Terra em transe (1967) análise do filme de de glauber rocha- lucas schuab vieira

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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUIA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS FCL/ASSIS CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA TERRA EM TRANSE (1967) GRUPO: DANIEL ALVES AZEVEDO LUCAS SCHUAB VIEIRA RAFAEL BRUNO CLEMENTINO THIAGO RAFAEL BONALDO WELLINGTON DURÃES DIAS NOTURNO PROF. DR. ÁUREO BUSETTO ASSIS / SP 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

JÚLIO DE MESQUIA FILHO

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS –

FCL/ASSIS

CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

TERRA EM TRANSE (1967)

GRUPO:

DANIEL ALVES AZEVEDO

LUCAS SCHUAB VIEIRA

RAFAEL BRUNO CLEMENTINO

THIAGO RAFAEL BONALDO

WELLINGTON DURÃES DIAS

NOTURNO

PROF. DR.

ÁUREO BUSETTO

ASSIS / SP

2012

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Este trabalho objetiva traçar uma análise critico reflexiva do filme Terra em transe

do diretor Glauber Rocha. O filme foi lançado em 1967 dentro do contexto do Cinema Novo,

com uma proposta inovadora de difundir uma nova estética cinematográfica, a estética da

fome. Primeiramente será feita uma apresentação e contextualização da obra, seguido por uma

breve exposição dos aparatos teórico/metodológicos que orientarão a leitura do filme, para

então adentrar a uma análise externa e interna do documento concluindo com algumas

considerações finais.

A década de 1960 no Brasil foi um período privilegiado no que concerne a prática

cultural voltada para um conteúdo sócio-político como forma de criticar e representar a

conjuntura do país dentro de uma perspectiva renovadora. O período da Guerra Fria, a

eminência dos movimentos sociais de âmbito mundiais, os efeitos das revoluções socialistas e

o desejo de rompimento e de transformação são características intrínsecas à época. Nesse

contexto, os temas de revolução, desigualdade social, democracia, liberdade e comunismo

fazem parte do repertório de artistas e intelectuais de esquerda que buscam criticar e

representar a realidade que interpretam do Brasil, e que configuram nesse sentido, um

indispensável debate político e estético expresso nas diversas manifestações artísticas.

A busca no passado de uma cultura popular que atenda as preocupações artísticas do

presente, que nesse momento se traduz numa tentativa de construção inovadora da nação, não

está ausente nos ideais artísticos, assim, segundo Marcelo Ridenti, são exemplos:

“o indígena exaltado no romance Quarup, de Antonio Callado (1967); a comunidade

negra celebrada no filme Canga Zumba, de Carlos Diegues (1963), e na peça Arena

conta Zumbi, de Boal e Guarnieri (1965); os camponeses no filme Deus e o Diabo

na Terra do Sol, de Glauber Rocha, etc.” (2007, p. 136).

Em 1952 ocorre o I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e o I Congresso Nacional

do cinema brasileiro, onde, cansados da métrica formal hollywoodiana, jovens cineastas se

reúnem para debater novos rumos a então dispendiosa indústria cinematográfica nacional.

Suas ideias eram pautadas na problemática de como gerar uma produção cinematográfica

mais dinâmica, de melhor conteúdo e, sobretudo, mais barata.

Uma nova abordagem cinematográfica começa a ser percebida em meados de 1955,

com a exibição do filme “Rio, 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos, onde germinaram as

ideias de Alex Viany e seu neorrealismo italiano. O filme foi tido como popular, por retratar

“o povo para o povo” (SOUZA, 1981), com ideias e palavreado simples, retratando o Distrito

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Federal, desprezando a retórica, o filme se passava em cenários simples e naturais, como

favelas e praças.

Cineastas do Rio de Janeiro e Bahia elaboravam os eixos centrais do cinema brasileiro,

para romper com as alienações culturais que as chanchadas transmitiam. Os novos filmes

tratariam da realidade brasileira; em geral em ambiente simplórios, com falas longas e cenas

de menor movimento.

Os nomes mais comuns do Cinema Novo foram Glauber Rocha, Joaquim Pedro de

Andrade, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Paulo Cesar Saraceni, Luiz Carlos Barreto.

Na primeira fase do Cinema Novo (1960-1964), os filmes retratavam o problema das

secas no Nordeste, a miséria de seus trabalhadores e seu cotidiano. São rodados “Vidas

Secas” (1963) e “Os fuzis” (1963).

A segunda fase do movimento (1964 a 1968) surge com a proposta de analisar a

política, em especial os equívocos da ditadura militar, fazendo menção ao futuro da política

nacional. São filmado “O bravo guerreiro” (1968); “Terra em transe” (1967), sendo este

último vencedor de dois prêmios no festival de Cannes do mesmo ano.

A terceira fase (1968-1972) já é influenciada pelo tropicalismo, representando filmes

de nacionalismo extravasado por meio de palmeiras, samambaias, periquitos, bananas, índios,

como no clássico “Macunaíma” (1969), filmado por Joaquim Pedro de Andrade, onde Grande

Otelo (até então expoente das chanchadas) aparece como o herói sem nenhum caráter, o

brasileiro espertalhão, malandro que vive das artimanhas para sustentar-se.

Nesse mesmo sentido é que se encontra uma das propostas do movimento do Cinema

Novo. Surgido entre os anos 50 e 60, o movimento iniciado por Glauber Rocha e outros

estudantes de cinema, além de atentar para uma identidade nacional de cultura popular

própria, tinha como intenção alertar e divulgar problemas sociais, valorizar aquilo que é

brasileiro, renovar linguagens e conceitos, despertar a população para a cultura e a política. O

movimento rompe com a produção cinematográfica nacional influenciada pelas produções

hollywoodianas, que em nada se identificam com a realidade brasileira. Influenciado por

movimentos europeus, como o neo-realismo italiano e a novelle vague francesa, o Cinema

Novo não se limita a uma finalidade mercadológica ou de entretenimento, muito além, se

insere num compromisso com a realidade, com as conjunturas políticas e sociais, com a

transmissão de uma consciência crítica, com a informação e com a renovação da estética.

Nessa perspectiva se destaca o filme Terra em transe de Glauber Rocha, filmado nos

anos de 1966 e 1967. Entretanto, considerando que um dos objetivos do movimento do

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Cinema Novo era despertar nos espectadores uma consciência crítica sobre os problemas

sociais e políticos que atingiam o país, parece duvidoso que o filme tenha sido visto pelas

massas ou com intenção de ser recebido por elas. Quando comparado com trabalhos

anteriores, percebe-se uma nova estética com elementos criados pelo próprio diretor.

Destacam-se como características de sua narrativa: a descontinuidade, da qual a quebra da

narrativa linear impõe ao espectador refletir sobre o que está sendo exposto; o dinamismo, o

excesso de movimentos de câmera e cortes abruptos de cenas; e a desarmonia, ou seja, há um

desconforto no espectador diante de uma narrativa “confusa”, que não tem qualquer pretensão

de orientar ou controlar a interpretação da obra. Diante dessas características, a repercussão de

Terra em transe foi muito maior entre as elites intelectuais do que o grande público, não

tendo sucesso de bilheteria popular.

Entretanto, não tardiamente a repressão política caiu sobre o movimento e, obrigando

ao exílio alguns de seus expoentes, não obstante alguns diretos novatos que ali se associavam

recusaram-se a tentar manter o grande público e se adaptar às novas circunstâncias, surge

então o Cinema Marginal.

Liberado em maio de 1967, após ter sido proibido em todo o território nacional, o

filme foi exibido causando polêmica, o que desde início levou a mobilização de artistas e

intelectuais. Se por um lado o filme não é satisfatório em cumprir sua recepção nas massas,

por outro, impactou consideravelmente a sociedade se levar em conta a emergência de outros

movimentos nascidos de uma elite intelectual de esquerda influenciada pelas ideias do filme,

como por exemplo, o Movimento Tropicalista. A respeito dessa influência, Carlos Nelson

Coutinho comenta: “Terra em transe é de certo modo precursor do que viria depois” e “uma

certa valorização do irracional como uma coisa própria dos países do Terceiro Mundo” (apud

RIDENTI, p. 146).

Os problemas denunciados no filme são condizentes com a realidade não só do

Brasil, mas da América Latina em geral. Apesar de já terem sido abordados na arte diversas

vezes, o que torna seu roteiro singular é a abordagem com que Glauber Rocha trabalha e

expressa seu conteúdo. A indecisão e contradição numa postura política dos artistas latino-

americanos, representados pelo personagem Paulo Martins; a descrença na esquerda latino-

americana, dividida e de pouco confiança, representada, entre outros, no personagem Vieira; e

a descrença e ridicularização do povo, representado num momento, no personagem Jerônimo.

Após essa apresentação e contextualização, abordaremos agora, questões de âmbito

teórico metodológico que orientarão a leitura critico/reflexiva do filme, por nós aqui

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analisado. O primeiro ponto a se ressaltar é que, o filme, não é um retrato da realidade, mas

uma representação desta. Ainda que aborde fatos reais, não abolirá a sua condição de

representação. Isso significa dizer que sua leitura não se dá de forma imediata, porque a

imagem cinematográfica é uma construção, é a representação do real feita com a utilização de

uma série de recursos e elementos próprios do cinema, através da manipulação de

equipamentos, instrumentos, artifícios e técnicas, para produzir cenários, iluminação, sons,

fotografia. Representação que opera com símbolos, valores, ideias e sentimentos, cujos

significados são historicamente constituídos nas relações sociais nas quais ocorrem a

produção e a recepção dos filmes. (NOMA, 2012).

Evidentemente, é preciso destacar que um filme não tem a pretensão de abordar, de

lançar um olhar sobre a totalidade da vida social. O olhar produzido pelo cinema é uma

construção de uma determinada visão de mundo acerca de algumas dimensões do social.

Portanto está cheio de recortes. Desde a sua formação, ele implica uma série infinita de

escolhas, revelando sempre o ponto de vista que a equipe envolvida na produção (diretor,

atores, roteirista, produtor, etc.) tem sobre a temática abordada. Interessa-nos aqui, pensar

que, independentemente do tratamento dado ao tema, os filmes revelam dimensões da

consciência coletiva que é produto social da experiência de viver em uma determinada

sociedade. (Idem, 2012).

O primeiro ponto a se considerar na análise fílmica é trabalhar o documento

audiovisual de ficção com atenção para as suas estruturas internas de linguagem e seus

mecanismos de representação da realidade, a partir de seus códigos internos. E num segundo

momento ater se aos conceitos de subjetividade e objetividade. O filme ocupa um estatuto

intermediário entre uma visão “objetiva” e “subjetiva”. Seu caráter ficcional e sua linguagem

explicitamente artística, por um lado, lhe confere uma identidade de documento estético, o

que, a primeira vista remete a um caráter puramente subjetivista. Enquanto que sua natureza

técnica, sua capacidade de registrar e, hoje em dia, de criar realidades objetivas, encenadas

num outro tempo e espaço, remete, por outro lado, a uma visão objetiva. (NAPOLITANO,

2006)

É menos importante saber se tal filme foi fiel ao passado, do que buscar entender o

porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme. Napolitano

chama a atenção para a necessidade de articular a linguagem técnico-estéticas das fontes

áudio visuais, ou seja, seus códigos internos de funcionamento e as representações da

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realidade histórica ou social nela contidas, ou seja, seu “conteúdo” narrativo propriamente

dito. Assim como em toda operação historiográfica, critica externa e crítica interna, análise e

síntese, devem estar devidamente articuladas. (Idem, p.237-238)

Segundo Napolitano, o cinema como qualquer outro tipo de documento histórico, é

portador de uma tensão entre evidência e representação. Ou seja, sem deixar de ser

representação construída socialmente por um ator, por um grupo social ou por uma instituição

qualquer, a fonte é uma evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo

estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um processo de interpretação com

muitas variáveis. Importante também é considerar que, cada tipo de fonte, possui

características peculiares, conforme a sua linguagem constituinte. (Idem, p.240)

Será abordada aqui a história no cinema, ou seja, o cinema como produtor de “discurso

histórico” e como “intérprete do passado”. O historiador Eduardo Morettin aponta quatro

maneiras pelas quais a história se manifesta no cinema. (1) Herança positivista, no sentido da

preocupação com a exatidão da reconstituição fílmica do passado ou com o registro mais fiel

possível de eventos ocorridos. (2) Predomínio da ideologia (“discurso ideológico”) dos

realizadores sobre a historicidade, subvertendo o sentido dos personagens e dos fatos. (3)

Apelo ao “discurso novelesco”, predominante ao discurso histórico, tornando mais sutil a

“subversão” dos fatos e processos. (4) Criação de uma narrativa histórica própria, que opera

dentro do discurso histórico instituído, utilizando técnica de citação bibliográfica e

documental, legitimada por pesquisadores. (MORETTIN, 2003).

É imprescindível, portanto, estar atento a estas várias opções de representação

cinematográfica da história que terão efeitos não apenas estéticos, mas ideológicos,

completamente diferentes. Em muitos casos, essas quatro maneiras interpenetram-se, exigindo

do historiador, um olhar atento que vá além da clássica dicotomia entre “realismo” ou

“ficção”, ou filmes documentais adotados como realistas e filmes ficcionais tomados como

fantasias históricas. (NAPOLITANO, 2006, p. 241).

Napolitano se ancora em Morettin e Ramos para salientar que o historiador deve

“partir dos próprios filmes”, de sua significação interna, a partir da qual se insere determinada

base ideológica de representação do passado. Portanto a questão da autenticidade e da

objetividade do registro, importantes na perspectiva clássica de Ferro1, pouco importam.

1 FERRO, Marc. [Apud] NAPOLITANO, 2006, p. 245.

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Trata-se de buscar os elementos narrativos que poderiam ser sintetizados na dupla pergunta:

“o que um filme diz e como o diz?”. (MORETTIN; RAMOS [Apud] NAPOLITANO, 2006,

p. 245).

Há de se ressaltar, também, a capacidade do filme de criar uma memória histórica

própria: E as disputas que se estabelecem no presente em torno da preservação de

determinadas memórias sobre fatos e acontecimentos do passado. E como uma última

observação vale salientar que, todo filme, ficcional ou documental, é, segundo Napolitano

(2006), manipulação do “real”.

Passadas estas orientações de cunho teórico metodológico caminharemos agora para

uma análise externa e interna do documento, concluindo com algumas orientações finais.

Se atendo a aspectos mais gerais da produção de Terra em transe (1967) de Glauber

Rocha, podemos destacar alguns pontos relevantes a serem trabalhados, considerando o

aparato metodológico, em questão, já citado. Desta forma, se atendo ao filme como um

discurso produzido pelo cineasta e que buscou nas suas construções interpretar uma realidade

passada, seria quase impossível não localizar elementos semelhantes para uma comparação

direta com o processo histórico em que se situa O Governo Goulart e o golpe civil-militar de

1964, fazendo alusão aqui, ao título do trabalho do historiador Jorge Ferreira2.

Podemos destacar em bloco duas grandes questões, nas quais se identificam alguns

tópicos centrais abordados por Glauber Rocha: questões políticas e de ordem ideológica e

questões sociais, portanto, podemos compreender a partir dessa representação fílmica de

ordem cultural o balanço realizado pelo cineasta da dimensão política e social do Brasil nos

anos 1960, exteriorizando ao público uma reflexão de temas latentes no seu presente. Na

problematização do filme, podemos destacar ainda, a elaboração de uma nova estética

cinematográfica, Estética da Fome, que direcionou as atenções do Cinema Novo para

questões intrínsecas à da realidade brasileira.

A percepção do cineasta de uma realidade passada que se correlacione com elementos

históricos, dos quais buscou refletir e representar demonstra em seu presente a latência por

explicações acerca do Golpe-civil militar de 1964. Elementos alegóricos se demonstram a

2 DELGADO, L.; FERREIRA, J. (orgs.). O Brasil republicano: O tempo da tempo da ditadura. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003, v. 4.

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todo o momento, seja pelas tensões políticas entre as orientações de esquerda e direta ou

mesmo pela representação da tensa ambientação política no filme.

Quanto às questões de ordem política, podemos identificar que as diversas tendências

representadas fazem alusão ao quadro político pré-Golpe que se deu com tomada de posse por

Goulart em 1961, tais elementos, sob nossa interpretação, se identificam com a eleição de

Felipe Vieira ao governo da província de Alecrim e a incapacidade por fim de exerce

plenamente suas funções, conjuntura que se apresentou a Goulart: “não tinha como

implementar seus projetos reformistas. O sistema parlamentarista, implantado às pressas,

visava, na verdade, impedir que ele exercesse seus poderes. Sob um parlamentarismo

“híbrido”, o governo não tinha instrumentos que dessem a ele eficiência e agilidade.”

(FERREIRA, 2003, p.348.). Da mesma forma se deu com Vieira, personagem fictício, que

após a excitação de sua eleição se viu incapaz, na trama, de realizar seus projetos de cunho

populista.

Durante todo o processo que se desencadeia com a ascensão dos militares em 1964,

podemos observar a articulação de várias forças, que por fim se dividem em dois polos bem

demarcados, orientações políticas de esquerda e direita, representadas também no filme de

Glauber. É possível identificar tais posicionamentos políticos e ideológicos, suas divergências

externas e internas e a articulação dos diversos discursos que se originam dessas bases.

Refletindo sobre a preocupação do cineasta em representar tal quadro e propor ainda uma

reflexão ao público, podemos destacar a fala de Paulo Autran (Porfírio Diaz), que voltado

diretamente para a câmera, questiona a quem o observa: “Olha, imbecil, escute... A luta de

classes existe. Qual é sua classe? Vamos, diga!” 3. É nítido o posicionamento crítico, imposto

pelo discurso do cineasta à reflexão política, tanto de elemento históricos passados, quanto ao

seu presente.

A representação fílmica do cineasta consistiu em uma crítica, bem articulada a todos

as tendências políticas. A identificação de divergências de pensamento na esquerda é crítica

de Glauber que apresenta certa descrença em relação a estas, ressaltando no filme seus

elementos negativos. Jorge Ferreira nos mostra quais grupos pertenciam a esta orientação

política, da qual, a nosso ver, Glauber Rocha buscou retratar:

“Eram eles o PCB, as Ligas Camponesas, o bloco parlamentar autodenominado

Frente Parlamentar Nacionalista, o movimento sindical representado pelo CGT,

organizações de subalternos das Forças Armadas, como sargentos da Aeronáutica e

3 Terra em transe: 01hs 31min.

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do Exército e marinheiros e fuzileiros da Marinha, os estudantes da UNE e,

inclusive, uma pequena organização trotskista.” (FERREIRA, 2003, p.352).

A crítica à falta de articulação destes grupos se apresenta em vários momentos do

filme, inclusive no que tange a representação das massas por estas orientações de esquerda,

sobrepondo em muitos momentos as noções de democracia por um discurso radical. Pensar a

respeito dos desalinhamentos discursivos da orientação política de esquerda, ainda mais em

1967, era de imediato refletir na impossibilidade de aplicação prática, de possíveis reformas

sociais, sem uma homogeneidade político-social que fornecessem bases para tal mudança,

elemento enfrentado por João Goulart e presente também no discurso populista representado

de forma satírica por Glaube Rocha. Nesse contexto a articulação de um discurso conservador

orientado pela posição direita na política, ascende e toma forma na dominação do poder,

elemento explorado pelo cineasta que se identifica claramente com o Golpe civil-militar de

1964. Em 1967, refletir sobre tais questões, ainda mais a partir do cinema, foi fundamental

para que o público pudesse ter a possibilidade de se perceber enquanto agente de toda esta

conjuntura e de alguma forma se orientar diante das consequências latentes de seu presente

que precisavam ser de alguma forma, respondidas, considerando as próprias preocupações do

Cinema Novo e sua função crítica por meio do cinema.

O poder, identificado pelo cineasta se entrelaça com questões tanto nos extremos de

esquerda quanto de direita. A hierarquia e os jogos de influência e poder percebidos no filme

movem críticas contra a intelectualidade na representação das massas, que sempre caladas,

não possuem voz, justamente, também pela incompatibilidade de interesses e preocupações de

ordem social, entre ambas. A violência, que surge como elemento consequente destas formas

de poder, se orienta por questões políticas que não necessariamente atende aos interesses do

povo, tornando-o vítima desse processo de exclusão, da qual ele mesmo, segundo os olhares

do cineasta decidiu não participar, desta forma, a segurança pública, no filme serve aos

interesses dos que estão no poder, independente da sua orientação política, tanto Porfírio

Diáz, representação da direita, quanto Felipe Viera, representação populista da esquerda.

A corrupção, desta forma, é algo denunciado pelo cineasta, por meio também da

representação degradante da cultura burguesa, do consumo e da futilidade. O empresariado

corrupto demonstra estar interessado somente nas formas de poder e tange as orientações

políticas que atendem suas demandas. Glauber Rocha explora a hipocrisia destes interesses

que não possuem limitações de ordem política e sim, somente interesses econômicos. A

semelhança com o empresariado nacional que apoiou o golpe-civil militar em 1964 não

deixaria de ser notado, elemento representado claramente pelo cineasta. A ligação da política

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com empresas privadas e o intervencionismo de domínios multinacionais, se apresentam no

filme a partir da fictícia empresa Explint.

A opinião pública e a influência dos meios de comunicação são representadas por

Glauber como elemento a ser considerado na influência e mobilização das massas, Julio

Fuentes, personagem que se mostra alegoricamente como representante do empresariado, se

articula no jogo político de acordo com seus próprios interesses, sempre buscando estar de

acordo com os elementos majoritários de poder. A princípio em apoio às tendências de

esquerda no filme, a aliança de tais meios com as orientações políticas de direita é o passo

seguinte da personagem, elemento observado por Jorge Ferreira: “Uma ampla campanha

baseada na histeria anticomunista convenceu parcelas significativas da população formada por

empresários, políticos, jornalistas, religiosos, sindicalistas, profissionais liberais, militares e

trabalhadores – de que Goulart, de fato, teria intenções de comunizar o país”. (Ferreira, 2003,

p. 360).

Quanto às questões de ordem social, correlacionadas com a proposta do Cinema

Novo e da estética da fome, salientada em manifestos, inclusive por Glauber Rocha, podemos

destacar dois grandes pontos, a questão da pobreza e desigualdade social e a questão da terra e

da reforma agrária, tais elementos se entrelaçam diretamente com a situação política das

“massas”. Pensada em alguns momentos como massas e em outros como povo, é perceptível a

dicotomia explorada pelo cineasta: quando estas possuem voz, são conclamadas a se

pronunciarem e lhes é dado o seu espaço legítimo, a praça, como a democracia nos moldes

gregos, estas recebem o adjetivo de povo, entretanto, quando estas estão sendo orientadas por

um líder e não possuem a palavra para sua própria expressão, essas são identificadas enquanto

massa, em que a responsabilidade por seus destinos reside a outrem, restando-lhes a religião,

que sabiamente utilizada nos discursos de poder e nas cruzes grandiosamente utilizadas como

ornamentos políticos para mobilização alienada das massas. A oração, explorada pelo cineasta

é elemento que contrasta com a falta de mobilização frente às mazelas da pobreza e da

desigualdade.

A pobreza e a desigualdade exploradas por Glauber Rocha são enfáticas, de orientação

marxista, que atestam a problemas sociais de ordem econômica, que, entretanto, são possíveis

de serem pensados a partir da crítica do cineasta, como não somente, de ordem econômica,

mas também de ordem política. A crítica às massas é elemento evidente, estas no filme não se

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mobilizam, não falam, não lutam e tais críticas pensadas no contexto de recepção do filme,

demonstram claramente o direcionamento ideológico do cineasta.

As personagens em diversos momentos contrastadas com a situação de miséria

encarnam claramente uma causalidade ou continuidade desta. O engajamento para combater a

miséria e a desigualdade, o caráter paternal que anestesia as mazelas da pobreza, a indiferença

passiva que está alienada de tais elementos, a repugnância que desencadeia toda esta situação,

todos diretamente relacionados com o cotidiano pobre, dependente dos votos e da ignorância

das massas.

A questão agrária, colocada por Glauber, pano de fundo de toda a questão da terra no

Brasil, parece se apropriar de certos elementos do passado para construir sua representação.

As questões pendentes do passado analisadas por Glauber fazem alusão as formação das Ligas

Camponesas no nordeste do país e a problemática questão agrária, que no governo João

Goulart teve os seus ensaios com a formação da Superintendência da Reforma Agrária

(SUPRA). No filme, o cineasta buscou representar a questão da violência no campo,

deslocando sua crítica para a incapacidade das massas de organização política e sua

dependência paternalista dos setores ligados ao poder.

Paulo Martins, cuja profissão oscila entre jornalista, poeta e político é o principal

personagem de Terra em Transe. Sua trajetória se confunde com o próprio enredo do filme. É

o principal fomentador da revolução social em Eldorado, mas, seu receio e indecisão

enfraquecem essa postura. Está mortalmente dividido entre poesia e política, entre transformar

a sociedade, cedendo seu apoio a demagogos fracos, ou aliar-se aos conservadores da ordem

social que de alguma forma o criaram. Não se identifica com as massas de Eldorado, apesar

de recorrer ao seu nome com frequência, lhes imputando a responsabilidade pela situação de

miséria e exploração em que se encontram. Em determinados momentos do filme, acaba

tomando consciência de que também tem culpa nesse processo, daí sua necessidade

existencial de engendrar uma revolução que extermine as forças anacrônicas que subjugam a

nação. O começo e o fim do filme mostram a morte de Paulo, assassinado pela polícia

enquanto tentava fugir do palácio de Vieira após o golpe. Descreve a Sara, ao seu lado na

agonia, seu desencanto com a própria pureza que achava possuir, com os ideais ingênuos que

achava portar. O filme é em suma sua memória.

Paulo representa a intelectualidade brasileira da década de 1960, criada dentro dos

setores reacionários, que inspirado pela revolta com a própria situação do país e com ânsia de

autonomia de pensamento e ação políticos, vive relações de amor e ódio com João Goulart,

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que parecia ser o seu líder no sentido de garantir as transformações sociais que esperavam,

mesmo que a radicalização fosse necessária. Sua indecisão e sua impossibilidade de reagir aos

eventos que se desdobravam com grande velocidade levam essa intelectualidade a ser uma das

principais vítimas do golpe de 1964.

Porfírio Diaz, o perfeito representante das classes dominantes da sociedade, é o

político reacionário por excelência. Possui amplo apoio da Explint, transnacional que o

patrocina, para que faça da política de Eldorado campo fértil para sua exploração predatória.

Construiu sua carreira rumo à presidência, através de traições, demagogia, mentiras,

corrupção, prevaricações e nepotismo. Seu discurso sempre se baseia no imaginário cristão,

na tradição, na família, na ordem. Mas ironicamente e mesmo intencionalmente, Diaz é

incapaz de aplicar a ética de seu discurso à própria vida. Por esse motivo constrói uma

violenta diferenciação entre sua pessoa pública e privada. Anda iconicamente com uma

bandeira em uma mão e o crucifixo na outra quando fora de seu palácio. Mas entre os muros

de sua casa, maquina, trama e se prostituí com Silvia, sua amante.

Tem uma relação íntima com Paulo, foi seu mecenas no princípio e o quer junto de si

pelo poder que o mesmo tem com as palavras. Porfírio vê Paulo como um homem que pode

ajudá-lo a mascarar sua verdadeira natureza. Mas Paulo sente a responsabilidade social

pesando em seu espírito, expresso por sua poesia que ganha teor cada vez mais crítico, sendo

esse o motor engendrador do violento rompimento entre os dois. Porfírio Diaz foi um nome

escolhido a dedo por Glauber Rocha. Faz referência ao ditador mexicano José de La Cruz

Porfirio Díaz Mory (1830 – 1915), que inicialmente, em sua escalada política alinha-se ao

liberalismo e depois, após ganhar destaque durante a resistência do México à invasão francesa

e sua submissão à protetorado, institui-se como presidente em 1876 e ditador de 1884 a 1911.

Seu governo foi findando com a revolução mexicana. Desenvolveu o México a custo de uma

violenta dependência estrangeira e formou uma tecnocracia para modernizar os métodos de

governo, um conjunto de intelectuais, chamados por ele de científicos. Porfírio Diaz, como

seu correspondente histórico, simbolizam a alegoria do político corrupto e oportunista, que

muda de lado conforme o vento, e perpetua-se no poder com o auxilio dos setores mais

reacionários, com o sacrifício da população, mais carente e despossuída.

Felipe Vieira, político de Alecrim, província periférica de Eldorado, é o porta-voz da

reação ao jogo político simbolizado por Porfírio Diaz. Têm um tom paternalista, estratégias

populistas e é um demagogo de grande influência nas massas. É visto por Paulo inicialmente

como o líder político que irá deflagrar a revolução social e este não poupa esforços para

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apoiá-lo. Mas Vieira, ao tornar-se governador de Alecrim, mostra sua fraqueza de caráter,

escondendo-se atrás de um discurso conciliador com as forças reacionárias, abandonando a

aliança que tinha construído com a população, especialmente com os camponeses. Paulo

perde sua fé em Vieira, o abandona, mas graças à intervenção de Sara, retorna com o apoio

das indústrias e meios de comunicação de Eldorado, representados na figura de Júlio Fuentes.

Porém o quadro favorável a Vieira não se perpetua. A direita representada por Diaz, aliada ao

imperialismo da Explint, traz Fuentes de volta a sua órbita e começa a engendrar um golpe

por temor ao populismo que mobiliza catarticamente as massas. Na hora da decisão, no

momento do rompimento revolucionário, Vieira abandona a luta e entrega o poder a Porfírio

Diaz. Talvez o momento mais contundente do longa-metragem.

As figuras de Felipe Vieira e João Goulart convergem, em todos os pontos. Palavras

similares, práticas parecidas, ações comparáveis. A mesma imobilidade que a película nos

passa em relação a Vieira no início do filme é sofrida por Goulart. A mesma pressão do

segmento transversal de esquerda cai sobre ambos para resistirem ao golpe articulado pela

direita. No caso de Vieira vemos representantes do exército, intelectualidade, igreja,

revolucionários comunistas, mídia. E no caso de Goulart:

Diversos grupos se mobilizaram para a resistência: o CGT, o PUA, o CPOS, a união

dos portuários, o sindicato dos Ferroviários da Leopoldina, a UNE, a UME, a UBES,

CACO, ex-pracinhas, sargentos, fuzileiros navais, organizações populares,

comunistas, brizolistas, entre diversos outros. Contudo, nenhuma ordem vinha do

Palácio das Laranjeiras. (FERREIRA, 2003, p. 397).

E a mesma apatia é observada. Ambos recuam diante da iminência de uma guerra civil

fratricida, clamando o valor do sangue sagrado das massas, e cede lugar a realização do golpe

de Estado. Em muitos outros pontos as duas imagens são similares. Mas sem dúvida essa

passagem é a mais emblemática da equivalência que Glauber Rocha quis transmitir entre o

personagem de sua trama e o ex-presidente deposto.

Sara é uma das principais personagens de Terra em Transe. Professora de Alecrim,

província de Eldorado e posteriormente secretária de Felipe Vieira, inicialmente age como

elemento de denúncia as injustiças sociais coordenados pelo governo e por particulares.

Possui uma forte participação política e um gigantesco engajamento. Está presente em todos

os momentos de ação e reflexão revolucionária, conduzindo e catalisando frequentemente o

processo. Tem um caso de amor com Paulo, e seus encontros marcam vários momentos

dramáticos no filme. Sua figura possui grande força de caráter, mas sua determinação na

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crença em uma revolução depende misteriosamente dos demais personagens, principalmente

Paulo e Vieira.

A representação que Glauber Rocha quer fazer de Sara parece clara quando

analisamos a cultura política da república brasileira, em princípio muito inspirada pela França;

sendo que da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologia cívica

francesa, representado seja a liberdade, seja a revolução, seja a república. (CARVALHO,

1990, p.75). Ela surge como um contraponto necessário ao vácuo deixado pela queda da

monarquia e da figura masculina do rei. A iconografia e os monumentos são abundantes a

respeito dessa temática. Temos o quadro de Delacroix, a Liberdade guiando o povo (1830) e a

escultura de Rude, A partida dos voluntários (1834) e muitas outras obras de relevo,

retratando mulheres de grande presença liderando levantes populares. Na França, a

popularização desta figura feminina veio com Marianne, nome popular de mulher. Marianne

passou a personificar a república, unificando as formas anteriores.

(CARVALHO, 1990,

p.78). No entanto, Marianne (esta alegoria da pátria, revolução e liberdade) não foi bem aceita

no Brasil, não aderiu no imaginário popular, ficando restrita à intelectualidade brasileira do

período. Mas mesmo hoje persiste na numismática.

Sara e Marianne tem suas grandes semelhanças. Personifica uma força, um conceito,

uma ideia abstrata, diferente das figuras masculinas, ícones de segmentos sociais presentes

nas tensões políticas que resultaram no golpe de 1964. Sara é o espírito da revolução. Ela

apaixona-se por Paulo, o símbolo da intelectualidade brasileira. O instiga, apresenta a ele

elementos para sua revolta (fotos de famintos, presos e injustiçados para seu jornal

independente em Alecrim, que adquire após romper com Diaz), o incentiva em sua poesia

política, o apresenta a Vieira, o leva a trair Diaz de vez, o denunciando publicamente, a

arrebanhar o patrocínio de Fuentes. Sara conduz Paulo, e está sempre ausente quando este

pratica suas injustiças contra os menos favorecidos ou se prostituí com os poderosos. Sara dá

voz aos que estão mudos, ao na praça dizer a um homem qualquer “você é o povo”, “fale!”.

Ela diz em outra passagem sobre ter sido a primeira a levantar a voz, a pronunciar protesto

contra as forças dominantes e a primeira a ser violentada. Concluindo, ela passa incólume aos

eventos que levam a morte de Paulo e a deposição de Vieira, mas na tomada final do filme,

está sozinha, sem rumo, perdida na estrada que não leva a lugar algum. Como espírito da

revolução, sem pessoas que a carreguem e que a sustentem, Sara está fadada a dissolver-se no

ar.

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Silvia é o extremo oposto de Sara. De beleza marcante, passa por todo o filme como

objeto estético, desprovido de opinião, posicionamento, vontade, entrando muda e saindo

calada de cena. Sempre acompanha Porfírio Diaz, e com frequência acaba sendo amante de

outros personagens, principalmente Paulo. Sua passividade é tão grande quanto sua

lascividade, participando com frequência das orgias organizadas por Júlio Fuentes. Silvia é

outra alegoria, que deriva do mesmo fundo simbólico francês, legado pela república brasileira

e que ficou no imaginário da intelectualidade. Ela é outra face de Marianne, só que derivando

mais para um ideal de República Burguesa do que Socialista. (CARVALHO, 1990, p.78).

Esta figura é mais maternal, bela, sólida (no sentido de estabilidade), não está em movimento.

Ela representa um ideal de pátria que quer conservar em vez de alterar. Sua personalidade e

sua forma demonstram essa cisão. Silvia difere de Sara por encarnar a contemplação em vez

da ação, encarna mais um ideal de conformismo com a situação de Eldorado do que o

radicalismo da revolta.

Mas Glauber Rocha explora essa alegoria de Silvia, que representa a república

brasileira burguesa, recorrendo a uma tradição presente desde o início do século XX nos

círculos midiáticos, que é o de comparar esta representação feminina com uma meretriz,

mulher de muitos homens. (CARVALHO, 1990, p.88 – p.89). É um claro sinal de protesto a

essa aura de pureza com a qual o governo queria se recobrir. O imaginário popular brasileiro,

em vez de assimilar uma virgem-mãe, mantenedora do povo (como concebido pelos

franceses), liga os pontos e vê uma prostituta. Silvia é assim, como a república brasileira,

aparentemente pura, mas é vendida, passa de mão em mão entre os poderosos, e nenhuma

palavra profere a favor ou contra sua situação degradante.

Por fim, existe um líder camponês, de nome desconhecido, que faz uma ponta de

grande relevância no filme. Graças a seu apoio e de tantos outros como ele, Vieira se elege em

Alecrim. Mas suas demandas são esquecidas, e sua luta por terra e justiça social é ignorada.

Sua revolta contra Vieira se desdobra, mas acaba assassinado por um dos Coronéis da região,

aliado político do governo da província. Neste momento a estética da fome fica evidente. O

camponês caído contrasta violentamente com a extrema luminosidade do ambiente. Os

olhares dos figurantes têm expressão faminta. Faminta de alimento, de justiça, de amparo.

Este camponês assassinado é a representação do conflito agrário nunca solucionado, nem

durante as filmagens de Terra em Transe, nem no presente momento.

Partindo para algumas considerações finais e pensando agora, um pouco, no sentido da

recepção e repercussão que o filme teve vale destacar que, em Alegorias do

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subdesenvolvimento, Ismail Xavier compreende que Terra em transe resultou numa

experiência de choque, contribuindo para um novo impulso na cultura, gerando toda uma

produção no âmbito do cinema, da música, do teatro.

Quando se deu seu lançamento, houve debate sobre o filme “Terra em transe” no

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O então jornalista do Jornal do Brasil, Fernando

Gabeira alude em sua obra “O que é isso companheiro?”: “Lembro-me do debate sobre o

filme “Terra em transe”. De um lado, estava o grupo dos excelentes diretores do Cinema

Novo defendendo o filme, parte por sua importância estética e parte porque são muito

solidários entre si. De outro, estava à plateia da zona Sul do Rio de Janeiro, maravilhada com

as proposições do filme”. Para Gabeira o filme trazia uma “concepção muito depreciativa do

povo brasileiro”, acabando com uma solução elitista de “quem não acredita na capacidade

organizada das massas”, ainda para ele, o filme discutia “duas saídas e escolhia a pior delas.”

À época Gabeira repudia a luta armada contra a ditadura militar, porém, algum tempo

depois segue esse caminho para combater o regime, inclusive alugando o apartamento usado

de cativeiro no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Este paradoxo

indica quão problematizador foi o filme.

“Terra em transe” alcançou também comentários no meio dos produtores culturais,

como para Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, para ele “o Brasil não é isso que o Glauber

Rocha vê”. Essa posição impactante se reitera na peça “Papa Highte”, de 1968, uma clara

crítica à opção pela luta armada.

Outro posicionamento é o de Jacob Gorender, para ele “a aversão emocional ao

populismo atingiu o terreno das artes e aí deslizou para a aversão à própria massa popular.

Terra em transe satiriza o líder populista e as massas imbecis que se deixam enganar. Nada a

esperar dessas massas idiotizadas, mas do intelectual que sai atirando de metralhadora”

(GORENDER, 1987).

Vale lembrar que essas são posições marcadas politicamente, onde o receptor subjuga

o diretor em vista de seus posicionamentos históricos, daí a capacidade do filme dialogar com

diversos campos sociais, “Terra em transe coloca quem se comunica com o filme em estado

de tensão e de necessidade de criação neste país” (CORRÊA, 1968).

Outra análise importante em se salientar foi o impacto do filme sobre Caetano Veloso,

para este se o “tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos

então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme

Terra em transe. Nada do que veio a se chamar tropicalismo teria tido lugar sem esse

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momento traumático. Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da

crença das energias libertadoras do povo, eu, na plateia vi, não o fim das possibilidades, mas o

anúncio de novas tarefas para mim” (VELOSO, 1997), neste sentido, para além de propor

soluções ao regime, como a luta armada, o filme conclama ao posicionamento da população:

“A sociedade brasileira é feita de classes! A que classe você pertence, hein? A que classe?”

(trecho da fala de Diaz, em direção à câmera), é onde, na seara da criação artística brasileira, a

produção cultural aparece como tentativa sociopolítica de realizar uma transformação

histórica, (re) construindo interpretações sobre a realidade nacional.

Segundo Robert Stan, Terra em transe é um filme provocador, agressivo,

intencionalmente difícil, uma lição adiantada do ponto de vista das significações políticas e

cinematográficas que contém. Cria um mundo de contradições sistemáticas: entre os

personagens, no interior dos mesmos, entre o som e a imagem, entre os estilos

cinematográficos. Certas rupturas Brutais desorientam o espectador, impedindo qualquer

identificação com os personagens. O filme se configura como um exemplo de pedagogia

revolucionária. A metodologia e a visão do filme são dialéticas; não oferece nenhuma receita

pronta para soluções práticas. A solução consiste na tomada de consciência do espectador.4

4 Robert Stan disponível em:

http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D07_Terra_em_Transe.pdf

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REFERENCIAS: Fonte:

“Terra em transe” de Glauber Rocha, BRASIL, 1967, 115 min.

Bibliografia:

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São

Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? Rio de Janeiro: CODECRI, 1981.

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1987.

MORAES, Denis de. Vianinha: cúmplice da paixão. RJ: Nórdica, 1981.

MORETTIN, Eduardo Victorio. A representação da história no cinema brasileiro (1907-1949). An.

mus. paul. [online]. 1997, vol.5, n.1, pp. 249-271.

_________________________. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História

Questões & Debates. Curitiba: História/ UFPR, n. 20/38, jan./jun. 2003, pp. 11-42.

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes

Históricas. São Paulo: Contexto, 2006.

NOMA, Amélia Kimiko. Imagem, História e educação: o cinema como fonte para a pesquisa

histórica em educação. Disponível em: http://www.dtp.uem.br/lap/public/04.pdf acesso em:

(16/06/2012).

RIDENTI, M. S. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: DELGADO, L.;

FERREIRA, J. (orgs.). O Brasil republicano, vol. 4 - O tempo da tempo da ditadura. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003, v. 4, p. 135-166.

SOUZA, Carlos Roberto de. A fascinante aventura do cinema brasileiro. São Paulo: Fundação

Cinemateca brasileira, 1981.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.

Infografia:

http://www.dtp.uem.br/lap/public/04.pdf acesso em: (16/06/2012).

http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1213054181_ARQUIVO_Artigo_Anpuh(final).pdf acesso em: (19/06/2012).

Ficha técnica disponível em: http://www.tempoglauber.com.br/f_terra.html acesso em: (19/06/2012).

http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D07_Terra_em_Transe.pdf acesso em:

(19/06/2012).

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Anexo:

FICHA TÉCNICA

Ficção, longa-metragem, 35 mm, preto e branco, Rio de Janeiro, 1967. 3.100 metros, 115 minutos. Companhias

produtoras: Mapa Filmes e Difilm; Distribuição: Difilm; Lançamento: 8 de maio de 1967, Rio de Janeiro (Bruni-

Flamengo, Coral, Caruso, Festival e outros cinemas do circuito Lívio Bruni); Produtor executivo: Zelito Viana;

Produtores associados: Luiz Carlos Barreto, Carlos Diegues, Raymundo Wanderley, Glauber Rocha; Gerente

administrativo: Tácito Al Quintas; Diretor: Glauber Rocha; Assistentes de direção: Antônio Calmon, Moisés

Kendler; Argumentista e roteirista: Glauber Rocha; Diretor de fotografia: Luiz Carlos Barreto; Câmara: Dib

Lufti; Assistente de câmara: José Ventura; Fotógrafos de cena: Luiz Carlos Barreto, Lauro Escorel Filho;

Trabalhos fotográficos: José Medeiros; Eletricistas: Sandoval Dória, Vitaliano Muratori; Engenheiro de som:

Aluizio Viana; Montador: Eduardo Escorel; Assistente de montagem: Mair Tavares; Montadora de negativo:

Paula Cracel; Cenógrafo e Figurinista: Paulo Gil Soares; Trajes de Danuza Leão: Guilherme Guimarães;

Letreiros: Mair Tavares; Carta: Luiz Carlos Ripper; Música original: Sérgio Ricardo; Regente: Carlos Monteiro

de Sousa; Quarteto: Edson Machado; Vozes: Maria da Graça (Gal Costa) e Sérgio Ricardo; Música: Carlos

Gomes (O Guarani), Villa-Lobos (Bachianas n.3 e 6), Verdi (abertura de Othelo); canto negro Aluê do

candomblé da Bahia, samba de favela do Rio; Locações: Rio de Janeiro e Duque de Caxias (RJ); Laboratório de

imagem: Líder Cine Laboratórios; Estúdio de som: Herbert Richers; Prêmios: Prêmio da FIPRESCI (Federação

Internacional de Imprensa Cinematográfica) e Prêmio Luis Bunuel no XX Festival Internacional do Filme, em

Cannes/1967; Golfinho de Ouro para Melhor Filme - Rio de Janeiro/1967; Coruja de Ouro para melhor ator

coadjuvante (José Lewgoy) Rio de Janeiro/1967; Prêmio Air France de Cinema para melhor filme e melhor

diretor - Rio de Janeiro, 1967; Prêmio da Crítica, Grande Prêmio Cinema e Juventude - Locarno, Itália; Prêmio

da Crítica (Melhor Filme) - Havana, Cuba; Melhor Filme, Menção Honrosa (Melhor Roteiro), Melhor Ator

Coadjuvante (Modesto de Sousa), Prêmio Especial a Luiz Carlos Barreto (pela fotografia e produção) - Juiz de

Fora (MG);

Elenco: Jardel Filho - PauloMartins; Paulo Autran - D. Porfírio Diaz; José Lewgoy - D. Filipe Vieira; Glauce

Rocha - Sara; Paulo Gracindo - D. Júlio Fuentes; Hugo Carvana - Álvaro; Danuza Leão - Sílvia; Jofre Soares -

Padre Gil; Modesto de Sousa - senador; Mário Lago - secretário de segurança; Flávio Migliaccio - homem do

povo; Telma Reston - mulher do povo; José Marinho - Jerônimo; Francisco Milani - Aldo; Paulo César Pereio -

estudante; Emanuel Cavalcanti - Felício; Zózimo Bulbul - Repórter; Antonio Câmera- índio; Echio Reis,

Maurício do Valle, Rafael de Carvalho, Ivan de Souza;