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1 TERRITÓRIOS EM DISPUTA: CONFLITOS E VIOLÊNCIA NO OESTE DO PARÁ 1 Amadeu de Farias Cavalcante Júnior Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA [email protected] Resumo Atualmente, a discussão em torno do território levou a uma “nova disputa” pelos ribeirinhos, indígenas, quilombolas, e, de modo especial, os trabalhadores rurais, em busca de seus direitos ao território e a terra. O Governo Federal, através do Incra, tem estimulado o desmatamento, os conflitos e a violência, por meio dos assentamentos, diante de um modo de ocupação da terra que não tem rigor com o licenciamento ambiental. Este modelo veio se chocar com a ocupação humana existente, nunca anteriormente contestada, cujo meio de produção tradicional está relacionado ao uso das florestas e dos rios. O objetivo deste trabalho será analisar que, este processo sobre os conflitos e violência no campo, especialmente pistolagem, estão relacionados a pressão das madeireiras dentro dos assentamentos e o assédio financeiro às comunidades. Palavras-chave: Território. Nova disputa. Conflitos. Violência. A Amazônia como Fronteira de Expansão “Agromadeireira” Desde o regime militar, a partir da década de 1960, a Amazônia foi colocada como parte de um processo de modernização e ocupação territorial em que possuía mais de 90% de suas terras originais, inexploradas em grande escala, e habitada majoritariamente por indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Ao longo desse processo, vieram os Grandes Projetos, como a Hidrelétrica de Tucuruí, o projeto Carajás, a Alcoa e MRN, no Baixo Amazonas, entre outros, como o projeto de construção da Transamazônica e a BR-163 (Santarém-Cuiabá). Em torno destes, o modelo de ocupação se deu historicamente pela disponibilidade de terras para expansão do capital, ao qual promoveu uma série de conflitos e violências em torno da posse das terras. Isto gerou problemas com o modo de ocupação e sobrevivência tradicional dos povos que ocuparam a Amazônia, que quase nada causaram impactos significativos nos danos à floresta e seus rios. Para o modo tradicional de relação com a natureza, o homem que aqui viveu por muito tempo tinha uma forma de produção que não era “mercadológica” com a natureza, sendo esta forma de relação invertida logo depois pela lógica do capital e do mercado em torno das terras em toda a Amazônia, desde o período da borracha.

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TERRITÓRIOS EM DISPUTA: CONFLITOS E VIOLÊNCIA NO OESTE DO PARÁ1

Amadeu de Farias Cavalcante Júnior Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA

[email protected]

Resumo Atualmente, a discussão em torno do território levou a uma “nova disputa” pelos ribeirinhos, indígenas, quilombolas, e, de modo especial, os trabalhadores rurais, em busca de seus direitos ao território e a terra. O Governo Federal, através do Incra, tem estimulado o desmatamento, os conflitos e a violência, por meio dos assentamentos, diante de um modo de ocupação da terra que não tem rigor com o licenciamento ambiental. Este modelo veio se chocar com a ocupação humana existente, nunca anteriormente contestada, cujo meio de produção tradicional está relacionado ao uso das florestas e dos rios. O objetivo deste trabalho será analisar que, este processo sobre os conflitos e violência no campo, especialmente pistolagem, estão relacionados a pressão das madeireiras dentro dos assentamentos e o assédio financeiro às comunidades. Palavras-chave: Território. Nova disputa. Conflitos. Violência. A Amazônia como Fronteira de Expansão “Agromadeireira” Desde o regime militar, a partir da década de 1960, a Amazônia foi colocada como parte de

um processo de modernização e ocupação territorial em que possuía mais de 90% de suas

terras originais, inexploradas em grande escala, e habitada majoritariamente por indígenas,

quilombolas e ribeirinhos. Ao longo desse processo, vieram os Grandes Projetos, como a

Hidrelétrica de Tucuruí, o projeto Carajás, a Alcoa e MRN, no Baixo Amazonas, entre

outros, como o projeto de construção da Transamazônica e a BR-163 (Santarém-Cuiabá).

Em torno destes, o modelo de ocupação se deu historicamente pela disponibilidade de terras

para expansão do capital, ao qual promoveu uma série de conflitos e violências em torno da

posse das terras. Isto gerou problemas com o modo de ocupação e sobrevivência tradicional

dos povos que ocuparam a Amazônia, que quase nada causaram impactos significativos nos

danos à floresta e seus rios. Para o modo tradicional de relação com a natureza, o homem

que aqui viveu por muito tempo tinha uma forma de produção que não era “mercadológica”

com a natureza, sendo esta forma de relação invertida logo depois pela lógica do capital e

do mercado em torno das terras em toda a Amazônia, desde o período da borracha.

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As mortes recentes da família Canuto, de Chico Mendes, da freira Dorothy, do casal José

Cláudio e Maria do Espírito Santo, estão profundamente ligados a uma lógica sistemática

produzida no contexto das regiões marcadas pela expansão do modelo econômico e político

do latifúndio, dos desmatamentos pelas madeireiras, e da expansão do agronegócio

(pecuária e soja). Todos os agentes marcados com ameaças de mortes ou mortos por

pistoleiros estavam diretamente ligados ao processo de defesa dos direitos humanos dos

“povos da floresta”, do território, como espaço social, cultural e meio de vida e memória

destes povos; ou denunciando as mazelas do processo de crimes ilegais contra o meio

ambiente ou contra a exploração do trabalho destes trabalhadores. O território é o espaço

que não se reduz à mera demarcação de terras (LITTLE, 2002).

O processo de expropriação do capital com a expansão do desmatamento pelas madeireiras

através dos assentamentos do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

– no Baixo Amazonas e no Sudeste do Pará, em nossa hipótese, se constitui em espaço de

lutas pela terra e o território, enquanto campo de “novas disputas” pelos direitos de

indígenas, quilombolas e ribeirinhos em defesa de seus territórios tradicionais como cultura

e relação com seu passado, tendo como atores deste processo madeireiras, o poder político

e econômico local interessados em justificar a lógica do “desenvolvimentismo” pela

“exploração” dos recursos naturais, como “única vocação” econômica da região. Neste

trabalho, queremos mostrar que o Incra, através dos projetos de assentamentos, tem

consolidado, embora não seja este seu discurso oficial, os desmatamentos ao longo dos

anos de 2000 a 2010, reforçando o êxito econômico das elites locais e do poder privado em

torno da propriedade privada da terra.

Neste aspecto, sob a justificativa de assentar o “agricultor”, a instituição do Governo

Federal tem estimulado também o desmatamento massivo, sem licenciamento ambiental,

provocando grande retirada de madeira de alto valor comercial. Assim, a terra aparece

como instrumento de disputa pelos atores, visto que este modelo de assentamento sem

licença ambiental tem sido forte indutor da ação dos agentes econômicos locais, que, ao

usarem várias táticas como a grilagem e os “testas de ferro”, conseguem, através do

“pequeno” agricultor, expandir as terras, inclusive sobre os territórios indígenas e

quilombolas, para atuarem sob a expropriação da floresta e da expansão da “agromadeira”,

gerando uma sistemática de conflitos e violências. Para respaldar nosso trabalho, utilizamos

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como metodologia os autos do processo dos documentos do Ministério Público Federal, em

ação de Inquérito Civil Público contra o Incra, mediante protocolo nº.

1.23.000.002382/2011-17 de 29 de junho de 2012.

A expansão do latifúndio e do setor madeireiro não tem encontrado também muitas

resistências políticas e ideológicas locais, a não ser daqueles que efetivamente lutam pela

terra com valor agregado a uma visão de território como campo de defesa dos direitos, da

história, da memória e da cultura tradicional de um modo de vida organizado para a

agricultura extrativista de pouco impacto ambiental (LITTLE, 2002). A facilidade na

obtenção da terra, sobre o pressuposto do “desenvolvimento produtivo” das áreas, tem

levado os agentes que representam o capital especulativo imobiliário expandir o domínio

das terras por longos territórios de assentamentos, justificando o critério de “produtividade”

das terras, com apoio de um agente fundamental neste processo, o “grileiro” que possui a

função de “legalizar” terras de domínio público pelo poder privado, promovendo a

violência proveniente dos conflitos pelo território na região (TAVARES, 2012, p.18). Deste

processo resulta a expulsão dos posseiros do campo, e os que resistem passam a enfrentar

de forma desigual as forças econômicas amparadas pelo Estado e as decisões do judiciário,

além do poder privado representado por empresários ligados ao setor agromadeireiro

(PINTO, 2012).

O setor madeireiro é importante na lógica da apropriação e consolidação da propriedade

privada pelos seguintes motivos: 1) há um processo histórico e ilícito de documentação pela

grilagem; 2) pela efetiva ocupação que se dá mediante o desmatamento, a retirada de

madeira comercial; 3) abertura para outros setores produtivos, como a pecuária extensiva e

a agricultura ligada ao agronegócio; 4) a utilização de extensões de terras e do território

pelo desmatamento simbolizam o êxito da atividade econômica (TAVARES, 2012, p.19). O

desmatamento não significa apenas a ocupação “produtiva” do assentamento liberado pelo

Incra sem o licenciamento ambiental, pois, de forma objetiva, significou a reprodução de

um modelo de ocupação das terras e do território pela prática importada do modelo

“sulista” de devastação de toda a floresta, deixando-a aberta a lógica do agronegócio. Deste

processo perverso, as populações tradicionais perdem seus territórios para o fazendeiro e

madeireiro, além da referência de seu modo de vida com a natureza e um modo de

produção local (CASTRO, 2008).

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O entorno da BR-163, na região oeste do Pará, que vem de Mato Grosso para Santarém,

onde se localiza o porto da Cargill, entreposto utilizado para escoar a soja da região, tem

sido marcado pela lógica do mercado de terras, e os assentamentos são também formas de

expandir o mercado das terras. Nessa dinâmica de novas terras, os mecanismos ilícitos pela

grilagem de terra são facilitados pela participação de cartórios e órgão públicos que,

apoiados em atos normativos e jurídicos tentam revestir de legalidade a aquisição de terras,

configurando a transferência para o poder privado territórios pertencentes aos povos

indígenas, quilombolas e moradores ribeirinhos (MPF, 18/06/2012). As estratégias de

expansão do setor agromadeireiro também são comumente reforçadas pelas ações do

governo do Estado, como o Zoneamento Econômico Ecológico, implantado pelo Governo

Ana Júlia do PT, para demarcar as áreas do território para o capital privado, sob o discurso

do “desenvolvimento sustentável”, zoneando as áreas públicas em que o setor privado não

pode ocupar, como terras indígenas. A expansão da soja na região, impulsionada pelos

madeireiros, tem provocado a violência contra agricultores familiares indígenas, povos e

comunidades tradicionais que são expropriados de seus territórios, e os problemas dos

conflitos são retratados pela ótica da “ordem pública” ou policial (SOLANGE COSTA,

2011, p.70).

Em processo recente do Ministério Público Federal, Processo nº 2003.39.02.001236-5 -

Justiça Federal em Santarém, de 2009, foi realizado a operação Faroeste, e ficou

caracterizado a participação de funcionários do Incra, políticos e empresários da região na

grilagem de terras. Tal prática vem constatar nossa hipótese de que os assentamentos foram

usados para a prática da grilagem das terras públicos e a relação com o poder privado,

expropriando os territórios que estão sendo reclamados por quilombolas, indígenas e

populações tradicionais. No Pará, as assentados sofrem pressão de grileiros e madeireiros,

para que deixem suas terras mediante estratégias utilizadas, como: legalizar os sindicatos

locais de agricultores, financiados pelo poder privado dos madeireiros, para futura

“concessão” de terras para exploração da madeira; e mediante aliciamento por propostas de

compras das terras dos assentados através do “convencimento” de sindicalistas, ou

representantes da comunidade, para serem “testas de ferro” na estratégia de venda dos lotes

(SOLANGE COUTO, 2011, p.80, PARRACHO, 14/12/2011; BRUM, 30/01/2012; PINTO,

2012).

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A imprensa local também registrou os conflitos que envolveram recentemente

manifestantes indígenas, sindicatos rurais, ribeirinhos e quilombolas, que detiveram a balsa

da madeireira Rondonbel por extração de madeira em território de demarcação dessas

comunidades da Gleba Nova Olinda, região de Santarém (SIMENEL, 24/10/2009). As

resistências das comunidades tradicionais simbolizam um processo de luta pelo território,

envolvendo o reconhecimento pelas identidades destas minorias étnicas, uma luta para sair

da invisibilidade social, econômica, cultural e política, buscando reafirmar seus tradicionais

valores, diante de um processo de legitimação da dominação econômica e institucional dos

atores em cena (EMMI, 2007, p.394).

Na região sudeste do Estado, o Incra também recentemente sofreu ação de processo pelo

Ministério Público Federal por estimular os conflitos e a reconcentração fundiária na região

devido a permissividade de vendas de lotes dos assentamentos, provavelmente para o setor

mais interessado na expansão das terras, os fazendeiros e madeireiros. Segundo o MPF do

Pará foram mais de 15 mil lotes vendidos apenas naquela região de forma ilegal. Isto indica

uma nova dinâmica em torno da concentração das terras e da violência (MPF, 19/06/2012).

Por fim, podemos definir os conflitos como resultados pela disputa e defesa do território ou

pelo direito a posse da terra, mas a violência deriva desta relação e é fruto da dinâmica

social e do modus operandi dos conflitos em torno do território pelas populações

tradicionais locais e trabalhadores diante do sistema do latifúndio e agromadeireiro.

Usamos a definição de violência caracterizada abaixo: A violência pode ser direta ou indireta, ativa ou passiva. A violência direta é a violência física empregada contra a pessoa, contra a ocupação e contra a posse camponesa. Ela pode ser deflagrada por particulares ou pelo Estado e constitui principalmente em assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, despejos da terra, expulsões da terra e outras formas que causem danos físicos ou psicológicos aos trabalhadores rurais e camponeses ou a seus bens. As tentativas de assassinato, ameaças de morte e expulsões da terra são formas de violência privada contra os camponeses. Na violência direta e ativa o Estado age principalmente com os despejos judiciais e com o uso da força policial no cumprimento de ordens de despejo e na dissipação de manifestações, o que tem como consequência mortes e ferimentos. A forma passiva da violência direta ocorre com a omissão do Estado em relação à violência direta praticada por particulares contra os camponeses. A violência indireta é uma prática simultânea do Estado, fazendeiros e empresários. A ação política é a principal forma de execução dessa violência. A criminalização da luta pela terra é outro exemplo de violência indireta contra os camponeses, e que pode gerar formas de violência direta no seu cumprimento. Essas ações contribuem para impedir o acesso à terra por meio da reforma agrária (GIRARD, 2012).

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Quanto aos conflitos, estes podem adquirir várias dinâmicas que o caracterizam: “conflitos

por terra, conflitos pela água, conflitos trabalhistas, conflitos em tempos de seca, conflitos

em áreas de garimpo, e em anos anteriores foram registrados conflitos sindicais”

(CANUTO, 2012, p.10). Os conflitos por terra “são ações de resistência e enfrentamento

pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a seringais, babaçuais ou castanhais,

quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos

arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de

fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc” (Idem).

Enquanto defesa de modo de vida tradicional e desafiador ao modelo “desenvolvimentista”

vindo dos empreendimentos, os conflitos sinalizam que o território está sendo disputado em

defesa da existência de todo o bioma florestal e a sua sociobiodiversidade.

Cadeia Viciosa: Seringueiro entre a tradição e as intervenções do poder A seguinte narrativa abaixo se parece mais com uma genealogia amazônica, que nos leva a

entender a relação homem local com o seringal, os agentes intervindo em seu espaço, e as

instituições do Estado interferindo no que se acostumou chamar de “indução” do

“progresso” pelas formas e intervenções de várias esferas de poder. Pedro Gomes, morador do Projeto de Assentamento (Parque) Areia, em Trairão, aos 69 anos é um exemplo vivo disso. Nasceu em um seringal onde hoje está instalada a “fazenda” Passabem. Seu pai e também seu avô nasceram no mesmo lugar. Eram seringueiros e caçadores. Há cerca de quarenta anos, conta ele, começaram os problemas: “Chegaram. Puseram os marcos de cimento. Disseram que a terra era deles”. Intimidado, Pedro Gomes se muda para perto da cabeceira do rio Branco, na sua margem direita. Começa do zero. Planta novo seringal e dele vive mais vinte anos, até que a antiga cena se repete. Voltam: marcos de cimento, “guaxebas” [denominação local de pistoleiros], ameaças... donos. Nova expulsão. Pedro já não é jovem, mas procura outro recomeço. Essa busca é mais difícil. Toda terra, agora, tem dono e ele aceita a “benevolência” da madeireira J.B. de Lima (instalada, polemicamente, dentro do Areia, um assentamento do Incra). A empresa se autoproclama dona das terras e permite a Pedro ocupar um certo pedaço. Essa estada é mais curta: nova expropriação, agora quem vem é o Incra. A área que Pedro ocupava não estava em conformidade com os parâmetros do assentamento que se instalava ali. O velho seringueiro é agora “beneficiário” de um programa de reforma agrária. Retirado, mais uma vez, de sua morada, é assentado num módulo de 80 hectares predeterminado. Agora, “regularizado e amparado” pelo governo, Pedro Gomes passa a depender dos favores do Incra e da madeireira. Ainda é forte, mas isso pouco lhe vale. Sua

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força de trabalho, seu modo de vida, sua tecnologia, tudo é condicionado à terra, ao seu espaço. Ele não se reconhece no lote do Incra que lhe foi designado. Ali não cabe o seu saber e o homem que por toda a vida sempre tirou da mata seu sustento e o de sua família depende, hoje, das sobras de madeira da serraria vizinha para manter em pé sua casa. Só uma coisa parece não ter mudado – assim como seus antepassados, Pedro Gomes não tem o título da terra onde vive e se sente ameaçado por um – sempre pendente – novo despejo. Pedro confunde-se um pouco com datas e então sua mulher, sempre muito atenta, o corrige. Não se queixa. Não tem mágoas. Gostaria apenas de poder ver e, principalmente mostrar ao neto as seringueiras que plantou onde hoje é a fazenda Degredo. Diz, muito lúcido: “Aquele seringal é a história dele, ele precisava ver”. Sim. Precisava. Mas não pode. A entrada é proibida (TORRES, 2005, p.296-297).

Amazônia para “exportação” De acordo com a definição acima de Girard (2012), a violência tem suas ramificações num

processo de intervenção sobre o corpo, pela barbárie, mas pode ser também compreendida

dentro de uma dinâmica em que se dá o atual modelo de Estado em concomitância aos

interesses de incentivos a exploração de empreendimentos e do capital no Pará. A questão

do mercado de terras está associada ao capital de commodities na Amazônia, que vincula a

exploração dos recursos ao “desenvolvimentismo”, incluindo nisto o PAC II do governo

Dilma, que, seguindo uma retórica econômica do “progresso”, visualiza a Amazônia apenas

a partir das mercadorias para exportação – celulose, minério, madeira e produtos

agropecuários, como carne e soja. Neste aspecto, as obras do PAC II, com a reconstrução da

BR-163 e Belo Monte, não visam beneficiar povos indígenas, quilombolas ou ribeirinhos,

nem o extrativismo, ou modo tradicional de ocupar a terra sem impactos. São esses setores

os que serão ainda mais beneficiados com os grandes projetos de infra-estrutura previstos

para serem executados na Amazônia.

A Amazônia é vista como espaço demográfico “vazio”. Esta é a lógica que prepondera na

reorganização dos grandes projetos na Amazônia. E para isto, se criou a idéia de

“excessão”, em que o governo se autoriza a ser infrator da OIT 169 e dos direitos humanos

dos povos tradicionais. Da mesma forma, as terras indígenas aguardam regularização, mas

os dados revelam que não há prioridades no processo, ou seja, “um pouco mais de um terço

do total das terras foi totalmente regularizado: 360 (36%). As categorias reservadas,

dominiais e com restrição somam 40 (4%). Outras 286 (28%) estão em alguma fase de

regularização. As demais terras, 322 (32%) estão sem providência. Ou seja, 605 terras

aguardam o início ou a finalização do processo regulatório” (CIMI, 2010, p.39). Muitos

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conflitos são decorrentes das reivindicações em torno desta questão, bem como as ameaças

e violências.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, apenas no Pará,

no ano de 2010, 40 empresas que atuam no Estado foram responsáveis por mais de 96% das

exportações brasileiras. Podemos citar apenas 20 casos: Vale S/A R$ 341.681.380 52,04;

Alunorte – Alumina do Norte do Brasil S.A. R$ 92.049.015 14,02; Albras – Alumínio

Brasileiro S.A. 26.568.002 4,05 Mineração Buritirama S.A. R$ 18.179.980 2,77; Kaiapos

Fabril e Exportadora Ltda R$ 16.491.360 2,51;Jari Celulose S/A 16.039.313 2,44; R$ Sidepar

– Siderúrgica do Pará S.A. R$ 12.435.800 1,89; Companhia Siderúrgica do Pará – Cosipar

R$ 11.245.800 1,7; Minerva S.A. R$10.951.341 1,67; Mineração Rio do Norte S.A. R$

9.979.899 1,52 ; Agroexport Ltda R$ 9.001.956 1,37; Cadam S.A. R$ 6.718.725 1,02; Rio

Capim Caulim S.A. R$ 6.629.274 1,01; Vale Manganes S.A.R$ 6.130.520 0,93; Bertin S.A.

R$ 6.018.777 0,92; Pará Pigmentos S.A. R$ 5.410.265 0,82; Dow Corning Metais do Pará

Ind. e Comércio R$ 4.796.050 0,73; Reinarda Mineração Ltda R$ 4.561.144 0,69 Usipar

Usina Siderúrgica do Pará R$ 3.420.000 0,52; R$ Sidenorte Siderurgia Ltda 3.072.763 0,47.

Do resultado destes números, verifica-se prioridade em estimular o setor de exportação, em

detrimento das questões territoriais, que implicam em afetar os agentes econômicos acima.

O modus operandi do desmatamento na visão do MPF O processo instaurado pelo MPF acerca do desmatamento na Amazônia não tem levado em

consideração os fatores que apontam para os motivos do desmatamento, e as conclusões do

inquérito contra o Incra apontam um viés meramente preocupado com o licenciamento

ambiental. O nó górdio do desmatamento, que vai do processo da grilagem até a ação dos

agentes madeireiros e os empreendimentos do agronegócio na região não são manifestados

no processo, nem os crimes relativos a estes. Isto revela que o poder público não toca nas

questões como os direitos dos moradores de permanecerem em suas terras e territórios,

mesmo que estes tenham mais de 50 anos naquele local, o que se observa é que os grandes

proprietários é que são favorecidos pela posse das terras, mesmo no domínio de

assentamentos. A grilagem, associada aos mandonismos políticos locais com o poder

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privado, não são colocados como os agentes do desmatamento no processo do MPF,

quando, dentro de uma visão mais sistêmica, deveria-se questionar a seguinte estrutura: Pode-se dizer que a atuação do poder público no combate à grilagem (e às suas conseqüências imediatas, como trabalho escravo e desmatamento) foi praticamente nula. Os fazendeiros da região valem-se da conivência das autoridades locais – prefeitos, policiais – e vários contam com o reforço de pistoleiros. Além disso, muitos usaram de influência junto a políticos estaduais e federais, o que os mantém impunes. Já em novembro de 2003, jornais da região anunciavam que: “Órgãos ligados aos direitos humanos e à problemática fundiária alertam que a situação está no limite do suportável. Os colonos, ameaçados por grileiros sojeiros e madeireiros, ameaçam ir às armas e partir para um confronto armado. Cansados de esperar uma ação efetiva do Estado, eles sentem a necessidade de defenderem o direito à terra” (TORRES, 2005, p.296).

O Novo Código Florestal, Lei nº 12.651/2012, ao estabelecer os percentuais mínimos de

reserva legal a serem observados, esclarece que o cálculo deve considerar toda a área do

imóvel, salientando que inclusive os assentamentos criados pelo Programa de Reforma Agrária

se submetem a esse critério. De acordo com o processo do MPF, instaurado a partir de estudos

do INPE (Manaus), as reservas legais de 80% não estão sendo obedecidas (MPF, 2012, p.19).

Abaixo, de acordo com o mapa, podemos perceber que os P.As (Projetos de Assentamentos)

estão próximos aquelas regiões também marcadas não só pelo crescimento urbano, como ao

crescimento do setor do agronegócio (soja, pecuária, madeira). De fato, a extração madeireira

coincide com a abertura da floresta para o pasto e a agricultura em grande escala. Estas áreas

são, no caso da região oeste e sudeste do Pará, territórios indígenas e quilombolas, bem como

de posse de trabalhadores rurais e moradores antigos que não possuem os títulos de terras.

Mapa 1 - assentamentos Incra até 2010

Fonte: MPF/Imazon, 2012, p.7.

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Da imagem é possível extrair a distribuição, ao longo da Amazônia, dos 764 assentamentos

cujos níveis de desmatamento enquadram-se no intervalo de 75-100%, os quais foram

responsáveis, até o ano de 2010, por desmates da ordem de 64.127 ha. Distribuem-se da

seguinte forma os P.As com maior nível de desmatamento da Amazônia: 287 no Estado do

Pará; 207 no Estado do Maranhão e 117 no Estado do Mato-Grosso. De acordo com a tabela

abaixo retirada do processo do MPF, tendo como instituição responsável pela pesquisa o

INPE, podemos verificar que o MPF busca se respaldar no marco temporal como foco de

análise do avanço do desmatamento na Amazônia. Neste aspecto, os resultados mostram que

o desmatamento em toda a região esteve relacionado ao número de P.As aprovados, o

percentual de desmatamento realizado antes dos P.As e após suas criações. Os resultados

apontam para a crescente atividade de desmatamentos realizados antes da criação dos P.As,

mas, mesmo após a aprovação dos assentamentos, os números tendem a crescer

drasticamente. Tomando-se como hipótese o argumento de que uma instituição foi criada para

promover o assentamento como forma também de contribuir na contenção do desmatamento;

além de retrair atividades ilícitas em torno dos territórios de conservação ambiental e reservas

indígenas/quilombolas, então podemos concluir que sua missão institucional tem sido falha, e

as políticas voltadas para a Amazônia estão sujeitas ao domínio do poder privado em

detrimento das questões públicas que os sustentam legalmente.

É preciso destacar que parte da explicação acerca do processo de desmatamento, que não

foi citado pelo MPF, pode ser explicado pela ação ilegal das madeireiras em áreas

dominadas pelas reservas ambientais, ou em territórios dos povos tradicionais (TORRES,

2007). Recentemente, o esquema denunciado pelo ambientalista João Chupel, morto

anunciadamente na região chamada “Terra do Meio”, - região oeste do Pará próximo a

Itaituba -, se desenvolve dentro dos limites da reserva, em sua porção oeste, perto da

Floresta Nacional Trairão, e no acesso ao Assentamento Areia, montado por uma empresa

há uma década para extrair madeira irregularmente. São muitos os interesses em jogo na

reserva de Riozinho, que vão de especulação imobiliária a venda de recursos naturais pela

madeira e lavagem de dinheiro (BRUM, 28/02/2012; PARRACHO, 20/06/2012).

Os dados do desmatamento foram elaborados e discriminados segundo pesquisa realizada

pelo INPE, a pedido do MPF, para subsídio de processo contra o Incra. Vamos citar apenas

alguns exemplos, dada a extensa lista. Os dados mostram que o P.A Federal teve 2.330

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projetos apresentado ao Incra, sendo aprovados apenas 1830 P.As, numa área total de

193.812,60 km², tendo desmatado uma área de 102,084,69 km², com percentual de

desmatamento de 53% da área total do projeto. Deste montante, 1401 projetos aprovados

tiveram com mais de 20% da área desmatada. O referido P.A teve 54% de suas áreas

desmatadas antes da sua criação, e no ano de sua criação a taxa subiu para 57%, enquanto

após os 5 anos de sua criação a taxa representava 80% de desmatamentos. O caso da P.A

floresta nacional teve sua área de 49.338 km² em 74% desmatada nos 5 anos antes de sua

criação, tendo aumentado para 92% no ano de sua criação, e para 96% o percentual de

desmatamento após 5 anos de sua criação. Outro exemplo é o da P.A agroextrativista

Federal, que teve 77% dos seus 91.276 km² reduzidos nos 5 anos antes de sua criação,

passando para 80% no ano de sua criação, e 91% após os 5 anos. Em relação ao P.A

Quilombola e reservas extrativistas, além de outros projetos de assentamentos, a mesma

lógica tem prevalecido em relação principalmente ao acréscimo do desmatamento. É o que

se pode perceber na representação feita pelo MPF no processo instaurado contra o Incra,

conforme verificamos nos autos do processo (MPF, 2012, p.24). O mais assustador é que de

2000 até 2010, cerca de 1.227 assentamentos foram responsáveis entre 75% e 100% dos

desmatamentos, de uma área total de 4.839.624 km².

Gráfico dos P.As que mais desmataram no Pará

Fonte: MPF/Imazon, 2012, p.29.

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Notamos apenas no exemplo acima grandes extensões de terras que sofreram

desmatamentos dentro dos P.As, o que nos leva a analisar que o processo do MPF contra o

Incra, até o momento, revela uma preocupação com a questão da legislação ambiental. O

gráfico não busca apontar a presença dos agentes que expropriam os colonos, visando ou

expulsá-los das terras e territórios, ou cotejados com as promessas de benefícios advindos

da reorganização produtiva pela exploração madeireira. Não verificamos até o momento,

além de um viés meramente preocupado com a questão legalista do desmatamento, uma

análise que venha identificar de forma sistemática os problemas do desmatamento, como

viemos apontado neste estudo, ou seja, a complexidade que envolve o conflito pelas terras

com a questão madeireira e a violência resultante deste processo contra aqueles que

buscaram barrar tal dinâmica de crimes ambientais. O processo do MPF também possui

versão parcial sobre o Incra, e busca deslocar a análise sistêmica do processo do

desmatamento para os trabalhadores assentados, o que se revela problemático, como

veremos adiante.

Um processo com visão institucional e parcial Depois de fazer o levantamento cartográfico e estatístico, através de instituições de

pesquisas reconhecidas, o MPF apresenta parecer que termina deslocando a explicação

sistêmica da causa para o efeito, ou seja, responsabilizando grande parte deste

desmatamento pelos movimentos de trabalhadores rurais e populações tradicionais que

estão na posse das terras aguardando a regularização fundiária. A visão em torno do

desmatamento, ao invés de analisar a problemática dos incentivos do governo federal pela

ocupação de terras públicas e a grilagem, termina transferindo parte dos desmatamentos ao

que se chama de “invasor”, relegando a estes o episódio das formas “ilícitas” de

expropriação das terras, por não apresentarem a referida licença ambiental.

No fragmento abaixo retirado dos autos do processo instaurado pelo MPF busca-se como

argumento para a “causa” dos desmatamentos uma tautologia que tenta mostrar que é o

pequeno agricultor, com sua roça, que seria um dos responsáveis pelos fatos do

desmatamento nos assentamentos. É claro que o pequeno agricultor não necessita de

derrubar a floresta para plantar mandioca, mas é o que se constata no veredito a seguir:

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Na abordagem, apenas um produtor foi localizado e se manifestou afirmando “se não derrubar o INCRA faz a retomada da posse”, pois o mesmo é o quarto dono desse lote, pois o primeiro e o segundo foi tomada a terra por não ter feito nada, e o terceiro faleceu, e o atual foi 'intimado' para fazer algo na terra senão seria feita a retomada da propriedade por não produzir'. Então o agricultor plantará sua roça de milho e mandioca, uma vez que vive da roça” (2012, p.20). Analisando a distribuição do total desmatado nos P.A., quanto à ocorrência 5 anos antes de sua criação, no ano de sua criação, ou 5 anos depois de sua criação, o INPE verificou a predominância de desmatamentos com datas mais antigas. Onde foi possível analisar os dados de desmatamento, 5 anos antes da criação dos P.A. 66% deste desmatamento já existia, passando a 76% no ano da criação e atingindo cerca de 82% anos depois da criação do P.A. (dados médios). No desenvolvimento da investigação ministerial, o IBAMA encaminhou a esta Procuradoria cópia de Relatório resultante de fiscalização realizada em área de reserva legal de uma propriedade invadida, previamente à instalação de assentamento pelo INCRA, por integrantes de movimentos de trabalhadores rurais, no intuito de avaliar do cometimento de ilícitos ambientais, perpetrados por ocasião da invasão, bem como no lapso que medeia entre o episódio em questão e a implantação do assentamento. O relatório em tela, que restou acostado às fls. 47-62 do procedimento, consiste em um retrato perfeito do resultado verificado pelo IMAZON na análise das taxas anuais de desmatamento nos períodos pré e pós-instalação dos assentamentos, corroborando a informação já constante dos gráficos supra, no sentido de que consiste em prática contumaz a promoção de desmatamento no interior de assentamentos instalados pelo INCRA; Ora, não foi outra a conclusão a que chegou o IMAZON quando da detecção de que nos dois anos anteriores à criação dos assentamentos verifica-se um crescimento nos níveis de desmatamento da área que sediará a implantação do projeto. Uma leitura ainda que pouco acurada do trecho do Relatório acima transcrito leva-nos à constatação de que os “procedimentos”, por assim dizer, preparatórios à implantação de assentamentos pelo INCRA, e consistentes basicamente em DESMATAMENTO pelos ora invasores, iniciam-se cerca de 2 ou 3 anos antes dos atos que formalizam juridicamente o início do loteamento, concretizando-se por intermédio da invasão da área a ser futuramente loteada. Nesse período, o desmatamento já é promovido pelos invasores, futuros assentados, e em níveis bastante consideráveis; níveis estes, no mais das vezes, mais elevados do que aqueles verificados após efetiva instalação dos assentamentos, na medida em que, nesse período prévio, as famílias que invadem desmatam grandes porções do território no intuito de criar condições propícias para sua instalação. Pode-se afirmar que, antes da criação dos assentamentos, os invasores da área degradam-na com dois fins, quais sejam: 1) a preparação da área para instalação dos assentamentos e das culturas que lá desejam cultivar, e 2) a extração irregular de madeira com o intuito de lucro, seja efetuando a venda da madeira propriamente dita, ou do carvão resultante da sua queima, seja abrindo clarões para cultivo de culturas de subsistência, dentre outras formas de exploração predatória da terra e da vegetação. Já posteriormente à instalação do assentamento, somente subsiste como ensejador do desmatamento, promovido pelos agora assentados, o segundo dos motivos supra elencados. Essa redução de motivos, vamos dizer assim, conduz, no mais das vezes, à verificação de uma pequena redução dos níveis de desmatamentos após início do loteamento; redução essa, todavia, que não é capaz de promover a inserção da

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exploração que os assentados realizam no interior dos assentamentos dentro de limites mínimos da legalidade, conforme já demonstrado (MPF, 2012, p.25-26).

É claro que o processo levantado aqui pelo MPF não muda o problema da estrutura fundiária,

centrada na questão do mercado de terras, visto que a visão parcial se resume apenas a advertir o

órgão quanto ao fato de não exigir licenciamento ambiental. Isto não alteraria também o problema

na Amazônia Legal, visto que, como os dados mostraram aqui, as áreas de assentamentos com

expropriação madeireira e do agronegócio aumentaram, e as reservas dos territórios das

populações tradicionais vêm se retraindo. A questão, na Amazônia Legal, de fazer uma instituição

como o Incra exigir licenciamento ambiental, é parcial a um problema em que o valor das terras é

estimulado pelo grande margens de geração de lucros pela madeira que oferta, e pela capacidade

de se estender ao agronegócio. As terras, sendo públicas, passam, inclusive na lógica dos

assentamentos, a serem privadas, mesmo sem titulação:

Apesar de se tratar quase totalmente de terras públicas, nessa região não se encontra porção livre da apropriação e, a despeito da destinação legal dessas terras, comumente encontramos grandes fazendas. A ocupação camponesa – à qual se direcionava legalmente as terras arrecadadas pelo Incra –, apesar de substantiva, é minoritária comparada às porções griladas. O roubo de terras banalizou-se e, não raro, é tido como ato heróico: a prova de espírito desbravador e bandeirante, do empreendedor que desafia todas adversidades para levar à selva o “progresso” e o “desenvolvimento” (CUNHA et al.,2011, p.4).

O desmatamento de amplas extensões de terras tem sido feito à margem legal e autorização do

Estado e Governo Federal, em função da política retórica do “desenvolvimentismo”, sob a ótica

da “produtividade sustentável”, transferindo terras públicas a grileiros, quase sempre aliados a

elites do setor madeireiro e do agronegócio. Na região oeste do Pará, o sindicato rural tem

conseguido ampliar a extensão de terras, sob esta lógica do produtivismo, no entanto, este

representa setores patronais do agronegócio que, na busca de estratégias, terminam conseguindo,

pelos assentamentos, o objetivo que precisam para ampliação de negócios. Neste sentido, cabe

dizer que os camponeses, não são os responsáveis, junto com indígenas e quilombolas ou

trabalhadores rurais locais, pela grande expropriação de terras, pois não necessitam de grandes

áreas para a agricultura comunitária. A lei do oeste é a determinada pelo capital imobiliário e

especulativo sobre as terras.

No oeste do Pará, a federalização de terras foi seguida de ações discriminatórias, arrecadação e de registro de terras pela e para a União, nos termos da Lei n°

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6.383/76. Por meio desse instrumento legal, a figura do “ocupante de terras públicas” é reafirmada como sendo aquele que torna a terra produtiva com o seu trabalho e o de sua família, que exerce morada permanente e cultura efetiva. Para essas situações, a Lei 6.383/76 determinou ao Incra a “legitimação de posse”, assegurada a preferência para a aquisição de áreas até 100 hectares. Porém, esse dispositivo legal não impediu que outros grupos avançassem sobre largas extensões de terras, buscando legitimação por meio de processos de “regularização fundiária” instaurados junto ao Incra. O procedimento repetia a receita já usada no Mato Grosso para a grilagem de terras: a grande apropriação era fracionada em “n” processos de lotes inferiores ao limite constitucional, e para cada um dos lotes abria-se um processo independente no Incra, com distintos “laranjas” como requerentes. Esses diversos “testas de ferro”, na prática e muito proximamente, encobriam um só grande grileiro. Não raro, a falsidade ideológica praticada era pouco ou nada encoberta, como, por exemplo, nos casos em que muitos dos “laranjas” interessados em lotes contíguos tinham o mesmo procurador (CUNHA et al.,2011, p.6).

O fato recente da criação de uma “MP 458 cravou um novo marco para a aquisição de

terras públicas por particulares na Amazônia Legal. Um instrumento que permite alterar a

situação jurídica de 67 milhões de hectares é sem dúvida uma novidade de grandes

dimensões políticas” (CUNHA et al, 2011, p.19). O Governo Federal, mediante o Incra, tem

produzido, sob o mecanismo do “assentamento produtivo”, não só a permissão para a

expropriação das riquezas amazônicas, principalmente da madeira, como o processo de

desterritorialização contra as comunidades resistentes:

A instituição de um novo Código Florestal, os inúmeros ataques aos direitos territoriais de populações indígenas e quilombolas, a redução de unidades de conservação por meio de Medidas Provisórias ilustram um cenário de remoção de todo um aparelho jurídico em favorecimento de novas estruturas econômicas e de poder político. O propósito conservador é rediscutir todos os territórios de comunidades tradicionais: indígenas, quilombolas, faxinais, fundos de pasto, quebradeiras de côco babaçu, ribeirinhos etc. Às vezes, são tantas as formas de pressão, no judiciário, no executivo e no legislativo, e tantos são os meios para divulgá-las que parece estarmos assistindo a uma campanha de des-territorialização. Trata-se de uma maneira de criar uma nova estabilidade jurídica para a ampla territorialização do capital.

O que se observa na Amazônia Legal é que há um controle das terras pelas grandes empresas.

As grandes propriedades com mais de mil hectares de terras ocupam área de 59% e

representam mais de 116 milhões de hectares, enquanto os pequenos produtores, com

minifúndios inferiores a 10 hectares, possuem apenas 600 mil hectares. No Pará e Maranhão,

a pequena propriedade representa apenas 208 mil hectares (MESQUITA, 2011, p.62). A

política de assentamento pelo Incra, substitutiva da reforma agrária, não foi capaz de alterar o

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acesso a terra pelo agronegócio. Os estrategistas têm usado não só o discurso produtivista da

expansão do agronegócio, como também o discurso do “desenvolvimento sustentável”

ocupando terras até mesmo por meio de ONGs, criadas e usadas como “testas de ferro”.

Recentemente, um conflito se acentuou na região da Gleba Nova Olinda, rio Arapiuns,

afluente do Tapajós, próximo a Santarém, quando a população local protestou contra a

Empresa Madeireira Rondonbel. Depois de mais de dois meses de manifesto, a população

prendeu e queimou a balsa com a madeira. Estiveram presentes representantes do sindicato

dos agricultores, lideranças comunitárias, defensores dos direitos humanos. Houve

negociação com o Instituto de Desenvolvimento Florestal (Ideflor), a Secretaria de Meio

Ambiente do Pará (Sectam) e o ministério público federal de Santarém. A população,

formada de indígenas em sua maioria, reivindicava a regularização e titulação de seu

território. Apesar de reterem a madeira, como parte de seu patrimônio, a empresa

juridicamente estava requerendo indenização de mais de R$ 5 milhões de reais, por alegar

que tinha “comprado” as terras (SIMENEL, 2009).

Por outro lado, empreendimentos como o setor agromadeireiro, movidos pela madeira, a soja,

os minérios, Hidrelétrica de Belo Monte, e a pecuária extensiva, marcham em frentes

ostensivas, conseguindo amparo legal para o avanço. Desta dinâmica histórica se geram os

conflitos provenientes da desorganização e desarticulação das populações rurais,

estabelecidas de forma ancestral nestes territórios, secularmente vistos como espaços de

reprodução social. Outra consequência causada pelos empreendimentos econômicos e

políticos na região é o surgimento da concentração de terras e renda, expropriando o

“posseiro” para as periferias, concentrando renda e aumentando a desigualdade social

daqueles que viviam do extrativismo e agricultura. Deste processo, apenas tem restado as

parcas políticas compensatórias para estas minorias, sob a forma de programas e projetos

setoriais, reformativos pela superfície, amparados pelo Estado e a favor das grandes empresas

(MESQUITA, 2011, p.63).

Por fim, não são os pequenos lotes de assentamentos os verdadeiros responsáveis pelos

crimes ambientais. Há uma lógica comercial que privilegia no país a concentração de terras

nas mãos de poucos. Entre os anos de 1992 a 2011 a pequena propriedade cresceu 54,51%

em número de imóveis declarados, enquanto as médias e grandes propriedades obtiveram

um aumento de 56% e 25 % respectivamente. Ou seja, “Cabe frisar que destes, apenas 208

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controlam o equivalente a aproximadamente 76 milhões de hectares, com propriedades de

100.000 hectares ou superior a isso. Ou seja, 208 pessoas e/ou empresas de capital

nacional/internacional detém o poder de usufruir, controlar e se beneficiar financeiramente

e politicamente de 759.343,90 km²” (NERA/DATALUTA, 2011, 2010, p.8). Desta estrutura

é que emergiu, no período de 1988-2010, 778 ocupações de famílias em toda região norte,

envolvendo 106.181 famílias, e 524 apenas no Pará com 80.875 mil famílias envolvidos em

conflitos no campo (NERA/DATALUTA, 2011, 2010, p.14).

A violência que se aflora e o judiciário Em 2004, no município de Castelo dos Sonhos, entre a divisa do Mato Grosso e o

município de Novo Progresso, região oeste do Pará, os fazendeiros e grileiros mantinham a

ocupação de áreas através da vigilância de pistoleiros e grupos armados, expulsando os

“posseiros” de suas áreas, para ocuparem imensas terras, aos quais desmatam e abrem

caminho para as madeireiras e a pecuária. Abaixo, uma cena:

[...] um grupo de pistoleiros a serviço de grileiros está espalhando o terror entre agricultores e assentados. É lá que fica o assentamento Brasília, na gleba Gorotide, motivo de disputa entre posseiros e um grupo latifundiário, liderado pelo senhor Niltom de Albuquerque Braga, conforme denúncias feitas por pequenos agricultores. Lista de “Espera por terra”, há anos nas paredes do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Castelo dos Sonhos. O anúncio do asfaltamento da rodovia e uma febril expectativa do avanço da soja mato-grossense para o norte aquecem o mercado de terras e a violência nos processos de ocupação. Há poucos dias, um dos posseiros denunciou que o bando armado havia torturado trabalhadores na frente de suas esposas e filhos. A reportagem teve acesso a um laudo pericial feito a pedido da polícia no hospital de Novo Progresso, que confirma a tortura sofrida por um dos agricultores, que levou coronhadas na cabeça, golpes de facão e pauladas. O agricultor não quis mais retornar à sua terra. Sua casa ainda foi incendiada e os animais foram mortos (TORRES, 2005, p.298-299).

Conforme verificamos nesta passagem acima, a violência na região é recrudescente e

recorrente, desde os anos 1980, quando a pistolagem, associada ao processo de torturas, era

usada como uma “pedagogia do medo”, visando causar a aniquilação das resistências

contra os crimes e a ação das empresas madeireiras. Podemos dizer que há uma tipologia

dos crimes de pistolagens no Pará. Aqui, os pistoleiros não visam os valores de honra e

vingança, como no nordeste (BARATA, 1995). A caracterização destes tipos de crimes está

fortemente marcada ao contexto pelo domínio das terras, como aos interesses das elites

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locais ligadas ao setor madeireiro ou latifundiário. Nos anos 1990 e recentemente, a

barbárie continua recrudescente: A instrumentalidade é outro aspecto da violência que ganha destaque nos extermínios no campo. Os assassinatos manifestam-se com um processo racional e calculado. De fato, não é a raiva ou a fúria que motiva as mortes coletivas. A explosão das emoções, tão característica da sociedade brasileira rural do século XIX, conforme descrição de Franco (1997), não está presente nas práticas de extermínio no agrário paraense. Nestes crimes de mando há sempre um propósito, uma ponderação entre meios e fins, entre custo e benefício. Os mandantes almejam o controle sobre a posse da terra e os recursos naturais, enquanto os pistoleiros veem no “serviço” contratado uma possibilidade de obtenção de dinheiro (GUIMARÃES & BARP, 2011, p.122).

A violência no Pará também conta com a impunidade e invisibilidade dos casos no

judiciário, em que mandantes dificilmente são punidos pelas suas ações criminosas e onde

“é mais fácil contratar pistoleiro do que pegar um táxi” (MPF, 15/06/2012). A violência não

se dá de forma “desorganizada”, sem um propósito ou fim, e nem ocorre sem uma

explicação com o contexto local. Ela não é fortuita e tão fragmentada quanto se pensa. Os

extermínios promovidos pela violência, e a barbárie consequente disto, nos levam a busca

de que sua tipologia pode ser brevemente caracterizada da seguinte forma: As chacinas, no Pará, assumem caráter ritualístico e sacrificial, ao potencializarem o terror e o medo. Há registros de torturas, degolas e castigos corporais pós-morte como parte do ritual do sacrifício humano, que podem ser confirmados nos autos da chacina da fazenda Princesa, em 27 de setembro de 1995, que vitimou cinco trabalhadores. Segundo as informações, as vítimas foram amarradas, torturadas e queimadas e os cadáveres jogados no Rio Itacaiúnas, que banha a cidade de Marabá/PA.2 Assim, são comuns nos massacres tiros na nuca, a queima-roupa mesmo com a vítima imobilizada, corte de orelhas, de mãos, entre outros atos brutais (GUIMARÃES & BARP, idem).

Neste sentido, a violência produzida nos corpos destas vítimas buscam produzir uma

“pedagogia do medo”, que é disciplinar, pois visa estabelecer as formas estratégicas de

hierarquia social, mediante o autoritarismo das relações sociais, e conta com a impunidade

na justiça. Tal relação da pistolagem com as mortes pelo extermínio e a barbárie, instaura a

assimetria das relações de forças e poder, em que neste instante em que a violência atinge

seu ápice, aqueles que se sujeitam passam a ser estigmatizados como vítimas exemplares

necessárias para a canalização e eliminação das formas de resistências (FOUCAULT,

2004).

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Deste processo de violência, é sintomático também que povos tradicionais sejam vistos

como “estranhos” a uma ordem social estabelecida, e que precisam ser “eliminados”. Em

2011, 322 terras indígenas no Brasil tiveram problemas com invasões de empreendimentos

comerciais diversos. A violência contra o patrimônio indígena se estende a outras áreas,

como os conflitos a direitos territoriais, relativos a invasões, desmatamentos, construção de

hidrelétricas. As invasões possessórias e invasões ilegais de recursos naturais são outra

forma de violência sofrida. Este último é incentivado pelas madeireiras que cotejam as

comunidades a acreditarem na capacidade de geração de renda pelas empresas, induzindo a

acreditarem que justificaria o desmatamento (CIMI, 2011, p.38-59).

Em todo o Brasil, a violência contra a pessoa, na forma de homicídios a indígenas, foi de

452 mortes relativas aos anos de 2003-2010; 27 tentativas de assassinatos e 153 ameaças de

mortes em 2010. Em 2010 foram 60 mortos em toda região amazônica, e o Mato Grosso do

Sul respondendo por 57% dos assassinatos, próximos aos eixos de atuação das áreas do

agronegócio. As causas estão relacionadas a pistolagem e espancamentos, além do

problema do racismo e discriminação étnico-racial, que tem estigmatizado os indígenas

como “atrasos” ao desenvolvimento” (CIMI, 2011, p.63-89). Do período que vai de 2002-

2011 o registro de assassinatos por conflitos foi de 377, sem considerar os que não são

registrados; enquanto que o número total de conflitos no mesmo período foi de 14.395

(CANUTO, 2012, p.15). Disto se conclui que os conflitos e a violência não são pormenores

de uma sociedade que considera que estes são problemas de um passado que foi

“subsumido” pela “modernidade” do agronegócio.

Considerações finais A partir da análise do Processo Inquérito Civil Público nº. 1.23.000.002382/2011-17, de

29/06/2012, pelo Ministério Público Federal contra o Incra, sob a alegação de que este foi

responsável pelo desmatamento nos últimos dez anos na Amazônia Legal, conforme vimos,

podemos verificar que os argumentos instaurados, mesmo a despeito das instituições

envolvidas e de notoriedades acadêmicas, demonstram uma visão parcial e institucional do

próprio MPF, que, ao denunciar, acaba reproduzindo a lógica daqueles interessados em

transferir os problemas em torno das terras e do território para aqueles que, sem força

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diante das instituições públicas, são acusados de serem “invasores” ou de “atraso” ao

“desenvolvimento”. Tal argumento se encontra na explicação do MPF de que o

desmatamento se deve “1) a preparação da área para instalação dos assentamentos e das

culturas que lá desejam cultivar, e 2) a extração irregular de madeira com o intuito de lucro,

seja efetuando a venda da madeira propriamente dita, ou do carvão resultante da sua

queima, seja abrindo clarões para cultivo de culturas de subsistência, dentre outras formas

de exploração predatória da terra e da vegetação” (MPF, 2012, p.26). Entoa como

discriminação e pouca profundidade sociológica do MPF montar um inquérito que, ao

tentar ser um argumento de natureza “científica” promove a reprodução, por meio jurídico,

do discurso que produz e reproduz, tal como um modus operandi, a expropriação e

estigmatização dos sujeitos que reclamam seus direitos ao território, como segue nas frases

a seguir: “o desmatamento já é promovido pelos invasores”, ou ainda, “as famílias que

invadem desmatam grandes porções do território” (Idem).

Podemos, através deste trabalho, verificar que o papel dos assentamentos usados via

institucional pelo Governo Federal, através do Incra, continua a ser realizado como um dos

instrumentos para expansão do setor que chamamos “agromadeireiro” que, mediante as

práticas e estratégias de cotejo das famílias, muitas vezes pela grilagem de terras, vai

“abrindo” a floresta para expropriação medeireira, consequentemente para a soja, a

pecuária e outros. A agricultura de pequena propriedade, extrativista e de subsistência, ao

contrário do que mostra o MPF, não pode ser responsável pela derrubada de milhões de

hectares de floresta, justamente estes atores que resistem em seus territórios historicamente.

Os desmatamentos são estimulados sim pelo valor comercial da madeira e das commodities

do bioma florestal. Segundo Cálculo do valor de madeira comercial gerada pelo

desmatamento em assentamentos do Incra entre 2000 e 2010, elaborado pelo preço médio

SEFA do Estado do Pará, podemos verificar que os números assustam e explicam o por quê

de tamanha corrida pela posse de terras. Para se ter um exemplo, no Pará, 15.794 km² de

área devastada, equivalente a 1.579.300 hectares desmatados, custando R$ 576,76 m³,

equivalendo a 38m³ de volume explorado, sai por R$ 34.073.207.984,00 (trinta e quatro

bilhões, setenta e três milhões, duzentos e sete mil, novecentos e oitenta e quatro reais). É o

custo monetário quantificado do dano ambiental perpetrado que justifica a corrida e os

conflitos violentos na Amazônia (MPF, 2012, p.55).

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Notas ___________ 1 Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa “Mapeamento da Violência, Conflitos Sociais e o Sistema Social de Controle das Instituições de Segurança Pública na região Oeste do Estado do Pará”, com financiamento de bolsa PIBIC/UFOPa, coordenado pelo Prof.Dr.Amadeu de Farias Cavalcante Jr, período 2011-2013. E-mail: [email protected].

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