Por outro

lado, temos visto o quanto as condições de sua reprodução são sensíveis a esse ir e

vir, que se desenrola no contexto de um enfrentamento de classe.

Trata-se de uma guerra, no geral silenciosa, que na perspectiva dos

camponeses é enfrentada em nome da autonomia. Se essa se revela a razão do

enfrentamento, as táticas consistem na combinação das atividades nos moldes já

apontados anteriormente, as quais tendem a se desenhar em resposta às investidas

da classe hegemônica em diferentes versões e feições.

Não obstante, é bom lembrar que estamos ingressando em um

momento ímpar da história, o que não deixa de sinalizar para a vulnerabilidade do

pacto cujos desdobramentos foram aqui apontados.

Com a condução ao poder, via eleições, de um Presidente da

República historicamente comprometido com anseios e lutas populares, a

possibilidade de alteração desse cenário está dada. É evidente que imputar a

eliminação de mazelas tão profundas a um mandado presidencial é um equívoco,

mas não se pode deixar de partilhar a esperança que anima esse país de norte a

sul. O ir e vir da história nada mais é do que o produto das contradições de classe;

sendo assim, a ascensão ao poder de um homem que carrega consigo a marca da

luta pela sobrevivência e pela diminuição das desigualdades, não deixa de ser

promissora. O tempo o dirá.

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5.2. Trajetórias e estratégias camponesas

Considerando que o processo de territorialização camponesa é um

continum, marcado por lutas permanentes para assegurar a sua condição de classe,

o insucesso de uma empreitada não deve ser tomado como o fim de uma trajetória.

Em algumas ocasiões, pode até se constituir em um recomeço, que traz como

incremento mais uma referência para as práticas futuras. Não se pode esquecer que

o processo de territorialização camponesa é a materialização dessa dinâmica, em

que a gestão própria do sítio se encerra em um circuito de experiências (tentativas

para se chegar a um melhor resultado), somando experiência (saber).

Nesse sentido, o próprio vocabulário camponês o evidencia: ao nos

relatarem suas atuais estratégias produtivas, bem como as passadas, a palavra

tentativa ocupou uma centralidade nos argumentos explicativos. Tentar é

experimentar, mas só podem fazê-lo aqueles que detêm não apenas o controle sobre

o seu tempo e seu espaço, mas, sobretudo, o controle sobre os processos que os

envolvem, do qual emana o conhecimento que alimenta a capacidade de inovação

criativa.

Notemos que, nesse contexto, o experimentar subsume um

determinado foco, que não é outro senão o controle próprio do processo produtivo e

de recriação social, invalidando assim o pressuposto de que a existência camponesa

seria uma condição dada e determinada por agentes externos.

Não se trata de negar a interferência das forças hegemônicas

capitaneadas pelo Estado no modo de vida camponês, mas de apontar que a

existência dessa classe não pode ser explicada na perspectiva de que seria uma

“licença” capitalista, pois no limite, os camponeses poderiam sobreviver fora do

circuito mercantil, tendo em vista a sua capacidade de produzir seus próprios

meios de vida.

Ademais, sua capacidade de resistir na terra tem sido a arma

utilizada nas circunstâncias de progressiva desestruturação econômica, momento

em que optam por abandonar bruscamente a atividade comercial principal e, assim,

dar as costas aos capitalistas que se nutriam da renda aí gerada. Evidentemente,

esse é um ato extremo, cujo conteúdo simbólico não pode ser desprezado: é um

grito de liberdade contra a opressão do mercado.

Não obstante, na frieza das estatísticas, esse fato poderia

perfeitamente ser tomado como indício de proletarização, já que as mesmas nem

sempre conseguem captar a atividade que veio em substituição à extinta, sobretudo

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se essa vier a integrar o circuito da informalidade. É por isso que o método dá o tom

das interpretações, conduzindo a constatações tanto mais abstratas quanto for o

afastamento do campo real em favor da ciência de gabinete.

Anteriormente, relatamos o fracasso de uma experiência de máxima

tecnificação na atividade leiteira, que culminou no encerramento da mesma. No

entanto, essa mesma família nos mostrou a conversão operada no sítio poucos dias

depois. Os equipamentos ainda aguardavam compradores, porém as instalações

estavam totalmente aproveitadas: a atividade leiteira cedera lugar à pecuária de

engorda. Como o preço das vacas holandesas é elevado, mesmo descontando a

parte a ser destinada ao pagamento das dívidas, foi possível comprar um bom lote

de gado mestiço em fase de pré-engorda.

O leite foi uma decepção e eu acredito que isso aconteceu por causa dessa estória de caixinha [longa vida]. O Brasil não estava preparado para isso, porque o custo é alto e se repassar para o consumidor, não vende. Então a indústria repassa para o produtor. Agora a nossa esperança é a engorda de novilhas, porque a gente tem tudo pronto...pasto, estrutura para silagem, mangueira. O bom das novilhas é que não precisa entrar no esquema de frigorífico. Essa é uma das poucas alternativas que restou para os pequenos.20

O que merece ser destacado nesse caso é que não se trata de uma

simples mudança de atividade, mas uma mudança de estratégia. Enquanto que a

primeira representava a completa vinculação à cadeia agroindustrial, logo, a

subordinação da produção aos ditames da indústria, a segunda tem por princípio o

oposto, tanto no que se refere às formas de inserção no mercado quanto a própria

escolha em termos produtivos.

Face aos níveis de tecnificação que a mesma já havia alcançado,

lidando com raças especializadas e estrutura produtiva ultra-moderna, poderíamos

indagar por que a reconversão da atividade privilegiou um gado mestiço,

comprovadamente menos produtivo que as raças especializadas, a exemplo do

nelore, altamente adaptado às condições da região.

A chave da explicação está nas próprias palavras de nosso

interlocutor: era preciso romper não apenas com a atividade, mas com a própria

lógica que fizera a anterior sucumbir. Trata-se da lógica do circuito agroindustrial,

que sendo mantida, teria talvez como mudança mais significativa o endereço dos

agentes da sujeição: da indústria leiteira à indústria frigorífica.

20 D.: Água do Colorado - Flórida.

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Ao destacar que o gado mestiço é uma das poucas alternativas para

os produtores pequenos, o mesmo nos remete ao circuito da informalidade que

consiste, predominantemente, na venda direta aos açougues e supermercados

pequenos ou mesmo aos atravessadores que estabelecem essa ponte. Apesar do

gado de corte mestiço ter um preço inferior ao de raça, outras vantagens fazem com

que o mesmo se sustente em um circuito que, diga-se de passagem, é amplamente

dominado pelos próprios camponeses.

E não se pode compreendê-lo desvinculado da pecuária leiteira que,

em última instância, é quem o alimenta. Outrossim, há que se destacar que, na

área de estudo, essa atividade caracteriza-se por uma posição intermediária entre o

que se pode chamar de moderno e tradicional.

O trabalho de campo pode evidenciar que a maior parte dos

camponeses que se dedica à pecuária leiteira não possui terra suficiente para uma

atividade extensiva a pasto. Assim, o investimento em volumosos capazes de

complementar a alimentação do rebanho já é um fato consumado, sobretudo

porque, no inverno, as pastagens definham e o preço da ração industrializada é

proibitivo. Essa, só “de amostra” no cocho ou em situações emergenciais, quando a

sobrevivência dos animais o exige.

Assim, é pouco provável chegar em um sítio leiteiro e não encontrar

milho, napier ou cana-de-açúcar disputando espaço com as pastagens e os cultivos

de autoconsumo, com destaque para o feijão e o milho. A importância desse último

é inquestionável, pois em termos de versatilidade, nenhuma das lavouras

camponesas a ele se iguala.

Quando verde, o milho é consumido pela família e eventualmente é

vendido em espiga, o que rende uma agregação de valor respeitável. Mais alguns

dias na roça e já estará pronto para silagem, a qual aproveita integralmente a

planta. Após seco, servirá de alimento às aves e suínos, assim como ao gado. Além

disso, dependendo da combinação produtiva e das próprias condições climáticas, o

gado pode ser solto na palhada, até que a chuva tenha caído em quantidade

suficiente para recomeçar o ciclo produtivo.

Outrossim, a racionalidade que preside tal articulação explica a

viabilidade da produção camponesa e os insucessos derivados da sua ausência.

Tivemos a oportunidade de conhecer duas propriedades produtoras de leite com

igual extensão de terras (dez hectares) e vizinhas entre si: na primeira, o trato com

os animais contempla uma dose de proximidade ímpar, pois as vacas são tratadas

pelo nome, sendo que sua principal tratadora diferencia inclusive o comportamento

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entre os animais. O ganho oriundo do leite é pequeno, porém a atividade é realizada

dentro de uma lógica de sustentabilidade, em que o esterco alimenta o pasto e o

nascimento dos bezerros mantém o nível de renda imprescindível para a própria

continuidade da atividade.

Por outro lado, a segunda propriedade encerrou a atividade leiteira,

por ser avaliada como uma atividade de prejuízo. Vimos que seu proprietário é um

homem urbano, que a implantou em virtude da promessa de sucesso “que só dá

certo no Globo Rural.”21 Ao conceber a leiteria como uma atividade fechada,

estritamente monetária, sem articulação alguma com outras atividades no interior

da propriedade, como o fazem os camponeses, cedo percebeu que o valor monetário

recebido pelo leite vendido não compensava os investimentos, dada a pequena

escala de produção. Em outras palavras, dava prejuízo.

Portanto, desenvolver a pecuária leiteira em condições de escassez

de terra às vezes severa, revela uma aliança entre as recomendações técnicas e uma

racionalidade que é própria dos camponeses. Entretanto, os mesmos parâmetros

que levaram ao fracasso da atividade leiteira, conforme foi destacado, ainda é

referência para a maioria dos técnicos, os quais vêem com bastante restrição o fato

dos camponeses privilegiarem o gado mestiço, face ao seu menor potencial leiteiro.

Ocorre que o leite é apenas um componente da cadeia da pecuária,

na qual os bezerros possuem importância inquestionável. Após desmamados, seu

valor de mercado praticamente equivale ao valor obtido com a venda do leite de

suas respectivas mães ao longo daquela lactação22. Em outras palavras, o bezerro

vale quase tanto quanto o leite e deve-se considerar que a escassez de terra torna

imperiosa a venda anual da maior parte deles, senão de todos. Porém, isso somente

é válido para o gado mestiço, já que os machos da raça holandesa não possuem

valor de mercado, sendo praticamente invendáveis. Tanto que nas unidades

leiteiras especializadas, é usual doá-los a quem queira.

A gente também não mexe com vaca holandesa porque para o bezerro macho não tem comprador. Eu caí na besteira de pegar um na leiteria aqui perto porque eu pensei que dava para criar junto com os outros...mas pra começar, tinha que dar quatro litros de leite por dia, nós chegamos até comprar daquele leite em pó próprio, que era mais barato do que tirar da nossa produção. Esses dias eu tentei empurrar ele junto com um lote de dez girolanda desmamados, mas o comprador veio e separou, porque dá para conhecer. O bicho tem os pelos arrepiados, não é bonito igual aos outros. E olha que os

21A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio. 22 Para se proceder a esse cálculo, foram utilizadas as seguintes referências (ano de 2001): preço básico do leite pago pelas indústrias (R$ 0,18); produção média diária por vaca (6 litros); tempo médio de lactação anual (8 meses) e preço médio de bezerros desmamados (R$ 250,00).

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outros tinham uma média de oito meses e esse já passava de um ano. Nem para carne o pessoal compra! Agora a gente não sabe o que faz porque ele pode não prestar para engorda, mas comer ele come igual aos outros.23

Como se pode observar, não é possível analisar as estratégias

camponesas senão dentro de um contexto produtivo próprio, no qual há uma

complexa imbricação de fatores que fogem ao pragmatismo do mercado e, porque

não dizer, do próprio modelo técnico a ele atrelado.

Esse desencontro, conforme já se fez referência, cria severos

embaraços à assistência técnica, mesmo quando os técnicos são bastante sensíveis

às diferenças. Conforme destacamos, o crédito disponibilizado pelo PRONAF-

investimento em 2001 era de R$ 4.000,00, recurso esse que foi alvo de vários

projetos encaminhados pela EMATER para compra de vacas leiteiras na região

estudada.

De acordo com as regras do programa e os preços de mercado, os

camponeses que aderiram ao mesmo conseguiram comprar, em média, cinco vacas

girolandas e manifestaram, em sua maioria, a intenção de vender o leite in natura

na cidade.

No entanto, há um projeto bastante avançado para acabar com esse

tipo de comércio, do qual participam inclusive técnicos da EMATER, envolvidos no

chamado Projeto Vitória. Inicialmente esse projeto foi elaborado para qualificar

técnica e, sanitariamente, o leite oriundo das pequenas propriedades. No entanto,

foram poucos os pequenos que nele se enquadraram. Na visão de alguns técnicos,

isso se deve à falta de interesse, pois o convite foi feito individualmente a cada um

deles e a maioria não se propôs a participar ou o abandonou já no início, de modo

que em seu lugar entraram os médios e grandes produtores.

Sem entrar no mérito e nos possíveis desdobramentos do referido

projeto em termos de conquistas à saúde pública, já que sobre a informalidade não

pesa a fiscalização sanitária, não deixa de ser paradoxal esse fato, tendo em vista

que a viabilidade econômica da atividade leiteira na escala financiada pelo poder

público é bastante discutível, pelo menos se pensarmos nas unidades produtivas

trabalhando individualmente.

Primeiro, em razão das exigências do PNMQL, incompatível com a

produção de cinco vacas e, segundo, porque as próprias indústrias cada vez menos

se dispõem a aceitar em seus quadros fornecedores com baixa produção diária.

23 J.: Água da Valência - Ângulo.

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Assim, o fato é que dificilmente o PRONAF poderá viabilizar os

referidos produtores na formalidade, já que os mesmos não têm como investir em

instalações e acondicionamento nos moldes previstos pelas autoridades sanitárias.

De nossa parte, concordamos que tais medidas legais, no fundo, beneficiam os

grandes laticínios, colocando aos produtores pequenos a única alternativa de

entregar-lhes o leite, a até um terço do preço que obtêm com a venda direta ao

consumidor. Vale lembrar que, por outro lado, os consumidores de baixa renda

também são beneficiados com a informalidade do leite, pelo menos no que tange

aos preços.

Não resta dúvida que a lacuna passa a ser a qualidade do produto

vendido na cidade, o que lança um desafio para a assistência técnica e extensão

rural no sentido de construir um consenso com os produtores e mesmo no interior

da instituição, que culmine em um projeto sem ambigüidades e ao mesmo tempo

viável para os camponeses.

Não se pretende aqui fazer apologia a soluções mágicas, como se

essa transformação estivesse na simples dependência da boa vontade dos técnicos.

Temos clareza que paradoxos como esses se inscrevem nas contradições próprias

de uma sociedade profundamente desigual. Por um lado, a precariedade

evidenciada nas condições nem sempre adequadas de manejo sanitário do rebanho,

ordenha e transporte até a cidade, que pode comprometer seriamente a qualidade

do produto. Por outro, a voracidade da indústria na apropriação da riqueza social,

que faz com que não apenas os camponeses tentem driblá-la, mas os próprios

consumidores, sobretudo os mais empobrecidos, que são beneficiados com o atalho

produtor-consumidor.

É preciso ter clareza de que não serão decretos ou

constrangimentos que trarão soluções para a informalidade nesses termos, mas a

inserção equânime de todos no pacto social e isso somente é possível através das

lutas políticas, que nada mais são do que confrontos de classe. Não resta dúvida

que o caminho mais fácil é o das soluções imediatas, porém há que se supor que

essas, ao serem preconcebidas pela classe hegemônica, tocam apenas

marginalmente, quando não agravam as contradições. As políticas públicas

anteriormente analisadas são um exemplo disso.

Enfim, embora também almejemos soluções imediatas, mas no

sentido inverso à exclusão que essas investidas subsumem, entendemos não haver

lances arrebatadores capazes de operar transformações imediatas, pois essas são

fruto de um processo que se constrói nas lutas políticas cotidianas. E nesse

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sentido, constatarmos, para além das práticas ambíguas, o esforço da assistência

técnica e extensão rural em se aproximarem da realidade camponesa, preconizando

estratégias que implicam no enfraquecimento da ação predatória dos agentes do

capital, não deixa de ser um sinal dos tempos. O oposto, representado pelos

programas aqui discutidos, também não deixa de ser um sinal dos tempos. Não se

trata de apostar na inexorabilidade, em uma ou outra perspectiva aqui apontada,

pois somente as lutas políticas é que podem construir o devir.

É por essa razão que, ao discutirmos o significado das políticas

públicas no processo de territorialização camponesa, procuramos evidenciar que

não se trata de um movimento unidirecional, como se as determinações

hegemônicas se materializassem na forma pura, tal qual idealizadas e planejadas

por seus mentores.

Ao ser lançado no plano material, esse ideal concebido estará

propenso a modificações, na medida exata das interferências decorrentes da colisão

de interesses divergentes. Assim se materializa o conflito de classes, expressando

um movimento contraditório em que o progresso é portador do retrocesso, na

perspectiva do poder e sua confluência nas parcelas do território. Como vimos, essa

dinâmica é determinada pela conjuntura das forças políticas, logo dos respectivos

níveis de coesão, os quais atestam seu fortalecimento ou enfraquecimento.

Todavia, temos visto que o embate de classes não está circunscrito

aos confrontos diretos, embora a classe camponesa também possa adotá-los como

estratégia de luta em determinadas circunstâncias. Não há dúvida que esse é um

recurso incomum, justamente por ser acionado no ponto limite das contradições. A

nosso ver, as práticas que ensejam sua recriação evidenciam a dimensão cotidiana

do conflito, igualmente enfrentado com determinação política. É com base nessa

perspectiva que se chega ao entendimento de que sua perpetuação é produto das

contradições e não simplesmente de concessões das forças hegemônicas.

Não obstante, esse processo encerra uma complexa cadeia de

possibilidades no interior da estrutura de classes. Do ponto de vista semântico, não

encontramos nada mais apropriado para indicá-lo que o termo diferenciação. Porém

sua utilização exige uma breve reflexão, tendo em vista o caráter conceitual oposto

ao sentido que se pretende destacar. A teoria da diferenciação social foi

desenvolvida por Lênin (1982) para apontar um suposto desaparecimento

inexorável do campesinato, seja pelo seu empobrecimento e conseqüente

proletarização, seja pela elevação à condição burguesa, face ao paulatino

enriquecimento. Como vemos, em Lênin, o conceito de diferenciação comportava

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um sentido único, tornando-se uma referência nas análises sobre o

desenvolvimento do capitalismo na agricultura que persiste até os dias atuais.

O esforço desse trabalho consiste exatamente em apontar os

fundamentos palpáveis desse equívoco, ainda que não se possa negar a transição

interclasses. Em outras palavras, partimos das evidências de que a recriação

camponesa se dá a partir de uma vasta combinação de estratégias, as quais se

materializam nas mais diversas trajetórias. Assim, a tese da inexorável

proletarização se perde ante as evidências de que nessa dinâmica há inclusive um

movimento de fortalecimento de classe, propiciado pela aquisição da terra própria.

Porém, esse símbolo da condição camponesa não deve servir de

referência única para essa distinção, tendo em vista as diferentes possibilidades de

autonomia conferidas pelo controle que não deriva da propriedade formal desse

meio de produção. Esse é o caso da parceria que, na área de estudo, é praticada em

praticamente todas as atividades que requerem mão-de-obra intensiva, como a

sericicultura, olericultura e, sobretudo, a cafeicultura, na qual essa relação se

constituiu em um diferencial para o processo de territorialização camponesa.

Vimos, anteriormente, que o povoamento da região se fez às

expensas do café. Aliás, a vinculação dessa cultura à consolidação do campesinato

brasileiro é inevitável, pela sua participação no processo de emancipação ambígua

vivenciado no século XIX. Como se sabe, a transformação da terra em mercadoria

foi fundamental para que os camponeses alcançassem a igualdade jurídica perante

os demais segmentos sociais, em uma conjuntura dominada pelas oligarquias.

A própria expansão cafeeira para o Norte do Paraná revela um

avanço no processo de territorializaçao camponesa, face à importante participação

de pequenos proprietários e colonos; aqueles galgando a nova condição social em

virtude de já terem sido colonos no Estado de São Paulo e terem acumulado o

suficiente para comprar terras mais baratas na fronteira. Estes, embalados pelo

mesmo objetivo e pela disposição em colocar a serviço dos grandes cafeicultores a

força de trabalho da família até alçar o sonho da terra prometida.

E não resta dúvida que, para muitos, isso não passou de um sonho.

Embora tenham se mantido por décadas como produtores diretos de sua existência,

trabalhando em terras e cafezais alheios, nem todos conseguiram amealhar

recursos suficientes para adquirir o seu pedaço de chão. A partir dos anos setenta,

a desestruturação dessa cultura em favor das lavouras mecanizadas fez com que

muitos deles trilhassem os caminhos da proletarização.

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Não obstante, uma outra parte que chegara “só com a coragem para

trabalhar” conseguiu retirar do café e das culturas intercalares o suficiente para

comprar sua nesga de terra.

Eu vim para cá porque lá em Minas a gente escutava falar que aqui em Londrina a gente juntava dinheiro com o rodo...que era muito bom, não é? E quando eu cheguei em 1963 era bom mesmo, porque no começo era tudo da gente, e ainda ganhava 2.500 réis por mês para dar o café arruado. Aqui derrubei mata, porque era tudo mata...a gente podia plantar na terra derrubada. Eu plantava feijão jalo e foi com o dinheiro desse feijão que eu comprei essa chacrinha de um alqueire e meio. É pouquinho, mas graças a Deus.... O homem deu o mato para derrubar por porcentagem e de porcentagem eu estou até hoje, porque na chacrinha nem casa tem. É aqui que eu moro, na minha chacrinha eu tenho de tudo um pouco e mais o café. É com o café que dá para a gente tocar...24

A trajetória relatada revela uma combinação peculiar. Nosso

interlocutor chegara à idade adulta trabalhando com a família em uma fazenda de

Minas Gerais. A necessidade de encontrar sua própria “colocação” o fez migrar para

a região, trabalhando inicialmente como formador de café. É essa ocupação que lhe

permitiu juntar um pecúlio para comprar terra, pois em suas próprias palavras era

chegado o momento de “parar”, que significa se estabelecer, formar família.

Entretanto, as terras próprias eram insuficientes para a sobrevivência da família,

razão pela qual se manteve como porcenteiro em uma área bastante próxima à sua

“chacrinha”.

Na minha chacrinha eu planto o feijão, é sempre no meio do café... Mais da metade eu uso para o arroz e para o milho, o café é mais pouco, é só mais em cima, eu tentei plantar mais pra baixo, mas a geada veio e já sapecou...Agora aqui eu também tenho café, é 40% de porcentagem, só que esse ano não tem colheita, aqui eu toco mais palhada e menos café. Agora o milho vai para a criação, porco, galinha, animal de tração, uma vaca, eu tinha mais vacas, mas por causa do pasto eu vendi, porque muita criação e pouco pasto é só para sofrer, é melhor ter menos e tratar bem...ficar com muita criação e elas passar mal não é certo. 25

Como vemos, a produção é alcançada com a combinação entre as

terras próprias e as áreas exploradas no sistema de parceria. Observemos que a

cultura comercial é secundária para esse camponês, que demonstra privilegiar as

atividades que garantem o suprimento da cesta alimentar completa da família. É

bom lembrar que não se trata de uma preocupação isolada, mas de uma estratégia

da classe camponesa: para se ter uma idéia, no ano de 2001, 11.404 hectares

24 A.: Água da Marrequinha - Londrina. 25 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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foram destinados ao cultivo de arroz e feijão, os alimentos primordiais da cesta de

consumo doméstica.26

Aliás, essa é uma preocupação recorrente nas comunidades que

sobrevivem com pouca terra, aumentando a renda através do contrato que

estabelecem com proprietários para atuarem como porcenteiros no café. Muitos dão

continuidade aos contratos estabelecidos pelos pais e avós, que ali permaneceram

desde a constituição das colônias de cafeicultores. Foi o que essas gerações

acumularam como parceiros durante décadas que permitiu a compra dessas

propriedades minúsculas.

Como vimos, os mesmos se dividem entre os cultivos na terra

própria e nas parcelas de café tocadas em esquema de porcentagem. Nas parcelas

próprias, embora o café seja um cultivo praticamente obrigatório, sua participação

em termos de área nem sempre é significativa, por dois motivos: primeiro, porque a

sobrevivência está em primeiro lugar e nem sempre se pode obtê-la nas terras

alheias. Segundo, porque, via de regra, esses pequenos sítios somente puderam ser

adquiridos por serem “refugos”, ou seja, piores em termos de fertilidade e

declividade que as áreas no entorno. Como vimos, as cotas mais baixas,

praticamente inviabilizam a cultura e tendem a ser destinadas às pastagens, para o

suprimento de leite para o consumo familiar.

Entretanto, nem todos os parceiros no café são proprietários, assim

como também nem todos os cafezais explorados sob o regime de parceria são

extensos, com várias famílias trabalhando. Além das colônias a que nos referimos,

há também pequenas áreas cultivadas por uma ou duas famílias parceiras, mas

esses contratos igualmente pressupõem a moradia da família na propriedade, já

que os tratos culturais se estendem ao longo de todo o ciclo agrícola, ainda que com

diversos níveis de intensidade.

Talvez essa seja uma das razões pelas quais seja tão comum entre

os camponeses a metáfora entre o enraizamento profundo do cafeeiro no solo e a

fixação do agricultor na terra onde o mesmo é cultivado.

...o café faz o produtor ficar na terra. Quem é cafeicultor cria raízes, iguais às do café antigo, que é difícil de arrancar. O café segura a gente no campo, além disso, tem serviço o ano inteiro, tem que carpir, passar veneno, preparar a colheita, colher... 27

26 Dados extraídos do Relatório Realidade Municipal – EMATER, 2001. 27 O.:Barra do Jacutinga - Ibiporã.

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A permanente necessidade de cuidados no café contrasta com a

maioria das lavouras, pela baixa ocupação de mão-de-obra que essas implicam. Por

outro lado, algumas implicações legais fazem com que a maior parte dos

proprietários absenteístas rechace a fixação de famílias em sua propriedade. Não é

por acaso que, na região, a maior parte das lavouras cafeeiras tipicamente

capitalistas foi substituída por culturas mecanizadas. Onde persistem os cafezais,

se verá o cultivo a cargo de famílias, proprietárias ou parceiras. Como vimos, a

parceria diminui os custos com mão-de-obra, ao mesmo tempo que aumenta a

eficiência na atividade.

Não obstante, os contratos de parceria são os mais variados, ainda

que os tratos culturais desde as capinas até a colheita sejam de inteira

responsabilidade dos parceiros. No sistema de porcentagem, há uma série de

critérios para definir as respectivas obrigações. Em alguns casos, o fornecimento de

todos os insumos fica a cargo do proprietário. Nesses casos, lhe será entregue mais

da metade da produção, mesmo porque o custo comprovado com insumos se

constitui em eficaz instrumento de convencimento de que a relação de trabalho é

justa. Nesses casos, observamos que a maioria dos contratos concede aos

camponeses de 35 a 40% das colheitas. Em geral, esses contratos pressupõem a

cultura intercalar para consumo da família, com a entrega de uma parte da

respectiva produção.

Outros contratos ainda os colocam como meeiros, de modo a

repartirem os custos da produção e a colheita da cultura comercial. Quanto às

culturas de autoconsumo, nem sempre o proprietário retém uma parte para si. Por

fim, há contratos em que os camponeses se responsabilizam inclusive pelo

fornecimento de insumos, entregando ao proprietário de 30 a 40% do café colhido.

Entretanto, os parceiros são bastante vulneráveis aos momentos de

fraco desempenho econômico dessas lavouras, seja em função de quebras na

colheita ou preços insatisfatórios. E isso não está relacionado apenas à diminuição

da renda obtida, mas, sobretudo, à decisão do proprietário em manter ou não a

atividade.

Isso ficou particularmente visível em 2001, momento em que essa

dupla combinação chegou a extremos: a geada do ano anterior praticamente

eliminou a colheita e os preços chegaram ao patamar mais baixo das últimas

décadas. Com isso, muitos proprietários não se dispuseram a realizar investimentos

na lavoura, reduzindo ou até eliminando gastos com adubo e veneno. Entretanto,

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sem essas inversões, as colheitas nos anos subseqüentes ficam praticamente

inviabilizadas.

Esse tem sido um fator de crescente insegurança, já que muitos

camponeses vivem exclusivamente da parceria e mesmo entre as famílias que

combinam essa relação de trabalho com a exploração das terras próprias, a renda

delas é insuficiente para sua manutenção, pelo menos se mantidos os atuais

padrões de consumo dessas famílias.

Além disso, o não investimento no café sinaliza para a possibilidade

de erradicação futura, caso as condições de produção e comercialização se

mantenham, situação essa que certamente eliminaria as pequenas colônias de

parceiros.

O fantasma da erradicação do café está sempre a rondar essas

comunidades, já que elas estão cercadas por pastagens ou terras mecanizadas que,

no passado, foram cafeeiras. Nas palavras dos próprios camponeses, muitos

moradores da periferia das cidades foram porcenteiros nessas propriedades, sendo

expulsos com a substituição dessa cultura.

Quando o café vai bem, a gente já ganha menos que os situantes porque têm que dar a parte do patrão. Agora imagine quando chega a hora de colher e não tem nada. Daí tem que vender o que tinha guardado, mas também não tem preço. Então a gente perde o sono, porque além de pensar como é que vai conseguir passar mais um ano, fica com medo do patrão desistir do café. Eu acho que só vai sobrar os porcenteiros antigos, aqueles que o patrão não vê jeito de mandar embora.28

Notemos que o risco de desativação de algumas colônias é real,

mesmo porque os preços baixos, aliados ao aumento dos custos dos insumos têm

gerado uma perda de renda entre os próprios proprietários das áreas cultivadas

nesses moldes. É bom lembrar que estes também foram se enfraquecendo à medida

que declinava a renda nessa cultura, dificultando a sua migração para as lavouras

mais rentáveis. Portanto, há casos em que a lavoura de café é mantida em virtude

dos altos investimentos necessários para a conversão em lavouras mecanizadas.

Por outro lado, pesa ainda as relações pessoais estabelecidas com

os parceiros em décadas, mesmo porque muitos proprietários nunca se mudaram

do lugar, estando de tal modo articulados à comunidade que, a decisão em manter

a cultura, é resultado de um crivo moral. Não obstante, o risco permanece quando

da transferência da propriedade para os herdeiros, muitos dos quais vivendo longe

28 E.:Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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e sem qualquer relação com a comunidade.

Se para aqueles que possuem pequenas áreas, a insegurança

quanto às condições futuras de reprodução se coloca nesses termos, o que não

dizer daqueles que dependem exclusivamente da parceria na cafeicultura para se

reproduzirem! Nesses casos, nos momentos de crise, o trabalho acessório de parte

da família tem se constituído em um recurso para que permaneçam na parceria.

Aliás, os proprietários não fazem restrição ao trabalho externo dos porcenteiros,

desde que a lavoura sob seus cuidados tenha precedência.

Contudo, as ocasiões em que os parceiros mais necessitam de uma

oportunidade de auferirem renda fora da propriedade são aquelas em que as ofertas

de trabalho no entorno são limitadas, pois, nos bairros rurais, é o café que mais

mobiliza trabalhadores externos e, na falta desse, são poucas as possibilidades de

trabalho temporário.

Lembramos que no Norte do Paraná, a quebra de safras em virtude

de geadas é recorrente, embora raramente na intensidade verificada em 2000. Por

isso, a prática de conservar a maior parte possível da produção para esses

momentos. Tradicionalmente, diante dos estoques baixos, a quebra das safras

vinha acompanhada de altas nos preços, beneficiando aqueles que tinham

“segurado” parte das colheitas anteriores.

No entanto, isso não ocorreu nesse ano, face à mudança no

mercado internacional do café, deixando os camponeses atônitos, até mesmo por

não conseguirem compreender tal mudança de lógica, da qual ainda não haviam

provado.

A surpresa está no fato de que geada sempre fora sinônimo de alta

nos preços, o que não quer dizer que os mesmos não conheçam a enorme oscilação

de renda nessa cultura. Talvez por essa razão seja tão comum encontrarmos entre

os parceiros essa dupla condição: proprietários que não podem abdicar da relação

de parceria, mas que possuem terras próprias para incrementar sua renda e

assegurar, no limite, a produção de alimentos necessários ao consumo da família.

Nos relatos sobre a lógica que preside a ordenação do tempo e do espaço produtivo,

a autonomia está sempre vinculada ao fato de disporem livremente de um pedaço

de chão para esse fim.

No café, o dono fica com 60% da produção, mas é ele que dá o adubo e o veneno, a gente só entra com o trabalho. A gente também planta no meio do café mas aí o gasto é por nossa conta. Do que tirar é meio a meio. Mas não tem jeito de pôr vaca no meio do café, não é?

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Então na nossa chacrinha [2,4 hectares] é melhor, porque tudo o que tira da roça e das criações é nosso...dá para o gasto... 29

Vimos que a posse de gado leiteiro é um indicativo de que a família

desfruta de uma situação mais confortável. E isso é mais verdadeiro ainda para

esses parceiros proprietários, tendo em vista que somente a terra própria é a

garantia de que podem fazê-lo.

Os acordos mais antigos, onde resistem as colônias nas quais

moram esses trabalhadores, muitos dos quais há décadas, tendem a conservar as

práticas de produção para o consumo, sobretudo na forma intercalar e, mais

raramente, o direito ao uso do pasto. Já os cafezais mais recentes, implantados sob

a lógica do adensamento, são cada vez mais restritivos, inclusive à parceria.

Apesar de termos clareza de que, no café, essa seja uma relação em

franca retração, não é possível abordar o processo de territorialização camponesa

na região, desvinculado da mesma. E isso não se deve apenas a sua influência na

ocupação pioneira da região, mas também à sua participação na emancipação dos

camponeses, que através dela chegaram ao status de proprietários.

A presença numérica desses em relação ao conjunto pesquisado é

tão significativa que somente reforça a compreensão de que estamos diante de um

processo de consolidação do campesinato na região, ainda que o remembramento,

que consiste na transferência da terra camponesa para outros camponeses, seja

bastante expressivo.

Essa constatação, no entanto, não permite que ignoremos o

contexto de aumento da produtividade no campo, pois isso conduziria a

equivocadas conclusões. Em outras palavras, o número de trabalhadores ocupados

na agricultura caiu e isso é verdadeiro também para os camponeses. Não obstante,

há que se considerar que muitos proprietários de agora são os camponeses sem

terra de 10, 20 ou 30 anos atrás, momento em que a proporção daqueles que

detinham a posse precária desse meio de produção era muito maior.

Essa é uma evidência que, desde a abertura da fronteira norte-

paranaense, uma parte do campesinato envolvido com a cultura cafeeira vem

alcançando uma ascensão fundamental, a passagem para a condição de

proprietários. E isso se aplica também àqueles que conseguiram comprar terras

suficientes para o sustento da família.

A gente não tinha nada, a gente começou do zero, tipo trabalhando por dia, aí a gente falou, vamos pegar junto, vamos trabalhar, vamos

29 A.:Colônia Mantovani - Cambé.

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conseguir comprar um pedaço de terra. Fizemos isso, dedicamos uns quinze anos, trabalhando e aquele negócio, esquecendo do mundo, dedicando só pra isso, sem festa, sem nada, só o básico mesmo. Nós fizemos tudo isso pra viver um pouco melhor. Para chegar nesses oito alqueires nós compramos sete partes.30

Devemos lembrar, no entanto, que essa passagem nem sempre é

automática e a combinação anterior é um exemplo disso. A completa autonomia

demanda recursos não apenas para a compra da terra, mas para o estabelecimento

da moradia, das instalações produtivas e até mesmo da compra de equipamentos.

Quando eu comprei aqui, isso era uma propriedade abandonada, tudo cheia de leiteiro, árvores assim que não tinha proveito, então a gente as destruiu para fazer lavoura de café, uma pastagem, mas o recurso era pouco, então a gente teve que trabalhar de empregado. Eu trabalhei de tratorista uns quatro anos na Junqueira [usina de açúcar e álcool], depois que eu já estava aqui. Então eu também deixei a propriedade, meio que parei porque a gente não tinha recurso e o juro era muito caro, então captar empréstimo particular em banco é pior ainda. Então eu tive que abandonar a propriedade para trabalhar de empregado. Depois que meus filhos cresceram, eles estão trabalhando de empregado e eu estou na propriedade, a esposa faz a parte dela e eu faço a minha também.31

Essas trajetórias indicam que a diferenciação não é um processo

automático e tampouco definitivo. Esse mesmo camponês nos informou que as

próximas safras seriam decisivas para definir a continuidade ou a interrupção da

exploração econômica da propriedade. Mais uma vez a baixa renda acena para a

necessidade de se empregar novamente na usina, a fim de arrecadar os recursos

necessários para o investimento na propriedade, ainda que praticamente todo o

salário dos três filhos esteja sendo aplicado no sítio. Notemos que essa é mais uma

das razões pelas quais o café é a cultura por excelência dos camponeses, sobretudo

no sistema espaçado, que é mais resistente: uma vez formado, mesmo que seja

abandonado ele não perecerá. A retomada da produção depende da eliminação do

mato e das aplicações regulares de adubo e veneno.

Devagarzinho a gente adquiriu umas criaçãozinhas com recurso próprio mesmo, então estamos tirando leite, é pouco mas a gente vai tentando ver se consegue fazer uma granja, um poço artesiano, qualquer atividade que possa gerar um recurso para a gente melhorar a vida da gente... O dinheiro que a gente procura no banco o juro é alto, então a gente tem que trabalhar de empregado e ao mesmo tempo aplicar o recurso que sobra do gasto da gente. Também a gente procura gastar o mínimo para não ficar devendo, porque se ficar devendo, não sobra para fazer o que a gente quer. Então a gente está procurando ver se nos anos que vão vir, se a

30 G.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso. 31 J.: Água Clara - Nossa Senhora das Graças.

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gente consegue trabalhar na propriedade e ver se melhora. Eu tenho essa propriedade já faz 15 anos. Aí em 85 eu tive acesso a empréstimo para tocar uma lavoura de algodão, aí num alqueire eu colhi 400 arrobas...daí eu trabalhei até 90 mais ou menos. De 90 a 95 eu venho regredindo, de 95 até 2001 eu fiquei parado, trabalhei para fora, eu e a família toda. Agora eu plantei esse pouquinho de café aqui e o resto é em pastagem. Mas a pastagem tem que recuperar.32

A lógica do trabalho acessório aparece com toda clareza nesse

depoimento. Notemos que o assalariamento não adquire o sentido de proletarização,

mas de fortalecimento da condição camponesa. Os filhos estão empregados para

angariar recursos para maiores investimentos dentro da propriedade, condição para

conquista da autonomia da família como um todo.

Se corrigir a defasagem a gente pode até crescer, essa propriedade pode adquirir recursos para a família e sobrar. Dois alqueires é suficiente para uma família de quatro ou cinco pessoas viver...viver digno, de não precisar trabalhar de empregado. Trabalhando sim, mas dentro da propriedade.33

Observemos que a idéia de dignidade está relacionada ao trabalho

camponês. Perpassa o relato a necessidade de recursos para que o investimento

possa reverter em um patamar de produtividade capaz de absorver a família inteira.

É nesse sentido que números muitas vezes tomados como evidências da

proletarização, podem ocultar estratégias de fortalecimento do campesinato.

Conforme advertimos, a transição de camponeses sem terra para

camponeses proprietários, por vezes, implica em combinações dessa natureza. Na

área estudada, essa transição é marcante, tendo o café como maior impulsionador

da mesma. Entretanto, isso se deve aos níveis pretéritos de renda que essa cultura

proporcionou, já que atualmente os camponeses cafeicultores mal estão

conseguindo investir o suficiente para permanecer na atividade.

Por outro lado, é bom lembrarmos que outras culturas

desenvolvidas no sistema de parceria também abriram caminho para a compra da

terra própria. E deve-se lembrar que, ao se tornarem proprietários, a tendência é os

mesmos perpetuarem a atividade que os tornara proprietários. A trajetória de

viticultores e mesmo da maior parte dos olericultores entrevistados assim o revela.

Depois que nós conseguimos comprar a terra, tivemos que deixar ela parada uns oito anos, enquanto ia fazendo as coisas devagar. O recurso que dava para tirar da porcentagem era pouco, então ainda falta muita coisa. Por enquanto só dá para plantar jiló, abobrinha,

32 J.: Água Clara - Nossa Senhora das Graças. 33 J.: Água Clara - Nossa Senhora das Graças.

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pimenta, pimentão...essas coisas que não precisam irrigar, porque a chácara é alta e ainda não tem a bomba. 34

Da mesma forma que esses camponeses conseguiram se viabilizar

nas terras próprias após muitos anos de trabalho como parceiros na olericultura,

outros não alcançaram esse nível de renda, mantendo-se ainda como parceiros. Tal

como no café, as oportunidades de colocação estão relacionadas à grande demanda

por mão-de-obra, além de tratar-se de uma atividade de baixo valor agregado.

Cumpre salientar que, do ponto de vista dos proprietários da terra,

a parceria na olericultura costuma ser estabelecida por famílias camponesas em

níveis mais altos de renda e, menos comumente, por proprietários absenteístas.

Nestes casos, essa relação de parceria tende a ser vantajosa à medida que os custos

e os riscos são repartidos. Some-se a isso o fato da intensividade da atividade

ocupar uma parcela mínima da propriedade, passível de se desdobrar em usos

diversos, sobretudo pecuária de corte, face à baixa ocupação de mão-de-obra.

Por outro lado, a relação de parceria nos sítios camponeses está

relacionada à insuficiência da força de trabalho da família para os trabalhos na

horta. A foto a seguir mostra o trabalho conjunto de membros da família

proprietária e da família parceira na seleção da cebola cultivada para a

comercialização.

Foto 14 – Trabalho em família

Essa é uma evidência de que a parceria se enquadra em uma lógica

de complementaridade fundamental para a permanência de ambos na atividade.

Entretanto, a família parceira desfruta de uma autonomia parcial, pois se acha

enquadrada em uma lógica produtiva ditada pela família proprietária, estando

muitas vezes subordinada às decisões do que e como produzir.

34 B.: Bairro dos Moreiras – Tamarana.

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Desse modo, camponeses parceiros e camponeses proprietários

dividem obrigações e funções definidas. Os primeiros cedem moradia e terra para

que os outros empreendam os cultivos por conta e risco, para posteriormente

dividirem os resultados. É importante salientar que o aumento da produção nesses

termos é que permite a viabilização do transporte, um dos fatores de maior peso na

composição dos custos na atividade.

Ademais, a lógica da olericultura acaba impondo a

complementaridade nesses termos. Como vimos, os camponeses olericultores

inseridos no circuito comercial, estão diante de uma imposição de produtividade

severa. A combinação da alta perecibilidade desses alimentos com os baixos valores

agregados comporta praticamente duas possibilidades: ou uma produção pequena

articulada à venda direta aos consumidores, ou a produção em escala suficiente

para satisfazer a voracidade dos atacadistas e, ainda assim, extrair o necessário

para a reprodução da família.

E paradoxalmente, a pesquisa de campo evidenciou que, de certa

forma, os camponeses das zonas olericultoras, como é o caso de Tamarana, apesar

de cultivarem hortas maiores, o que não dispensa o estabelecimento da parceria,

chegam a se reproduzir em piores condições do que aqueles que já têm sua

freguesia nos municípios onde residem, vendendo a produção de porta em porta.

Por outro lado, há olericultores que conseguiram acumular na

atividade, havendo inclusive hortas cultivadas por trabalhadores assalariados.

Nesses casos, não só a infra-estrutura já é mais adequada, o que inclui sistema

próprio de transporte, como também os processos de produção são mais complexos,

a ponto de lhes permitir o estabelecimento de contratos para fornecimento direto a

grandes redes de distribuição, como hipermercados.

Não obstante, o diferencial na olericultura é a capacidade de

investimento. Como vimos, a pequena demanda em termos de área abre a

possibilidade de reprodução autônoma para famílias que ascenderam a essa

condição ao longo de anos de trabalho em terras alheias.

No entanto, para sua permanência na atividade, é necessário

superar a principal dificuldade, que é a colocação da produção no mercado. Vimos

que a esse desafio os mesmos respondem com as mais variadas estratégias, entre

as quais uma modalidade de ajuda mútua, que consiste na produção articulada na

comunidade, de modo que vários vizinhos possam enviar conjuntamente a

produção para o mercado, garantindo ao mesmo tempo, quantidade para colocação

no CEASA e viabilização do transporte.

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Essa prática torna-se bastante significativa para famílias

depauperadas, no limite da satisfação das necessidades básicas, as quais

dependem primordialmente desses laços para continuar se reproduzindo. Nesses

casos, a ajuda mútua também se manifesta no esforço da comunidade em contratar

parte dessas famílias, sempre que possível, para auxiliar nas tarefas internas. Nos

casos por nós observados, não podemos deixar de assinalar o quanto esse gesto é

entendido como ajuda por ambos.

Para os camponeses que os empregam, a contratação muitas vezes

seria dispensável, mas a necessidade dos vizinhos e a comodidade de um auxílio

nas tarefas mais pesadas contribuem para tal. Trata-se, na realidade, de uma

coexistência entre camponeses “fortes” e “fracos”, na qual o apoio dos primeiros é

fundamental para a recriação dos segundos.

Aqui quase todo mundo é forte... tem seu sitinho de cinco, dez alqueires... então eles sempre dão um serviço ou outro para a gente. Agora bem dizer nós somos os únicos fracos, porque antes de dar serviço para os outros, precisamos que os outros dêem para a gente.35

Aqui, o conceito de “fortes” é utilizado em referência a camponeses

remediados, com propriedades que não ultrapassam 30 hectares e chegam a

abrigar várias famílias nucleares. Contribui para essa visão, a privação quase que

completa dos meios de produção dessa família, a qual dispõe de um pequeno

terreno para plantio de horta comercial, associado ao domínio de pouco mais de

dois hectares cedidos pelo pai, mediante o pagamento de 25% de renda. Cumpre

salientar que o sítio de menos de dez hectares abriga quatro filhos e suas

respectivas famílias, todos em situação parecida. É a renda paga pelos mesmos que

garante a sobrevivência dos pais, que já não têm condições físicas para trabalhar

na lavoura.

Nós aqui não temos nada, só o dia para trabalhar e a noite para descansar. É por isso que eu rezo muito, rezo o quanto posso pra Deus olhar para a minha família e não deixar nada faltar.36

Apesar da extrema vulnerabilidade, pois a sobrevivência depende do

trabalho acessório, em determinados períodos do ano é o trabalho na terra própria

que garante a reprodução da família. Isso depende de uma combinação singular

entre condições climáticas e adaptação da unidade produtiva a determinados

35 M.:Barra Bonita - Primeiro de Maio. 36 M.:Barra Bonita - Primeiro de Maio.

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cultivos.

Nessa região, o inverno é um período que apresenta uma dupla

possibilidade: tanto os olericultores podem “acertar” quanto perder tudo. A

vulnerabilidade da maior parte das verduras e legumes ao frio faz com que nem

todos arrisquem a cultivá-las nos meses propensos a temperaturas mais baixas, em

que efetivamente ocorrem perdas.

Assim, há uma tendência de diminuição da oferta e,

conseqüentemente, aumento dos preços. Aqueles que conseguem colher nesses

períodos muitas vezes alcançam um rendimento extraordinário, se comparado às

demais épocas do ano, nas quais há produtos em relativa abundância no mercado.

Nós já tentamos plantar vagem no verão, mas a gente desistiu, porque a produção não é boa e os preços abaixam demais, às vezes não faz nem para o frete. Então a gente prefere plantar coisas para comer e trabalhar para fora. Agora quando chega o inverno, aí é a horta em primeiro lugar. A horta é abençoada, é dela que vem o pão. Nela a gente trabalha contente, cada um acorda cedo e já sabe o que fazer...ela é a nossa salvação. Eu já falei para os meninos que no inverno a horta dá mais, que não precisa procurar serviço.37

A precedência da horta em relação à venda da força de trabalho

evidencia o quanto a terra é fundamental para a reprodução camponesa. Como se

pode observar, é a escassez desse meio de produção que lança as famílias para o

limiar da diferenciação, colocando em risco a própria reprodução camponesa. É o

que podemos depreender das explicações dadas pela família ao fato de não terem

plantado feijão naquele ano. O preço da semente foi a razão da ausência dessa

lavoura; ao indagarmos se eles não costumavam reservar parte da produção para

esse fim, fomos informados que a colheita anterior havia sido ruim, sendo que todo

o feijão colhido já havia sido consumido pela família.

Esse depauperamento representa uma ameaça real à condição

camponesa, a qual não passa despercebida aos demais camponeses, que sentem na

pele as dificuldades da atividade e assistem, impotentemente, à partida de vizinhos

e até familiares que não conseguiram sobreviver na terra.

Pelas minhas contas, nos últimos anos, 62 pessoas foram embora e só 12 vieram morar aqui. Uns que eram porcenteiros, a geada do ano passado matou o café e eles tiveram que procurar outra colocação, outros porque moravam de favor na terra de parentes e compraram um pedacinho de terra em outro lugar, outros que desacorsoaram da lavoura e foram embora para a cidade...alguns deles já voltaram, porque na cidade está pior.38

37 M.: Barra Bonita - Primeiro de Maio. 38 A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio.

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Esse relato é um exemplo do quanto é dinâmico o processo de

territorialização camponesa. Como se pode observar, nosso interlocutor relata a

expulsão de parceiros, a criação de camponeses autônomos, mas a expropriação

não aparece relatada, mesmo porque na área de estudo esse é um fato menos

comum.

Vimos que a maior parte dos camponeses proprietários

testemunham a ascensão a essa condição. Nessa mesma comunidade, encontramos

situações que revelam isso, como por exemplo, o caso de uma família cujo patriarca

começou no Nordeste uma verdadeira perambulação pela terra de trabalho. A

família veio para o Estado de São Paulo, para trabalhar como diarista, passando

por “todos os lugares onde tinha serviço”. No Paraná, após trabalharem como

porcenteiros no café, conseguiram comprar quatro alqueires de terra, dos quais a

família sobrevive.

Esses são apenas alguns indicativos de que no interior da classe

camponesa há uma enorme mobilidade; essa tanto pode se manifestar no sentido

de fortalecimento da condição camponesa quanto na diferenciação para além da

classe.

Do mesmo modo que a proletarização é uma possibilidade real,

outros exemplos sugerem o contrário. No trabalho de campo, pudemos verificar o

quanto é recorrente a alternância da condição camponesa, que pode ser resumida

no movimento de recamponização e descamponização. Trata-se, pois, de um

processo tão dinâmico quanto contraditório, o qual comporta as mais diferentes

trajetórias circunscritas ao trabalho na terra.

Portanto, a conquista da autonomia se dá por diversos caminhos.

Encontramos alguns que chegaram a essa condição graças à decisão da justiça em

lhes conceder legalmente a propriedade de uma terra trabalhada por duas gerações.

Por outro lado, encontramos filhos de camponeses que acabaram se proletarizando,

mas, como empregados, foram acumulando com vistas à compra da terra própria.

Alguns comprando algumas vacas e vendo o rebanho crescer, apascentando-o nas

beiras de estrada, pagando aluguel de pasto, algumas vezes ao próprio patrão.

Outros tocando arrendamento concomitantemente ao

assalariamento, contando com a força de trabalho da esposa e dos filhos, já que o

contrato de trabalho nas fazendas normalmente é estabelecido apenas com o chefe

da família, ainda que, via de regra, os demais membros também trabalhem.

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Enfim, são inumeráveis as estratégias utilizadas na conversão para

camponeses proprietários. Evidentemente, após alçados a essa condição, o desafio

passa a ser a permanência na terra, sendo necessário recorrer a diversos

expedientes para extrair dela o suficiente para o sustento da família.

Nesse sentido, as estratégias para a manutenção da terra são as

mais diversas: o arrendamento de parte do sítio é um expediente a que recorrem

aqueles que não possuem nem recursos financeiros nem maquinários necessários

para o plantio mecanizado. Não obstante, é preciso esclarecer que essas decisões

são tomadas sempre que o sustentáculo da sua condição autônoma estiver sob

ameaça. Assim, na iminência de perda da terra, os camponeses optam por um nível

mais baixo de rendimento, desde que a propriedade não corra risco.

No ano passado eu tive que vender até uma moto para pagar dívida porque a lavoura não correu bem. Eu vi que só faltava perder a terra, que era a única coisa que eu tinha. Por isso resolvi arrendar quatro alqueires para o vizinho, que tem todos os maquinários, ele me dá 30% da colheita...se der bem é bom para os dois, se não der nada, eu não perdi nada, porque continuo com a terra.39

Vemos que o cálculo do nosso interlocutor opera, no limite, com a

manutenção da condição camponesa. E no caso em questão, em igual quantia de

terra cultiva café, no meio do qual planta milho, arroz e feijão. Há uma pequena

área de cana, que alimenta a produção de rapadura, vendida diretamente aos

consumidores, assim como o mel, cujas colmeias estão em uma mata de outra

propriedade.

Portanto, as unidades camponesas se reproduzem porque há um

rigoroso cálculo que antecede qualquer atividade, com base em uma racionalidade

mediada pelo montante de dinheiro disponível para o investimento, sem prejuízo da

segurança alimentar da família.

Nós demos em arrendamento a terra para um homem que tinha as máquinas de plantar direto e a gente queria ver se era bom mesmo, mas para nós não deu certo. Quando a gente viu, o colonião estava invadindo a roça e o homem disse que não tinha importância, que era assim mesmo. Aí a gente se desesperou, pegamos na enxada e tivemos que arrancar touceira por touceira...Deus me livre, foi para nunca mais.40

Essa situação ilustra a diversidade de estratégias produtivas de

acordo com o estoque de terras e a disponibilidade de instrumentos e força de

39 A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio. 40 M.: Barra Bonita - Primeiro de Maio.

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trabalho. No caso assinalado, trata-se de um sítio de quatro hectares, dos quais

metade foi arrendada para a soja. Vemos que eles o fizeram para experimentar, por

não deter as condições técnicas e instrumentais para fazê-lo por si.

Entretanto, as técnicas utilizadas para conter a proliferação do

colonião não foram consideradas razoáveis pela família, ainda que para o

arrendatário ela estivesse dentro dos padrões de normalidade. Certamente o

desencontro está no cálculo diferenciado que fazem: enquanto que para o

arrendatário isso representava apenas alguns metros de cultura perdida, para os

camponeses mais empobrecidos o avanço do colonião representava uma perda

dupla, pois além da menor colheita, haveria gastos superiores para limpar o terreno

no futuro, demandas incompatíveis com o seu nível de renda.

Por outro lado, essa corrida por alternativas também contribui para

a mobilidade social no interior da classe. Se anteriormente apontamos a cessão da

terra em arrendamento, há também o arrendamento de áreas no entorno do sítio.

Via de regra, o arrendamento é praticado por camponeses que já possuem mais

recursos, notadamente máquinas, e o fazem com vistas à otimização das condições

produtivas.

Assim, ao reduzir a ociosidade dos instrumentos e da força de

trabalho, conseguem um incremento de renda que aos poucos os vai fortalecendo,

ao ponto de alguns chegarem a condição de camponeses ricos. Com isso, parte

deles acaba investindo em terras, aumentando de tal modo o patrimônio que, por

vezes, há a contratação de empregados. Outros optam pelo investimento na

diversificação do sítio, o que igualmente pode requerer a contratação de

assalariados.

Notemos que o limiar da diferenciação está posto quando a

contratação de trabalhadores deixa de ser eventual e passa a suplantar a

importância da mão-de-obra familiar nas atividades produtivas. Entretanto, não se

trata de uma transição automática ou obrigatória, como se a lógica camponesa

devesse necessariamente ser substituída pelas práticas capitalistas da noite para o

dia. O que se verifica é um lento processo, que poderá se manifestar a longo prazo,

e isso dependerá sobretudo da trajetória dos filhos.

Na pesquisa de campo, foi possível identificar duas tendências: a

primeira é a da provável diferenciação, à medida que os filhos estão sendo

preparados para uma profissão externa à propriedade. Essa preparação manifesta-

se no incentivo ou mesmo na freqüência aos cursos superiores: “a terra é pouca,

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não tem como eles constituírem suas famílias e continuarem aqui.” 41

Nesses casos, a recriação camponesa é algo improvável se os filhos

de fato se inserirem no mercado, sobretudo com formação superior, o que em tese

assegura oportunidades privilegiadas em comparação aos demais trabalhadores.

Todavia, o fato dos pais ainda estarem em condições de explorar a propriedade faz

com que as estratégias e tradições típicas do modo de vida camponês sejam

mantidas.

Outra possibilidade é a recriação camponesa a despeito desse

processo de enriquecimento. Temos visto que as limitações materiais da

propriedade camponesa se constituem no principal fator de expulsão dos filhos.

Assim, um patamar de renda mais elevado permite a absorção das novas famílias

que vão surgindo com o casamento dos mesmos.

É nessa perspectiva que se enquadra o remembramento da

propriedade camponesa: a compra de terra não sinaliza para a especulação, mas

para a adequação do patrimônio à dinâmica demográfica familiar. Encontramos

casos de famílias em que três gerações se reproduzem nesse sistema, embora o

recurso aos arrendamentos seja bastante acentuado, pois a ampliação do

patrimônio fundiário raramente acompanha o crescimento da família.

O que chama a atenção em ambos os casos é que, apesar de já

desfrutarem de um nível de renda perfeitamente compatível com a total inserção no

mercado, as práticas camponesas são mantidas. As atividades de consumo, como o

cultivo do arroz, feijão, mandioca, abóbora, horta e criações não são abandonadas,

assim como as práticas domésticas de preparação dos alimentos, como a fabricação

de lingüiça, queijo e demais derivados de leite, a torração e moagem manual do

café, a fabricação de sabão etc.

Por outro lado, as atividades comerciais já revelam um elevado

patamar de investimento. Quando a terra é pouca, a regra é a diversificação, com

destaque para a avicultura articulada com as culturas mecanizadas de soja, milho e

trigo. Quando já se incorporaram mais terras ao patrimônio, a regra é o

privilegiamento às lavouras mecanizadas, muitas vezes articuladas aos

arrendamentos, para a melhor utilização das máquinas.

Não obstante, os métodos de trabalho já são diferenciados. A

integração ao sistema cooperativista é regra, assim como o trânsito no sistema

financeiro. Diferentemente dos camponeses empobrecidos, cuja aversão aos bancos

41 M.: Bratslawa - Cambé.

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é evidente, esses utilizam os financiamentos sem parcimônia, tanto para custeio

agrícola quanto para investimentos na propriedade.

É justamente o fato de estarem integrados ao sistema financeiro que

eventualmente pode trazer profundos desequilíbrios à unidade econômica, a ponto

de provocar quedas significativas no padrão de vida e mesmo desestruturações

produtivas severas.

A gente mexia com muita terra, era os 11 alqueires nossos mais 50 arrendados. Só que nos três últimos anos, a lavoura foi um fracasso, foram duas secas na soja e uma geada no trigo. Para pagar as dívidas vendemos o trator e o caminhão que já estavam pagos e a colhedeira que era financiada. Dela a gente já tinha pago 30% mais dois mil sacos de soja. Toda uma vida de trabalho se foi. Mas é melhor ir o ferro do que a terra...essa, graças a Deus, a gente conseguiu segurar..42

Esse é apenas um dos vários exemplos de camponeses que ao

optarem pelas lavouras mecanizadas, passaram a expandir a produção com

arrendamentos, dada a pequena quantidade de terras próprias. Contudo, o fato de

financiarem a compra do maquinário os deixou vulneráveis aos maus resultados

das colheitas.

Com elas, as dívidas foram se tornando uma bola de neve,

obrigando-os a se desfazerem de toda a estrutura montada para uma atividade de

larga escala. Entretanto, o fato de terem conservado a terra permitiu um rearranjo

interno de modo a assegurar a sobrevivência da família.

Não obstante, há casos em que até uma parte da terra também

acaba sendo vendida para pagar dívidas contraídas na produção. Deve-se lembrar

que esses riscos são diretamente proporcionais à dimensão da lavoura comercial

que a família se arrisca a empreender.

Talvez em um ano a gente toca o pé em tudo, então a gente ficou com medo disso. Nós vendemos 24 alqueires de terra, para nós é bastante. Foi com o algodão, vendemos também um trator e um caminhão trucado. Qualquer financiamento é difícil de pagar, até um PRONAF de cinco mil reais, tem um colega meu aqui que todo ano ele reforma, porque não consegue pagar.43

É importante destacar que esses insucessos não implicam na

proletarização, mas na retomada de uma cautela por demais significativa entre os

camponeses. Uma vez livres da armadilha financeira, dificilmente os mesmos

voltarão a se articular ao mercado nesses termos. Entre aqueles que afirmaram ter

42 O.: Água do Limoeiro - Alvorada do Sul. 43 G.: Água da Gruta - Itaguajé.

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passado por essa experiência, a maioria retomou as atividades desativadas em favor

da especialização. Encontramos uma família que, após perder praticamente tudo

em um arrendamento de cerca de 300 hectares de terra, readequou o sítio à

pecuária leiteira, passando a viver da venda do leite direto aos consumidores e das

atividades para o autoconsumo.

Como vemos, a preservação da terra é fundamental para suportar

eventuais insucessos. Não é sem razão que essa aparece como um bem inalienável,

sendo acionados todos os recursos possíveis para preservá-la. Aliás, a clareza de

que essa é fundamental para a segurança da família, faz com que a maior parte

deles se submeta a duras privações caso apareça a oportunidade de ampliar o sítio.

Esse ano apareceu a oportunidade da gente comprar dois alqueires aqui na divisa do sítio. Pra não perder, vendemos o trator e o caminhão. Eles já estão fazendo muita falta, mas é um investimento que vale a pena, porque bem dizer nós conseguimos dobrar a área, então a produção vai aumentar.44

Como se pode observar, não é sempre que aparece a oportunidade

de comprar áreas contíguas. Em geral, a ampliação do sítio nesses termos é

possível, porque processos de herança envolvem muitos sítios camponeses. Nesses

casos, aqueles que saíram da terra tendem a vender aos que permanecem, os quais

têm prioridade absoluta na compra, muitas vezes facilitada.

Para a família, parece inadmissível a compra da propriedade por

estranhos. Do ponto de vista simbólico, esse desfecho é sinônimo de fracasso, pois

se os antepassados conseguiram comprar a terra, como explicar o fato deles não

conseguirem mantê-la? É por essa razão que os mecanismos de herança tendem a

se ajustar de forma a manter a indivisibilidade do sítio em favor daqueles que ali

permaneceram, trabalhando em conjunto com o patriarca. Além disso, há uma

tendência dos que ficaram trabalharem juntos, independentemente do número de

famílias nucleares que possa haver. Essa é a única forma de evitar o fracionamento

da propriedade e racionalizar os meios produtivos disponíveis.

Entretanto, esses ajustes dependem do tamanho da propriedade e

da dinâmica demográfica das famílias. Caso o patrimônio fundiário se mantenha

inalterado, em determinado momento o problema da saturação da propriedade

emergirá. Em outras palavras, há um limite para a constituição de novas famílias

na mesma porção de terra, embora isso seja muito variável em função dos próprios

critérios de bem-estar estabelecidos pelas mesmas. Ainda assim, o esforço de

44 J.: Água do Coqueiro - Iguaraçu.

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manter unidas as famílias extensas tende a se sobrepor às limitações materiais que

vão surgindo para o trabalho conjunto.

... A gente quer melhorar alguma coisa, ver se consegue pôr as coisas no mercado para ver se consegue segurar todo mundo aqui. Aqui a gente é acostumado a trabalhar, não tem jeito de ficar parado, então a gente tem que arrumar alguma coisa para trabalhar, não vai ficar parado. Eu tenho uma ambição: aqui no sítio nós somos quatro irmãos, minha área é de leite e dos outros meninos é de lavoura, de mandioca, tem também arrendamento fora, agora nós começamos com rapadura, mas esse ano eu não quis tocar arrendamento. Agora se a rapadura der certo, mais pra frente nós vamos voltar a trabalhar tudo junto de novo. Agricultura não dá, fica correndo pra cá e pra lá que nem doido, se der certo a gente vai ficar tudo junto de novo, a gente trabalhou junto até agora.45

Assim, à medida que o patrimônio escasseia, o trabalho conjunto

vai ficando mais difícil, mesmo porque aumentam os riscos de perdas ante os

insucessos da lavoura, já que a parte da renda retida é menor, face à necessidade

de pagar pelo uso da terra e maquinários alheios.

Porém a entropia é igualmente ameaçadora, se pensarmos na

perspectiva de reprodução dos filhos que vão atingindo a idade adulta. Mesmo

porque, atualmente, a expulsão nesses termos tende a colocar aos que partem

piores condições de reprodução, face à saturação e conseqüente elevação do nível

de qualificação exigido pelo mercado de trabalho, o que dificulta a sua inserção

formal. Assim, muitos acabam se deslocando para a informalidade rural e urbana,

em condições de trabalho e rendimento bem mais precárias do que num passado

recente.

O mesmo se aplica ao mercado formal de trabalho em que, via de

regra, as oportunidades se limitam às ocupações de baixa remuneração. Segundo

os pais e mesmo alguns que passaram por essas experiências, os capitalistas dão

preferência aos camponeses recém chegados pelo fato dos mesmos serem íntegros,

extremamente disciplinados e aptos às tarefas mais desgastantes.

As fábricas preferem os filhos de agricultor por causa da confiança e também porque a gente está acostumado a trabalhar no pesado. Eu trabalhava numa fábrica de doces, ficava na caldeira, era uma semana de dia e outra de noite. Eu agüentei dois anos, aí a gente concluiu que estava pior do que na roça.46

A confiança a que se refere nosso interlocutor, a qual se torna um

diferencial para a contratação, remete ao conjunto de valores morais que o

45 G.: Água da Gruta - Itaguajé. 46 P.: Bairro São Rafael - Rolândia.

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campesinato preserva, mesmo porque a vida comunitária impõe mecanismos

reguladores de conduta. Como se sabe, a desagregação social atrelada à

marginalização das cidades, a qual resulta da própria exploração capitalista, muitas

vezes consegue esfacelar esses valores.

Por outro lado, o desgaste do trabalho aliado às privações próprias

de quem tem que sobreviver apenas do salário é que expõe a dimensão da

exploração que esses camponeses não conhecem diretamente. A consciência de que

a inserção integral no mundo monetarizado é proibitiva, às vezes é atingida

somente quando os mesmos passam a depender do dinheiro para satisfazer todas

as necessidades. É por essa razão que a produção para o próprio consumo é

repartida com os filhos que se mudaram para a cidade. Arroz, feijão, carne, ovos,

frutas, verduras e legumes, enfim, tudo o que o sítio produz é enviado para que

esses possam suprir ao máximo as necessidades alimentares sem a mediação do

mercado.

Ainda assim, situações de baixos salários ou desemprego fazem com

que alguns já comecem a desenhar um movimento inverso, de filhos de camponeses

expulsos da terra que começam a retornar ao sítio paterno juntamente com a sua

prole.

Ele vivia na cidade e olhe que tinha um bom salário: ganhava quatrocentos reais por mês. Mas o dinheiro era pouco...era aluguel, luz, água, comida, porque nem sempre dava para vir aqui buscar as coisas. No fim desistiu e está trabalhando comigo de novo. Não vê dinheiro, mas a família não passa falta de nada.47

Cumpre salientar que o retorno dos filhos muitas vezes requer uma

readequação do sítio, assim como uma maior diversificação das atividades. A

necessidade de construir uma casa a baixos custos é enfrentada com criatividade:

casas de madeira, abandonadas, sinais de um processo de esvaziamento do campo,

costumam ser quase que integralmente aproveitadas.

Encontrar quem queira vendê-las é tarefa fácil, pois há proprietários

que raramente visitam suas terras; nesses casos, sempre há o risco de estranhos

ocupá-las. Segundo os camponeses, tem havido um aumento na procura por essas

casas, pois aqueles de menores recursos que vão se casando e permanecendo nas

propriedades, também estão utilizando esse expediente. Durante a pesquisa,

constatamos que com cerca de R$ 1.500,00 era possível comprar uma casa bem

conservada.

47 J.: Guairacá – Londrina.

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A preferência dos camponeses pelas mesmas não se explica apenas

pelo baixo preço, mas pela qualidade da madeira, hoje inexistente, ou pelo menos

inacessível. Além disso, o trabalho de reconstrução é mais simples, muitas vezes

feito por eles próprios.

Todavia, a absorção de novas famílias exige mais do que a

construção de uma moradia. O desafio é aumentar a renda da propriedade, e isso

depende das reservas econômicas das famílias. A implantação de atividades

intensivas tem sido uma saída para aqueles que dispõem de mais recursos; quanto

aos mais empobrecidos, busca-se desde os arrendamentos até o trabalho acessório

e, por vezes, a combinação de ambos.

Nesse caso, ao trabalho autônomo em terras arrendadas, esses

sujeitos combinam outras atividades. As mais comuns são o trabalho temporário no

campo e na construção civil, havendo também a intermediação de pequenos

negócios, como venda de animais e produtos da lavoura.

No entanto, é significativa a visão dos rendeiros sobre o que é

essencial e o que é acessório para a sobrevivência da família. Em uma de nossas

conversas, pedimos para que um camponês classificasse as diferentes atividades de

acordo com a respectiva contribuição para a manutenção da família. Ele foi

categórico: colocou em primeiro lugar a sua atividade como pedreiro, atuando

esporadicamente como construtor no Distrito de Guairacá-Londrina. No entanto, o

desdobramento da conversa apontaria um sentido contrário:

A roça não dá quase nada não. Eu ganho um pouco melhor quando pego uma casinha para levantar, para rebocar, esses serviços eu faço de vez em quando. Com eles eu chego a ganhar até setecentos reais num mês, trabalhando com o meu filho, coisa que a gente nunca consegue na roça. Mas só que tem uma coisa, aqui todo mundo já sabe que eu não posso descuidar do meu serviço: quando dá a hora de plantar, de capinar, de passar veneno, eu largo o que estou fazendo e vou cuidar da roça. Na roça tudo tem o seu tempo e isso vem em primeiro lugar.48

Cremos que a hierarquização operada nesse relato aponta para dois

planos imbricados, mas claramente distintos dentro da lógica camponesa: o

monetário e o não monetário. Notamos que ao referir-se aos ganhos monetários, a

roça fica em plano secundário, isso talvez em função da própria condição de

rendeiro, cuja capacidade de empreendimento está diretamente relacionada com os

parcos recursos disponíveis.

48 J.: Guairacá - Londrina.

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Em outras palavras, esse camponês enquadra-se naquilo que eles

mesmos classificam como “fracos”, visto não possuir trator e demais implementos, o

que o obriga a cultivar pequenas áreas, mediante o pagamento de determinadas

tarefas mecanizáveis, em particular, o preparo da terra. Some-se a isso, a

necessidade de entregar uma parte da produção ao proprietário, quantia essa que

pode chegar à metade da colheita obtida, dependendo do acordo acertado.

Por essa razão, a lavoura comercial em terras alheias pouco pode

representar em termos monetários, porém é um dos caminhos para o acesso à terra

e às culturas alimentares. Notamos que a roça é a atividade primaz e está

relacionada ao serviço próprio. Destarte, depreendemos ser os cultivos para o

consumo a principal fonte de ingresso de alimentos na mesa da família.

Ter direito à terra que produz o consumo alimentar pressupõe

cultivar lavouras comerciais, dado que não pode ser desconsiderado, quando se

verifica que a cessão de terras pelos proprietários tem como princípio o rendimento

monetário, muitas vezes potencializado pela economia de escala, especialmente

quando os mesmos dispõem de terrenos maiores, cultivados por vários rendeiros.

Conforme vimos anteriormente, o engodo da referência monetária

pôde ser percebido pelo mesmo camponês, ao relatar que seu filho, que hoje se

encontra novamente na casa paterna, saiu da terra em troca de um salário

considerado muito bom, mas teve que abandonar o emprego, pois tais rendimentos

não lhe permitiram pagar aluguel, água e comprar os alimentos necessários ao

sustento da família.

Quando a gente vê essa dinheirama, não desconfia que não dá pra nada. Aqui a gente tem tudo e qualquer dinheirinho vai para as coisas extras. Lá na cidade não, é uma galinha, um arroz, até água, tudo tem que ser comprado e é muito caro. 49

Portanto, por maiores que sejam as dificuldades econômicas desses

camponeses, o empobrecimento não pode ser relacionado a uma situação de

miséria absoluta, tão comum entre os trabalhadores marginalizados nas cidades.

Pelo menos do ponto de vista do acesso aos alimentos, isso não se aplica, já que,

em geral, os mesmos têm uma mesa variada e farta. São consumidos ovos, leite,

verduras, legumes, cereais e carne, oriundos da produção própria, a qual ocupa

lugar de destaque na lógica de reprodução da família.

Assim, ao afirmarem que a situação no campo está muito difícil,

sempre se referem aos preços que devem pagar para produzir e o que podem

49 J.: Guairacá - Londrina.

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receber ao final, transações que se situam no interior do circuito monetário. Por

outro lado, quando o assunto é tratado no interior das relações não monetárias, o

que inclui a produção para o autoconsumo e o próprio trabalho, a avaliação é

oposta: em um mundo onde tantas pessoas em situação social idêntica à sua

padecem de fome, eles garantem seu próprio alimento em situação de ponderável

fartura.

O próprio esforço físico está sendo atenuado em função das

melhorias técnicas incorporadas: a luz elétrica traz a água encanada, antes retirada

manualmente dos poços ou transportada das minas em latas. Muitas das tarefas

braçais na lavoura já são realizadas por máquinas, ainda que muitos deles não as

possuam, tendo acesso a elas, mediante pagamento em dinheiro ou em espécie.

Enfim, por menor que seja a possibilidade de auferir renda monetária, para muitas

famílias o acesso à terra representa a superação da marginalização urbana,

expressa na dificuldade em atender às mais básicas necessidades, que são a

moradia e a alimentação. Para aqueles que isso ainda é o maior desafio, a terra não

deixou de ser uma saída.

5.3. O bairro rural e os sítios: a ordenação territorial camponesa

Partindo do pressuposto de que toda reprodução social se faz a

partir de um determinado substrato, até então procuramos demonstrar o quanto ele

pode ser dinâmico, tendo em vista o imbricamento de diferentes variáveis em sua

constituição. Por serem condicionantes e, ao mesmo tempo, condicionadas pelo

movimento da realidade, a combinação dessas variáveis se manifesta em “imagens

territoriais”, nas palavras de Raffestin (1993, p. 152), as quais nada mais são do

que os signos propriamente geográficos instituídos pelos sujeitos sociais. Esses

signos são a exteriorização das relações de poder que permeiam a simbiose com o

espaço e que, em síntese, consiste na construção do território.

Assim, antes de nos determos nos marcos geográficos imprimidos

pelos camponeses no Norte do Paraná, somos impelidos a tocar na questão da

construção do território. Conforme nos lembra Raffestin (1993, p. 144), o território

não é o espaço, mas uma produção derivada da sua apropriação. Nessa perspectiva,

o território é um espaço transformado pelo trabalho ali contido, o qual é delineado

por estratégias de organização e controle do mesmo. Portanto, essa apropriação não

é uma ocorrência natural, mas um dado concreto da luta dos homens pela sua

sobrevivência.

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Dessa maneira, a produção do território é a expressão de tais lutas,

daí a afirmação de que o mesmo se inscreve em um campo de poder. Sendo o

território capitalista o produto da interação entre sociedade, espaço e tempo, o que

define as parcelas camponesas do território é uma lógica singular de classe, a qual

se manifesta em um circuito diverso de produção, troca e consumo, o qual se

manifesta em “imagens territoriais” ou simplesmente marcos geográficos, sendo o

bairro rural sua expressão não só privilegiada, mas estruturante.

Não obstante, apesar do bairro rural comparecer como marco

geográfico primaz dessas parcelas do território, tendo em vista a forma diferenciada

com que a classe camponesa se reproduz e as produz, julgamos conveniente

extrapolar esse recorte, buscando evidências de sua articulação na escala analítica

proposta por esta pesquisa.

Cumpre destacar que esse recorte não prima pelo mesmo princípio

de homogeneização do qual se serve o Estado para gerir o território capitalista sob

sua jurisdição, antes se prende aos elementos que evidenciam uma unidade

construída nas estratégias de classe. É por essa razão que nos apoiamos no

pressuposto da unidade na diversidade, sobretudo porque a área pesquisada não é

homogênea nem do ponto de vista físico, nem econômico e tampouco político-

administrativo, já que a mesma está dividida em duas capitais regionais que a

polarizam, respectivamente, Londrina e Maringá.

Por outro lado, a existência de dois tipos de solos produz uma

diferenciação geográfica significativa. Não se trata apenas de opor as diferenças

físicas dos solos arenosos às terras roxas, mas destacar os desdobramentos dessa

diferenciação face à utilização econômica dos mesmos.

Observando-se a Figura 22, poder-se-ia traçar uma linha

imaginária, dividindo a região estudada no sentido leste-oeste ao meio,

encontrando-se a terra roxa a leste e os solos arenosos a oeste. Evidentemente não

se trata de uma divisão rigorosa, pois ao longo das margens dos principais rios da

área estudada, como o Paranapanema, o Bandeirantes e o Pirapó, há uma faixa de

terras roxas, ao mesmo tempo que, nos domínios do basalto, são encontradas

manchas de solos litólicos.

Isso posto, merece destaque o fato de que na porção oeste, conforme

a divisão proposta, ao predomínio das pastagens se combina à diversificação das

culturas de cunho comercial pelos camponeses.

Em relação à porção leste, notamos que a pouca terra lhes impõe

desafios maiores no que tange à geração de renda monetária, razão pela qual

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encontramos uma combinação mais expressiva de atividades comerciais numa

mesma unidade produtiva, além daquelas caracteristicamente voltadas para o

autoconsumo. Assim, embora as condições pedológicas do arenito sejam

privilegiadas do ponto de vista físico, já que os mesmos não sofrem com a

compactação provocada pela mecanização, a limitação química afeta diretamente a

renda dos camponeses.

Por outro lado, nos solos derivados do basalto, cujas propriedades

químicas asseguram fertilidade maior, nas propriedades menores, o café é a

principal lavoura comercial, ainda que a sua associação às culturas intercalares

seja significativa. Via de regra, aparece associado ao milho, que se destina à

alimentação das criações, além do arroz, feijão, legumes e tubérculos.

Essa diferenciação entre características físicas e químicas do solo

não pode passar despercebida, já que os produtores de maior renda, a agricultura

não se realiza sem a devida adequação dos solos às práticas tecnificadas já

destacadas. Ocorre que uma ponderável parcela de camponeses recorre muito

pouco às máquinas, se limitando a utilizá-las para o preparo da terra em época de

plantio. Desse modo, se para os demais, sejam capitalistas ou camponeses ricos, a

respectiva intervenção nas qualidades física e química com vistas ao cultivo

apresentam uma certa equivalência em termos de custos nos dois tipos de solos,

isso não aplica na mesma proporção aos camponeses mais empobrecidos.

Portanto, a necessidade de corrigir as deficiências de nutrientes é

desigual entre ambos, o que em última instância indica que, para plantar no

arenito, há um gasto maior com adubos. Embora possamos admitir que nas

lavouras mecanizadas essa relação seja próxima ao equivalente, já que a

descompactação dos solos lhes impõe um custo elevado, de forma alguma ela o é

quando analisamos a agricultura tradicional: os camponeses do arenito devem

dispor de mais recursos para explorar igual quantidade de terra que seus pares que

atuam no basalto, já que aqueles não sofrem o problema da compactação dos solos.

Isso é evidenciado nas respostas espontâneas dos camponeses

quando de nossa primeira aproximação. Aqueles da porção leste, cuja quantidade

de terra não sustenta o cultivo das lavouras de soja, trigo e milho, ao serem

inquiridos sobre o que plantam, referem-se enfaticamente ao café. São necessárias

horas de conversa e incursões pela roça para observarmos que a esse se combina o

plantio de feijão, arroz, milho, os cultivos do excedente, com aqueles da cesta

interna de consumo, como a mandioca, batata, amendoim, ervilha, verduras etc.

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Por outro lado, em grande parte das pequenas unidades produtivas

do arenito, a essa mesma pergunta nos respondem: um pouco de tudo. Aí vamos

encontrar com maior freqüência a existência de várias atividades comerciais, com

destaque para o leite e o café, além dos cultivos do excedente. Dessa maneira, a

dificuldade em obter renda suficiente para a satisfação das necessidades

monetárias parece ser a principal razão de uma maior diversificação de atividades

comerciais.

Notamos que, de imediato, os camponeses contabilizam apenas os

cultivos que asseguram retorno monetário, omitindo a produção de autoconsumo,

razão pela qual é tão frágil o critério de renda monetária para delinear o perfil das

unidades agrícolas.

De qualquer modo, onde as pastagens dominam, entre os

camponeses prevalece a pecuária leiteira. O café se mantém no posto de cultura

permanente por excelência das pequenas propriedades, eventualmente dividindo

espaço com a fruticultura, especialmente os citros.

Embora a granelização do leite já atinja patamares elevados na

região, é comum encontrarmos nas porteiras dos sítios os abrigos para os galões de

leite. Dependendo do horário, ainda se pode ver esses recipientes aguardando a

passagem de leiteiros que atuam na informalidade.

Por outro lado, na porção leste, as lavouras são predominantes.

Dependendo da época, a vista é prodigiosa. No verão, a soja reina, embora divida

espaço com o milho, o café e a policultura. No inverno, quando os milharais estão

amadurecendo, há enormes bandos de pássaros: pombas, anus, chupins,

maritacas, gaviões e tantos outros que, atraídos pela abundância de alimento,

alçam barulhentos vôos apenas com nossa proximidade ameaçadora.

Quanto ao trigo, a semeadura em tempos diferentes divide o

território em diversos tons e texturas: cachos amarelando, outros ainda verdes,

outros ainda desabrochando. Ao soprar do vento, pode-se ver um indescritível balé

nessa plantação, que se move em direções descontínuas numa suave canção de

palhas se tocando. Contrasta com os trigais a aveia preta, de um verde muito vivo e

brilhante, como que a denunciar o privilégio de estar plantada em terras tão

especiais.

E temos os cafezais. Apenas raramente ocupam áreas expressivas.

No geral, os encontramos na beira da estrada, por ser essa a parte mais alta das

propriedades, constituindo-se em cartão de visita da propriedade camponesa.

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O fato de nos encontrarmos numa área de transição entre a zona

tropical e a subtropical faz com que as quedas de temperatura sejam comuns no

inverno, sendo recorrentes as geadas, sobretudo nas terras mais baixas. É por essa

razão que os cafezais são plantados sempre na parte mais alta da propriedade, o

que livra a cultura das geadas anuais. Notamos que os fenômenos climáticos

devastadores obedecem a períodos mais longos, podendo ser destacados os anos de

1975 e 2000, intercalados por geadas de menores conseqüências para os

cafeicultores.

Das comunidades às cidades, os elementos que conferem unidade

às parcelas camponesas do território vão se somando. Por vezes, deparamos-nos

com velhos tratores retirando a colheita da roça e ainda por ser devidamente

preparada para o envio ao mercado. É o que podemos observar na foto a seguir, a

qual retrata o transporte do feijão da roça para o terreiro da casa, onde será seco e

posteriormente debulhado.

Foto 15 – Feijão a caminho do terreiro

Outras vezes, as carroças dirigindo-se para as cidades com a

produção camponesa ou dela retornando com produtos para a lavoura ou para a

família. Cumpre salientar que em termos de densidade populacional, há distritos

maiores que algumas cidades sede de município, de modo que não é possível

analisar separadamente os fluxos estabelecidos. De qualquer forma, alguns

distritos adquirem a mesma funcionalidade do bairro rural, diferindo-se mais em

relação à concentração espacial das moradias.

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Aliás, o tempo dos distritos e das cidades pequenas do Norte do

Paraná é o tempo do campesinato, regido pelas relações pessoais. Isso não se deve

apenas à sua presença corriqueira nesses núcleos, mas também ao fato de que a

maior parte de sua população mantém vínculos estreitos com o campo, vivendo da

exploração de terras próprias ou alheias.

Alguns são proprietários de pequenos sítios, que se mudaram para

a cidade em busca de mais conforto; ainda que continuem a cultivá-los, encontram-

se diante de uma dependência monetária ameaçadora à família, já que além da

diminuição da renda agrícola, a ausência do sítio limita a produção para o consumo

próprio. No caso das criações, é impossível conservá-las, face a necessidade de

vigilância constante.

Outros são camponeses rendeiros, que moram na cidade por não

terem um pedaço de chão só seu; vivem assim na dependência do acesso precário à

terra de trabalho.

Por fim, há os proletarizados, testemunhos da modernização

conservadora, que lançou enorme contingente de trabalhadores na mais aviltante

marginalidade. Como assalariados temporários, trabalham quando e onde houver

serviço. Geralmente se dividem entre a cana-de-açúcar, a qual já ocupa 9%50 da

área cultivada na região e as colheitas de café no entorno e até em outros estados,

sobretudo em Minas Gerais, para onde se desenha uma importante migração

pendular. Afora isso, são poucas as possibilidades de emprego, pois, nas cidades

menores, não há agência bancária, o comércio é incipiente e as fábricas são raras.

Cidades empobrecidas e encolhidas pela lógica selvagem da acumulação ampliada,

em um circuito que igualmente envolve a agricultura, a base da economia local.

A relação de consumo dos capitalistas desse setor com os núcleos

urbanos dos municípios onde desenvolvem suas atividades chega a ser risível,

inclusive no que se refere aos insumos para a produção. A comercialização dessas

mercadorias se faz predominantemente com os camponeses, os quais tendem a

satisfazer suas necessidades de consumo nos núcleos urbanos de seus municípios.

Por outro lado, a relação de consumo dos camponeses nas cidades

intermediárias e médias, tende a se diluir na densidade humana e econômica

comandada pelo capital. Nelas, a presença camponesa não pode ser observada

senão nas periferias, no movimento decorrente da comercialização direta de

produtos vegetais e animais in natura, bem como os processados artesanalmente.

50 Cf. dados compilados do Relatório Realidade Municipal - EMATER, 2001.

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Considerando que essa organização territorial revela como são

elaboradas as formas de existência do campesinato, há que se verificar como é

manifestado aquilo que Raffestin denomina “nodosidades territoriais”51, que no caso

em questão se materializa nos bairros rurais.

O bairro rural é a expressão maior de uma combinação singular de

estratégias, com vistas à reprodução de classe. De antemão, faz-se necessário

esclarecer que limitar a existência camponesa à sua moradia em tais bairros não é

apropriado. Isso porque há enclaves camponeses cercados por propriedades

tipicamente capitalistas.

Assim, o território capitalista está marcado por esta unidade

contraditória: o uso capitalista propriamente dito e o uso camponês. A dinâmica

desses dois usos revela o estágio da luta de classes na região. Quando o primeiro se

expande, destruindo o segundo, sua hegemonia, em geral monocultora, se

implanta. Quando o segundo se expande, o primeiro se retrai e aí o domínio

camponês se instala. A policultura avança e o campo se mantém povoado.

Em outras palavras, o fato de haver propriedades camponesas

rodeadas por propriedades capitalistas não basta para descaracterizá-las. Portanto,

essa distribuição espacial não as torna menos camponesas, a não ser que a

essência de classe tenha se perdido no isolamento, até porque não se pode pensar

em um território homogêneo, definido a partir de limites rígidos. A recíproca é

igualmente verdadeira, pois a despeito do bairro rural ser uma produção por

excelência das relações camponesas, nem todas as propriedades que se encontram

nos seus limites o são.

Portanto, não se evoca a noção de continuidade ou dispersão

geográfica, mas a teia de relações que se estabelecem a ponto de imprimir uma

unidade de classe em frações do território transformado, via trabalho camponês.

Portanto, o bairro rural é expressão dessa unidade instituída por uma lógica

singular; ao mesmo tempo que é individual, centrada na autonomia da família, é

também comunitária, face à dimensão estruturante e socializante das mais

diferentes trocas que aí se estabelecem. Embora não se possa falar num arranjo

espacial único, os bairros rurais tendem a seguir um padrão geográfico definido.

Outro elemento introduzido na paisagem pela predominância da pequena propriedade é o ‘habitat’ disperso: [...] um corredor de habitações, mais ou menos alinhadas à meia-vertente, separadas uma das outras por espaços variáveis. As habitações estão usualmente situadas na faixa de pastos, não muito próximas do curso d’água, quase sempre no ponto em que as vertentes deixam

51 Cf. Raffestin 1993, p. 156.

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seu perfil de inclinação suave para caírem abruptamente sobre os rios. Cercadas de árvores frutíferas, contribuem para a humanização da paisagem, sem se falar nos acréscimos ainda trazidos pelas demais benfeitorias, que lhes ficam adjuntas: depósitos, celeiros, cercados para o gado ou animais domésticos... (MÜLLER, 2001, p.105).52

Embora essa descrição tenha sido feita há quase meio século,

diríamos que ela se mantém extremamente atual quando se deseja fazer um retrato

do arranjo geográfico predominante nos bairros rurais do Norte do Paraná.

Contribui para isso a peculiar ocupação da região, cujo loteamento obedeceu ao

critério das aguadas, ou seja, cortes longitudinais tendo como limite os espigões,

onde são construídas as estradas e os cursos d’água ao fundo. Assim, os bairros

geralmente se caracterizam por propriedades longas, mas com testadas estreitas.

Alguns deles mais parecem uma vila: à entrada da via de acesso

principal encontramos a igreja, o salão de festas, o campo de futebol e

eventualmente as escolas, sendo que a maior parte dessas últimas se encontra

desativada. Ao longo da estrada que corta o bairro estão as moradias, muitas vezes

dispostas em um alinhamento regular, paralelo e bem próximo à via.

Em termos de instalações, não se pode falar em um padrão, pois os

bairros comportam camponeses pobres, remediados e algumas vezes até ricos.

Assim, as atividades empreendidas pelas comunidades, que muitas vezes são

condicionadas pelo grau de concentração de renda, se refletem nas instalações

produtivas e demais condições de conforto da família. Os galpões onde são

guardados os instrumentos de trabalho e insumos, assim como as tulhas, onde são

armazenadas as colheitas, normalmente são contíguos às moradias. Em alguns

bairros, a maioria das casas é antiga e pouco confortável, normalmente de madeira.

Água encanada e energia elétrica já são bens de consumo incorporados ao cotidiano

camponês, assim como televisão, geladeira, fogão à gás etc. Outros já se

caracterizam pela predominância de boas casas de alvenaria, telefone, instalações

produtivas e maquinários mais modernos, como que a denunciar a maior

apropriação de renda.

Assim, o bairro rural é o locus privilegiado dessas combinações, a

diversidade que adquire significado a partir da unidade instituída na lógica de

classe e, por essa razão, unidade territorial singular. Nessa perspectiva, a

identidade de classe encontra-se de tal forma imbricada nas práticas cotidianas que

52 Originalmente publicado no Boletim Paulista de Geografia n.22, p.55-97, mar.1956.

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não é possível se pensar na dinâmica do bairro apenas do ponto de vista da

reprodução material das famílias.

(...) o bairro é na realidade uma célula de comunidade social onde existem certos tipos de relações sociais a lhe darem corpo: laços de parentesco ou de vizinhança, reforçados freqüentemente pela existência de uma venda, capela ou escola cujo raio de ação marca comumente os limites do bairro. (MULLER, 1946, p.142).

Como vemos, o papel da identidade social na construção da

unidade territorial manifesta pelo bairro rural é inequívoca. Não obstante, é bom

lembrarmos que a autora tinha como referência uma organização que foi

profundamente modificada em face das redefinições operadas no sentido da

acumulação capitalista na ultima metade do século XX.

Desse modo, diríamos que, atualmente, o espaço extra-doméstico de

maior importância para os bairros rurais do Norte do Paraná são as capelas, em

torno das quais gira a vida comunitária. Não que as vendas e as escolas tenham

sido completamente banidas, mas elas são bastante raras. Quanto às escolas,

muitas foram fechadas à medida que diminuía a clientela, face à combinação de

duas variáveis: migração e redução do número de filhos. Por outro lado, outras

foram fechadas pelo Governo Jaime Lerner, em suas investidas contra os gastos

públicos com a educação. Somente em quatro dos bairros rurais visitados ainda há

escolas ativas, as quais atendem alunos das quatro séries iniciais, além da

alfabetização de adultos. Na foto a seguir vemos uma escola rural de ensino

fundamental, freqüentada por 100 crianças das quatro séries iniciais, sendo essa a

que tem o maior número de alunos entre as que se encontram em funcionamento.

Foto 16 – Escola Rural

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Cumpre salientar que o funcionamento dessas escolas não está

relacionado apenas ao número de educandos dessa fase escolar vivendo nas

comunidades, mas às lutas travadas pelas mesmas para assegurar o seu

funcionamento.

Essa escola já foi ameaçada de fechar várias vezes, mas a comunidade daqui não aceita de forma alguma, ela só está aberta de tanto o pessoal brigar. Nós achamos que a escola na cidade não é a mesma coisa, os costumes não são os mesmos. Essa escola é uma parte da comunidade, eu estudei aqui e agora sou a professora. A antiga, que mora do outro lado da água, deu aula aqui até se aposentar.53

Como se pode observar, o empenho em manter a escola viva é

também uma forma de assegurar que os valores camponeses sejam perpetuados e,

com eles, a própria comunidade. Aquelas que tiveram as suas escolas fechadas

vêem com preocupação o envio das crianças para a cidade.

(...) aluno tinha, fecharam a escola a gente nem sabe por quê. É pura política, não é? Agora ficou pior, porque o ônibus que leva eles para a cidade corta todas essas estradas pegando alunos, então eles saem muito cedo e voltam muito tarde. E o pior é que depois de conhecer e viver a vida da cidade, muitos não vão querer ficar na roça.54

A sedução da cidade sobre as crianças parece ser a principal

preocupação de nossa interlocutora, que vislumbra a possibilidade dessa medida

provocar um esfacelamento de alguns valores que sustentam a comunidade.

Entretanto, a própria dinâmica demográfica das famílias camponesas acena para a

irreversibilidade de tais medidas, já que a curto e médio prazo, são poucos os

bairros rurais que apresentarão uma demanda capaz de lotar salas de aula. Como

se sabe, atualmente prevalecem as diretrizes que propõem para a educação pública

as mesmas regras do mercado, instituídas a partir do parâmetro custo monetário.

O fechamento da maioria das vendas é outro sinal de que os bairros

rurais não têm mais a densidade populacional de outrora. Some-se a isso o fato de

que a mobilidade dos camponeses hoje é outra. O fato da maioria possuir veículo

próprio e por que não dizer, mais tempo, já que a incorporação parcial de tecnologia

aumentou a produtividade do trabalho, lhe permite o deslocamento rotineiro para a

cidade, onde a variedade e os preços das mercadorias são mais atrativos.

Não obstante, as vendas ainda ativas funcionam como uma

extensão das atividades camponesas, já que seus proprietários em geral são

53 S.: Água da Areia - Prado Ferreira. 54 M.: Barra Bonita - Primeiro de Maio.

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membros da comunidade, combinando esse comércio com as demais tarefas do

sítio. Para tanto, há horários específicos de funcionamento, normalmente ao final

da tarde, se caracterizando mais como ponto de encontro dos homens do que

propriamente entreposto comercial.

Outro ponto de encontro e fator de proximidade dos camponeses é o

campo de futebol, ativo em muitos bairros rurais. Diríamos que do ponto de vista

do lazer, esse é o espaço mais importante das comunidades. É para esse local que a

maior parte dos moradores converge nos domingos à tarde, sem distinção de idade

e gênero. Na foto a seguir, é possível observar uma lavoura de milho delimitando o

campo de futebol, à esquerda; a construção da direita é uma venda, que também se

encontra ativa.

Foto 17 – Campo

Há comunidades onde os torneios são corriqueiros, vindo inclusive

times da cidade para disputarem partidas. Trata-se mais de um ponto de encontro

do que um espaço de competição, pois nem sempre há times completos com

moradores do bairro.

Ah! de domingo o campo é uma festa, a gente vai para conversar... ali todo mundo se encontra e só vai embora quando começa a anoitecer. Ás vezes, se perguntarem para as mulheres quanto ficou o jogo, a gente nem sabe, porque o campo é só um pretexto para a gente se encontrar.55

Embora haja bairros que ostentam tradição e muitas glórias dos

times locais de futebol, havendo verdadeiras coleções de quadros, troféus e

medalhas, em geral exibidos em lugar privilegiado da casa dos diretores que

também são membros da comunidade, alguns deles sofrem o seu

55 A.: Colônia Mantovani - Cambé.

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desmantelamento. Visitamos uma comunidade onde uma tradição de décadas se

perdeu em função do campo de futebol ter sido incorporado às áreas de cultivo do

proprietário absenteísta, que em dado momento achou por bem acabar com o

usufruto comunitário de uma parte de suas terras.

Ao indagarmos aos camponeses a razão pela qual não construíam

outro campo, a justificativa basicamente foi a mesma: embora o poder público

municipal tivesse se sensibilizado, comprometendo-se a construir outra praça de

esporte, o espaço deveria ser cedido pela comunidade. Todos lembraram que

ninguém poderia se dar ao luxo de perder uma terra densamente ocupada com

lavouras e criações, já que a área média das propriedades é de cinco hectares. “A

terra é muito pouca por aqui. Ninguém pode perder um pedaço do tamanho de um

campo de futebol porque depois vai fazer muita falta.56

Vemos, assim, os efeitos nefastos da insuficiência de terras para a

própria comunidade. Não obstante, os jogadores do time local tentam uma solução

para esse impasse. O caminho seria a compra comunitária de uma área nos

arredores em condições adequadas à construção do campo. Contudo, esbarram na

resistência dos médios e grandes proprietários em fazê-lo, já que com o campo se

instaura um fluxo de pessoas nem sempre desejável nas propriedades regidas pela

lógica privatista, totalmente alheia ao sentido comunitário desse empreendimento.

Não obstante, há casos em que o sentido capitalista da apropriação

da terra chega a adquirir uma conotação imoral segundo a concepção camponesa.

Tivemos a oportunidade de visitar uma comunidade na qual a velha capela fora

cercada com arame farpado, interditada portanto, após a venda da propriedade que

a sediava a um capitalista, que não vira nessa capela senão uma afronta à terra de

negócio e ao espaço privado sobre o qual deveria prevalecer a sua vontade

individual.57

Esse fato revela o choque entre duas lógicas opostas que, por

vezes, coloca em cheque o valor dos compromissos verbais, amplamente

reconhecidos pelos camponeses. Como se sabe, os acordos firmados nesses termos

adquirem para essa classe um caráter irrevogável: é a força da palavra que, uma

vez dada, não poderá ser retirada. Aliás, esse é um dos mecanismos que funda a

legitimação dos sujeitos perante a comunidade; o outro é o trabalho. Assim, a

valorização pessoal está pautada em dois critérios: a capacidade de honrar os

compromissos assumidos e a incansável disposição para o trabalho.

56 J.: Água Ouro Fino - Londrina. 57 Fato ocorrido no Bairro Araguari - Arapongas.

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É sabido que essas variáveis são fundantes da ética camponesa, o

que indica que o mesmo código utilizado internamente extrapola os limites da

comunidade e intervém em sua relação com o mundo da mercadoria, razão de

muitos dissensos. Talvez seja por essa razão que a dependência aos financiamentos

bancários seja tão temida, uma vez que os juros ao final tendem a ser uma

incógnita e os camponeses que os assumem são premidos a honrá-los, diríamos

que muito mais em função de seus valores do que propriamente dos mecanismos

executórios do agente financiador.

A gente trabalha por dia, se algum caso a lavoura não der, nós pagamos com o que nós trabalhamos. Nós nunca ficamos devendo no banco. Nós pagamos de qualquer maneira, a gente paga antes do prazo, ele vende o que a gente tira e ele paga antes do prazo todo ano. No ano passado a geada matou tudo...a gente perdeu as lavouras...tudinho...tudinho... Aí ele tinha feito um seguro que ajudou a pagar um pouco, mas só que ainda ficamos devendo. Aí a gente plantou a soja, o primeiro dinheiro que a gente pegou, correu e foi lá e pagou o resto. Você vê, eu deixo de comprar um móvel para casa, eu deixo de comprar o que for preciso...se for preciso a gente trabalha por dia para pagar uma dívida no banco. 58

Como se pode observar, o compromisso assumido tem precedência

sobre qualquer situação, inclusive aquelas que estão fora de controle, como é o caso

da frustração de safras. Enquanto a maior parte dos tomadores de financiamentos

agrícolas rola indefinidamente as dívidas com base nesses argumentos, os

camponeses submetem-se à privação que for necessária, colocando em primeiro

plano o seu pagamento. Essa mesma fidelidade se aplica aos compromissos

assumidos com atravessadores, comerciantes de insumos etc.

Essa é uma das evidências de que a relação que estabelecem com os

agentes do capital é orientada, de sua parte, pelos mesmos princípios que norteiam

suas relações pessoais. Daí a dificuldade em se relacionar em pé de igualdade com

a sociedade mercantilizada, já que na lógica camponesa a ordem moral tem

precedência. É o que determina um conflito entre o legítimo e o legal, este último de

difícil assimilação nas práticas cotidianas.

Em relação à interdição da capela, fruto do irrevogável direito de

propriedade, a comunidade informou que não lhe ocorrera proceder ao

desmembramento do terreno, até porque a construção física era a prova maior do

direito costumeiro. Porém, vendas sucessivas da propriedade na qual estava

sediada bastaram para que o compromisso moral se dissolvesse por completo.

58 G.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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No plano simbólico, essa perda evidencia a supremacia de uma

ordem que violenta os códigos reguladores da vida comunitária. Mas isso não

implica admitir que ela tem poder de extirpá-los, talvez até os municie de

referências para as práticas futuras. Mesmo porque a forma não suprime o

conteúdo. Missas, terços, e demais encontros religiosos, agora, são realizados nas

casas dos moradores, através de um esquema de rodízio. Mas isso certamente não

dispensa a necessidade de construir uma nova capela, já que o chamamento desse

símbolo à unidade comunitária é inquestionável.

Todavia, no processo contraditório da territorialização camponesa,

também nos deparamos com uma situação inversa: a da reabertura de uma capela

após vinte anos abandonada. A nosso ver, esse é um fato que merece ser relatado

em função das circunstâncias que o envolvem.

Localizada em uma antiga fazenda cafeeira, a conversão para os

cultivos mecanizados implicou na expulsão das famílias que ali trabalhavam em

regime de parceria, tornando obsoleta aquela igrejinha, que acabou literalmente

cercada pelas lavouras. Para a nova atividade, uma das famílias permaneceu, em

regime de trabalho que mesclava assalariamento com usufruto de terras para

produzir para o próprio consumo. Enquanto ali permaneceram, seus cinco filhos

cresceram e casaram-se sem nunca terem deixado de trabalhar na fazenda.

Entretanto, a transmissão da mesma em herança acabou desestruturando a

atividade produtiva, pois os herdeiros, em poucos anos, não só dilapidaram o

patrimônio herdado como deixaram de pagar os salários desses trabalhadores.

Como resgate da dívida trabalhista, a justiça lhes concedeu 12

hectares, nos quais estavam as moradias, bem como a igreja. Estivemos nesse local

alguns dias após a decisão judicial e, para nossa surpresa, encontramos uma das

novas proprietárias juntamente com os filhos e sobrinhos trabalhando na limpeza

interna da capela. Sua primeira comunhão fora feita ali.

Você não se assuste, porque faz muitos anos que não tem missa aqui. Quando arrancou o café e o povo foi embora, o dono perdeu o interesse nela, até a estradinha que tinha para chegar aqui virou roça. Agora está melhor porque a gente já carpiu em volta, fez outro caminho e devagar estamos limpando por dentro. A gente não vê a hora de ver ela aberta, cheia de gente de novo.59

A nosso ver, essa situação é duplamente emblemática: primeiro,

porque representa uma reconversão à plena autonomia camponesa, já que essa fora

59 N.: Água dos Cágados - Sertanópolis.

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precariamente usufruída durante longo período. Isso se manifesta inclusive na

opção adotada para a utilização produtiva das terras, onde foram privilegiadas as

atividades intensivas, capazes de absorver grande parte da mão-de-obra familiar;

segundo, porque os signos que as famílias procuram reconstruir na sua terra de

trabalho são justamente os signos que as reintegram no universo comunitário e,

por conseguinte, de classe.

Tem que arrumar o telhado, trocar o forro, rebocar as paredes do lado de fora, trocar os vidros das janelas e a porta de entrada. O resto é só lavar bem, pintar as paredes e envernizar os bancos. É coisa cara e demorada, eu calculo uns quatro ou cinco meses... mas já ganhamos a porta e todo mundo vai ajudar um pouquinho... até o padre nós já temos.60

Vemos que o simples esforço de restauração da capela já é um

indício de envolvimento comunitário, o que evidencia seu inalienável poder de

coesão. Aliás, não se poderá falar em bairro rural sem associá-lo aos signos da

devoção camponesa, materializados em templos e em práticas que asseguram a

realização das rezas e cerimônias religiosas: de pequenas e modestas capelas de

madeira a construções até mais imponentes que a igreja matriz de algumas cidades

pequenas; em praticamente todos os bairros, encontramos uma capela ativa. Na

foto a seguir, vemos uma capela; a construção que aparece do lado esquerdo é o

salão de festas.

Foto 18 – Capela e salão de festas

No caso dos católicos, a maioria, cada comunidade tem designado o

60 J.: Água dos Cágados - Sertanópolis.

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seu rezador, seus ministros e até diáconos, que representam uma ponte entre os

desígnios da igreja e dos próprios fiéis. Cabe ao rezador conduzir os eventos

religiosos dentro da comunidade, entre os quais se destacam os terços, realizados

semanalmente, seja na capela ou em rodízio nas casas. Conduz também outras

cerimônias ligadas a datas específicas, como as novenas de natal e páscoa.

Nesses eventos há uma fusão entre a devoção e a diversão, havendo

portanto uma transcendência do caráter religioso, já que as ocasiões que permitem

o encontro da comunidade são ocasiões de festa, literais ou não.

Isso é bastante visível quando se compara a leitura que fazem das

missas dentro e fora da comunidade, pois neste caso, tendem a assinalar a

participação como cumprimento do dever cristão. Ocorre que nas igrejas da cidade,

quando os fiéis são em grande número ou estranhos aos camponeses, a identidade

comunitária tende a se dissolver, já que essas pessoas não pertencem diretamente

ao seu círculo de relações. Por essa razão, as missas fora da comunidade não são

valorizadas como fator de encontro, como o são as internas, assim como os terços e

novenas. Naquele caso a missa se encerra nela mesma. Acabada a cerimônia, o

encontro se esgota, indo cada qual para sua casa.

Embora tais eventos sejam extremamente valorizados, a falta de

padres impõe um rodízio nos bairros, predominado as missas quinzenais e mensais.

Talvez seja por essa razão que muitas comunidades expressam descontentamento

em relação à freqüência dessas celebrações nas respectivas capelas.

Nós achamos que deveria ter pelo menos uma missa por semana. Tanto se fala que o agricultor deve permanecer no campo, mas a gente já têm que ir para a cidade para quase tudo. Os padres tinham que incentivar a gente a ficar aqui, e não ter que ir na cidade até para rezar.61

Além da disponibilidade de sacerdotes nos respectivos municípios, o

dinamismo das comunidades também é fator fundamental na definição da

programação religiosa das capelas, sendo que as celebrações conduzidas pelos

membros da comunidade buscam suprir parcialmente a lacuna das missas.

Por representar um dos principais eventos do bairro rural, a missa

envolve grande preparação e expectativa. O ambiente é cuidadosamente preparado

e praticamente todos os camponeses se programam para ir à igreja nesse dia. De

vários deles ouvimos a afirmativa de que seu único passeio é a ida às missas.

A dimensão do sagrado presente na pronunciada religiosidade

61 R.: Água da Areia - Prado Ferreira.

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camponesa faz da capela um espaço de profunda reverência. Os registros

simbólicos partilhados na história comum e em comum alimentam um zelo

surpreendente: embora permaneçam fechadas praticamente a semana inteira,

encontramos comunidades onde as mulheres fazem revezamento para manter o

ambiente da capela sempre agradável, não faltando as flores frescas no altar.

Isso posto, cremos não ser possível defini-la como marco inalienável

do bairro rural sem examinar-lhe a outra face, que melhor exprime a dimensão

agregadora da igreja: a festa. Em outras palavras, nas comunidades camponesas a

combinação entre o sagrado e o festivo é indissociável.

E a festa a que nos referimos pode ser apreendida em diferentes

matizes: ao se referirem aos eventos religiosos como missas e celebrações, não raro

fazem menção à festa que é a reunião da comunidade. Iríamos mais além, para

demonstrar que esses eventos, muitas vezes, acabam em festas propriamente ditas:

em várias comunidades visitadas, nessas ocasiões, cada família, a seu critério, leva

doces, salgados e refrigerantes e, após a celebração, reúnem-se no salão de festas

da igreja e aí permanecem “enquanto tiver assunto”.

As datas religiosas mais importantes, como é o caso das festas

juninas e dia da padroeira são transformadas em festas comunitárias, para as

quais todos contribuem com alimentos prontos ou preparados em conjunto. Com

relação às festas juninas, visitamos uma comunidade que conserva uma tradição

curiosa. A cada ano, uma família cede a casa para a realização da mesma. Durante

a festa, é escolhida a família que o fará no ano subseqüente. Essa recebe uma flor

artificial, que será conservada em sua casa até a festa seguinte, quando será

passada à nova família escolhida. Trata-se de uma flor que circula há décadas entre

a comunidade, simbolizando o compromisso de manter a tradição.

Dia da padroeira é outro dia de festa nos bairros rurais:

encontramos uma comunidade que tradicionalmente comemora essa data com um

enorme bolo, além de sanduíches e refrigerantes, tudo doado por eles próprios.

Visitamos o bairro durante os preparativos da festa. Um bolo de 100 Kg estava

sendo feito em uma das casas, envolvendo uma legião de voluntários entre

mulheres ocupadas em sua produção e crianças, incumbidas de recolher as

doações no bairro. Como essas eram voluntárias, alguns ingredientes sobraram e

outros faltaram, sendo devidamente trocados na venda do bairro.

É para esse dia que são programados os eventos religiosos de maior

significação: batismo, crisma, primeira comunhão, regulamentações de casamento

etc., o que confirma a justaposição dessas duas esferas: “A gente já programa as

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coisas da igreja para cair no dia das crianças, que é também o dia de Nossa

Senhora Aparecida. Então a festa fica completa, não é?”62

Há uma outra modalidade de festa, diferente em essência dessas até

então assinaladas, pois embora conserve a dimensão congraçadora, tem por

objetivo arrecadar fundos para a manutenção do espaço de celebração. É através

dessas festas que se constroem e se mantêm as capelas, somado ao fato de que

uma parte da receita é destinada a entidades de caridade ou à diocese à qual

pertencem.

A regularidade e o caráter dessas festas variam de acordo com as

implicações monetárias das obras necessárias. Quando a capela está precária e a

comunidade se decide pela construção de uma nova, as festas tendem a ser

intensificadas, de modo a conseguir os recursos necessários em menos tempo.

Durante a pesquisa, encontramos quatro capelas em fase de construção ou recém

acabadas, sinal inequívoco de que o processo de territorialização camponesa é

marcado por um ritmo contraditório que se manifesta em refluxos, mas também em

revitalizações de comunidades.

Nesse caso, é muito comum a nova capela ser produto dos recursos

e do trabalho dos próprios camponeses, já que a construção é feita em regime de

mutirão. A comunidade doa as “prendas”, que são o resultado daquilo que eles

mesmos produzem: leitoas, frangos e até novilhas movimentam tantas festas

quanto forem necessárias para a construção. É importante destacar que, além do

trabalho propriamente dito na construção, eles doam, preparam e depois compram

a comida na festa, o que configura uma tripla contribuição que os mesmos fazem

sem pesar algum. Ao contrário, o trabalho dedicado à devoção é visto como

libertador do cansaço próprio das atividades cotidianas.

As festas mais importantes aqui são Santo Antonio e São Sebastião. Toda festa que tem eu sou o presidente, assim eu saio pedindo aqui na água, é frango, é leitoa, é dinheiro, a gente aceita tudo, de um ovo a um boi tudo é prenda. São Sebastião é um santo muito milagroso, as pessoas têm muita fé, fazem promessa de dar uma leitoa, o que pode não é? É assim que vêm as prendas...sempre já faz na intenção do dia do padroeiro, a festa é sempre na semana que cai o dia de São Sebastião.63

Como se pode perceber, há uma circularidade entre a religiosidade e

a festa: as prendas são, antes de mais nada, o pagamento de promessas pelas

dádivas recebidas, sendo fundamentais para que a festa aconteça. Por outro lado, a

62 B.: Bairro dos Moreira - Tamarana. 63 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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festa alimenta a igreja e, por conseguinte, a religiosidade por ela capitaneada. Isso

não se aplica apenas à dimensão material, face aos recursos monetários que a

mantêm de pé, mas sobretudo porque reaviva os laços comunitários que lhe

conferem sentido.

Outras vão ainda mais além, em termos de organização e

amplitude. A maior parte delas é bastante tradicional, atraindo pessoas não só do

município como da região, repetindo-se de uma a duas vezes por ano. O fato de

extrapolar os limites do bairro rural impõe uma certa profissionalização da

organização, sendo que nessas festas já atua uma comissão permanente, eleita

pela comunidade, a qual trabalha praticamente o ano inteiro para o seu sucesso.

Entretanto, essas tendem a ser qualitativamente diferentes das

primeiras, pois muitas vezes as doações da comunidade são insuficientes para a

sua realização, de modo que já se impõe a compra de alimentos a serem servidos.

Considerando as formas como são organizadas, bem como o impacto das mesmas

nos municípios circunvizinhos, as classificaremos de festas “públicas” em oposição

às primeiras, a nosso ver, reservadas. Quanto aos participantes, a presença dos

citadinos é marcante, alguns dos quais antigos moradores dos arredores.

Em outras palavras, enquanto que algumas são eventos locais,

restritos à comunidade, outras chegam a ser grandiosas, contando com a

participação maciça de pessoas externas à comunidade e, por vezes, constituindo-

se no evento festivo de maior importância do município.

Tivemos a oportunidade de constatar a movimentação no bairro em

uma dessas ocasiões. Homens e mulheres trabalhando afobadamente desde a

madrugada do sábado, para preparar as carnes e os acompanhamentos. Depois a

limpeza e a arrumação do salão de festas e no meio da tarde, mulheres na cozinha e

homens nos fornos e churrasqueiras, para que já na chegada dos primeiros

convivas, tudo já estivesse pronto. Como a referência do consumo, portanto da

quantia necessária a ser preparada é sempre a festa anterior, podem ocorrer

surpresas. No sábado à noite, foram consumidos praticamente todos os frangos que

haviam sido providenciados para os dois dias, obrigando os organizadores, a saírem

no domingo pela manhã em busca de um novo estoque. Para tanto, tiveram que se

deslocar a uma cidade distante uns 70 quilômetros.

No almoço desse dia, por volta das 12 horas, já havia acabado as

leitoas, pois o movimento fora muito superior ao esperado. Aliás, em praticamente

todas as comunidades visitadas, a informação é que todo o alimento preparado é

vendido. Isso não se explica apenas pelo fato de que a arrecadação seria

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comprometida se houvesse sobras, mas sobretudo porque o desperdício é

totalmente contrário à ética camponesa.

Isso só vem a confirmar o pressuposto anterior de que algumas

cidades pequenas do Norte do Paraná estão profundamente marcadas pelo processo

de territorialização camponesa. Outrossim, cremos ser esse mais um exemplo de

que esse processo se manifesta em pontos que estão articulados em redes: as datas

dessas festas, embora fiéis a um calendário religioso, são cuidadosamente

estabelecidas a partir de um “acordo” regional, de modo que nem mesmo em

municípios vizinhos as festas coincidam. Não se trata de um acerto verbal entre as

diferentes comunidades, mas um entendimento que já está incorporado nas

tradições, o que assegura um rodízio fundamental para o sucesso das mesmas.

Por fim, há que se lembrar que as festas maiores nem sempre

contam com a aquiescência do sacerdote designado para a comunidade, o qual tem

a palavra final sobre o caráter dessas. Alguns deles resistem em autorizar a

comercialização de bebidas alcoólicas, pois a combinação dessa com a concentração

de estranhos pode ser explosiva. Por outro lado, festa sem álcool não é atrativa, de

modo que a amplitude das festas tradicionais depende de decisões que muitas vezes

fogem ao controle da comunidade, o que explica um ciclo de refluxos e expansão

das mesmas. Devemos assinalar, contudo, que não há uma relação direta entre

visibilidade e vitalidade dos bairros rurais, pois alguns dos bairros mais dinâmicos

não possuem a tradição das festas públicas, mas sim daquelas mais reservadas,

restritas à comunidade.

Além das festas, outras práticas igualmente indissociáveis da lógica

de reprodução camponesa se repetem nos bairros rurais do Norte do Paraná. Trata-

se de diferentes expressões de ajuda mútua, as quais são calcadas nas relações de

parentesco e vizinhança. Assim, tais práticas desenham uma densa rede no interior

do bairro rural, como que subdividindo-o, pelo menos se considerarmos os fluxos

delineados pela freqüência e intensidade das relações que acabam instituindo os

vários grupos de afinidade no interior desse.

Desse modo, ainda que situações ocasionais impliquem em

mobilização ampla, a exemplo das festas e celebrações, tão valorizadas na

perspectiva do encontro, as relações cotidianas desenrolam-se em um plano no qual

a proximidade geográfica tanto pode ser fator fundamental de aproximação quanto

reflexo desse.

Aliás, a própria diferenciação nesses termos nos permite localizar

no tempo e no espaço o processo de territorialização, embora seja impróprio tomar

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a classificação que faremos a seguir como algo rígido, já que nos bairros rurais a

diversidade impera.

Assim, quando as relações de parentesco são predominantes, via de

regra estamos diante de trajetórias camponesas consolidadas há mais tempo,

muitas vezes originadas já no processo de colonização. Desse modo, diante da

indicação: “aqui é todo mundo meio aparentado”, sabe-se de antemão que a

recriação camponesa da família no local já se encontra na segunda e até terceira

gerações. Nesse caso, prevaleceram mecanismos de herança, bem como trocas

matrimoniais significativas no interior do bairro, situação recorrente no passado.

Por outro lado, bairros onde essa situação é mais diluída, são

bairros especialmente marcados por duas possibilidades: a primeira seria o

processo de territorialização mais recente, ancorado na transição de camponeses

sem terra para camponeses proprietários, através das diferentes trajetórias já

destacadas anteriormente. A segunda possibilidade, mais sombria do ponto de vista

de sua consolidação enquanto sujeitos autônomos, está relacionada à extrema

escassez de terra, a qual não comporta a subdivisão da propriedade a ponto de

permitir a recriação de várias famílias nucleares na propriedade. Em ambos os

casos, os laços são constituídos face ao fator vizinhança, ou seja, a proximidade

geográfica surge como fator fundamental para a identidade que serve de base para

as práticas de ajuda mútua.

Assim como as festas, não se poderão analisar as práticas de ajuda

mútua a partir de um padrão, já que as estratégias são bastante variáveis entre as

comunidades, no interior delas e inclusive no decorrer dos ciclos agrícolas.

Em um bairro rural onde as propriedades camponesas não excedem

a vinte hectares, cuja lavoura comercial é o café, tivemos a oportunidade de

presenciar o desencadear dessa prática. A lavoura de milho, plantada no meio do

café, estava no ponto de colheita e o tempo ameaçava chuva. Como o seu destino

não era a comercialização, mas a estocagem em espigas para a alimentação das

criações, a chuva provocaria estragos, pois a umidade não permite a conservação

do produto.

Trabalhavam afobadamente na colheita manual quatro homens, o

proprietário do sítio e três vizinhos. Trata-se de uma tarefa custosa, já que a

cultura intercalar não permite a entrada do trator na roça. Assim, as espigas

colhidas iam para balaios que, quando cheios, eram levados nos ombros até os

limites da lavoura e despejados em montes. Após concluída essa etapa, um dirigia o

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trator e os demais recolocavam o milho na carreta, para posteriormente descarregá-

lo no paiol.

Terminada a colheita, todos se reuniram na casa do proprietário,

onde os aguardava um café passado na hora e uma mesa farta. Instalou-se um

clima de festa, pois a chuva começara a cair e, com o milho salvo, era muito

benvinda. Em suas palavras, o dia estava ganho, expressão que foi se desdobrando

em vários significados: por causa da colheita bem sucedida; porque o dia de

trabalho estava encerrado e, por fim, porque o trabalho compartilhado e o retorno

das chuvas após a estiagem de inverno anunciavam a retomada do ciclo

reprodutivo camponês.

A gente troca serviço porque nosso ganho é pouco, se pagar mão de obra não sobra nada. Além de ser difícil pagar, tem o problema do serviço que nunca é feito igual. A gente cuida das coisas do outro como cuida das nossas, sempre rende mais.64

Assim, a troca de dias de serviço é um mecanismo que possibilita o

equilíbrio da demanda por força de trabalho durante todo o ciclo agrícola, inclusive

nos períodos de intensificação do trabalho. Enquanto uns resolvem essa alternância

com contratações temporárias, logo, com dispêndio monetário, outros a solucionam

fora do circuito monetário, trocando trabalho, conforme se verifica no relato. Como

a colheita é episódica e ocupa poucos dias, o grupo circula nas respectivas

propriedades e consegue realizar o trabalho a contento.

Outro elemento que depõe a favor dessa prática é o extremo cuidado

dispensado nas tarefas, o que não se poderá esperar de contratados esporádicos,

sem qualquer vínculo com a terra ou seu proprietário. Desse modo, trocar dias de

serviço é uma forma de potencializar os poucos recursos disponíveis.

Vimos, no entanto, que a ajuda mútua não se constrói apenas em

função dos resultados satisfatórios do ponto de vista econômico, já que a

convergência dos indivíduos para um fim comum é fundamental para a sua

permanência. Dessa maneira, a tendência é que a mesma se estabeleça entre

grupos homogêneos, cujas afinidades vão além da identidade pessoal, estendendo-

se para as formas coincidentes de uso da terra. Daí a rede densa anteriormente

destacada, pois as várias atividades no interior do bairro contribuem para a

existência de vários grupos estáveis de ajuda mútua.

Entretanto, não se trata de associações rígidas ou excludentes, já

que seus componentes podem participar simultaneamente de vários grupos,

64 N.: Água do Saltinho - Cambé.

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dependendo da especificidade de tarefas a realizar. Assim, pode-se colher em

conjunto com um grupo, atuar no esquema de complementaridade de máquinas e

ou ferramentas com outro, transportar mercadorias em conjunto com outro e assim

por diante.

Além disso, a regularidade e a intensidade das trocas obedece às

estratégias produtivas e aos próprios ciclos climáticos. Assim, atividades em que a

mão-de-obra familiar é suficiente, dispensam a ajuda mútua; por outro lado, em

anos de boas colheitas, ela poderá se intensificar, dada a necessidade de aumentar

o número de braços trabalhando num período abreviado de tempo, a fim de evitar a

deterioração da produção na roça. Por fim, quebras ou perdas de safras podem

dispensar tal prática naquele ciclo agrícola.

Portanto, a ajuda mútua está de tal forma articulada à dinâmica do

bairro rural que não é possível apreendê-la isoladamente, mesmo porque a

combinação entre a conjuntura externa, interna ao bairro e interna a cada unidade

camponesa é que irá definir, em cada momento, o patamar de ajuda mútua

necessário ou desejável.

Por outro lado, é importante destacar que a ajuda mútua não

representa um peso, como soaria para os urbanos uma tarefa extra. Para o

camponês, o trabalho mútuo é uma partilha que ultrapassa o sentido da obrigação,

sendo coroado pela festa do cotidiano compartilhado. Em geral, o dia em que ocorre

essa prática, não termina na roça, mas em confraternização na casa do anfitrião,

que serve aos demais o que tiver de melhor em sua despensa. O remanescente

dessa prática é bastante evidente nas periferias, repleta de expulsos do campo. Ao

contarem com a ajuda mútua na construção das casas, ao término da fase que

permite a moradia, o dono da casa providencia a melhor festa que pode,

normalmente churrasco ou rodadas de bebidas.

As possibilidades são tantas que a cultura do milho, tomada como

exemplo dessa prática, desdobra-se em outras combinações nesse sentido.

Enquanto que a ajuda mútua descrita anteriormente foi verificada no interior de

uma atividade voltada para o próprio consumo, portanto em escala menor, ela

também se manifesta em culturas comerciais. De antemão, faz-se necessário

esclarecer que a mesma igualmente se desenrola entre camponeses com pouca

terra, o que inviabiliza a mecanização de todas as etapas do processo produtivo.

Desse modo, o trator é utilizado apenas para o preparo da terra e

nem todos os camponeses o possuem. Nesse caso, há trocas com os vizinhos,

mediante o pagamento das horas trabalhadas. Para o plantio, tanto pode ser usada

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uma máquina manual conhecida por matraca como a semeadeira de tração animal.

Quando a área a ser cultivada é maior, normalmente os camponeses utilizam a

segunda, já que o rendimento da matraca é baixo e a semeadura não pode esperar,

devendo acontecer preferencialmente com a terra úmida, logo após a chuva.

Para a manutenção das lavouras, utiliza-se enxada ou arador de

tração animal, dependendo da extensão da lavoura. Apenas circunstancialmente

utilizam-se herbicidas, pois além dos preços serem proibitivos, os camponeses

desconfiam de seus efeitos deletérios.

Para plantar na mão, primeiro a gente risca com o burro e depois usa a matraca, no meio do café é sempre na mão. No trator o ano passado eu paguei 18 reais a hora. O trator é do meu vizinho que toca café aqui de porcentagem, ele também tem uma chacrinha lá embaixo... Para limpar o milho eu chapeio, eu tenho um burro, aqui é tudo no jeito, se não der com o burro a gente faz com a enxada, se tiver muito mato a gente compra round-up também.65

Com exceção do aluguel do trator, que já acontece dentro de um

esquema de trocas pessoais, já que os preços cobrados pouco excedem o custo de

manutenção da máquina, as etapas que antecedem a colheita são feitas

individualmente. Não obstante, essas etapas já evidenciam a articulação entre o

grupo de ajuda mútua, pois a colheita deverá coincidir, a fim de assegurar um

volume que compense, na perspectiva do atravessador, o deslocamento de

caminhão e máquina para o referido bairro.

Chegado o momento da colheita, cada família se encarrega de

quebrar o seu próprio milho, que é disposto em montes no meio da roça. Feito isso,

todo o milho é transportado na carroça para um ponto estratégico da propriedade,

próximo à estrada, sendo coberto com lona sempre que houver ameaça de chuva.

Assim, essa tarefa é realizada, concomitantemente, em várias propriedades

vizinhas, o que antecede a debulha, quando é contatado o atravessador com o qual

acertaram a entrega da colheita. Os desavisados, que porventura venham a

transitar pelo bairro em uma dessas ocasiões, poderão não compreender a razão de

tantos montes de milho dispostos ao longo da estrada. Isso é feito para facilitar o

deslocamento dos veículos que carregam a máquina debulhadora e que farão

posteriormente o transporte da colheita.

A debulha é uma tarefa que exige muitas pessoas trabalhando ao

mesmo tempo, pois a máquina deve ser continuamente alimentada com um grande

volume de espigas. É nesse momento que se configura a ajuda mútua entre os

65 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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vizinhos, pois todos circulam entre as propriedades envolvidas na lida, não havendo

qualquer pagamento monetário entre eles. Assim, enquanto uns enchem os balaios,

outros os transportam até a máquina, onde duas pessoas vão despejando o milho.

O revezamento nessas tarefas assegura o ritmo intenso, indispensável para o

melhor aproveitamento da colheita, já que quanto mais cheio estiver o tanque,

menos grãos são eliminados juntamente com a palha e o sabugo triturados.

Aliás, são exatamente esses rejeitos que impelem os camponeses a

negociarem a venda da colheita nesses termos, uma vez que o deslocamento dessa

máquina implica em um custo que lhes é repassado, através do rebaixamento do

preço por saca limpa. Assim, embora percam no preço recebido, a palha que será

incorporada como fertilizante natural resulta em economia com adubação e mesmo

preservação do solo. Isso não seria possível caso entregassem o milho diretamente

nas máquinas beneficiadoras da cidade.

É isso que se verifica em relação ao café, pois não há máquinas

itinerantes, sendo necessário beneficiá-lo na cidade. Assim, sempre que possível, a

palha do benefício é trazida de volta. Para os camponeses, essa é uma forma de

extrair o máximo da propriedade, já que a mesma é utilizada como esterco,

diminuindo os gastos com aquisição de adubo. Segundo eles, essa seria uma forma

de “ganhar” o beneficiamento do café.

Dias de serviço nós trocamos, quando é para debulhar milho a gente não paga ninguém. Na debulhadeira precisa de seis a sete pessoas, porque se ela trabalhar sem muito milho, joga muito fora. Então tem que ter bastante gente enchendo os balaios e jogando na bica...e a gente já está combinado antes. Quando acaba aqui vai ali, então a gente coopera, quando vem a máquina, faz o serviço para todo mundo. Aqui é bom por causa disso, o pessoal é de combinar...quando vai debulhar o pessoal já sabe...os antigos já são assim mesmo e os novos que vão chegando vão entrando com esse sistema da gente.66

Como se pode observar, a ajuda mútua é uma prática

completamente incorporada a algumas atividades dentro do bairro rural, como é o

caso da lavoura tradicional de milho. É curioso notar que ao invés da ajuda mútua

se perder com a chegada dos “novos”, que tanto podem ser os filhos dos

camponeses quanto novos moradores do bairro, ela se renova, já que os mesmos

acabam se inserindo no sistema. Entretanto, a ajuda mútua inscreve-se em um

código de reciprocidade em que os dias de trabalho e o esforço despendido são

rigorosamente calculados, gerando uma conta virtual de débitos e créditos sobre a

66 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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qual eles jamais perdem o controle.

Se alguém precisa de uma mãozinha, sempre vem outro ajudar, às vezes um precisa muito e o outro precisa pouco, aí a gente troca. Mas eu não esqueço os dias de serviço que eu tenho que dar. Se é um dia, é um dia, se é meio dia de serviço, é meio dia de serviço que a gente vai dar. Se ele não precisar agora, fica para mais pra frente, mas a gente não pode falhar..É assim que a gente combina.67

Notamos na fala que o combinar possui um duplo sentido:

combinar indica acordo estabelecido, mas pode também significar elo de ligação.

Assim, as boas relações são conservadas à medida que os sujeitos honram o código

de trocas. Aquele que não o fizer, tende a ser excluído da rede de cooperação e isso

parece se aplicar aos recém chegados, já que os mais antigos não concebem a idéia

de romper o pacto comunitário.

Esse é o sentido da expressão falhar, que tanto indica hiato no

encadeamento de um determinado processo quanto falta de correspondência às

expectativas comunitárias. Nas áreas onde se agrupam os porcenteiros, onde a

mobilidade é maior, pudemos notar que a comunidade cria mecanismos de

expulsão para aqueles que não incorporam o código de reciprocidade. Outrossim,

ao se referirem a fatos dessa natureza, associam-no a indivíduos ou famílias recém-

chegados e não ao rompimento entre os membros da comunidade.

Nós já tivemos um caso desse aqui, era um pessoal novo que chegou para tocar café de porcentagem, mas a gente logo viu que eles não tinham o mesmo jeito nosso. Sabe...os costumes eram outros, daí o pessoal foi dando um jeito até que eles não quiseram ficar mais, foram embora.68

Não obstante, a ajuda mútua pode ser observada para além da

troca de dias de serviço. Assinalaríamos, como uma das formas mais recorrentes

nos bairros rurais, o costume da partilha dos frutos do trabalho camponês.

Produtos da horta e do pomar são freqüentemente trocados. Aos vizinhos também

são distribuídas partes dos animais de médio e grande porte abatidos. Por fim, a

troca também envolve os produtos da lavoura de consumo próprio, o que significa

poupar esforços e aumentar a rentabilidade, à medida que destinam áreas maiores

a um único produto.

Embora essas trocas sejam submetidas ao parâmetro da

equivalência monetária, há quase que um acordo prévio, estabelecido em

observância à maior aptidão dos terrenos e da tradição das famílias. Essas trocas

67 A.: Água da Marrequinha - Londrina. 68 A.:Colônia Mantovani - Cambé.

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são bastante comuns entre os produtos de baixo consumo, a exemplo do amendoim

e milho-pipoca, que não compensaria plantar só para o consumo próprio. Assim, as

trocas nesses termos garantem um consumo ainda mais diversificado, sem que

cada unidade sacrifique o seu potencial em função da extrema fragmentação das

atividades.

Esse ano eu plantei só amendoim, que eu troquei com o vizinho, que colheu bastante arroz. A gente faz assim, vê quanto é que vale um e quanto vale o outro e quase sempre acerta nas quantidades. Dinheiro, você sabe, não é sempre que a gente tem.69

Ainda do ponto de vista da complementaridade, tivemos a

oportunidade de verificar o entrelaçamento das atividades entre unidades

camponesas que desenvolvem a piscicultura: algumas delas criam os peixes e

repassam para o vizinho que tem um pesqueiro. Ao indagarmos sobre a lógica que

presidia essa “divisão” no bairro, dois critérios foram destacados. Primeiro,

disponibilidade de mão-de-obra para se envolver com o pesqueiro; segundo,

precisão, já que para mantê-lo em funcionamento é necessário abdicar do descanso

semanal, especialmente o domingo, exatamente o dia em que o movimento é mais

intenso.

Mesmo aqueles que não se inserem diretamente nessas

modalidades de trocas, por atuarem em atividades especializadas, como olericultura

e fruticultura, não costumam comprar os alimentos básicos no mercado, mas sim

dos vizinhos. Isso assegura gastos menores com a alimentação, dada a diferença

entre preço pago ao produtor e preço final ao consumidor. Como se pode observar,

os camponeses restringem ao mínimo possível os gastos monetários, o que dá

preciosas pistas de sua capacidade de se reproduzir diante da crescente

interferência do capital com vistas à apropriação da renda, manifesta por exemplo

na descompensação entre custo da produção e preço final da colheita.

Além de atividades complementares, como as descritas, verificamos

que em alguns casos, esse critério perpassa o planejamento estratégico para a

viabilização da lavoura: trata-se da aquisição combinada das máquinas entre a

vizinhança. Ou seja, quando um tem a plantadeira, o outro tem a colheitadeira, e

sabe-se de antemão que os respectivos procedimentos serão feitos pelo vizinho. Por

outro lado, muitos não dispõem de máquina alguma, mas igualmente estão

incluídos entre os que serão atendidos.

69 N.: Água do Saltinho - Cambé.

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Embora essa prática esteja assentada na observância e repasse

recíproco dos respectivos custos monetários de manutenção do equipamento, a

mesma assegura a execução do serviço no devido tempo, posto que uma das

grandes dificuldades dos produtores pequenos é encontrar quem o faça. Aliás, são

práticas como essas que viabilizam a lavoura mecanizada entre os camponeses,

pois o preço e os custos das máquinas são incompatíveis com a escala individual da

atividade, sendo que a racionalização é obtida através desse “acerto” comunitário.

Vimos, no entanto, que não se trata de empréstimo das máquinas,

mas serviço executado para o outro, já que os camponeses não abrem mão do

controle sobre seus instrumentos de trabalho.

Você sabe que a máquina na mão do dono dura muito mais, a gente tem mais zelo. Além do mais, cada um sabe lidar melhor com o seu maquinário, então a gente combina assim: quem tem a plantadeira, planta na sua terra e depois vai plantar na terra do outro. Quando chega a colheita, ele colhe a sua depois vem fazer a nossa colheita. A gente acerta de acordo com o trabalho que cada um teve.70

Entre as modalidades de ajuda mútua, consideramos essa uma das

mais refinadas, por se manifestar em bairros onde o grau de concentração da renda

das famílias é maior. Isso é visível na quantidade de terras, propriedade de tratores,

colheitadeiras e até caminhões para o transporte. Assim, a mecanização, ao

contrário do que se poderia supor, também comporta práticas de cooperação, mais

uma prova do equívoco de se creditar à forma a supressão automática do conteúdo.

Outra indicação de que os laços de cooperação não se desfazem com

o avanço das técnicas foi vista em um bairro rural, no qual funciona uma indústria

doméstica de café moído; em uma década, essa evoluiu da produção totalmente

artesanal, com torrador e moinhos manuais, para uma torrefação semi-automática.

Essa mesma família se divide entre essa atividade, o cultivo de café

e citros, além de uma pequena produção para autoconsumo. Apesar de

movimentarem uma razoável quantia de café, em parte adquirido junto a corretores

de Londrina e Maringá, praticamente todo o café produzido na comunidade lhes é

vendido, pois os mesmos pagam um preço ligeiramente superior daquele praticado

no mercado. Por outro lado, a facilidade de obter o produto já pronto, dispensando

o trabalho de beneficiar, torrar e moer manualmente o café, seduziu a comunidade,

que recorre continuamente à pequena indústria, levando o café em coco para trazê-

lo moído, sendo cobrada deles uma taxa ínfima por isso.

70 E.: Água do Caçador - Cambé.

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Nessa situação, identificamos uma relação de troca assegurada por

laços de vizinhança, pois o empreendimento cresceu em meio à própria

comunidade, o que faz com que os mesmos procedimentos continuem sendo

adotados. Isso, por vezes, diminui o potencial produtivo da máquina, já que o

volume trabalhado é grande em relação à demanda individual dos moradores,

embora os mesmos ainda continuem utilizando o serviço.

Outra evidência de que a parcela do território dominada pelos

camponeses se constrói a partir das relações pautadas na ajuda mútua, manifesta-

se nas práticas de inserção dos camponeses mais empobrecidos nas unidades

vizinhas, nos momentos que as tarefas não podem ser realizadas somente pela

família. Tivemos a oportunidade de partilhar um desses momentos na colheita da

laranja, que estava sendo realizada pela família proprietária e porcenteiros de café

que residem no próprio bairro. Apesar do ritmo e intensidade do trabalho, o clima

era descontraído e festivo, como que a denunciar a rara ocasião em que os preços

de mercado estavam remunerando o trabalho camponês.

Segundo o proprietário do pomar, todas as tarefas que a família não

consegue realizar são repassadas para esses vizinhos, pois a colheita do café é

anterior à da laranja, havendo, portanto, uma ociosidade da mão-de-obra familiar

no bairro.

Tem hora que só nós não conseguimos dar conta do serviço, aí a gente chama os vizinhos que estão meio parados. Com eles não precisa se preocupar se o serviço vai sair ou não vai sair bem feito. Eles são de confiança, cuidam das coisas da gente como se fosse deles. Pode largar na mão deles que o serviço sai. 71

Outro desdobramento dessa prática seria a solidariedade da

comunidade para com membros do bairro que, em determinadas conjunturas,

necessitam de auxílio. Nesse caso, não prevalece o critério da reciprocidade, já que

a intervenção se faz no sentido do resgate da condição camponesa ameaçada.

Em um bairro, nos deparamos com uma dessas evidências: uma

família de porcenteiros, antigos moradores do lugar, havia perdido, há quatro anos,

a “colocação”, já que o café fora arrancado. Mudaram-se então para um município

vizinho, no qual passaram esse período cuidando de uma propriedade de pecuária

extensiva em troca do direito de moradia, nada recebendo por isso.

Nesse período, com o assalariamento eventual de alguns membros

da família mais as reservas anteriormente feitas, foram formando um pequeno

71 T.: Água da Areia - Prado Ferreira.

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rebanho bovino, diariamente apascentado nas beiras de estrada e recolhido ao

anoitecer. Ao surgir a oferta de um pequeno pedaço de terra no antigo bairro, a

comunidade não só se empenhou para que eles a comprassem como inclusive

cedeu uma casa ao lado da capela72 para que eles pudessem morar até construir a

sua no sítio próprio.

Porém, os custos de instalação são muito altos, pois se trata de

terra nua, de modo que terão que construir casa, cercas, fazer poço e até mesmo

puxar energia. Para angariar os recursos para tanto, já que tudo o que possuíam foi

vendido para comprar o sítio, combinam os primeiros cultivos na terra própria com

a venda da força de trabalho nos arredores.

A ajuda aos camponeses mais empobrecidos, às vezes, pode se

manifestar num envolvimento restrito aos vizinhos. Encontramos uma família

camponesa cuja renda monetária vem da fabricação e venda direta de vassouras, do

leite tirado de quatro vacas e da parceria estabelecida com um olericultor vizinho, o

qual lhe repassa verduras para que ele tenha mais um produto a oferecer à

freguesia das várias cidades vizinhas, percorridas semanalmente de ônibus.

Embora as práticas destacadas tenham por fundamento a

viabilização da unidade camponesa, advertimos que outras formas de cooperação

são recorrentes entre os camponeses. Aliás, o bairro rural é o espaço por excelência

das trocas. Ali se trocam experiências e conhecimento com vistas à potencialização

dos recursos disponíveis. Trocam-se mudas e sementes. Trocam-se ovos e

emprestam-se galos para melhorar galinheiros que estão “refinando”. Emprestam-se

os melhores cachaços para a fertilização das fêmeas. Emprestam-se e trocam-se

touros para evitar problemas genéticos no rebanho. Enfim, a unidade do bairro

rural está justamente calcada em inumeráveis práticas de ajuda mútua, das quais

muitas certamente não puderam ser apreendidas pela metodologia proposta para

essa pesquisa.

Entretanto, há que se ponderar que diante do processo de

modernização da base técnica da agricultura, os bairros rurais sofreram

indiscriminadamente perdas populacionais. Evidente que essas perdas estão

diretamente relacionadas às formas de acesso à terra. Quando precárias, no caso

da parceria, houve aqueles que simplesmente desapareceram, sendo ainda possível

encontrar seus sinais em algumas colônias em ruínas. Em se tratando de bairros

formados predominantemente por camponeses proprietários, sem dúvida houve

uma diminuição do número de moradores, pois a atual conjuntura técnica e

72 Capela São Benedito – Miraselva.

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econômica não só expulsa filhos de camponeses como redefine o tamanho das

famílias. Essa mudança na dinâmica populacional dos bairros afeta a comunidade,

especialmente os mais velhos, que vêem na expulsão de muitos do seu círculo de

relações, uma ameaça à sua própria condição de classe autônoma.

Hoje o povo reclama que está difícil, mas é que eles são novos ainda. Quando eu cheguei aqui, não tinha estrada, não tinha energia nem esses maquinários. A roça era feita no braço e preço nunca teve. Mas era um tempo de muita união, disso sim eu sinto saudade. A gente saía para visitar os compadres, às vezes era tão longe que tinha que voltar só no outro dia. Hoje está diferente, às vezes um vizinho fica doente e a gente só fica sabendo quando topa com ele já bom.73

Como vemos, o que está em confronto é o tempo retido no

imaginário, no qual as influências do mundo externo eram tão frágeis que a

comunidade se reproduzia quase que à margem de suas determinações. Em outras

palavras, embora igualmente produtores de mercadorias, o bairro funcionava

principalmente como uma unidade onde as relações internas eram mais intensas.

Atualmente, independentemente das particularidades dos bairros

rurais, os termos das relações que estão na base da reprodução social são outros. A

começar pela família, já que alguns filhos foram banidos da condição camponesa,

face às restrições dos meios de produção, donde se subsume que o contato com a

lógica do capital deixou de ser algo distante. A velocidade atrelada à abreviação do

tempo, com fins à acumulação ampliada do capital, infiltrou-se inclusive no bairro.

Se você me perguntar sobre dinheiro, eu digo que hoje está muito mais difícil para ganhar e a gente precisa dele. Mas se você me perguntar sobre o resto, eu digo que hoje a vida na roça é mais fácil. Meu pai derrubou mata virgem no machado e o café queimado no ano passado foi cortado com a motoserra. Quando a gente precisa ir para a cidade, pega o carro e vai num instante ou vai na estrada e espera o ônibus. Antes, tinha que marchar a pé, 10, 15 Km. Então eu digo que o aperto que a gente vive é para pagar o conforto que a gente tem.74

Assim, fica evidente que o camponês conseguiu incorporar itens de

conforto, o que torna o seu trabalho menos desgastante. Contudo, ao preço da

urgência da mercadoria, que lhe cobra o aumento da produtividade do trabalho, tal

qual ocorre com os demais membros da sociedade capitalista. É esse tempo que

implica na redefinição das relações comunitárias bem como nas modalidades de

cooperação. Talvez seja por isso que muitas de suas falas são pura nostalgia de um

73 A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio. 74 E.: Água do Caçador - Cambé.

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tempo em que a sociabilidade camponesa estava fundada em relações menos

complexas.

Ainda que os camponeses sejam movidos por lógica diversa,

conforme temos visto, o fato de uma parte de sua produção ser convertida em

mercadoria, além de serem consumidores dessas, não só os obriga a conhecerem a

sua cadência, como lhes impõe mais pressa. Premidos pela sujeição da renda da

terra, têm que se desdobrar para garantir a sobrevivência da família e isso rouba o

tempo da convivência comunitária. Não surpreende, portanto, que as ocasiões em

que o encontro é oportunizado, são tão valorizadas, pois o universo camponês

rejeita a coisificação da mercadoria, sendo mediatizado pela visão totalizadora na

qual as relações pessoais são fundantes.

Enquanto que no operário o que se manifesta é o indivíduo, o fragmento a que ele foi reduzido pela contratualidade das relações sociais, no camponês manifesta-se a pessoa, o ser inteiro ainda que mediado pela coisificação da mercadoria [...]. A consciência do camponês expressa a consciência da pessoa, que é extensão da família e da comunidade e dos laços comunitários. É mais uma consciência afetiva de pertencimento a um sujeito coletivo real, um corpo natural de que se faz parte desde sempre, desde o nascimento. [...] Por isso, nas comunidades camponesas [...] o trabalho e a festa se mesclam nos mutirões, nas festas celebrativas do fim da colheita. (MARTINS, 2002, p. 75).75

Nessa perspectiva, o que mais poderá vulnerabilizá-los não é o

descompasso entre preços e custos da produção, um fator externo com os quais

eles têm conseguido lidar através de estratégias próprias, e sim, o eventual

isolamento e a diluição dos laços de solidariedade; esses é que são ameaçadores,

quando instalados no interior de suas próprias relações. É por isso que essa parece

ser uma de suas principais preocupações quando se projeta o futuro.

Esse é um dos motivos pelos quais muitas comunidades que já

tinham deixado para trás as tradições festivas as estão retomando. Não resta

dúvida que dos bailes tradicionais às celebrações regadas à partilha de comida e

bebida, houve mudanças. O mesmo se aplica aos padrões pretéritos e atuais de

ajuda mútua.

É assim que as relações no interior do bairro rural vão se

redefinindo. Nesse movimento, o processo de territorialização camponesa evoca

uma soldagem que poderia parecer inusitada, se levarmos em conta a trajetória dos

sujeitos sociais dessa pesquisa. Como vimos, a sua condição de classe

75 Grifo do autor.

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construiu-se através do consentimento em pagar a renda capitalizada da terra, de

uma vez, tornando-se proprietários ou, parceladamente, pagando renda em

dinheiro ou em produto.

Essa condição em si seria mais que suficiente para torná-los

conservadores em relação aos camponeses que conquistam a terra de trabalho

através das lutas políticas. Esse fato, somado à manipulação ideológica, cria um

distanciamento que os impede de incluírem os primeiros na identificação coletiva de

classe.

Entretanto, apenas o distanciamento assegura essa consciência

dividida: foi o que concluímos através das falas dos camponeses que, em

determinado momento, ganharam novos vizinhos: os assentados de projetos de

reforma agrária.

Quando a gente viu a movimentação dos sem terra na fazenda do lado de cima da estrada nós ficamos assombrados. A gente pensava que o negócio deles era a bagunça e que o sossego da comunidade tinha chegado ao fim. Passado um tempo, descobrimos que eles são trabalhadores como nós, a terra deles também não fica parada. No fim, eles deram vida nova à comunidade, eles são participativos, em tudo que são convidados aparecem. Também nas festas de lá eles convidam e a gente vai.76

Enfim, é com essa perspectiva que procuramos analisar a geografia

do bairro rural. Como a sua unidade é fruto de uma combinação particular de

variáveis, derivadas da articulação entre sociedade, tempo e espaço, há que se

admitir que nele não existem fronteiras estáveis nem tampouco definitivas. É essa

riqueza que o conserva como retrato privilegiado da parte do território dominada

pelos camponeses. Em relação aos sítios, o arranjo interno guarda relação com um

padrão que se repete, embora não seja exclusivo: do ponto de vista da divisão do

trabalho, há uma definição de papéis ligados à idade e gênero. Cuidar da horta, das

criações, do preparo do café quase sempre é uma tarefa dos idosos ou das crianças,

ficando o serviço mais pesado para os adultos. As mulheres são responsáveis pelo

zelo da casa, das roupas e preparo das refeições. No geral, suas tarefas são mais

domésticas, o que não quer dizer que as mesmas não trabalhem na roça, sobretudo

nos períodos de colheita, quando toda a força de trabalho possível é mobilizada.

Quando a família é extensa, em virtude da absorção daquelas que

vão sendo constituídas com o casamento dos filhos, é comum a exploração

76 J.C.: Água do Araguari - Arapongas.

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conjunta da propriedade, sendo divididos os resultados da atividade. Nesse caso,

uma parte da produção para autoconsumo, em particular as miudezas, como

hortas e pequenas criações, são internas a cada uma das famílias nucleares. Entre

os homens que estão ativos, é visível uma divisão de trabalho: normalmente o filho

mais velho é o que estabelece o elo entre a propriedade e a cidade, ficando

responsável pelos “negócios” da família. É ele quem negocia e entrega as colheitas,

procede à compra dos insumos e administra as esferas fiscal e bancária que

envolvem a atividade.

Quando não está ocupado com essas demandas externas, junta-se

aos demais. Mesmo internamente, há uma certa divisão do trabalho, já que a

identificação com as diferentes tarefas, manifestadas no gosto e na habilidade em

realizá-las, parece ser decisiva quando se procede a sua distribuição.

Quanto à permanência dos filhos na propriedade após o casamento,

isso via de regra se aplica aos homens. É pouco comum encontrar uma exploração

camponesa em que cunhados ou genro e sogro trabalhem juntos, a não ser nos

casos em que não haja filhos homens na família ou situações de acolhimento da

família da filha em função de dificuldades econômicas.

Assim, os papéis desempenhados internamente obedecem a uma

intercomplementaridade, em que a sua importância na reprodução da unidade não

deriva da respectiva força física, mas do lugar que os mesmos ocupam na

hierarquia familiar e comunitária.

Quanto à “imagem territorial” dos sítios, igualmente parece

prevalecer um padrão: à frente das casas é comum encontramos jardins repletos de

espécies floríferas, com destaque para a roseira. Neles as folhagens são raras e não

há gramíneas, o que confere um aspecto muito alegre à casa. Apesar de precederem

as mesmas, no sentido de quem chega pela via de acesso principal, parecem

intocados; diríamos que se trata de espaços reservados, pois a circulação das

famílias se faz por uma entrada lateral, havendo até aqueles que são cercados, para

evitar que galinhas venham a ciscar ou animais transitem, estragando as plantas.

A área de circulação, sempre associada à porta da cozinha é, no

geral, coberta com gramíneas. Gramar a área de circulação é uma forma de manter

um tapete vivo à porta de entrada, cuja conservação é difícil, especialmente em dias

chuvosos. Na terra roxa, o solo argiloso acaba formando placas de barro nos

calçados que, em não se tomando os devidos cuidados, são levados para dentro de

casa, para desespero das mulheres, que valorizam ao extremo a arrumação da casa,

ao contrário dos homens.

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Essa característica do solo faz com que algumas famílias instalem à

porta de entrada um acessório adicional: um raspa-pés, construído com uma fina

régua de metal disposta na horizontal, apoiada nas duas extremidades por suportes

que conferem um vão livre de aproximadamente 30 cm e uma altura de mais ou

menos 10 centímetros do chão. Assim, antes de adentrar a casa, esfregam-se os pés

aí até que o barro seja removido, completando-se a limpeza passando os pés na

grama.

O forno de barro, com formato do tipo iglu ainda é comum. Com

freqüência, está localizado a uma certa distância da casa, protegido por um

pequeno coberto de telhas. O curioso é que nas comunidades onde as casas estão

próximas umas das outras, há menos fornos que moradias. Isso porque o seu uso

acaba sendo comunitário e às vezes até coletivo. Comunitário quando cada um o

utiliza para assar os pães e bolachas em dias diferentes; coletivo quando as

mulheres de mais de uma casa o utiliza ao mesmo tempo, para “aproveitar” o calor.

Em geral, essa prática se faz no interior da mesma família, juntando-se cunhadas,

sogra etc. Na foto a seguir, vemos o forno sendo usado para assar pães.

Foto 19 – Pão no forno

Cumpre salientar que nem sempre o forno de barro é o mais usado

para o preparo de tais alimentos, já que o fogão a gás tem seu lugar garantido em

praticamente todas as casas. Assim, a rapidez e a eficiência do forno a gás tem

provocado a substituição parcial do primeiro.

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Muitas casas contam com duas cozinhas, uma do lado externo,

geralmente ampla e semi-aberta, onde fica o fogão à lenha, onde se cozinha alguns

alimentos e a mesa onde a família faz as refeições. É ali também que se recebem as

visitas informais, pois a comida faz parte do ritual de bem receber. Na foto a seguir,

podemos observar o fogo aceso para o preparo do café da tarde.

Foto 20 - Fogão à lenha

Entre o fogão a gás e à lenha há um uso articulado: para os

procedimentos rápidos, utiliza-se o primeiro, sendo que o fogão à lenha é usado

para os alimentos que fazem mais sujeira ou exigem maior quantidade de calor,

como feijão, doces e frituras, bem como tarefas mais pesadas e ocasionais como

torrar café. Para fazer sabão, ferver água para limpar as criações abatidas e

providenciar o seu pré-cozimento, quando é o caso, normalmente se improvisa um

terceiro fogão, em local distante da casa e próximo da lida.

Nas visitas, não pudemos deixar de observar o quanto são fartas as

mesas dos camponeses, mesmo daqueles que dispõem de pouca terra.

Encontramos famílias proprietárias de até cinco hectares divididas entre o café, as

pastagens e os cultivos para o consumo. A escassez de terra os obriga a um arranjo

um pouco diferenciado da propriedade, onde o cultivo intercalar é amplamente

utilizado.

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Nas partes mais baixas vamos encontrar o cultivo do arroz, que

requer áreas mais úmidas, assim como as pastagens, onde podem se contar

algumas criações, animais de tração e vacas de leite. Esses animais são aquilo que

podemos denominar pecúlio camponês. As vacas porque garantem não só o leite,

mas uma cria anual, que pode ser vendida sempre que houver uma necessidade

súbita de dinheiro. No entanto, o pasto insuficiente obriga os camponeses a um

controle permanente do rebanho, o que igualmente se aplica aos animais de tração,

que raramente ultrapassa um eqüino ou muar, o suficiente para as tarefas

corriqueiras da roça.

Entre os camponeses, o critério utilizado para avaliar o sucesso ou

o fracasso dos cultivos é nada mais que a possibilidade de satisfazer as

necessidades de consumo da família. No limite, a fome é o que representaria esse

divisor de águas. É por isso que não raciocinam tendo por base a última colheita.

Primeiro porque a alimentação básica é assegurada pela colheita

anterior. Diferentemente da maioria dos trabalhadores urbanos, cuja parte

ponderável da renda mensal é utilizada para saldar os débitos efetuados com

alimentação no mês trabalhado, ou na melhor das hipóteses, é utilizada para

comprar aquilo que será consumido nos próximos 30 dias, o camponês trabalha

com outra referência de tempo.

Para produzir o seu alimento, há um ciclo a ser observado: entre

todas as etapas envolvidas no processo, desde o preparo da terra, espera da chuva

para plantar, maturação e espera de tempo climático propício para colher, leva-se

até seis meses, no caso das lavouras temporárias e até vários anos para extrair a

primeira colheita das lavouras permanentes. Isso implica em uma inversão da

lógica de reprodução, pois não se trabalha para comer, mas se come para trabalhar

e assim garantir o alimento na próxima estação. Não obstante, deve-se contar com

a frustração das colheitas, o que implica em armazenar para além da quantia a ser

consumida num único ciclo.

Aqui eu só vendo as sobras, o que eu ponho dentro de casa que é para o gasto, isso aí não tem dinheiro que paga.... depois ia ter que trabalhar para comprar. Então a gente guarda o arroz em casca, limpa quando precisa e o feijão guarda com a munha, que é para não carunchar. O fubá tem que comprar pronto porque não tem nenhuma máquina por perto para fazer com o milho da gente. Então o milho é só para as criações, mas você vai ver, o paiol está cheio mesmo. Eu não crio porco para venda, mas para o gasto eu sempre tenho. Então a vida do lavrador é colher, vende as sobras porque o que é para o gasto tem que tirar primeiro e guardar. Ás vezes chega no fim do ano um vizinho precisa, aí eu empresto, eu dou, eu compro ou eu vendo, colhendo de novo aí a gente acerta. A vida aqui

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é dura, mas é melhor do que aqueles que estão na cidade, não para todos, não é?77

Cremos que esse relato sintetiza a lógica que preside o

funcionamento do sítio: a satisfação das necessidades de consumo da família está

em primeiro lugar e, sempre que possível, será assegurada internamente. Notamos

que o depoente acentua a dificuldade de obter os alimentos no mercado, pois isso

implicaria em sobrecarga de trabalho, naturalmente em função dos preços que se

teria que pagar por eles.

Por fim, observamos que a sua referência de tempo é construída em

torno do ano agrícola, a partir do qual é elaborado o planejamento que preside a

organização produtiva da unidade. Notemos que esse planejamento contempla

necessidades de consumo que extrapolam os limites da unidade doméstica e se

inscreve no circuito da ajuda mútua. Ou seja, há um estoque extra para o caso de

algum vizinho precisar, sendo que os acertos igualmente são feitos de acordo com o

ciclo das colheitas e calculados em espécie. Desse modo, mesmo que realizados em

dinheiro, a referência é o preço ao produtor, e não os preços praticados na cidade.

Portanto, o fundo de reserva, sobretudo alimentar, é indissociável

da lógica camponesa. Onde o solo é fértil, notamos que o critério de segurança

alimentar é mediado pela fartura. O feijão é armazenado com a palha, a munha a

que se referiu nosso interlocutor, mas não admite longa estocagem. É por isso que a

cada ciclo agrícola ele é cultivado, sendo os estoques mais antigos convertidos em

semente. Na seqüência, pode-se observar o feijão recém colhido secando ao sol. Na

parte mais alta está a lavoura de café, com plantio intercalar de mandioca. Na parte

mais baixa vemos o milharal e entre esses, algumas ruas de cebola e alho, pés de

quiabo e pimentão.

Foto 21 – Espaço camponês

77 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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O fato do feijão comparecer como alimento obrigatório à mesa

camponesa faz com que muitos cultivadores não procedam ao plantio de uma única

vez, pois a insuficiência ou excesso de chuvas poderia comprometer a colheita, logo,

a provisão para o ano agrícola. Daí o costume de efetuar a semeadura em etapas,

com intervalo de alguns dias entre elas. Além de minimizar os efeitos de possíveis

intempéries, isso desconcentra a colheita, sendo possível fazê-lo somente com a

força de trabalho da família.

A retirada da casca do feijão pode ser feita manualmente ou em

máquinas; no primeiro caso, o mesmo deve ser disposto no terreiro, onde se bate

com uma vara até a separação dos grãos; atualmente, aqueles que possuem

automóvel ou trator estão abreviando esse procedimento; para tanto, basta passar

sucessivas vezes sobre o feijão que todos os grãos se soltarão.

Quanto ao cultivo do milho, se guardado em espigas também

admite longa estocagem, sobretudo porque os camponeses já recorrem a métodos

que garantem a sua conservação. Um deles é a adequação dos paióis, agora

construídos suspensos por tubos de PVC, que impedem o acesso dos roedores e o

outro, a pulverização das espigas com substâncias anti-carunchos. Os estoques são

manejados de acordo com o tempo de estocagem, sendo consumido sempre o milho

mais antigo. Via de regra, a cada colheita, os paióis são abarrotados e só então será

destinado o restante ao mercado.

Isso aqui é a minha poupança, eu nunca deixo faltar. Quando chega o milho novo, a gente primeiro enche o paiol, o que sobra é que a gente vê o que vai fazer. Pois veja você, eu não sei quanto vai dar a próxima colheita e não posso ficar sem milho nunca, porque se faltar, como é que vão ficar as criações?78

Apesar de bastante depreciado no mercado em relação aos demais

cereais, o milho é um fundo de reserva importantíssimo, pois garante a alimentação

das criações, geralmente dos porcos e galinhas. Apenas eventualmente destinadas

ao mercado, essas criações são as fontes básicas de carne consumida

internamente, principalmente quando se trata das famílias mais empobrecidas, que

não dispõem de terra suficiente para a manutenção de bovinos para o provimento

de carne.

Já o arroz dura anos, desde que em casca. É a sua retirada que

permite a deterioração, razão pela qual o beneficiamento é feito sempre em

78 A.: Água da Marrequinha - Londrina.

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pequenas quantidades, em máquinas beneficiadoras na cidade ou, eventualmente,

no pilão. Via de regra, entre as culturas de excedente, o arroz é o que alcança as

condições mais insatisfatórias de comercialização, sendo generalizada a idéia de

que não “compensa” vendê-lo. Esses dois fatores explicam porque nem sempre se

encontrará ciclos sucessivos dessa lavoura na mesma propriedade, pois diante de

boas colheitas e preços pouco atrativos, tende-se a conservá-lo para o consumo

interno, e só será cultivado novamente com o estoque baixo. Enquanto isso, a terra

é destinada a outra finalidade ou, se cultivado na várzea, essa ficará em pousio

para a recuperação natural da fertilidade.

Entretanto, o cultivo de arroz de várzea tende a recuar, já que a

legislação ambiental no tocante à recuperação das matas ciliares começa a ser

implementada. São 30 metros a contar das margens dos córregos e 50 metros das

nascentes que devem ser destinados à preservação permanente, estando

interditados a qualquer tipo de uso, sendo permitida apenas a criação de corredores

que permitam a chegada do gado até a água.

Em muitas propriedades, essas áreas, antes destinadas ao arroz, já

se acham cercadas e começam inclusive a dar sinais de regeneração da vegetação.

Apesar da falta de terra, a interdição de uma área preciosa é aceita com resignação

e, em alguns casos, até com uma certa expectativa de vê-la novamente

transformada em mata.

Esse mesmo córrego que passa aqui, passa lá na frente daqueles eucaliptos, onde era a fazenda que eu morava. Há uns 30 anos, na beira dele, eu me lembro muito bem que só tinha três pés de árvore nativa e o resto era plantação. Eu não sei há quantos anos uma faixa na beira do córrego foi abandonada e o que eu sei é que hoje tem uma mata fechada, linda, até parece que nunca foi mexida. Aqui também vai ficar assim, porque é só o gado não pisar e ninguém mexer que a área vai recuperando. A gente sabe que tem que fazer isso se quiser que os filhos e netos continuem vendo essa água aí.79

Essa ponderação, muito mais rara entre os capitalistas, explica-se

pelo fato de que a classe camponesa se recria a partir da manutenção da terra de

trabalho. Diferentemente dos primeiros, para os quais o uso predatório dos

recursos pode e é compensado pela mobilidade patrimonial e territorial, os

camponeses sabem que a autonomia futura depende da preservação dos recursos

presentes. É isso que lhes impõe uma relação menos predatória com o ambiente,

faltando-lhes mais orientação do que disposição para fazê-lo a contento.

79 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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Portanto, a tradição ainda é uma das variáveis que mais contribuem

para a ordenação geográfica do espaço produtivo camponês, o qual conserva um

padrão peculiar: na parte mais alta do sítio se privilegia a lavoura comercial e, na

parte mais baixa, da moradia até o limite da propriedade, o uso da terra tem como

finalidade maior o consumo familiar. Ao redor das casas vamos encontrar os

pomares, onde praticamente há fruta o ano inteiro, em virtude da variedade

cultivada. As frutas mais comuns são mamão, banana, manga, abacate, jabuticaba,

goiaba e citros.

Encontramos também as hortas, que obedecem a um ciclo

articulado às estações do ano. Nos meses quentes, as folhagens são menos

presentes, pois o calor excessivo interfere no seu desenvolvimento e qualidade. Do

final do outono ao início da primavera, quando as temperaturas são amenas,

muitas delas são exuberantes, em quantidade muito superior à capacidade de

consumo da família. Para essa produção excedente, um destino comum: a

distribuição a quem quer que venha visitar a propriedade.

Nós não vamos plantar para vender, é só para o gasto...quer dizer, eu falo pro gasto mas é para sobrar um pouquinho que aí vem um mano da cidade, vem e leva. Todo mundo que vem aqui leva, é alface, repolho, couve, é batata...tem uma mandioca boa...todo mundo leva. É aquilo que eu falei, claro que a situação é difícil, mas com aquele mandiocal...com tudo isso ninguém passa fome...80

Como se pode observar, não se trata de sobras, mas de um

dimensionamento da produção que assegure uma reserva a ser distribuída. Esse é

um dos canais em que a cordialidade camponesa mais se manifesta: é muito difícil

deixar um sítio camponês com as mãos vazias e somos testemunhas disso: frutas,

verduras, feijão, café, mandioca, ovos, queijo, doce de leite, vassoura, sabão nos

foram dados em abundância durante a pesquisa de campo.

Outra presença comum nos quintais são as galinhas caipiras. Não

raro, o terreiro conta com dezenas delas, sempre a cantarolar. Essa é uma pista

para se localizar onde estão os ovos, já que, a cada postura, segue-se uma

verdadeira sinfonia. Contudo, dependendo dos tipos e disposição dos cultivos, a

criação solta é inviabilizada, pois essas aves costumam fazer estragos. Nesses casos

costumam ser mantidas em cativeiro, porém em menor número, pois os custos com

alimentação aumentam. Por fim, quando se desenvolve a avicultura, as galinhas

caipiras não são permitidas, pois o fato de serem mais resistentes pode transformá-

80 G. e S. : Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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las em vetores permanentes de contaminação do aviário.

Em havendo criação de suínos, as instalações são afastadas da

residência, em geral mais ao fundo do sítio. Os caipiras são absolutamente

predominantes, uma vez que a sua criação implica na produção de carne a um

custo muito baixo, já que as sobras da horta e da roça fazem parte de sua

alimentação.

A gente cria o porco caipira, faz questão de conservar, embora na hora de vender vende até mais barato porque aquele de granja tem mais carne...a gente faz questão de criar ele porque se tem a horta, você planta abóbora, aquela que você não come, não utiliza, você não vai deixar perder, o porco caipira come. Aquele repolho que eu te mostrei, as folhas você dá para eles e eles comem e o porco de granja não come. Então o porco caipira aproveita todos os restos de mantimentos, da horta, tudo o que se planta na roça ele come os restos. O de granja não, ele só come mesmo a ração preparada e para nós aqui que é mais pro gasto e menos para vender é mais interessante o caipira...é para não perder nada, tudo aquilo que você mexe é para não perder.81

Assim, observamos que seus criadores explicitam bem mais do que

a necessidade de incrementar o cardápio da família. No sítio camponês, o porco

caipira entra na cadeia produtiva como um “reciclador” vivo, que permite aproveitar

todas as sobras de alimentos. São nessas práticas que a extrema parcimônia ante

os recursos se manifesta, sendo que nem mesmo a abundância é capaz de levá-los

ao esbanjamento. Esse é, sem sombra de dúvida, outro traço que confere

singularidade à classe camponesa. Enfim, é essa lógica que preside a ordenação

interna do sítio. Vimos que os anos fartos alimentam o ciclo da comercialização de

excedentes, pois os estoques de segurança são inalienáveis, a não ser em situações

de extrema vulnerabilidade econômica da família.

Com exceção das unidades que sobrevivem da comercialização

diversificada, alguns alimentos estão fora da lógica do excedente, sendo produzidos

exclusivamente para a família, como é o caso do amendoim, batata doce, mandioca,

frutas, verduras e pequenas criações.

O mesmo se dá com o leite, nas unidades que não fazem dessa uma

atividade comercial. Nesses casos, conservam-se poucas vacas, apenas para

garantir o suficiente para o consumo in natura ou transformado. Nos períodos em

que o potencial de produção é superior à capacidade de consumo, ganha-se com a

melhor alimentação dos bezerros, que acabam se desenvolvendo mais rápido.

Aquilo ali é uma pequena área, mas tem feijão, tem mandioca, tem café, tem cebola, tem alho, tem abóbora, ali na horta tem repolho,

81 S.: Água do Cardoso – Bela Vista do Paraíso.

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tem pimentão, tem ovo, tem porco, tem o ranchinho onde a gente cria frango. Então eu falo, a gente tem em primeiro lugar que aprender a gostar daquilo que produz porque senão não vai adiantar. Então nesse caso vai plantar por plantar e vai comprar comida? Conta em sacolão eu não faço não. ... eu adoro até a própria serralha [erva nativa], que eu carpi esses dias, que nasce sozinha, ela faz até bolinho de serralha....assim quando ela está novinha é como se fosse uma alface, quando ela fica mais velha, ela costuma pegar ela e picar, ela bate e mistura para fazer um bolinho, frita, a gente adora. Então eu gosto de um repolho, quiabo, quando é época de quiabo isso aí enche de quiabo. [...]Olha, eu faço todo dia de quatro a cinco misturas no almoço e na janta, eu falo pra eles, ah! é de graça mesmo, mistura tem que fazer não é? Até esses dias atrás tinha três vacas dando leite, era toda semana 3 ou 4 queijos, que é um alimento! Um queijo você come a semana inteira, de manhã um pedaço de queijo no café. Se um dia você for na cidade, aí é que você vai lembrar como isso é importante, aqui é qualquer hora beliscando...quer dizer, isso é o campo...82

Como se pode observar, o acesso à terra pode assegurar a existência

completa da família, embora nem todas optem por cultivar todos os itens que

compõem a cesta de consumo. Conforme indicamos anteriormente, essas opções

resultam das conveniências de cada família, contribuindo para isso os níveis de

renda e a dinâmica demográfica interna.

O fato de conservarem a potencialidade de produzir por si próprios

os meios de vida, através do trabalho que se materializa na produção, talvez

explique a valorização da fartura e a concepção quase que ritual do alimento. Na

foto a seguir, todos os alimentos que estão à mesa foram produzidos no próprio

sítio: arroz, feijão, alface, pimentão, tomate, lingüiça, ovos e queijo.

Foto 22 - Autosuficiência alimentar

82 S. e G.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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Raramente se poderá sair de uma casa camponesa sem almoçar ou

tomar um farto café, acompanhado de queijo, bolachas, pão, doce-de-leite, tudo da

produção doméstica. Refeições essas em que a maioria dos ingredientes é extraída

do quintal e da lavoura.

Nesse sentido, não se pode associar o café à propriedade pequena

apenas pelo seu caráter comercial. Essa bebida é o símbolo maior da cordialidade

camponesa e não aceitá-lo é quase que uma indicação de que o visitante não está

aberto à reciprocidade. E até no sabor, trata-se de um café diferenciado, pois para

além do simbólico, os processos que o envolvem são basicamente artesanais e

materializam o trabalho de todos os membros ativos da família.

Após a colheita, o café vai para o terreiro, até a completa secagem.

Por estar entre os trabalhos considerados “leves”, esse processo geralmente envolve

os membros da família de menor vigor físico, como crianças e idosos, que se

encarregam de revolvê-lo várias vezes ao dia para uma secagem homogênea,

juntando-o em montes sempre ao final da tarde ou diante da ameaça de chuva.

Dependendo da escala de produção, no terreiro são dispostos vários lotes, de acordo

com a retirada da roça, sendo que aqueles que o manejam sabem perfeitamente

diferenciar o “ponto” de secagem.

Uma vez seco, o mesmo suporta estocagem bastante prolongada,

outra característica que o torna atrativo para os camponeses. Entre os mesmos, o

café é visto como uma poupança, à qual vão recorrendo à medida que precisam

satisfazer as necessidades monetárias. Como vimos, em um passado mais remoto,

essa estratégia foi responsável pela transformação em massa de porcenteiros em

sitiantes.

Atualmente, os ganhos deprimidos não estão permitindo

empreendimentos dessa natureza, ainda que a estocagem do produto seja uma

constante. Durante o trabalho de campo, notamos a comercialização habitual de

café, apesar da ausência de colheita em virtude da devastadora geada ocorrida no

ano anterior. Os camponeses sabem através da experiência que tanto os eventos

climáticos mais rígidos quanto os preços são cíclicos e se preparam para eles,

sempre que possível, através da reserva em espécie.

Da parte retida para o consumo, o passo seguinte é o

beneficiamento. Apesar de predominar o recurso às máquinas beneficiadoras,

mediante o pagamento por saca limpa, ainda é possível encontrar famílias que o

fazem em pequenas máquinas manuais ou mesmo pilão.

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Após o beneficiamento, o café é torrado, sendo generalizado entre os

camponeses a utilização de torrador manual. Esse utensílio consiste numa esfera

com capacidade média de 5 litros, acondicionada em um suporte que possui uma

manivela a ser girada ininterruptamente enquanto o café estiver sobre a chama do

fogão à lenha. Torrar o café é uma tarefa delicada, porque o sabor da bebida é

totalmente influenciado pela intensidade e duração da exposição ao calor.

Essa é uma tarefa preferencialmente feminina e geralmente

reservada a uma pessoa apenas, geralmente a mãe, que já possui experiência em

fazê-lo. Normalmente, a quantidade torrada é dimensionada para um consumo de

poucas semanas, para não perder a qualidade. Torrar o café é quase um rito, para o

qual a pessoa se programa, reservando lenha e escolhendo dias e horários

“folgados”, pois a tarefa não pode ser interrompida. Além disso, face ao intenso e

prolongado calor a que se expõe, é costume o resguardo por algumas horas para

evitar choques térmicos.

Depois de torrado, o café vai para um pequeno moinho manual,

sendo comum moê-lo em pequena quantidade, para consumi-lo sempre fresco.

Enquanto a torração é feita quinzenalmente, podendo ser mensal caso o consumo

seja baixo, moer o café é uma tarefa diária, na qual em geral se revezam as

mulheres da casa. Quanto mais curto for o tempo entre esse procedimento e o

preparo final, mais saborosa será a bebida.

Diríamos assim que o café é um dos símbolos da produção

doméstica, já que a família detém o controle de todas as etapas do processo. Nele, a

imbricação entre o saber e o fazer atende a uma demanda interna de consumo, já

que a produção para o mercado se faz com o produto “em coco”.

Esse é apenas um indicativo da manutenção de certas produções

artesanais que muitos sequer imaginam que persiste no campo. O ralador de

cozinha é um desses utensílios. Para fabricá-lo, abrem completamente uma lata de

l8 litros, que recebe centenas de furos com um prego, cuidadosamente dispostos

um ao lado do outro. Feito isso, invertem a folha e as extremidades são pregadas

em uma tábua do mesmo tamanho, estando pronto o utensílio: “Eu não gosto

daquele ralinho comprado. Pra fazer doce de mamão e ralar mandioca para fazer

farinha aquele não serve. Agora com esse é fácil, sai rápido porque ele é grande.”83

Outra prática comum é a produção do sabão. Encontramos os mais

diversos tipos de sabão caseiro e raramente o costume de comprá-los. Os que têm

83 E.: Água da Marrequinha - Londrina.

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criação, utilizam as vísceras dos animais abatidos, tanto os suínos quanto os

bovinos. No caso de frangos de granja, utilizam a gordura.

Acha que a gente vai jogar fora? A gente tem o costume de aproveitar tudo, aqui não pode desperdiçar nada. Trabalho dá, mas fica um sabão que você precisa ver. Roupa na roça suja muito e o sabão da cidade não limpa e é muito caro, então, pra quê que a gente vai comprar?84

Encontramos sabão de abacate e até sabão de óleo comestível já

utilizado. Esses são menos trabalhosos, porque não precisam ir ao fogo, mas

causam estranhamento e até acidentes quando são introduzidos.

Eu aprendi a fazer sabão de óleo outro dia, mas achava que o que queimava no outro era a quentura, por causa do fogo. Quando acabei de bater, coloquei as mãos dentro para despejar certinho nas caixas e nem me lembrei da soda. O que me salvou foi que tinha leite em casa e eu deixei as mãos mergulhadas por bastante tempo, até a queimadura passar...nem a pele da mão saiu. 85

A manutenção da produção artesanal estende-se inclusive a

produtos alimentícios hoje produzidos estritamente em escala industrial.

Surpreendemo-nos em uma propriedade ao nos depararmos com uma mesa forrada

por uma toalha e coberta com macarrão. “É para enxugar, senão embolora.

Trabalhoso é, mas quando não tem muito serviço na roça, dá para fazer...”86

Não obstante, muitos alimentos e objetos da produção doméstica

adquirem um caráter comercial, sendo responsáveis pelo ingresso da renda

monetária na unidade camponesa. Nesse sentido, poderíamos dizer que, no Norte

do Paraná, a indústria artesanal doméstica é expressiva, embora se trate de uma

produção pequena, normalmente restrita ao mercado local.

Dados da EMATER apontam a existência de 249 pequenas fábricas

envolvidas no processamento artesanal de alimentos, sendo mais comuns as de

queijo, doces, açúcar mascavo, melado, rapadura, aguardente, vinho e farinha de

mandioca87. Lembramos que esses dados se referem apenas àquelas localizadas no

campo e que processam alimentos para comercialização, o que nos indica que a

indústria camponesa vai mais além, pois o processamento de alimentos para o

consumo da família, como vimos, é marcante, bem como a produção de artefatos,

havendo aqueles que também têm um caráter comercial, porém de circulação

84 D.: Colônia Mantovani - Cambé. 85 E.: Água da Marrequinha - Londrina. 86 M.: Bratslawa - Cambé. 87 Dados Extraídos do Relatório Realidade Municipal, EMATER, 2001.

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restrita ao campo, como é o caso de balaios.

No caso do queijo, são 154 fábricas com produção média anual de

257 toneladas. Isso representa menos de 5kg dia por unidade produtora, o que nos

dá a dimensão da pequena escala de produção dessa indústria doméstica,

normalmente articulada a uma freguesia permanente na cidade ou cidades mais

próximas. Entre os derivados do leite, a produção comercial de queijo é a mais

expressiva, e tem maior destaque na área do arenito, onde predomina a pecuária

leiteira entre os camponeses. Desse modo, não deixa de ser expressivo o número de

famílias que incrementa a renda ou sobrevive da sua produção e comercialização

direta. Aqueles que se dedicam a essa produção nos mostraram que essa tem sido

uma alternativa aos baixos preços pagos ao leite pela indústria88, sendo que muitas

vezes a combinam com a comercialização do leite in natura. Entretanto, vimos que

essas atividades estão sendo alvo de cerceamento, o que desenha um cenário pouco

promissor para sua manutenção nesses termos.

Entretanto, o doce-de-leite pode e tem surgido como alternativa, já

que o cozimento prolongado diminui os riscos comuns ao consumo do produto in

natura. É evidente que mesmo essa opção supõe uma produção restrita e marginal,

pois a mesma é passível de problemas com a fiscalização, ainda que muito se fale

em agregação de valor para a produção camponesa.

Ainda assim, a produção de doce-de-leite é bastante importante:

ainda que não possamos precisá-la, já que os dados tomam em conjunto a

produção de doce-de-leite com a de compotas, contamos a existência de 32 fábricas,

com uma produção média diária de cerca de três quilos por unidade produtora. É

evidente que as médias aqui apresentadas ocultam os extremos, havendo fábricas

de doce-de-leite que já cresceram a ponto de buscarem registro na Secretaria de

Saúde, ainda que os métodos de produção tenham se mantido em bases totalmente

artesanais.

Tivemos a oportunidade de conhecer uma dessas minifábricas, na

qual o doce é produzido em dois grandes tachos colocados sobre um fogão à lenha

tradicional. Ao leite é adicionada uma determinada quantia de açúcar, sendo

mexido manualmente com uma espátula de madeira até alcançar a consistência

adequada à produção em pasta ou em barra. O equipamento mais sofisticado do

processo é uma batedeira, utilizada na seqüência para batê-lo até alcançar o

“ponto”. Para a produção do doce em barra, utilizam-se formas igualmente

88 Em 2001, cada queijo produzido com cerca de 6 litros de leite era vendido a cerca de R$ 3,00.

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artesanais. Todo o processo é realizado pela família, com exceção da venda, que é

feita por um vendedor externo.

Quanto às fábricas menores, o esquema de venda do doce difere da

do queijo, já que não há regularidade no consumo, como no primeiro. Desse modo,

a sua venda requer uma circulação maior, envolvendo mais que uma cidade,

quando pequena. A baixa renda que a atividade proporciona89 obriga os

camponeses a se deslocarem de ônibus, o que é feito uma ou duas vezes na

semana, inclusive para evitar a sobrecarga àqueles que se dedicam às demais

atividades na propriedade.

Por outro lado, essas pequenas fábricas que processam apenas o

leite produzido internamente, tendem a apresentar uma sazonalidade maior da

produção, já que, no período das águas, o volume de leite aumenta, ainda que os

camponeses estejam investindo em alimentação suplementar para o rebanho no

período de estiagem. Mesmo para aquelas de maior porte, que já captam a matéria

prima fora, é difícil manter a regularidade da produção ao longo do ano, pois seus

fornecedores são os camponeses do entorno, que também possuem recursos

limitados para garantir a produção estável ao longo do ano.

Não obstante, os camponeses fornecedores de leite e esses pequenos

fabricantes desenvolvem uma relação quase que simbiótica, já que estes chegam a

pagar mais que o dobro dos preços praticados pelos laticínios na região, absorvendo

uma produção que os primeiros encontram dificuldade para colocar diretamente no

mercado informal. A nosso ver, essa complementaridade é fundamental para a

viabilização econômica de ambos.

Quanto ao vinho, na região estudada, há nove indústrias

artesanais, com uma produção anual média de 1.500 litros cada. Relataremos

brevemente a histórias de duas delas, a fim de ilustrarmos como o processo de

recriação camponesa é dinâmico, na medida em que combina tradição com

estratégias inovadoras, sempre que as condições de produção assim o exigem.

A primeira delas surgiu há dois anos, em uma propriedade

tradicionalmente voltada à produção comercial de uva de mesa, embora combine

essa com uma série de atividades, como lavouras mecanizadas, café, avicultura e

produção de alimentos para o próprio consumo. Ocorre que os cachos menos

graúdos ou irregulares acabavam se transformando em alimento para as criações,

por não serem aceitos no mercado. Para aproveitá-los, a família se lançou na

89 Em 2001, o preço médio alcançado por quilo de doce de leite era de R$ 2,00.

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produção de vinho, atividade que os genitores desenvolviam no passado em escala

estritamente doméstica.

Trata-se de uma produção totalmente artesanal que foi iniciada a

título de experiência, sendo a bebida envasada em litros ou garrafões e vendida aos

vizinhos e conhecidos. Não obstante, a grande aceitação do vinho animou a família

a ampliar a produção, inicialmente de cerca de 400 litros anuais. Para isso,

erradicaram a uva Itália, desvantajosa em relação a outras variedades, como a

benitaca e a rubi, plantando no lugar variedades adequadas à produção vinícola.

Como se pode observar, essa estratégia lhes permitirá um aumento da renda,

inclusive porque os rejeitos da produção comercial continuarão a ser utilizados.

A outra fábrica visitada funciona desde 1964, e a produção anual é

de cerca de 1.000 litros e já se encontra a cargo da segunda geração de produtores.

Trata-se de uma propriedade igualmente diversificada, com café, lavouras

mecanizadas e de autoconsumo. São 136 pés de uva em produção, mais 330

plantados há dois anos, com vistas ao aumento da produção.

Trata-se de uma fábrica igualmente artesanal, na qual os

equipamentos foram projetados e construídos por eles próprios, com base em

adaptações. Aliás, as adaptações e invenções são comuns para facilitar o trabalho

camponês, notadamente aquelas que acoplam motores a determinados utensílios

manuais. No caso em questão, para amassar a uva, começaram com uma prensa de

madeira manual. Posteriormente, essa foi substituída por um pequeno cilindro de

pão, que acabou sendo melhorado com ranhuras para evitar que o mesmo

“patinasse” com a uva. Por fim, a esse acoplaram um velho motor de máquina de

lavar e prometem novas invenções quando a nova lavoura entrar em produção.

Nós bolamos o cilindro para funcionar à mão, depois nós inventamos de pôr o motor e é mais rápido, 50 a 55 quilos de uva é a base de sete minutos para amassar, então é uma facilidade. A hora que essa aqui começar a produzir, a gente vai ter que bolar uma coisa maior. Foi meu vizinho que deu a idéia, ele me deu o motor para experimentar, funcionou e aí eu comprei dele. No cilindro eu coloquei uma polia de plástico e não agüentou, espanou toda a rosca. Agora eu estou bolando, já arrumei uma polia de alumínio e estou vendo um jeito de por essa no cilindro, porque aí não vai dar mais problema.90

Amassar a uva é a primeira etapa do processo de produção, que

acontece em dezembro, concomitantemente à colheita. Após descansar cerca de

uma semana juntamente com o bagaço, é feita a primeira filtragem, sendo o bagaço

90 N.: Centenário do Sul.

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aproveitado para a produção de vinagre91. O suco é depositado em cartolas de 100

litros, juntamente com uma determinada quantia de açúcar, devendo passar por

mais três filtragens a um intervalo de 30 dias cada. Um quilo de uva somado à

adição de açúcar rende cerca de 700 ml de vinho.

Nessa fábrica, apesar da produção maior, o sistema de

comercialização é igualmente doméstico: os consumidores são, em sua grande

maioria, moradores da cidade, que vem pessoalmente até a casa/fábrica doméstica

buscar o vinho ou o vinagre, devendo trazer o vasilhame. É importante destacar que

o vinho não é envasado na hora, mas o vasilhame cheio deve ser trocado por um

vazio, havendo uns poucos litros ou garrafões cheios, os quais são repostos à

medida que são vendidos. Aqueles que vêm comprá-los deixam o vasilhame

equivalente ao que levam, para que a família não tenha que efetuar gastos nesse

sentido. Quando são pessoas de fora da cidade, é cobrado um preço ligeiramente

superior, que permita a reposição do pequeno estoque.

O projeto de ampliar a produção tem razão de ser: além de

acessível, trata-se de uma bebida de sabor inigualável, por ser totalmente pura.

Dá uma rendinha, mas não é ruim não, esse ano deu 1.060 litros a dois reais, tem o açúcar, o trabalho da gente, mas sempre um lucrinho deixa. [...] eu começo a vender vinho na semana santa, para a páscoa. Na metade do mês de junho já acabou tudo, vem até gente de longe buscar, um é dez, o outro é trinta, o outro quando quer já não tem mais. Todo mundo vem em casa buscar, a gente não sai vendendo.92

Como se pode observar, os camponeses estabelecem um preço com

uma modesta margem de ganho, que assegure a remuneração do trabalho de

acordo com o seu parâmetro do que é justo. É por isso que esse vinho é vendido a

um valor irrisório, se comparado àqueles disponíveis no mercado de igual

qualidade93.

O mesmo critério pode ser observado numa pequena fábrica

doméstica de rapadura, recém instalada:

A nossa rapadura tem um preço simbólico ainda, cinqüenta centavos a peça. Estamos vendendo barato, mas em grande produção, dá para tirar alguma coisa. Eu faço quatro tachos por dia, dá umas 100 peças. No mercado eles estão revendendo a oitenta

91 Esse também é vendido ao preço de R$ 1,00 o litro. 92 N.: Lupionópolis. 93 Em 2001, tanto o produtor de Cambé quanto o de Lupionópolis vendiam o vinho a um preço que variava de R$ 2,00 a 2,50 o litro, de acordo com o tamanho da embalagem.

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centavos, porque eles pegam barato, não é? Então, se a gente conseguir vender a oitenta centavos já está bom...94

Cumpre destacar que essa é uma atividade com a qual os mesmos

estavam familiarizados, já que os pais produziam e comercializavam rapadura no

passado. Para a instalação da fábrica, o investimento foi mínimo, pois com exceção

da cobertura e do fogão à lenha no lado externo da moradia de um dos irmãos, o

restante foi reaproveitado da fábrica antiga ou adaptado. O saber, imprescindível

para o sucesso da produção, foi passado do pai para os filhos, embora os mesmos

tenham recebido orientação da EMATER.

Para saber o ponto da rapadura tem que tirar na água, eu não deixo ficar empedrada, eu dou um ponto mais fraco que é para ela ficar macia. Cada um tem um sistema, se for para transportar para longe aí vai ter que dar um ponto mais firme, senão ela quebra.95

Quanto à comercialização, predomina a venda direta na cidade e

mesmo de muitos que vêm comprá-la na propriedade. O projeto é diversificar a

produção, passando a produzir açúcar mascavo, o qual deverá ser entregue a uma

empresa que atuaria como atravessadora, já que a mesma também comercializa

esse produto. Outra unidade produtora de rapadura apela para a diferenciação do

produto, igualmente a partir de uma invenção própria:

Estava difícil vender a rapadura e um dia eu tive uma idéia: fazer ela igual queijo em nozinhos. Aí eu fui tentando um jeito até que deu certo. Eu peguei umas tábuas e fiz um tabuleiro com pés e enchi ele de furos, quando a rapadura está no ponto, a gente despeja em cima dele, a rapadura passa nos furos e conforme vai pingando vai formando os nozinhos embaixo. Como é diferente, o povo compra.96

Como vemos, para se manter no mercado, algumas vezes é preciso

inovar, sobretudo se considerarmos que esses camponeses negociam sua produção

artesanal em cidades pequenas, onde o mercado consumidor é restrito,

especialmente em virtude do baixo poder aquisitivo da população. Outros

produtores adotam um ritmo intermitente, ativando e desativando a fábrica de

acordo com as respostas do mercado. Em outras palavras, quando os consumidores

perdem o interesse, paralisam a atividade por um determinado período, retomando-

a quando voltam a procurar o produto.

Por fim, há aqueles que a produzem sazonalmente. Em uma dessas

unidades, a produção de rapadura é produzida na entressafra das hortaliças. A

94 G.: Água da Gruta - Itaguajé. 95 G.: Água da Gruta - Itaguajé. 96 A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio.

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essas, soma-se a produção de vassoura, pasta de alho, milho verde e mandioca

descascada, sendo toda a matéria prima produzida internamente. Todos esses

produtos são vendidos de porta em porta, embora a maior parte já com encomenda

prévia. Como muitas dessas vendas são feitas a prazo, recorre-se à caderneta onde

são anotadas as compras e respectivas dívidas dos fregueses.

Nesse caso, a invenção com vistas à racionalização do trabalho

também foi verificada: trata-se de uma máquina de lavar mandioca, cuja pressão

retira a casca escura, facilitando o manuseio.

É importante destacar que cada uma dessas produções domésticas

demanda um conhecimento específico: essa família que comercializa a mandioca

descascada, informou-nos que o fato de haver um intervalo entre o descascar e o

cozinhar os obriga a deixar a mandioca em repouso um determinado tempo, antes

de prepará-la para a venda.

Da hora que a gente descasca a mandioca até a hora que vende demora às vezes até meio dia, não é? Então não pode lavar antes de uma hora e meia, senão ela azula todinha. Isso é porque a planta tem leite, tem que esperar assentar. Se a gente não souber a ciência de cada planta, não adianta nem mexer.97

Esse saber camponês conserva-se justamente porque o processo

produtivo se faz no interior da família, passando de geração a geração. Por vezes, é

a troca de experiências na comunidade que garante a sua difusão, viabilizando a

produção camponesa.

A consciência de que o profundo conhecimento dos elementos da

natureza é fundamental para que os empreendimentos sejam bem sucedidos

também pode ser verificada no relato do mesmo camponês que produz rapadura em

nozinhos, o qual é também apicultor. Diante de condições adequadas à apicultura,

como a existência de matas no sítio, essa é uma alternativa barata aos camponeses,

já que a mesma não pressupõe grandes investimentos e tampouco a imobilização de

terras. Eventualmente, até mesmo algumas famílias empobrecidas, cuja terra é

pouca, conseguem desenvolver a atividade mediante a autorização de colocar as

caixas em propriedades com matas ou cultivo de eucalipto no entorno.

Eu comecei com a apicultura porque não tinha um centavo no bolso e já não sabia o que fazer e a apicultura é a única coisa que a gente não precisa de dinheiro nenhum para começar...é só fazer as caixas e colocar na mata no período da enxameação. Se não tiver tábua no

97 José, Água do Monjolo – Centenário do Sul.

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sítio, pode fazer com bambu que dá certo do mesmo jeito, mas tem que ter ciência, porque senão as abelhas não vêm...98

Vemos aqui uma racionalidade própria: o camponês procura

incessantemente estratégias de reprodução de sua condição camponesa, porém

para isso é preciso ter domínio sobre o como fazer. Esse apicultor deu-nos uma

aula sobre a necessidade de respeitar a natureza, sob pena de perecer junto com

ela. Ao falar das colmeias, recorreu a um conjunto de preceitos geográficos e

ecológicos para nos mostrar o quanto a apicultura é dependente deles.

Falou-nos das floradas como condição básica para a produção do

mel, vinculando-a aos profundos impactos ambientais das lavouras mecanizadas

na região, com destaque para a aplicação de agrotóxicos nas culturas de verão,

especialmente a soja, momento em que o enxame sofre violenta redução, afetando-o

diretamente. Mostrou-nos a dificuldade de empreender essa atividade no seu sítio,

cuja largura é de 200 metros, sendo desejável um raio de cinco km distante de

moradias para a instalação das caixas. A distância inadequada para a segurança de

sua família e dos vizinhos levou-o a colocar as caixas numa mata isolada, porém

distante do sítio.

Explicou-nos como se organizam as colmeias, para nos mostrar

como expandiu a sua produção: essa é feita no momento em que o enxame é

superior à capacidade de abrigo de uma caixa. Quando essa começa a saturar, são

colocados favos em outra caixa vazia, atraindo assim parte do enxame para a

mesma. Com essa transferência, as abelhas operárias elegem uma delas para

rainha, sendo essa alimentada com geléia real para alcançar o porte e a condição de

rainha.

Falou-nos do princípio de preservar as árvores onde são

encontradas abelhas, apontando-nos uma técnica de extrair o mel sem sacrificar a

árvore:

Eu faço um corte de comprido no tronco, porque assim a árvore consegue se curar, ela fecha de novo...passa o tempo e pode até vir outro enxame aí. Se eu derrubar a árvore é diferente, porque sem mata não tem abelha...porque que eu vou acabar com as duas coisas se não tem precisão?99

Vemos aí a profunda avaliação do ciclo da vida, no qual ele próprio

se considera incluído. É por isso que o usufruto da natureza é mediado pelo critério

de precisão, ou seja, a apropriação tem estrita ligação com a satisfação de um

98 A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio. 99 A.: Barra Bonita - Primeiro de Maio.

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patamar de necessidade, que não se resume à dimensão imediata, sendo

ponderadas as condições futuras de reprodução. Mais adiante veremos como o

critério de precisão é acionado para definir os níveis de intensificação do trabalho.

A ciência a que se referem esses camponeses, manifesta-se na lida

diária com as mais diferentes atividades com as quais os mesmos se envolvem.

Aliás, o fato de terem uma produção diversificada e estritamente relacionada aos

elementos da natureza não só os torna senhores de um saber amplo, como lhes

incute uma visão quase que totalizante do mundo que os cerca. Como se sabe, a

separação do trabalhador dos meios de produção lhe impõe uma visão de tal forma

fragmentada que, até mesmo a dinâmica da natureza, é apreendida a partir de uma

perspectiva contemplativa, quando não passa despercebida. Quanto aos

camponeses, esses processos são cotidianamente vivenciados, de modo que o sítio

é, de certa forma, regido pelos mesmos. A título de ilustração, trazemos um

calendário agrícola desenhado por um camponês a nosso pedido100. (Figura 29).

Considerando a disposição desse desenho, é possível observar uma

representação de tempo que está em desacordo com a hierarquia a que estamos

habituados. Ou seja, o ano camponês não começa em janeiro, mas no verão,

momento em que se inicia o ciclo produtivo mais importante para os mesmos.

Outro dado que chama a atenção no desenho é a indicação das festas que

acontecem na capela, o que evidencia o quanto esses planos estão imbricados na

representação da condição camponesa.

Assim, o universo camponês é regido por um tempo astronômico,

sendo o sol a fonte de vida e, por isso, referência primaz. Por outro lado, fenômenos

que interferem na sua regularidade, como eclipses, são cercados de temores, sendo

que as perdas na lavoura após a sua ocorrência lhe são atribuídas. No período em

que realizamos o trabalho de campo, ocorreu um eclipse solar e a partir de então,

muitos remeteram problemas da lavoura e mesmo perdas de safra a esse evento.

Não é tudo que sente a eclipse. Você pode reparar que o feijão plantado no meio do café está com as folhas enrugadas, a gente calcula uma perda de 50%. Foi a eclipse... Mas para o café foi até bom, porque ela veio no mesmo dia da geada ...o sol demorou mais para sair. Então, o gelo foi derretendo devagar e não estragou tanto o café, porque o que mata o café não é o gelo, mas a quentura do sol em cima dele.101

100 Esse desenho foi selecionado em meio a uma série deles, em função de termos percebido, ao longo do trabalho de campo, que tal solicitação após as conversas implicavam num certo direcionamento, de modo que eles procuravam contemplar elementos presentes em nossas indagações. Nesse caso, o desenho foi anterior às indagações, sendo portanto uma representação espontânea de seu universo. 101 A.: Água das Laranjeiras - Pitangueiras.

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Figura 29 – Calendário

Observamos assim que os desdobramentos dos fenômenos são

interpretados à luz dos resultados observados concretamente, embora a força da

crença por vezes possa obliterar as demais variáveis que contribuem para a

evolução não habitual do ciclo vegetativo.

De qualquer modo, os camponeses compreendem e se integram a

um tempo circular, ordenando seu espaço a partir de suas fases. Assim, as estações

do ano são percebidas a partir da duração do dia, de modo que o inverno é o tempo

dos “dias curtos” em oposição aos “dias compridos” de verão. Como vimos, na

região o verão é a estação chave para o equilíbrio interno, pois com ele se reinicia

um novo ciclo produtivo. Nessa época, os ciclos vegetativos são abreviados, em

virtude da intensidade de energia solar que incide sobre a terra.

O verão também é o período de colheitas maiores e incertezas

menores, pois a quebra das safras ocorre predominantemente no inverno, seja em

função das quedas de temperatura, seja em função das estiagens típicas nessa

época do ano. O caso do milho, cultivado tanto no verão quanto no inverno, é

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elucidativo. Neste, o intervalo entre o plantio e a colheita é mais longo, chegando a

se estender por mais de duas semanas. Além disso, ainda que o tempo “corra bem”,

sem geadas ou estiagens prolongadas, a colheita é menor, razão pela qual a cultura

de inverno é conhecida como safrinha.102

Essa percepção de tempo se estreita em função de um outro

elemento astronômico: a lua. Assim, algumas atividades são feitas mediante estrita

observação do calendário lunar. Isso se aplica ao corte de madeira a ser utilizada na

propriedade, ao enxerto de frutas, à poda e até mesmo ao plantio de determinadas

variedades.

A uva só pode plantar na nova de julho ou na nova de agosto, que é quando tem que podar. É na nova que a uva brota mais bonita, mais sadia. O que eu também gosto de plantar na nova é o arroz, nós vamos plantar uns 25 ou 30 litros, se der bom, vai dar uma média de 18 sacas, é só para o gasto da família. Mas a lua nova não funciona para tudo, tinha um balaieiro aqui que dizia que tem que cortar o bambu na minguante, para não carunchar. Ele pegou meus bambus a porcentagem, ele me dava 20% dos balaios, deu uns 350 ou 400 balaios. Os meus foram cortados da minguante para a nova, e foram os primeiros que caruncharam.103

Nada melhor que esse relato para ilustrar a ordenação singular

do sítio camponês. Notamos que, em poucas palavras, nosso interlocutor não

apenas indica a orientação astronômica de sua atividade, como demonstra a lógica

que o move. A começar pela diversidade de estratégias produtivas e de relações, que

inclui até a parceria para produção de artefatos, no caso os balaios. Por fim,

notamos que o cálculo da lavoura camponesa é feito em espécie, ao contrário da

unidade capitalista, que dimensiona sua atividade a partir de um cálculo definido

pelo investimento monetário.

Dessa maneira, não é apenas a referência de tempo que obedece à

lógica da reprodução familiar, pois como vimos, esse é hierarquizado de acordo com

a ordenação interna do sítio. Desse modo, se o tempo camponês não é o tempo do

capital, profundamente articulado ao calendário gregoriano, as próprias medidas

negam o caráter mercantil da produção.

Durante a pesquisa de campo, pudemos observar o quanto é

ambíguo o critério de mensuração que norteia a produção camponesa.

Recorreremos mais uma vez ao exemplo do milho, pois como vimos, essa é uma

cultura em que estão articulados o consumo interno e a comercialização.

102 Dados do Relatório Realidade Municipal - EMATER, indicam que em 2001, na média regional, a colheita do milho safrinha foi 30% inferior à safra de verão. 103 N.: - Lupionópolis.

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Quando indagamos os resultados da produção intercalar, via de

regra, os camponeses a dimensionam a partir da unidade “carros de milho”. Assim,

um carro corresponde a 40 balaios ou dez sacas limpas. Outras vezes, toma-se

como referência balaios de milho, sabendo-se que são necessários cerca de quatro

balaios para compor uma saca e cerca de 120 espigas para compor um balaio.

É importante destacar que essas medidas referenciam apenas a

parte da produção que circula dentro da parte do território dominada pelos

camponeses, sendo inclusive utilizadas nas negociações feitas em espécie entre

eles, bem como em empréstimos a serem saldados nas próximas colheitas. Por

outro lado, a parte debulhada ou colhida por máquinas é dimensionada em sacas, a

medida definida pelo e para o mercado. Nessa ordem, o plantio para o consumo

também não reconhece o critério formal de medidas:

A gente não vive só da porcentagem na amora, porque planta para o gasto e tem também as criações, 40% de tudo o que produzir é nosso. Esse ano nós já plantamos cinco litros de amendoim, deu até bom, sete sacos. Foram também quatro quilos de milho, tiramos 56 balaios. Sem contar as 3.000 covas de mandioca e uma leira de batata doce, horta, porco, galinha e vaca de leite. Então a gente bem dizer tem de tudo, não é?104

Como se pode observar, o cálculo é feito em quantidade de

sementes, em covas, que significa mudas, e em leiras, que igualmente indica a

dimensão da lavoura a partir do arruamento, unidades essas que fogem ao padrão

de mensuração do mercado. Portanto, apesar das relações mercantis estarem

totalmente imbricadas à lógica de reprodução camponesa, não são essas que

definem a ordenação da porção do território dominada pela classe camponesa.

Eu planto milho sabendo que está fora de época, mas eu sei que mesmo que der umas espiguinhas pequenas, se não servir para os porcos, serve para as vacas e é assim... porque a gente depende de tudo isso. Tem gente que não se preocupa em plantar uma carreira de milho, porque acha que vai perder tempo...já eu não, eu tenho que usar todo o potencial da minha terra...porque o pequeno tem que usar.105

Em geral, mesmo a lavoura comercial envolve um cálculo não

monetário, em que os custos e as perdas são calculados em espécie.

Nós perdemos sete sacos de semente em três alqueires de feijão, teve que passar o trator em cima, porque enrugou a folha e não deu uma

104 V.: Tupinambá - Astorga. 105 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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vagem, não deu um caroço. Já esse aqui em cima, da mesma semente daquele, deu quase 25 sacos por alqueire.106

O que mais surpreende é que mesmo nesses casos, a ética

camponesa contrária ao desperdício prevalece na administração das perdas.

Nós perdemos a produção...só perdeu o preparo do solo e os tratamentos do feijão. O que nós colhemos só deu para pagar os bóia-frias, não deu nada mesmo. Mas nós somos daquele tipo que não gosta de perder nada, já que plantou, tem que tirar da roça. O prejuízo já tinha acontecido, então mais prejuízo não ia dar mesmo. Nós colhemos só para não deixar na roça.107

A idéia de perda que perpassa suas interpretações está relacionada

a uma noção de desperdício que lhe parece inaceitável. Isso porque os recursos, as

colheitas, o bom tempo, enfim, a combinação dos elementos que viabilizam a sua

reprodução são recebidos como dádiva, daí o seu caráter quase que sagrado.

Nessa perspectiva, o próprio uso da terra obedece a esse princípio:

visitamos uma família que encontrou uma solução criativa para resolver um

problema ambiental sem sacrificar o uso produtivo. Trata-se de uma área em

acentuado declive, sendo a água da chuva contida por vários terraços nas cotas

mais baixas. Contudo, aquele mais próximo ao riacho estava contaminando a água

com agrotóxicos, já que se tratava de uma área de lavouras.

Ao invés de inutilizar a área, toda a extensão do terraço foi escavada

para a colocação de lonas plásticas, a fim de evitar a infiltração da água

contaminada no solo e posterior contaminação do riacho. Sobre a lona foram

depositados cacos de tijolo e, sobre esses, foi colocada uma camada de terra de

aproximadamente 50 cm, sendo essa área integralmente cultivada.

Os tijolos foram aproveitados do próprio local, pois no passado

aquele sítio havia sediado uma olaria. Segundo a família, ao comprarem o sítio,

havia uma grande área imprestável, dado o acúmulo desse material. A retirada dos

cacos foi feita gradativamente, sendo toda a área aproveitada com pastagens e

lavoura de arroz. O material que permanecera anos empilhado num canto do sítio é

que foi aproveitado para a readequação do terraço, sobre o qual passaram a cultivar

ervilha, quiabo, batata-doce e milho fora de época.

Outra evidência da racionalidade camponesa pode ser vista nas

áreas mecanizadas, uma vez que a plantadeira deixa espaços vazios na parte

externa dos terraços, bem como nos limites da área mecanizada. Para que não

106 N.: Centenário do Sul. 107 G.: Água da Gruta - Itaguajé.

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fiquem ociosos, os mesmos são cultivados com milho ou feijão, utilizando-se da

máquina manual (matraca). Contudo, essa lavoura complementar deve obedecer a

um regime de tempo diferente da lavoura comercial, devendo a colheita ser

antecipada, para evitar que a colheitadeira a destrua.

Como vimos, o aproveitamento máximo da terra é uma de suas

marcas. E outras vezes, esse aproveitamento consiste na remonta de culturas na

mesma área, o que permite mais colheitas no ano agrícola. Assim, quando a cultura

estiver próxima do amadurecimento, o novo plantio é feito, obedecendo a um

arruamento intercalar. Entretanto, isso deve ser cuidadosamente calculado, de

modo que a colheita possa ser efetuada no momento que começar a atrapalhar o

desenvolvimento da nova lavoura. Da mesma forma, a remonta pressupõe o plantio

e a colheita manuais, para evitar estragos em ambas.

Isso é para fazer o dia útil. Quando chega a tarde eu posso dizer, hoje eu trabalhei, graças a Deus. Quando a gente não tem o que fazer, pega a matraca e sai plantando em qualquer pedacinho que está vago. A gente costuma fazer isso quando a outra planta já está crescida, porque quando aquela chega, a gente tira com cuidado e assim a mais nova cresce, dando mais produção. Não é sempre que dá certo, às vezes dá bem, às vezes a produção é pouca, se não der nada ainda assim serve para o gado ou para os porcos... a gente não perde nada, tudo se aproveita.108

Essa ocupação esmerada e intensiva do solo indica que o espaço é

sagrado e não há terra para ser desperdiçada. É por isso que existe uma hierarquia

e uma lógica dentro dos próprios quintais, onde o seu uso é essencialmente

produtivo, dominando as árvores frutíferas e a horta. Flores, só o suficiente para

“deixar a casa alegre” e, geralmente por imposição das mulheres, que valorizam ao

extremo a aparência da moradia.

Entretanto, por mais sagrado que seja esse espaço, os camponeses

são premidos a agredi-lo, não por opção, mas porque a sua inserção no mercado

assim o exige. Ninguém melhor que os camponeses para testemunhar a

contaminação dos alimentos e os impactos dos agrotóxicos no meio ambiente.

Todos têm uma estória para contar sobre um acidente, uma intoxicação, uma

alergia causada por alguns desses produtos na família ou na comunidade.

Ao fazerem suas opções por determinados cultivos, a questão dos

agrotóxicos não é desconsiderada, e isso é particularmente visível entre aqueles

cujas condições concretas permitem fazer opções menos agressivas. Por outro lado,

ante a intolerância física a essas substâncias, alguns são forçados a mudar as

108 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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atividades, buscando aquelas que ainda se sustentam sem o uso intensivo de

veneno. Não obstante, cremos que a expressão política da discordância em relação

a esse modelo se manifesta na recusa em recorrer ao pacote tecnológico para sua

produção doméstica, quase que inteiramente livre de veneno.

Na horta a gente não coloca veneno nenhum. Se der praga a gente tenta controlar tirando um a um ou jogando água de sabão, fumo, prefere até deixar perder. Hoje na roça tudo é veneno, até nas coisas que a gente come?...ah, isso não tem precisão!109

Vimos anteriormente como o critério de precisão opera no

dimensionamento das práticas camponesas. Durante a pesquisa, em diversas

ocasiões a mesma foi evocada: ora para indicar o planejamento das atividades para

autoconsumo, ora para justificar a intensificação ou diminuição do sobretrabalho

da família. É a precisão manifesta em dificuldades momentâneas ou duradouras

que os lança no assalariamento temporário. Por outro lado, é a ausência dessa, face

à conquista de uma situação mais confortável, que os faz abandonar as atividades

esgotantes, ainda que essas tenham sido decisivas para o equilíbrio alcançado.

Nós já trabalhamos muito, nossos filhos cresceram trabalhando de sol a sol. Nós mesmos fizemos essa casa e a deles, para eles casarem... É, bem dizer agora a labuta é pouca, nem café não tem mais. Agora é só lavoura mecanizada, a gente completa plantando e colhendo para os vizinhos e também arrumando as máquinas de quase todo mundo que mora daqui até o Pirapó. Então, agora a gente não precisa mais se matar, porque graças a Deus não tem mais precisão.110

Vemos assim a comprovação da tese Chayanoviana de que o

sobretrabalho cessa à medida que são satisfeitas as necessidades de consumo da

família. Não obstante, esse patamar confortável de renda não implica na

diferenciação automática de classe. Na propriedade de 20 hectares sobrevivem as

duas famílias, cuja renda é complementada com a prestação de serviços de plantio

e colheita dos vizinhos, já que dispõem das máquinas para tal. Para driblar a

ociosidade dessas máquinas, arrendam cerca de 40 hectares. Por estarem

estrategicamente localizados entre a cidade e uma estrada que interliga quatro

comunidades, montaram uma oficina, de modo que grande parte dos consertos de

maquinários e veículos do entorno são realizados pelo patriarca e o filho, ofício que

aprenderam por si, à medida que as máquinas próprias exigiam reparos.

109 S.: Água do Pirapó - Sabáudia. 110 J. e N.: Vila Progresso - Sabáudia.

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A confortável casa de alvenaria e a dos filhos casados foi construída

exclusivamente por eles, assim como os galpões, mangueira, enfim, todas as

instalações do sítio. Possuem horta, pomar, criam porcos, galinhas, gado leiteiro

(todos os animais são tratadas pelo nome), fabricam pães, bolachas, enfim,

recorrem pouco ao mercado urbano para satisfazer suas necessidades.

Portanto, nem mesmo a confortável situação econômica é capaz de

romper com a racionalidade que lhes é própria: a prudência em relação aos gastos

monetários. Isso se aplica aos camponeses em geral, ainda que a maior parte deles

disponha de conforto, propiciado por itens de consumo antes privilégio dos

citadinos.

Entretanto, na lógica camponesa, o consumo é invariavelmente

submetido ao crivo da “precisão”, pois a condição de classe impõe uma necessidade

permanente de poupança, até mesmo para fazer frente à necessária aquisição ou

manutenção dos meios de produção, notadamente da terra.

Nos três últimos anos eu tinha uma lavoura de 200 sacas de milho safrinha por alqueire, tivemos uma lavoura de soja de 140 sacas por alqueire e o terceiro ano seguido o milho deu 170. Nós compramos um pedaço de terra aqui, um alqueire e pouquinho. Então isso é festa, isso cobre aquela pequenas coisas que nós não temos... para mim é uma alegria maior, eu acho que é uma conquista. Se eu quiser eu posso comprar todas essas coisas, mas eu jamais faria isso, eu jamais venderia um alqueire de terra para ter essas pequenas coisas.111

Como se pode observar, diante da possibilidade de aumentar o sítio,

o camponês não mede esforços para tal. É preciso lembrar que isso surge quase que

como uma imposição, pois o mesmo luta permanentemente para extrair renda

suficiente para a sobrevivência da família. E não é apenas o problema da

sobrevivência imediata que está colocado, mas da própria recriação camponesa,

ameaçada pela saturação do patrimônio fundiário com o crescimento dos filhos.

Nessa perspectiva, nada tem mais importância do que a terra, razão

pela qual nosso interlocutor denomina de pequenas coisas itens de consumo que os

mesmos podem abdicar. Ainda que sua condição presente já lhe permita possuí-los,

o amanhã está no seu horizonte e somente quando a sua condição for avaliada

como estável, eles se permitirão adquirir mercadorias que subtraem renda, ao invés

de somar ao patrimônio produtivo.

Você sabe por que nós não compramos a parabólica também? Você viu aquele poço ali em cima? A bomba estragou e foi 2.500 reais

111 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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para pagar em cinco famílias. Eu tive que mandar um par de pneu do tratorzinho pra ressolar, porque eu vou precisar para plantar. Ficou quase 500 reais e uma parabólica não custa isso, mas pra nós é importante nós sabermos que nós temos o tratorzinho pra plantar, para passar um veneno na nossa lavoura. Você vê, a gente tem que escolher... o cara que vive de salário às vezes tem essas coisas melhor do que nós, só que eu falo: se nos vendermos o tratorzinho eu compro tudo isso aí, só que o tratorzinho é importante pra nós... é uma coisa muito importante. Então veja bem, nós investimos o dinheiro da lavoura em coisas que são muito importantes pra nós e isso dá alegria também112.

Esse é mais um indicativo que as trajetórias camponesas se

confundem com a saga pela terra, porém não se encerram aí, pois a permanência

na mesma pressupõe sucessivas batalhas. E não se pode perder de vista que a

lógica que orienta o investimento se enquadra naquilo que Chayanov (1974) define

como investimento voltado à diminuição da penosidade do trabalho.

Nessa perspectiva, essa prerrogativa é indissociável da busca do

bem-estar da família e, nesse sentido, não há dúvida que o bem-estar é algo que os

mesmos perseguem. Apenas isso é secundário, já que conservar os instrumentos de

sua autonomia é uma necessidade inalienável. Observemos que esse é o sentido

dado pelo nosso interlocutor: as pequenas coisas, produto da lógica onde tudo

acaba sendo consumível e consumido, são talvez um consolo a quem não conhece a

alegria, o gosto da autonomia, propiciada pelo controle dos meios de produção.

Outra coisa que a gente não falou é que ser camponês, trabalhar como eu trabalho, tem uma coisa que vale a pena que é a liberdade. Eu posso imaginar, amanhã eu vou pular cinco horas da manhã e vou começar... eu faço isso porque eu sou livre. Agora, se eu não quiser ou não puder ir trabalhar, eu posso ficar aqui sentado, tranqüilo, não vai ter problema nenhum. Então o que é bom é que tem dificuldades, mas tem as coisas boas, não é verdade?113

Portanto, esse é o sentido da luta obstinada dos camponeses pela

manutenção da terra de trabalho. A posse da terra encarna a rara possibilidade de

ser sujeito de sua própria criação, de dispor livremente de seu tempo, de seu espaço

e de seu saber. Enfim, enquanto as demais classes partilham uma existência em

fragmentos, os camponeses constroem sua existência a partir de experiências

integralizadoras, contrárias ao processo de alienação.

112 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso. 113 S.: Água do Cardoso - Bela Vista do Paraíso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No campo, as “imagens territoriais” manifestam as diversas

combinações de uso econômico do solo, aliado às diferentes formas de reprodução

social vinculadas à agricultura. Transitar por essa porção geográfica é deparar-se

com uma diversidade instigante, cuja riqueza de detalhes sugere que a trama de

relações não se esgota nos limites das propriedades individuais, nem tampouco no

sentido econômico da atividade, mas em uma ordenação espacial derivada de

lógicas opostas.

Por um lado, deparamos-nos com as terras de negócio,1 voltadas à

extração da mais-valia dos trabalhadores nela ocupados e ou objeto de extração da

mais-valia social; por outro, encontramos as terras de trabalho, controladas por

camponeses que, mediante o trabalho familiar, extraem daí a sua sobrevivência.

Aqui se impõe a necessidade de resgatar uma importante distinção

que estes termos implicam; enquanto a terra de trabalho remete à propriedade

familiar, a terra de negócio faz referência à propriedade capitalista. Ainda que

estejamos diante da propriedade privada da terra em ambos os casos, há que se

atentar para conteúdos distintos: enquanto que o sentido desta é a exploração do

trabalho alheio e ou a apropriação da mais-valia social, a primeira tem por princípio

a reprodução da família a partir de seu próprio trabalho.

Com efeito, a sua presença marcante destoa do anúncio de

desaparecimento da classe camponesa, mostrando-nos que não se trata de resíduo

a ser removido pelo avanço, em tese progressista, das relações capitalistas na

agricultura. O mesmo se aplica ao poder de banimento imputado ao mercado, como

se o aprofundamento das trocas, em si, pudesse lhe traçar um destino inexorável,

que também não se cumpriu. Feito jogo de encaixe, no qual a realidade tem que

caber na teoria, recorre-se então ao jogo de palavras: estar-se-ia diante de

agricultores familiares e suas adjetivações.

Afora essas interpretações equivocadas que, para Martins (1995),

resultam mais de posições doutrinárias do que propriamente teóricas, na área de

estudo a presença camponesa se impõe e pode ser identificada pelos marcos

geográficos destoantes das parcelas onde o capital está territorializado. Contudo,

não há fronteiras uniformes segregando-as, mas frações do território em que

1 Caio Prado Júnior (1980), ao advertir sobre a urgência da Reforma Agrária, serviu-se dessa expressão para explicitar o caráter especulativo da grande propriedade.

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imperam as relações tipicamente capitalistas, lado a lado com aquelas sob controle

camponês.

Em outras palavras, o processo de territorialização camponesa não

pressupõe contigüidade geográfica, mas um arranjo feito mosaico, em que ambas as

formas de produzir no campo se sucedem consecutivamente. Por serem portadoras

de lógicas distintas, o modo como ambas ordenam o espaço também são

destoantes, o que não demanda muito esforço quando se pretende identificá-las.

Desse modo, alguns marcos são próprios da geografia dos

camponeses, os quais sugerem que a trama de relações não se esgota nos limites

das propriedades individuais, nem tampouco no sentido econômico da atividade,

mas em uma ordenação territorial coerente com as condições materiais e sociais de

reprodução dessa classe.

Enquanto que na escala do bairro rural, o que sobressai é a

dispersão, de certa forma orientada, das construções, que traz consigo os signos

agregadores da vida comunitária, notadamente a igreja e o campo de futebol, no

interior dos sítios a própria lógica de ordenação do espaço e uso da terra acabam

por testemunhar sua presença.

Com efeito, a ponderável diversidade, própria do modo de vida

camponês, é o que diferencia as parcelas do território sob seus domínios, quando

confrontadas com as explorações tipicamente capitalistas. O próprio arranjo

geográfico dos sítios é revelador da organização compatível com as duas dimensões

aí materializadas: a produção econômica e a reprodução social.

No caso das unidades capitalistas, via de regra, a ordenação

espacial denuncia o sentido meramente econômico da propriedade, no qual o

trabalhar e o morar são mutuamente excludentes. Pelo fato da reprodução social se

dar fora desses limites, notadamente na cidade, tais unidades exprimem uma lógica

entrópica, de presença viva esparsa e ausência de conexões com o entorno.

Essa é a característica visível de sua ordem intrínseca, pautada por

um nível de articulação com as estruturas estritamente moldadas pelas trocas

mercantis, cujos elos de ligação estão na cidade. Desse modo, as unidades

tipicamente capitalistas materializam condições de produção e reprodução que, ao

mesmo tempo que acabam por criar um vínculo direto com aquela, resultam em

isolamento no campo, na perspectiva das relações sociais.

Do ponto de vista dos trabalhadores ocupados nessa modalidade de

produção, a separação entre capital e trabalho igualmente se manifesta na

descontinuidade entre local de produção econômica e local de reprodução social,

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situação que é própria da sujeição do trabalho ao capital. Dessa maneira, a

autonomia que se alimenta do controle sobre o processo produtivo, pelas mãos de

famílias que possam viver e trabalhar na propriedade, é substituída pelas regras do

assalariamento, em que os trabalhadores vêm e vão ao ritmo das tarefas a serem

cumpridas.

Nessa ordem, ainda que alguns deles possam viver na propriedade,

os laços comunitários serão sempre frágeis, seja devido à rotatividade, própria da

instabilidade da relação de trabalho, seja em virtude da dificuldade de estabelecer

uma relação de pertencimento com o lugar.

Portanto, a maneira como os camponeses se articulam a uma

ordem mais ampla, assim como regem o seu tempo e seu espaço, instituem marcos

geográficos distintos, posto que esses são expressões concretas do conteúdo e da

lógica de classe.

No âmbito da circulação das mercadorias, igualmente nos

deparamos com lógicas distintas, pois os camponeses se reproduzem através da

forma simples de circulação das mercadorias (M-D-M), na qual a produção é

vendida, para se obter o dinheiro necessário para comprar aquelas que não são

produzidas. Quanto aos capitalistas, o movimento obedece à fórmula D-M-D’, ou

seja, o dinheiro é investido na produção de mercadorias para que, ao serem

vendidas, estas lhes proporcionem uma quantia ampliada de dinheiro. O ciclo M-D-M parte de um extremo constituído por uma mercadoria e conclui no outro configurado por outra mercadoria, a qual sai da circulação e entra na órbita do consumo. Portanto, o consumo, a satisfação de necessidades ou, em outra palavra, o valor-de-uso, é seu objetivo final. D-M-D, ao contrário, parte do extremo constituído pelo dinheiro e retorna finalmente a esse mesmo extremo. Seu objetivo impulsionador e seu objetivo determinante é, portanto, o valor-de-troca mesmo. (Marx, apud Oliveira, 2001, p. 52-53).2

Por conseguinte, o caráter sui generis do campesinato se manifesta

nesse objetivo que os impulsiona: o controle sobre a terra, para assegurar a

reprodução social. Porém, há que se ponderar que a ordem capitalista os envolve,

na perspectiva de que o processo de territorialização camponesa está inteiramente

articulado ao princípio da formação do capital. Como vimos, trata-se de mecanismo

distinto da reprodução ampliada do capital, uma vez que esta se dá exclusivamente

no circuito propriamente capitalista, através do cálculo em que parte da riqueza

produzida pelo trabalho vendido aos proprietários dos meios de produção é

convertida em salário e parte irá compor a taxa de lucro (mais-valia). Quando a

2 Grifo do Autor.

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exploração da terra está pautada nessa relação, estar-se-á diante da

territorialização do capital.

Por outro lado, no processo de formação do capital, em que

necessariamente concorrem relações não-capitalistas, não é o trabalho que está

sujeito aos capitalistas, mas a renda da terra, a qual está contida na produção

camponesa. No momento em que essa produção é comercializada a um preço

inferior ao valor trabalho ali contido, ocorre a transferência da renda. Essa é a

lógica da monopolização do território pelo capital.

Considerando que a produção camponesa comparece como matéria-

prima importante para diversos setores da indústria de alimentos, há um enorme

conflito de interesses em torno da definição de seus preços, pois esses determinam

quem irá apropriar-se da renda da terra. Não obstante, nos casos em que o

produtor-proprietário da terra é igualmente um capitalista, a luta envolve também a

apropriação do trabalho não pago aos assalariados, a qual igualmente estará

centrada em torno dos preços da produção.

Em suma, o princípio da valorização, intrínseco ao processo de

acumulação ampliada do capital, se alimenta, por um lado, de trabalho excedente

e, por outro, de produto excedente, entendendo-se que excedente não é aquilo que

sobra, mas aquilo que excede às necessidades mínimas para que, respectivamente,

operários e camponeses se reproduzam socialmente.

O processo de valorização é assim compreendido como fruto do processo de transformação pelo qual a produção e a reprodução passam. Isso significa que, sob o modo capitalista de produção, a valorização é produto do trabalho humano nas suas diferentes mediações sociais, a produção é produto contraditório de constituição do capital e a reprodução é produto do processo de reprodução ampliada do capital. (OLIVEIRA, 2002, p. 74-75).

Esses apontamentos sinalizam, portanto, que a produção do capital

deve ser contínua, pois, como adverte Oliveira (2001, p. 18), os capitalistas não se

reproduzem apenas por herança, pois, socialmente falando, devem nascer a cada

dia. Destarte, o fato de a classe camponesa ser fundamental no esquema de

produção de capital é um indicativo de que essa é um elemento de dentro do

capitalismo. Contudo, trata-se de uma combinação contraditória, já que envolve

uma luta ferrenha dos camponeses para permanecerem como tais. Assim, ainda

que se possa vislumbrar na recriação camponesa um pressuposto do capitalismo,

não se poderá deixar de vislumbrar nessa luta a potencialidade para sua

superação, logo que a luta camponesa tem conteúdo anticapitalista, sendo a única

classe que pode visualizar/viver a expropriação.

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Essa é uma ameaça permanente, visto que a maior parte da

produção camponesa é carreada para estruturas capitalistas consolidadas. É o

momento que a desvalorização do seu trabalho se torna explícita, uma vez que este

não é tomado como parâmetro para a composição do preço a lhes ser pago pela

produção convertida em mercadoria. É por essa razão que, ao serem inquiridos

sobre os custos de produção, os camponeses tendem a desconsiderar o fator

trabalho, computando apenas os gastos monetários que tiveram.

...o trabalho a gente não conta... O dia que o povo da roça fizer isso abandona tudo... Você não vê que quando a gente entrega a colheita, gasta quase que o mesmo tanto em semente, adubo e veneno para plantar de novo?3

É exatamente esse trabalho, metamorfoseado na renda que escapa

das mãos camponesas, que se converte em taxa de lucro na cidade, através da

mediação de agentes dos diferentes setores capitalistas. Ainda que em

determinadas conjunturas, os camponeses consigam auferir a renda da terra,

temos visto que os preços dos produtos primários em contínua queda se devem ao

fato de que os capitalistas estão cobrando no preço da matéria-prima seu lucro.

Desse modo, ao vender ao capitalista o produto de seu trabalho a

um preço baixo, que, por sua vez, também o vende barato, os camponeses estão

dando de graça à sociedade a sua renda da terra, que é o seu trabalho. Dessa feita,

no movimento geral da sociedade, os trabalhadores pagarão menos pelo produto, o

que permite aos capitalistas rebaixar seus salários. Essa tem sido a regra no

movimento contraditório de acumulação ampliada do capital.

A distância abissal existente entre o preço das mercadorias quando

em poder dos produtores e ao fim do circuito, já à disposição dos consumidores

finais, dá preciosos indicativos da escala dessa transferência de renda. Não é por

acaso que, no balanço do PIB, a participação do setor agrícola sempre tem

importância menor, mesmo onde a agricultura se constitui na atividade econômica

por excelência.4

Portanto, a existência desse mecanismo de trocas explicita uma

sangria de riquezas, fato que se reflete nas condições de vida dos camponeses. Não

foram poucos os que, no esforço de explicitarem os limites para sua reprodução

social, destacaram a dificuldade em conservar os componentes mobilizados em

suas atividades, face ao retorno econômico incompatível com o seu desgaste

3 L.: Água Clara – Nossa Senhora das Graças. 4 Segundo o IPARDES, em 2001 a participação da agricultura do PIB do Estado do Paraná foi de 12%.

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natural, incluindo-se aí a força de trabalho, os instrumentos de trabalho e a própria

terra.

Certamente, essas são evidências cruéis das contradições que são

próprias do momento atual, no qual a concentração de capitais igualmente conduz

à concentração de riquezas. Ainda que estejam inseridos em um circuito de

autonomia, contrário à forma dominante em nossa sociedade, já que a regra é o

trabalho convertido em mercadoria, os camponeses igualmente estão diante do

processo de transferência exponencial da mais-valia, mediante a transferência da

renda. Isso os lança não apenas na necessidade de aumentar a produtividade para

compensar o rebaixamento do valor do trabalho vivo, mas, de um modo geral,

também implica na interdição acentuada ao acesso a determinados bens, inclusive

àqueles de caráter básico, relativos à saúde, à cultura e ao lazer.

Não obstante, é necessário assinalar que, entre as famílias

pesquisadas, a fartura de alimentos é um diferenciador em relação aos

trabalhadores proletarizados que compõem a base da pirâmide do mercado de

trabalho. Contudo, sua condição diferenciada não se resume apenas à questão

alimentar, mas a de indivíduo em sua plenitude, dadas as condições de integração

social totalmente diversa da condição proletária.

O operário se situa no mundo através do seu trabalho. [...] As relações de trabalho são suas relações primárias e fundantes. [...] A consciência do operário expressa a consciência do indivíduo vinculado aos seus iguais pelo contrato de trabalho [...]. É a produção que faz do operário um membro de sua classe e não o nascimento e o pertencimento natural. (MARTINS, 2002, p. 71-75).5

Portanto, é o trabalho que dá ao proletariado a noção de

pertencimento, ao mesmo tempo que seu trabalho sempre se manifesta como

parcial, como fragmento que adquire consistência tão somente no conjunto da

produção, na qual a sua participação está diluída. Trata-se de uma inserção social

mediada pelas mercadorias que impõem a sua alienação, por força do trabalho

coletivo. Daí o próprio trabalhador desprovido dos meios de produção se situar

como fragmento, que perde a referência como pessoa sempre que privado dessa

condição.

Por não viver o processo de alienação do trabalho, o camponês se

integra ao mundo como pessoa, que assim se reconhece mesmo diante do

empobrecimento provocado pela interdição ao próprio usufruto da renda da terra

5 Grifo do Autor.

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gerada pelo trabalho da família.

[...] O camponês se situa no mundo através do seu produto. Seu trabalho se oculta no seu produto. [...] O vínculo do camponês com a sociedade é um vínculo pessoal; a pessoa inteira se põe nele, e não apenas aquilo que diz respeito ao trabalho. (MARTINS, 2002, p. 71-76).6

Trata-se, portanto, de condições opostas de existência, ainda que se

possa estar diante de situações econômicas parecidas. A começar pela imbricação

da produção às demais esferas da reprodução social, que revela a potencialidade

política dessa classe na luta contra o capital, à medida que lhe confere uma

representação totalizante daquilo que a cerca. É essa experiência totalizante que lhe

permite reconhecer-se nos produtos do seu trabalho e se situar no mundo da

mercadoria, a partir deles.

É nesses termos que se coloca a autonomia que move os

camponeses, o que nos permite vislumbrar na lógica da classe, manifesta na luta

pela manutenção da condição autônoma, o sentido de sua recriação. Assim eles

prosseguem, combinando itens da modernidade com as tradicionais estruturas de

reprodução da unidade familiar e comunitária.

6 Grifo do Autor.

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