TESE Adriana D'Agostini Defendida Em 26 Fev 04

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O JOGO DA CAPOEIRA NO CONTEXTO ANTROPOLGICO E BIOMECNICO

por

Adriana DAgostini

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Dissertao Apresentada Coordenadoria de Ps-graduao em Educao Fsica da Universidade Federal de Santa Catarina como Requisito Parcial para Obteno do Ttulo de Mestre em Educao Fsica

Florianpolis, SC 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE DESPORTOS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO FSICA A Dissertao: O jogo da capoeira no contexto antropolgico e biomecnico

Elaborada por: Adriana DAgostini E aprovada por todos os membros da banca examinadora foi aceita pelo Curso de PsGraduao em Educao Fsica da Universidade Federal de Santa Catarina e homologada pelo Colegiado do Mestrado como requisito obteno do ttulo de MESTRE EM EDUCAO FSICA rea de concentrao: Atividade Fsica Relacionada Sade. Data: 26 de Fevereiro de 2004 __________________________________________________ Prof. Dr. Adair da Silva Lopes Coordenador do Mestrado em Educao Fsica

BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________ Prof. Dr. Antnio Renato Pereira Moro (Orientador) __________________________________________________ Prof. Dr. Letcia Vidor de Sousa Reis (Membro) __________________________________________________ Prof. Dr. John Peter Nasser (Membro)

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H os pianos. H a msica. Ambos so absolutamente reais. Ambos so absolutamente diferentes. Os pianos moram no mundo das quantidades. Deles se diz: como so bem feitos! A msica mora no mundo das qualidades. Dela se diz: como bela. Rubem Alves

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeo ao meu orientador Antnio Renato Moro pela oportunidade e pelo respeito estabelecido entre ns. A Banca, com suas contribuies e avaliaes oportunas para o crescimento acadmico. Ao professor Ivon e Ingrid, grandes incentivadores. Aos professores e funcionrios do Programa de Mestrado. A fora e alto astral recebido pelo pessoal do Laboratrio de Biomecnica. Ao Amigo J e ao amigo Giba, que me apresentou uns nmeros mais simpticos. Ao fiel Diogo e Rosemeri, que participaram de toda a pesquisa. A Paula pela disponibilidade. Obrigada aos grupos de capoeira que convivi neste perodo, principalmente ao To (Angoleiro Sim Sinh), ao Falco (Beribazu), ao Corvo (Ajagun Palmares), ao Muleka, Lelo, Dgo, Carlos, Victor, Luisa. A Cooperativa Catarinense de Capoeira (TriploC), a qual ampliou as possibilidades de construo e produo coletiva em relao a cultura popular em SC. Meu carinho aos colegas de curso, principalmente aos superamigos urubnicos: Claudia, Natacha, Marcio, Roger, alm da Ale, Elen, Bruno, Clarissa, Luan. Aos grandes amigos Schuch, Melissa, Ftima, Mauro, Dia, Maristela, Jamaica, Dani, Carine, a galera do Projeto Criana Cidad, bom no vou citar todos porque so muitas as pessoas que compe esse mosaico. Especialmente a minha famlia, ao meu pai e, principalmente as grandes mulheres que me espelho, Nair, Ruth, Helena, Gema e Olmpia. Agradeo tambm a todos os trabalhadores brasileiros que contribuem para a existncia das Universidades Pblicas. Obrigada a capoeira, e a todos que de alguma forma a mantm enquanto cultura, expresso e vida. Ax !

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RESUMO

DAgostini, Adriana. O jogo da capoeira no contexto antropolgico e biomecnico. 2004. 85 p. Dissertao (Mestrado em Educao Fsica) - Programa De Psgraduao Em Educao Fsica, Universidade Federal de santa Catarina, Florianpolis.

Este estudo parte do princpio de totalidade dos fenmenos e privilegia as anlises estticas do jogo de capoeira, o qual s permite a compreenso o conhecimento do todo deste universo simblico. Para compreender o todo, deve-se conhecer a fundo as partes que constituem o universo capoeirstico. Nesta pesquisa procura-se estabelecer um dilogo entre mundos heterogneos acerca da capoeira com o meio acadmico. Para isso, parte-se do conhecimento popular da capoeira e suas prticas na UFSC agregando-se aos conhecimentos tericos e anlises laboratoriais sem a inteno de hierarquizar esses saberes. Encontra-se, na teoria dos antroplogos Clifford Geertz e Marcel Mauss a justificativa terica para a possibilidade de cruzar conhecimentos epistemologicamente diferentes, que j atuam no cotidiano de um capoeira. Assim, analisa-se e descreve-se o universo do jogo da capoeira a partir do referencial terico existente e de filmagens das aulas de capoeira de trs grupos atuantes na UFSC. Conduziu-se, tambm, uma anlise biomecnica de situaes de jogos atravs de recursos de cinemetria, considera-se para isto, ao mesmo tempo, o elemento tico e esttico que constituem cada roda de capoeira. Atravs do contato direto com os dados produzidos percebe-se a grandeza humana de criar e recriar as prticas sociais, pedaggicas, artsticas e culturais. As diferenas estticas, metodolgicas e prepositivas entre os grupos so mantidas sem nenhum tipo de hierarquizao ou algum tipo de discriminao, pois procura-se entendlos a partir dos espaos sociais atuantes. Atravs das anlises realizadas, pode-se afirmar que a configurao espao-temporal mostram semelhanas entre os grupos estudados. No entanto, observa-se que essas diferenas esto presentes no contexto antropolgico do jogo, que envolve desde a formao da roda, o canto, os toques de Berimbaus e a corporalidade ali vivenciada. Os gestos, a tcnica de cada estilo diferente e reconhecvel a olhos nus, apesar da semelhana de suas caractersticas fsicas, quando abordadas isoladamente. Da observao participante percebe-se que todos os grupos mantm o que se considera tradio na capoeira, elencou-se onze princpios estruturadores fundamentais na constituio da roda de capoeira que so modificados e estilizados por cada participante de acordo com os contextos sociais e culturais em que vive, porm tradicional em seu contedo, em elementos que fornecem identidade manifestao capoeira. Palavras-chave: Jogo da Capoeira; Antropologia Social; Cinemetria

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ABSTRACT

DAgostini, Adriana. The capoeira game of universe antropology and biomechanics. 2004. 85 p. Dissertation (Masters in Fisical Education) Fisical Education PostGraduation Program, Federal University of Santa Catarina, Florianpolis. This study part of the beginning of totality of the phenomena and it privileges the aesthetic analyses of the capoeira game, which only allows the comprehension witr the knowledge the whole symbolic universe. To understand the whole, its necessary to thoroughly know the parts that constitute the universe capoeira. In this research its tried to settle down a dialogue among heterogeneous worlds concerning the capoeira with the academic middle. For that, it start from of the popular knowledge of the capoeira and your practices in UFSC in association theoretical knowledge and laboratorial analyses without the intention of hierarchy those know. Hedge its , ed in anthropologists Clifford Geertz's theory and Marcel Mauss the theoretical justification for the possibility of crossing knowledge epistemologicajy different, that already act in the daily of a person who tractices capoeira. Like this, it analyzes and describes the universe of the capoeira game of the starting from theoretical referencial and filmings classes of capoeira of three existent groups in UFSC. It was led, also, a biomechanics analysis of situations of games through cinemetria resources, considering for this, at the same time, the ethical and aesthetic elements that constitute each capoeira wheel. With the direct contact of the produced data the noticed the human greatness to create and to create again the practices social, pedagogic, artistic and cultural. Aesthetic the differences, methodological and prepositional among the groups are maintained without any hierarchzation or some discrimination type, are sought yes to understand them starting from the spaces social . Through the accomplished analyses, it can affirm that the configuration space-storm shows likeness among the studied groups. However, it is observed that those differences are present in the anthropological context of the game, that involves since the formation of the wheel, the song, the touches of Jew's harps and the corporalidade there lived. The gestures, the technique of each style is different and recognizable with the naked eye, in spite of the likeness of your physical characteristics, when approached separately. From the participant observation it is noticed that all the groups maintain what is considered tradition in the capoeira, fundamental elements in the constitution of the capoeira wheel that you/they are modified and stylized by each participant in agreement with the social and cultural contexts where lives, however it is traditional in your content, in elements that supply identity to the manifestation capoeira. Keywords-: Game of the Capoeira; Social anthropology; Cinemetria

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SUMRIO

INTRODUO Referencial terico O Jogo da Capoeira A Biomecnica e o Jogo da Capoeira OS CAMINHOS DA PESQUISA - PRODUO DE DADOS Da Descrio Densa Da anlise biomecnica Anlise dos dados Caractersticas Gerais dos Grupos Pesquisados Descrio e anlise das aulas e rodas de capoeira de cada grupo O jogo da capoeira para o grupo A O jogo da capoeira para o grupo B O jogo da capoeira para o grupo C Anlise Biomecnica do Movimento Anlise Comparativa da movimentao nos trs grupos Consideraes finais Referncias Bibliogrficas

1 4 10 18 25 25 27 31 31 32 32 34 36 38 51 53 56

ANEXOS...........................................................................................................62

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 PRINT 5.0),

SCREEN DA TELA DO SOFTWARE DO

SISTEMA DMAS (VERSO

MOSTRANDO O PROCESSO DE DIGITALIZAO DAS IMAGENS E SEUS

RESPECTIVOS MENUS......................................................................................... 30

FIGURA 2 PRINT SCRN DAS LINHAS DE MOVIMENTO NO VDEO 0. ............................... 39 FIGURA 3 PRINT SCRN DAS LINHAS DE MOVIMENTO NO VDEO 1. ................................ 40 FIGURA 4 PRINT SCRN DAS LINHAS DE MOVIMENTO NO VDEO 2. ............................... 41 FIGURA 5 - ANLISE BIOMECNICA FIGURA 6 - ANLISE BIOMECNICADO DESLOCAMENTO DAS COORDENADAS DO

CENTRO DE MASSA X TEMPO DA SITUAO DE JOGO. ........................................... 42DO DESLOCAMENTO DE X E Y DO

CENTRO

DE

MASSA NA SITUAO DE JOGO............................................................................ 43 FIGURA 7 - ANLISE BIOMECNICA FIGURA 8 - ANLISE BIOMECNICADO DESLOCAMENTO DAS COORDENADAS DO

CENTRO DE MASSA X TEMPO DA SITUAO DE JOGO. ........................................... 44DA VELOCIDADE DA RESULTANTE DE X,Y,Z DO

CENTRO DE MASSA X TEMPO NA SITUAO DE JOGO. ........................................... 45 FIGURA 9 - ANLISE BIOMECNICA DA VELOCIDADE DA COORDENADA X DO CENTRODE MASSA X TEMPO NA SITUAO DE JOGO.

........................................................ 46

FIGURA 10 GRFICO DE DESLOCAMENTO E VELOCIDADE DAS COORDENADAS X,Y EZ DA ARTICULAO DO TORNOZELO DIREITO......................................................... 47

FIGURA 11 GRFICO DE DESLOCAMENTO E VELOCIDADE DAS COORDENADAS X,Y EZ DA ARTICULAO DO TORNOZELO ESQUERDO. ................................................... 48

FIGURA 13 GRFICO DE DESLOCAMENTO E VELOCIDADE DAS COORDENADAS X,Y EZ DA ARTICULAO DO QUADRIL ESQUERDO. ........................................................ 50

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1: PROPRIEDADES INERCIAIS DE INDIVDUOS, UTILIZADAS PARA O CLCULO DOCENTRO DE MASSA (CM) DOS SUJEITOS, DE ACORDO COM RIEHLE,

1979. ............ 29

TABELA 2: ALTURA, VELOCIDADE E ACELERAO MNIMA E MXIMA DE CADA GRUPO. .. 51

CAPTULO I

INTRODUOPor ter uma relao prxima com a histria de vida enquanto capoeira1 e professora de Educao Fsica, que neste trabalho pretende-se desenvolver um dilogo entre mundos heterogneos acerca da capoeira com o meio acadmico. Para isso, utiliza-se o conhecimento popular da capoeira e suas prticas em projetos desenvolvidos na prpria UFSC, a partir de conhecimentos tericos e anlises laboratoriais sem a inteno de hierarquiz-los. Encontra-se, na teoria dos antroplogos Clifford Geertz e Marcel Mauss a justificativa terica para a possibilidade de discutir conhecimentos epistemologicamente diferentes, que j atuam no cotidiano de um capoeira. O caminho que se percorre passa primeiramente pela busca de fundamentao terica para a estruturao referente problemtica, aos objetivos e a metodologia da pesquisa; a partir de ento, descreve-se um pouco da histria da formao do povo brasileiro atravs de elementos da ritualizao do jogo da capoeira. Percebe-se que a problemtica de pesquisa refere-se a uma questo histrica e coletiva que foi imposta ao povo negro desde o incio da colonizao. Esse problema merece um trato sob uma perspectiva histrica do prprio objeto que tenta atravs de estratgias particulares prprias das culturas populares antigas desenvolver formas educacionais que resistam ao processo de colonizao e mantenham valores, comportamentos e estticas fundamentalmente afrobrasileiras, em ambientes onde esses valores e comportamentos sofrem processos de alterao ou transformao de acordo com a dinmica cultural. Alis, ao mesmo tempo em que so abordadas as questes histricas de outros estudos, identificam-se as questes atuais que merecem serem pesquisadas. A primeira pergunta que surge junto ao tema capoeira : quem so os capoeiras? Tornase difcil falar genericamente dos capoeiras sem olhar o momento histrico vigente, pois so pessoas que vivem em contextos sociais e culturais diferentes e, por isso, so influenciados pelas circunstncias do meio. No entanto, essa manifestao, que se perpetua no jogo da capoeira, o que d unidade e identidade a quem hoje chamado de capoeira. A princpio, parte-se da idia de que a capoeira uma manifestao da cultura popular brasileira e sustenta seus princpios e prticas atravs da oralidade,

1

O termo dado pessoa que vive no contexto cultural e social da capoeira.

2 categoria central das culturas populares. Como se vive em uma sociedade dinmica onde as culturas esto nesse processo dinamizador, a capoeira como manifestao popular est sempre em processo e se mantm como tradio, porm sendo ressignificada a cada momento histrico a partir de suas mltiplas vozes - um meio de expresso que envolve movimento, jogo, luta, msica, ludicidade e destrezas fsicas, merecendo assim, todo o cuidado em seu trato. A presente pesquisa busca traar um dilogo com diferentes reas do conhecimento a partir da teoria de que o jogo da capoeira um fato social total, conceito criado por Mauss e que, portanto, deve ser analisada atravs das categorias: social/cultural, fsica/fisiolgica e psicolgica para um entendimento mais amplo da relao existente entre o conhecimento produzido no mbito da capoeira com o conhecimento acadmico. A pergunta que se faz ento : o que o jogo da capoeira no microsistema da UFSC? E, principalmente, quais suas semelhanas e diferenas quanto as suas prticas na UFSC? Assim, analisa-se e descreve-se o universo do jogo da capoeira a partir da literatura terica existente e de filmagens das aulas de capoeira dos trs grupos existentes na UFSC, alm da anlise biomecnica de uma situao de jogo, considerando, ao mesmo tempo, os elementos ticos e estticos que constituem cada roda de capoeira como referncias na composio da fundamentao terica do fenmeno pesquisado. A biomecnica, cincia que tradicionalmente est comprometida com a anlise do movimento, sob a perspectiva da mecnica, procura identificar caractersticas espaotemporais presentes nos movimentos corporais que compem o jogo. Nesta abordagem buscam-se dados objetivos para constituir o fenmeno fsico presente e que podem caracterizar as manifestaes apresentada pelos trs grupos pesquisados o grupo de capoeira contempornea e os grupos de capoeira angola. A outra forma de viver a pesquisa, provm de um momento democratizador da produo de dados e melhor compreenso do problema atravs da observao participante, com envolvimento dirio da pesquisadora nas atividades da comunidade estudada para melhor realizar uma descrio densa (Geertz, 1989). A escolha metodolgica e a abordagem constituram-se de diversas tcnicas de produo de dados privilegiando a construo coletiva para tentar chegar a resultados que levassem em conta a polifonia existente nessa manifestao popular. Aps a fase do viver da pesquisa entra-se em contato direto com os dados produzidos. Neste momento de anlise fica clara a grandeza humana de criar e recriar as prticas sociais, pedaggicas, artsticas e culturais. As diferenas estticas, metodolgicas e prepositivas entre os grupos foram mantidas sem nenhum tipo de hierarquizao ou

3 algum tipo de discriminao, procurando sim entend-los a partir de cada histria de vida e dos espaos sociais atuantes. A inteno deste estudo produzir uma pesquisa que dialogue com as diferentes reas de conhecimento propostas pelo curso de mestrado do Centro de Desportos da UFSC para abordar o jogo da capoeira de forma ampla. Por conseguinte, o objetivo geral descrever e analisar o jogo da capoeira no mbito da UFSC, buscando estabelecer as semelhanas e diferenas das prticas presentes. Os objetivos especficos esto voltados a descrever situaes de jogo da capoeira sob os parmetros espao-temporais, atravs da tcnica de cinemetria; descrever os elementos culturais e educacionais das rodas de capoeira da UFSC, sob a abordagem antropolgica social, fundamenta-se nos elementos culturais do jogo de capoeira e na anlise do sentido/significado do jogo da capoeira vivenciado pelos atores; por fim, refletir sobre a construo do conhecimento a partir do fenmeno especfico capoeira. O caminho percorrido neste estudo ainda repleto de contradies, ousadia e aventuras, porque foi necessrio dialogar com as diversas formas de conhecimento, num momento dinmico e de descobertas, no qual o real e o simblico esto juntos indissociavelmente. Entende-se que a cincia contempornea passa da fase de negao entre as cincias para a fase de complementaridade dos pontos que so possveis convergirem. Est nesse entendimento mais um momento de superao da produo do conhecimento na rea das Cincias do Esporte.

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CAPITULO II

Referencial tericoA escolha de uma concepo metodolgica na pesquisa uma opo criteriosa considerando sempre o tipo de relao entre o pesquisador e a comunidade pesquisada. Portanto requer um envolvimento significativo de sentidos, significados e de respeito. Ser apresentada uma possibilidade na construo de um caminho que considera e engloba as diferenas, os conflitos, as relaes entre os saberes sem hierarquiz-los e, que tenta estabelecer uma rede de relaes entre as categorias escolhidas. Considerada a pesquisa um instrumento de ler e interpretar a realidade, de natureza qualitativa e quantitativa, ou seja, de dimenso ampla, opta-se pela teoria da Antropologia Social, para dar conta da proposta. Sendo assim, trabalha-se com a interpretao dessa manifestao cultural abarcando seus aspectos scio-culturais e educacionais de forma qualitativa para o entendimento de jogo da capoeira, e, uma anlise quantitativa/mecnica realizada em laboratrio com fins de descrio espao-temporal desse mesmo jogo. A Antropologia Social estuda a maneira particular como um fenmeno est estruturado em si e como aparece enquanto especificidade de uma sociedade ou comunidade, neste caso, o que d identidade cultural manifestao capoeira. Para Geertz (1989), conhecimento antropolgico de uma cultura especfica passa, inevitavelmente, pelo conhecimento das outras culturas, com o reconhecimento que uma cultura possvel entre tantas outras, mas no a nica. Esse conhecimento realizado a fim de se compreender o sentido de determinada manifestao cultural numa dada sociedade e relacion-la com aspectos da nossa prpria sociedade. A Antropologia das Sociedades Complexas permite o estudo de qualquer grupo contemporneo, tais como operrios, homossexuais, grupos religiosos ou, ainda, capoeiras. Essa variabilidade cultural torna a humanidade plural e faz com que os seres humanos, apesar de pertencerem todos mesma espcie, se expressem diferentemente por meio de especificidades culturais como a magia, o folclore, as formas de matrimnio e os cdigos de tica. O olhar antropolgico permite o movimento de olhar para o outro e olhar para si mesmo atravs do olhar do outro. Laplantine (1988) diz que a antropologia trata de estudar o homem em todas as suas prticas e os seus costumes.

5 A abordagem antropolgica provoca, assim uma verdadeira revoluo epistemolgica, que comea por uma revoluo do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a idia de que existe um centro do mundo, e, correlativamente, uma ampliao do saber e uma mutao de si mesmo. (p.22-23) Geertz prope uma viso ampliada de ser humano e de cultura, refutando a chamada concepo estratigrfica e substituindo-a por uma concepo sinttica que, de acordo com esse autor, ... os fatores biolgicos, psicolgicos, sociolgicos e culturais possam ser tratados como variveis dentro dos sistemas unitrios de anlise (1989, p.56). Essa concepo proposta por Geertz, no nega as caractersticas biolgicas, psicolgicas, sociais e culturais no ser humano, mas sim procura consider-las como variveis de um todo humano indissocivel, portanto sem privilegiar uma abordagem em detrimento de outra. Geertz diz que a espcie humana s chegou a se constituir como tal pela concorrncia simultnea de fatores culturais e biolgicos, pois ... ns somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos atravs da cultura no atravs da cultura em geral, mas atravs de formas altamente particulares de cultura... (1989, p.61). Os seres tornam-se humanos devido sua individualidade, porm sob direo dos padres culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais tomam forma, ordem, objetivo e direo s suas vidas (1989, p.64). Segundo Daolio (2003, p.116), a partir dos anos 80, vrios autores da Educao Fsica brasileira passaram a considerar em seus trabalhos a dimenso cultural, fato esse positivo para os avanos da rea, mas ao mesmo tempo uma armadilha, se no esclarecido sob que conceito de cultura est se escrevendo. Portanto, enfatiza-se que ser discutido o conceito de cultura e construo de conhecimento atravs das contribuies de Clifford Geertz e Marcel Mauss, tentando estabelecer algumas relaes com a rea, assim como j faz Daolio. Para Geertz (1989), a cultura pblica porque sua dinmica implica comportamentos e aes humanas encarnadas em contextos especficos e por isso, dotados de significados prprios. Partindo desse pressuposto, a cultura passa a ser algo concreto, dinmico, processual, mutante, vivo e, assim a antropologia se transforma em cincia interpretativa, ou seja, em busca de significados. A partir dessa concepo de cultura e antropologia, Geertz (1989) aprofunda a questo da intersubjetividade na relao do pesquisador-pesquisado, defendendo a intersubjetividade para compreender como o significado num sistema de expresso pode ser expresso noutro, tarefa da hermenutica cultural. importante esclarecer que esse autor abandona o racionalismo cientfico caracterstico dos chamados paradigmas da

6 ordem, para inserir a categoria da (des)ordem. Essa categoria vem a se contrapor aos paradigmas da ordem, pois j que esses propunham o controle e domesticao da subjetividade, do indivduo e da histria, a proposio de Geertz, sobre a categoria da desordem se estabelece justamente quando esses elementos so transformados em intersubjetividade, individualidade e historicidade. De acordo com Oliveira (1988),

a subjetividade que, liberada da coero da objetividade, toma sua forma socializada, assumindo-se como intersubjetividade; o indivduo, igualmente liberado das tentaes do psicologismo, toma sua forma personalizada (portanto o indivduo socializado) e no teme assumir sua individualidade; e a histria, desvencilhada das peias naturalistas que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente, pois dela se esperava que fosse objetiva, torna sua forma e se assume como historicidade. (p.97) A capoeira como prtica ritualizada, no pode ser analisada parcialmente sem levar em considerao suas origens, sua historicidade e suas teias intersubjetivas, pois ela uma representao coletiva enquanto manifestao, porm o fator que a mantm na dinmica cultural o fato de ser ela uma prtica personalizada pela individualidade de cada mestre e de cada praticante. Durkheim, Mauss e Lvi-Strauss, pertencentes Escola de Sociologia Francesa rompem com a idia evolucionista de suas pocas e estruturam a antropologia e a sociologia pautadas na idia de que no existem povos no civilizados mas civilizaes diferentes. A hiptese do homem natural est definitivamente abandonada (Mauss, 1979, pp.10-11). Os costumes apresentam muitas vezes um carter inconsciente, portanto tarefa do etngrafo buscar os fatos profundos, quase inconscientes, que existem nas tradies coletivas. Canclini (1983, p.19) atribui a essa perspectiva o rompimento com o evolucionismo linear da civilizao e passa-se a ter outros pensamentos sobre os primitivos, os quais eram desqualificados. O mesmo preceito pode ser aplicado cultura popular a partir da Idade Mdia em relao cultura dominante ou de elite. Assim o conceito de cultura amplia-se e entendido como tudo aquilo que foi produzido por algum ser humano, no importando o seu grau de complexidade e de desenvolvimento, sendo consideradas como integrantes da cultura todas as atividades humanas, materiais e ideais. Todas as culturas, por mais rudimentares que sejam, so dotadas de estrutura, possuem no seu interior coerncia e sentido. Lvi-Strauss um dos que tem combatido de modo mais rigoroso a pretenso ocidental de ser o pice da Histria, de ter realizado o maior avano em termos do aproveitamento do pensamento cientfico.

7 Esse olhar antropolgico sob sociedades contemporneas pode ser

contemplado com a noo de totalidade, que implica a compreenso de que, em qualquer realizao do ser humano, podem ser encontradas as dimenses sociolgica-histrica, psicolgica e fisiolgica. Essa abordagem tridimensional s possvel de ser alcanada porque essas dimenses constituem uma unidade, no pela simples juno das partes, mas, de fato, quando encarnada na experincia de qualquer membro de uma determinada sociedade. Mauss define o social como real, porm isto s verdadeiro se integrado a um sistema, a representaes coletivas, que podem ser consideradas a cultura ou as culturas que os indivduos participam (Lvi-Strauss, 1974, p.14/15). Todo ser humano, mesmo inconsciente desse processo, portador de especificidades culturais no seu corpo, pois cada sociedade marca nos rgos dos sentidos dos seus indivduos suas formas de perceber o mundo. Cada cultura pode enfatizar ou limitar um ou alguns sentidos (Rodrigues, 1987). Ainda segundo esse autor, o corpo humano, como qualquer outra realidade do mundo, socialmente concebido e a anlise de sua representao social oferece uma via de acesso estrutura de uma sociedade particular. Cada sociedade determina um certo nmero de atributos que configuram o qu e como o ser humano deve ser, tanto do ponto de vista intelectual/moral quanto do ponto de vista fsico. O corpo recebe a inscrio de todas as regras, normas e valores de uma sociedade especfica, por ser ele o meio de contato primeiro com o meio que o cerca. Mesmo antes de a criana andar ou falar, ela j traz consigo alguns comportamentos sociais, o que permite dizer que o corpo a expresso da cultura e ento cita-se DaMatta (1987, p.76) ... tudo indica que existem tantos corpos quanto h sociedades. Nesse sentido, Marcel Mauss (1974) foi o primeiro a incluir o corpo nos estudos antropolgicos, o que ele chamou de tcnicas corporais. Esse autor tem o mrito de ter considerado os gestos e os movimentos corporais como tcnicas criadas pela cultura, passveis de transmisso atravs das geraes e imbudas de significados especficos. Afirmou tambm que uma determinada forma de uso do corpo pode influenciar a prpria estrutura fisiolgica dos indivduos. O termo tcnicas corporais pode soar estranho para um estudo que pretende fazer uma leitura de vrios fatores (social/cultural e biomecnico) do movimento, porm fundamental entender que para Mauss esse termo no significa apenas o emprego tcnico do corpo para realizar determinadas funes, ele amplia esse conceito ao definir tcnica como um ato que ao mesmo tempo tradicional e eficaz e ao falar do corpo humano em tcnicas corporais elevou-o ao nvel de fato social, podendo, portanto, ser pensado em termos de tradio a ser transmitida atravs das geraes.

8 Para Mauss (1974, p.199), quando uma gerao passa outra gerao a cincia de seus gestos e de seus atos manuais, h tanta autoridade e tradio social quanto quando a transmisso se faz pela linguagem. Assim Mauss descreve em sua obra tcnicas corporais da marcha, do andar e do correr, das posies das mos segundo algumas culturas (Mauss, 1974, p. 213-214); disto, encontra-se uma similaridade de coisas e situaes observadas na cultura dos negros brasileiros ou brasileiros de origem africana. Por exemplo, uma das formas do negro brasileiro caminhar pode ser descrito assim: passos largos, acentuao da lordose lombar projetando o quadril, ombros cados, grande balancear dos braos e dos quadris, exagerada inclinao lateral do tronco e da cabea a cada passada. Este caminhar, preconceituosamente, confundido com o caminhar do desordeiro, associando o negro malandragem e o malandro ao marginal. Esta idia to verdadeira que alguns adolescentes urbanos tentam se passar por malandros assumindo esta forma de andar (Rodrigues, 1987). Alm desses, possvel citar outros exemplos de gestos em que se encontra marcadamente a presena de elementos da cultura negra, a capoeira apenas um desses smbolos. De criao negra, a capoeira, assim como toda prtica social, tem uma tradio que passada s geraes por meio de smbolos. A tradio oral a mais conhecida e valorizada, porm essas prticas sociais podem ser transmitidas pela oralidade e tambm pelo prprio movimento como expresses simblicas de valores aceitos por esse grupo ou tribo. Quem transmite, acredita e pratica aquele gesto, quem recebe, aprende e passa a imitar aquele movimento o que garante eficcia ao gesto. devido eficcia das tcnicas corporais que Mauss concebe que os smbolos do andar, da postura, das tcnicas esportivas so do mesmo gnero que os smbolos religiosos, rituais, morais, etc.. Os rituais nas sociedades complexas ou simples servem para promover a identidade social e construir seu carter. Segundo DaMatta (1997, p.29), como se o domnio do ritual fosse uma regio privilegiada para se penetrar no corao cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores. O ritual um elemento importante tanto porque transmite e reproduz valores, mas principalmente porque um instrumento de lapidao desses valores isso porque permite que as pessoas tomem conscincia de certas cristalizaes sociais mais profundas que a prpria sociedade ou tribo deseja situar como parte de seus ideais eternos. Enfatiza-se mais uma vez a importncia de entender que, nas sociedades contemporneas, os elementos e smbolos culturais esto sempre se ressignificando, pois segundo Mauss, a tradio consiste em um contedo que est presente numa memria

9 coletiva que, ao mesmo tempo em que resiste aos avanos e desenvolvimentos cientficos, passa tambm a incorpor-los s tradies sociais, tornando-se to dinmica e diversa quanto a sociedade em geral. Rodrigues (1987) registra que as diferenas culturais expressas por meio do corpo so esclarecedoras, por exemplo, observando-se um festival de danas folclricas v-se com clareza as diferenas entre sociedades por meio dos movimentos corporais ritmados, a formao do grupo no palco, a postura dos danarinos, a rigidez ou a soltura de movimentos. Assistindo a uma copa do mundo, ainda notria a diferena entre a expresso corporal da seleo brasileira de futebol e a da seleo alem, por exemplo. Pode-se dizer que por meio do corpo que se assimila e se apropria dos valores, normas e costumes sociais atravs de um processo de inCORPOrao (expresso criada por Daolio, 1995). Mauss (1979) prope entender o movimento corporal como parte de um todo social, a partir das diferenas corporais entre povos ou entre pocas de um mesmo povo. Os comportamentos corporais so parte de uma tradio social, da mesma forma que os rituais religiosos, as obras de arte, as construes, a linguagem. Como toda tradio, os gestos tambm so transmitidos de uma gerao para outra, de pessoas para pessoas num processo educativo. Nesse processo de aprender o gesto tradicional, geralmente pela imitao, v-se o fato social manifesto como um todo: um elemento tradicional valorizado numa sociedade sendo transmitido a um indivduo dotado de uma unidade psquica por meio da utilizao de seu componente fisiolgico (Daolio, 1995, p.47). O estudo das expresses corporais caractersticas de cada cultura no pode ser reduzido a simples levantamentos e classificaes descritivas de movimentos e tcnicas, o mais importante so os contedos que contm princpios estruturadores da viso de mundo de uma sociedade e das atividades dos seres humanos em relao a seus corpos e ao corpo do outro. Alm de assumir que os corpos se expressam diferentemente porque representam culturas diferentes, fundamental entender os valores e normas que levam os corpos a manifestar-se de determinada maneira, ou seja, preciso compreender os smbolos culturais que esto representados no corpo e que esto sempre sujeitos a reinvenes e recriaes, pois a cultura dinmica e deve ser pensada em movimento.

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O Jogo da Capoeira

A roda de capoeira constitui-se tradicionalmente num crculo, mas no se limita a esse espao fsico onde os capoeiras encontram-se para jogar, brincar, vadiar. Uma roda pode ser formada com os participantes sentados ou em p, de acordo com as tradies de cada estilo, grupo ou toque de berimbau. A percusso faz parte da roda e composta de berimbaus (gunga, mdio, viola) 2, pandeiro, atabaque, agog e reco-reco. Geralmente, uma roda tem incio com um I3 do Mestre que est regendo o ritual, ele comea a tocar o berimbau gunga, em seguida os outros berimbaus soam e ento o Mestre canta uma ladainha e a louvao, todas as pessoas da roda respondem a louvao e os demais instrumentos comeam a soar. Dois capoeiras que j esto desde o incio agachados ao p do berimbau4 fazendo suas oferendas e pedidos de proteo comeam a jogar. Muniz Sodr (2002, p.37) descreve esse incio do jogo da seguinte forma: consiste em uma simulao de combate, uma espcie de bal marcial, sempre ritmado por instrumentos e cantos, em que os contendores experimentam, sem realmente bater, gingando5 e negaceando6. O objetivo do jogo, em geral, desequilibrar o outro, mais por malcia e por mandinga7 do que por fora fsica. Essa cultura do jogo da capoeira se2

Berimbau Segundo Rego (1968), instrumento composto de um grande arco de madeira e

um fio de ao tensionado com uma cabaa em uma das extremidades, que serve de caixa de ressonncia. sonido com um dobro e uma vareta. Tm-se trs tipos de berimbaus: gunga ou berra-boi de som grave e responsvel pela marcao, cadncia; o mdio apresenta um som intermedirio entre grave e agudo; viola, de som agudo e serve para fazer variaes musicais mais livres.3

Termo utilizado para dar incio e fim ao ritual da roda. utilizado com um chamado de Termo utilizado para denominar o local que os capoeiras se pem e iniciam o jogo. O p do

ateno e ordem para a roda.4

berimbau frente da bateria musical local sagrado, onde se pede beno e proteo para o jogo.5

Ginga o movimento bsico para todos os demais movimentos, consiste em um balanar

ritmado do corpo, que pode ser padronizado ou personalizado dependendo de cada grupo de capoeira.6 7

Negacear fingir, lubridiar, falsear, brincar com o movimento do corpo para enganar o outro. Malcia e Mandinga so termos utilizados para expressar um jogo perigoso, que

provocativo que se utiliza estratgias msticas e negaas para iludir o companheiro.

11 consolidou ao longo dos anos e na medida que foi apreendida pelos sujeitos constitui-se em campo frtil para a expresso e explorao da ludicidade. Segundo Falco (2002, p.117), trata-se de um pequeno universo que reflete a diversidade das relaes de poder vigentes na sociedade. A roda de capoeira promove atravs dos seus cantos, rituais e cdigos, alguns fatos da histria brasileira, que revelam o conflito travado entre agentes histricos muitas vezes camuflados pela histria oficial. Portanto, a roda de capoeira um Fato Social Total. Assim, pode-se elencar onze princpios estruturadores do jogo de capoeira que se inter-relacionam, so eles: confronto direto e indireto, lgica do avesso (inverso corporal e moral), sagrado e profano, ldico-combativo, pedagogia oral, malcia, filosofia de vida, construo social do corpo do capoeira, representao esttica da roda, capoeira como resposta social, a roda como um espao de energia. Sobre o confronto direto e indireto compartilha-se com Reis (1997) que h na capoeira uma marca que permanece e a mantm como uma das representaes mais significativas das relaes entre brancos e negros no pas, a valorizao do confronto indireto uma forma de luta que conta somente com o jogo do corpo. Nesse jogo corporal que se constri a partir de elementos disponveis ao negro e ao liberto, estabelece-se uma viso especfica de conceber os antagonismos sociais. A movimentao corporal da capoeira, centrada na ginga, na malcia, na surpresa e na inverso, constitui uma metfora das relaes entre negros e brancos e, mais do que isso, um modelo de sociabilidade que se caracteriza pela valorizao das ambigidades e de um modo particular de lidar com as tenses que, entre o jogo e a luta, evita sistematicamente o confronto direto. Para Bakhtin (1999, p.10), nesse mesmo sentido, as culturas populares, de certa forma, caracterizam-se, principalmente, pela lgica original das coisas ao avesso, ao contrrio, das permutaes constantes do alto e do baixo8 corporal (a roda), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de pardias, travestis, degradaes, profanaes, coroamentos e destronamentos bufes. Bakhtin (1999) tambm diz que h uma segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constri-se de certa forma como pardia da vida ordinria, como um mundo ao revs. E neste ponto que se centra a tese de Reis (1999) sobre a capoeira enquanto cultura popular e movimento de resistncia. Inclusive,

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O alto corporal refere-se ao superior, que est em cima, representado corporalmente pela

cabea e pelo tronco. J o baixo corporal refere-se ao inferior, popular, grotesco, representado corporalmente pelos quadris e ps. Para Bakhtin (1999) as coisas ao avesso representam a rebeldia popular, as inverses corporais e morais.

12 de acordo com Reis (1999), o motivo da punio ao corpo do escravo capoeira residia precisamente no fato de nele estar estampada rebeldia, o inconformismo escravo. Porm, o corpo do capoeira, supliciado pelo poder, o mesmo corpo insurgente que transgredia a rgida hierarquia escravista e, ao faz-lo, toma a forma de um contra-poder. Neste mesmo sentido, DaMatta (1997, p.137) atribui ao rito trs princpios sociais bastante conhecidos: a inverso (que engendra o joking), o reforo (que conduz ao respeito) e a neutralizao (que induz a evitao ou a invisibilidade social). Criamos, ento, um espao especial em que as rotinas do mundo dirio so rompidas e de onde se pode observar, discutir ou criticar o mundo real visto de pernas para o ar. No por outra razo que os ritos devem sempre ser estudado tendo como contraponto o cotidiano. (grifo nosso)

A roda de capoeira um ritual coletivo, que mantm sua especificidade nas cantigas e na gestualidade, procurando ver o mundo de cabea para baixo. Tambm para Falco (2002), a roda de capoeira uma metfora do espao social, onde se opera com o concreto e tambm com construes abstratas, por isso, participar de uma roda aguar os sentidos e a percepo para estar aclimatado, para reconhecer a inteno dos seus atores, que podem se expressar pelo olhar, pela musicalidade e pelo jogo corporal. o jogo corpreo-gestual, no verbal, em sintonia com o ritmo da percusso que possibilita a materialidade da cultura ldica na roda de capoeira. Os capoeiras em uma roda so jogadores, percussionistas e cantadores em potenciais, o que proporciona a roda uma interao rica entre a oralidade e a corporalidade, onde ao mesmo tempo acontecem de forma quase imperceptvel os ritos de passagem entre o sagrado e o profano, manifestado tanto na musicalidade quanto na gestualidade. Historicamente, o que se considera como tradio marcial da capoeira, surgiu a partir da necessidade de um povo oprimido livrar-se de seu opressor. O negro escravo utilizou seu prprio corpo como defesa dos ataques propriamente ditos, como tambm, forma de sobreviver espiritualmente atravs dos rituais e tradies religiosas9 de sua terra me. Em Burlamaqui encontra-se uma citao que ilustra a luta:

O escravo se mostrava evidentemente superior na luta, pela agilidade, coragem, sangue-frio e astcia, aprendidas ali, afrontando os bichos, as feras9

A questo das religies afro-brasileira so muito complexas para serem tratadas nesse

momento, porm segundo Rego (1968) pode-se afirmar uma forte ligao entre capoeira e candombl.

13 mais perigosas, lutando mesmo com elas, saltando valados, trepando em rvores as mais altas e desgalhadas, para se acomodar nas suas frondes, pulando de umas s outras como macacos, onde as nuvens batiam. E tiravam partido disso, tornando-se assim extraordinariamente geis e muito comumente um homem desarmava uma escolta, punha-a em desordem, fazendo-a fugir. Aplicava um jogo estranho de braos, pernas e tronco, com tal agilidade e tanta violncia, capazes de lhe dar uma superioridade estupenda.

J, a capoeira carioca, que sempre se apresentou violenta, apelando para cabeadas e murros, que acabava gerando disputas com armas brancas, pode ser constatado pelo texto de Rugendas de 1835 (apud Sodr, 2002, p.45), que diz

Os negros tm um outro jogo guerreiro muito mais violento capura: dois campees atiram-se um sobre o outro, tentando derrubar o adversrio com cabeadas no peito. O ataque evitado com saltos laterais e bloqueios igualmente hbeis. Mas acontece, ocasionalmente, acertarem cabea contra cabea com grande fora, fazendo a brincadeira degenerar em luta, no raro com as facas ensangentando o esporte.

A capoeira mesmo com toda sua caracterstica de luta pode ser caracterizada como jogo, porque o jogo implica regras, imitao, criatividade, envolve riscos, habilidades e prazer. A capoeira sempre implicou risco, simulao e descontrao, seu espao reservado a roda, que envolve brincadeira e perigo, dependendo da personalidade de seus integrantes. Em Castro (2003), encontra-se uma descrio, a partir do discurso dos velhos Mestres. Assim, para alguns Mestres, capoeira algo que no pode ser expresso em palavras, mas no gesto e expresso do capoeirista que a faz. Nela, h todo um conjunto de movimentos peculiares que pertencem cultura afro-brasileira e que por isso, gera certo preconceito quanto sua prtica. Neste conjunto de gestos e expresses, deve-se ir alm do cumprimento mecnico do ritual para evitar uma fragmentao, pois na capoeira tem-se a esfera do objetivo e do subjetivo, do movimento e do significado deste. No aprendizado, a maioria dos Mestres no seguem uma seqncia de planos de aula, mas uma percepo do que o aluno necessita. Muniz Sodr (2002, p.38) a esse respeito comenta: Tradicionalmente, o mestre no ensinava a seu discpulo, pelo menos no sentido que a pedagogia ocidental nos habituou a entender o verbo ensinar. Ou seja, o mestre no verbalizava, nem conceituava o seu conhecimento para transmiti-lo metodicamente ao aluno. Ele criava as condies de aprendizagem (formando a roda de capoeira) assistia a ela.

14 No jogo de capoeira, h toda uma corporificao da capoeira, uma harmonia do ritmo, da musicalidade, da pessoa com quem se est jogando e das outras presentes; no h mais um interno e um externo, mas um contnuo, como no caso do instrumento que o artista toca que se torna um prolongamento dos seus braos, ou quando o pintor empresta o corpo ao mundo para pintar (Lima, 1991, p. 125 apud Oliveira, 2002). Alis, geralmente fala-se em jogar capoeira e no lutar capoeira - capoeira se joga - pode ser identificada como brincadeira, como vadiagem. No jogo da capoeira preciso muito jogo de cintura, para saber esconder os movimentos para pegar o outro, uma armadilha que se faz fingindo-se estar distrado para que o adversrio pense ser esta a sua oportunidade de atacar. a que pode ser pego, pois ao estar preocupado com a ao de atacar, o capoeirista fica desatento para se defender. Esta idia expressa no deve ser confundida como uma retribuio de violncia ou sair-se vencedor, mas de negacear, de se fazer distrado e tapear o parceiro na sua iniciativa de agresso. Capoeira se joga com o outro e no contra o outro. O jogo exige a presena do outro. O jogo ganha caractersticas de verdadeira cooperao. Nesta ambigidade de caractersticas do jogo, est contida uma das lies de vida que permeiam a capoeira: no confiar nas aparncias e nunca desprezar os outros; no querer pegar uma pessoa distrada, mas respeit-la, pois a distrao pode ser um grande disfarce. As regras de conduta na roda de capoeira so tambm regras de conduta na vida, pode-se identificar: a prudncia, a inteligncia, o respeito e o ser surpreendente como qualidades de uma filosofia de vida. Concorda-se com Oliveira (2002), que os ensinamentos para o jogo da capoeira podem servir para o jogo das relaes humanas: agir com prudncia, saber conviver com a maldade do mundo. Saber jogar com isto sem sair da harmonia. Da os cantos e as msicas: tudo deve ser feito sem sair da cadncia do berimbau; preciso pegar o outro sem quebrar a harmonia do jogo. Lima (1991, p. 130-131 apud Oliveira, 2002) afirma que este sentido de ligao da capoeira com a vida, tambm esteve presente num momento histrico, em que existiu uma necessidade de o negro conquistar seu lugar na sociedade. O negro liberto deveria, ento, conviver com o poder, com a falsidade, com o preconceito, para conseguir sobreviver socialmente, e isto no poderia ser atravs da violncia e da marginalidade: era preciso aprender a no dar murro em ponta de faca. O negro reunia-se para cantar, tocar e aprender a Capoeira a fim de aprender o jogo das relaes humanas. Por esse motivo, jogar capoeira sempre requereu e ainda requer muita experincia, que no pode ser ensinada, mas que pode ser adquirida na vida. A representao de corpo de cada indivduo possibilitada pela cultura do grupo do qual participa. Este seleciona e assimila os estmulos de ordem social e cultural

15 inscrevendo essa linguagem coletiva em sua corporalidade. O corpo encarna, portanto, mediaes simblicas coletivas: as articulaes flexveis do corpo do capoeirista (as conhecidas juntas moles) associam-se abertura inventiva da cultura dos negros no Brasil (Sodr, 2002, p.82). Assim como a dimenso sagrada e ldica das culturas tradicionais, na capoeira o corpo define-se em termos grupais, ritualsticos. Na tradio africana, o corpo considerado um microcosmo do espao amplo, tanto fsico como mstico, que realiza conquista simblica do espao, integrando-se ao simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, direes do olhar e demais signos. A representao esttica da roda de capoeira constitui-se, como j foi dito, em diversas linguagens artsticas: o canto, a dana, o jogo, a luta, a percusso e outros. No caso particular da ... sncopa, a batida que falta, como diz Muniz Sodr (1998 p.11):

a ausncia no compasso de marcao de um tempo fraco que, no entanto, repercute noutro mais forte. o corpo que tambm falta no apelo da sncopa. Sua fora magntica, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rtmico) de se completar a ausncia do tempo com a dinmica do movimento no espao. Para Castro (2003), essa qualidade da sncopa na roda de capoeira percebe-se principalmente nos toques mais lentos, nos toques manhosos como o toque de Angola e So Bento Pequeno. Os instrumentos que compem uma bateria na roda de capoeira participam, tambm, dessa qualidade, mas quem comanda o ritmo o berimbau. O ritmo principal do atabaque o Ijx e nele a sncopa repercute no conjunto com todos os instrumentos, levando a uma harmonia musical que vai influenciar diretamente o jogador. Aqui temos mais uma ligao da capoeira com a religiosidade do candombl. Na roda de capoeira, quando se est jogando, entra-se em sintonia com a msica e os toques dos instrumentos; cada toque do berimbau corresponde a uma necessidade durante o jogo. Nesse processo de interao, o que ocorre uma constante harmonia entre o ritmo lento, melanclico, sutil e majestoso com o jogador. A Capoeira como um ritual uma resposta social, coletiva dos negros em relao aos brancos. DaMatta (1997,p.38) diz que essas caractersticas permitem chegar mais importante delas aquela que permite juntar o ritual com os movimentos de mudana social, ou seja, as revoltas e resistncias populares que visam libertar o ser humano das amarras de regras e homens. Esse autor define ritual por meio de uma dialtica entre o cotidiano e o extraordinrio, entre um mundo real e um mundo especial. A idia do extraordinrio faz parte da sociedade, porque nele habitam os deuses, os mitos que podem oferecer um plano de liberdade, abastana e plenitude. O ritual um estado

16 passageiro, mas que se corre o risco de ser permanente, portanto encantador, no ritual, pois, sobretudo no ritual coletivo, que a sociedade pode ter (e efetivamente tem) uma viso alternativa de si mesma. Portanto, o rito um veculo da permanncia e da mudana (DaMatta, 1997, 39). A roda de capoeira um campo de mandinga, um campo astral, um espao de energia. A mandinga a malcia com a qual, durante o jogo, o jogador desfaz uma situao e, quando o seu parceiro vir, outra situao completamente diferente. aplicado um golpe inesperado e o outro no consegue reagir, um parceiro engana o outro no jogo (Castro, 2003). devido aos elementos ambguos desta arte que os capoeiras falam jogar capoeira e no lutar capoeira, essa expresso tambm indica o carter ldico dessa manifestao cultural em que predomina a alegria e prazer pelo jogo/ritual. O jogo na capoeira representa uma constante negociao corporal em que cada jogador estabelece suas perguntas e responde as do outro. Num jogo malicioso e mandingueiro, os movimentos corporais parecem ser inteligveis e decifrveis s para quem est jogando. A malcia vem acompanhada da surpresa, do lubridiar o outro, de improvisar com o vacilo prprio ou com o vacilo do outro. Segundo Falco (2002, p.117), o capoeira mandingueiro imprevisvel, astuto e envolvente, assim como eram os mandigas povos originrios da regio da atual Repblica do Mali, na frica, tidos como grandes mgicos e feiticeiros. A mandinga aparece no universo da Capoeira como um instrumento do capoeirista durante o jogo, que ajuda no seu desempenho no sentido de envolver o seu parceiro em tal contexto. a possibilidade do capoeirista driblar o outro capoeirista. O capoeirista cria uma situao de brincadeira, de faz de conta e consegue mudar o sentido e o significado das coisas. Neste sentido, para Castro (2003), a mandinga pode ser considerada um estado mgico do capoeirista, no qual ocorre mediao entre o visvel e o invisvel, o contexto geral e o contexto particular, o concreto (toda produo material) e o abstrato (enquanto sua subjetividade). Enfim, o ser em jogo, vivendo na produo coletiva da sociedade. No jogo de capoeira, entre os jogadores e os participantes daquele contexto, ocorre um dilogo corporal constante, todos sintonizados no jogo. O jogo de capoeira constitui um espao em que um corpo conversa com outro, a partir das relaes estabelecidas no jogo e manifestadas em uma linguagem prpria, dependendo da histria de vida de cada um. Quando o capoeirista agacha ao p do berimbau para o jogo no

17 existe uma combinao de movimentos, pelo contrrio, ocorre um processo de descoberta a partir do que cada um realiza durante o jogo. A partir do respeito a ritualizao da capoeira, de conservar as tradies de seus antepassados, os capoeiristas convivem com uma mediao entre a preservao do legado cultural e sua mutao a partir do mundo globalizado. Ao contrrio do esporte institucionalizado, na roda de capoeira quem comanda so os integrantes do contexto, respeitando sempre os mais experientes (mestres de capoeira). A roda considerada o principal palco das representaes sociais, e nela se encontram os elementos estticos do cotidiano dos capoeiras. De acordo com Castro (2003), o Tempo de durao da Roda um tempo despreocupado, por isso geralmente no tem um tempo determinado para terminar a roda e o tempo de durao do jogo comandado pelo bom senso do mestre, que,

com sua arte de inventar, eles no tm pressa de jogar, de cantar, de ensinar e de ser. So os verdadeiros mandingueiros do tempo. Maliciosos at a alma apresentam sagacidade de negar e de afirmar, de sumir e de aparecer, de rir e de chorar; enfim de subjetivar e materializar (Castro, 2003). Esses elementos do jogo mandigueiro ajudam a compreender e a conviver com a maldade do mundo (as dificuldades, a opresso), o capoeirista recorre, alm do jogo propriamente dito, ao mstico e ao mgico passado por esse jogo. No se pode entender a capoeira ou qualquer outra manifestao da cultura negra sem falar da sua religio, de sua cultura como um todo. Na msica, na letra das ladainhas, na percusso dos instrumentos, na sncopa, perpassa todo o mstico da roda de capoeira. O berimbau o guia da roda; o que ele toca, o capoeirista executa no jogo. Esta forte presena do mstico e do religioso, prpria de uma cultura repleta de um simbolismo interminvel, muito embora, grande parte dos capoeiristas atuais, formados no mundo globalizado, no mais acreditam neste mstico/religioso, na possibilidade da orao, do corpo fechado, do patu e da mandinga10. Lima (1991, p. 134 apud Oliveira, 2002) afirma que a relao da Capoeira com a vida acaba determinando um portar-se do capoeirista jogador. O capoeirista no exibicionista, no prova nem mostra o que sabe, tem conscincia de que, por mais que

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Trabalhos de oferendas e pedidos a entidades espritas (orixs) pedindo proteo ou

realizao de desejos pessoais que podem ser bons ou ruins de acordo com a situao. No livro de Rego (1968) podemos ler exemplos de como ocorre essa ligao entre capoeira e candombl.

18 saiba, sempre tem o que aprender, por que a Capoeira um aprendizado constante. Da ser humilde, cheio de mistrios, sempre desconfiado das aparncias e mostrando-se sempre sorridente nas rodas de capoeira Mestre Pastinha expressa isto na seguinte frase: Angola, capoeira me: mandinga de escravo em nsia de liberdade; seu princpio no tem mtodo; seu fim inconcebvel ao mais sbio capoeirista, Vicente Ferreira Pastinha, o mestre Pastinha, foi grande capoeirista, pintor e poeta popular, tornou-se o maior representante e precursor desta forma de jogar capoeira. Nas dcadas de 20 e 30, surge uma nova forma de se jogar capoeira. Manuel dos Reis Machado (1900-1974), conhecido como Mestre Bimba, incorpora golpes novos, tirados do batuque e de outras lutas da regio, tradicional capoeira, que a partir de ento passa a se chamar capoeira Angola que, ao seu ver, era pouco eficiente enquanto luta. Assim, a capoeira de Bimba passa a ser jogada de forma mais precisa, agressiva, com movimentos altos, inclusive saltos, num ritmo acelerado. Uma srie de costumes e gestos no so mais realizados ou feitos, a no ser no jogo de Angola. Entre os novos golpes, Bimba cria uma seqncia de projees a que chamou de cintura desprezada e 8 seqncias de ensino, nas quais, em dupla, realizavam-se todos os golpes e contra golpes que compunham seu estilo. Alm da velocidade acelerada, incorpora no ritmo, cadncias ou toques no berimbau, cada um com propsitos e formas de jogar diferentes do jogo de Angola (Oliveira, 2002). A respeito ainda da capoeira Regional de Mestre Bimba, da mesma forma com o que ocorreu com a Angola, de sua elaborao nos anos 20-30 at hoje, perdeu-se muita coisa e muito foi acrescido ou modificado. Fala-se em tradies na roda, de indumentria, ritmo, ladainhas, golpes que foram sendo mudados. A originalidade dessas manifestaes foi e est sendo transformada e ressignificada possivelmente pelo seu maior veculo de aparente perpetuao: a popularidade.

A Biomecnica e o Jogo da Capoeira

Torna-se fundamental para o avano da pesquisa em biomecnica entender sua origem e a histria dos elementos que a compem. A biomecnica surge de cincias mes como: anatomia, biologia, fisiologia, fsica e matemtica. Cincias complexas que se interligam e se completam para auxiliar o entendimento do complexo humano.

19 O Movimento Humano constitui-se como o objeto central e mais importante dos estudos e pesquisas em Educao Fsica. Porm, tratando-se do movimentar-se de seres humanos em contextos especficos, notadamente no contexto da cultura de movimento, como no caso a capoeira, urgente que se desenvolvam mais conhecimentos sobre as particularidades destes Seres Humanos em movimento. A compreenso do ser humano complexo passa por todas as reas de conhecimentos que devem discutir conjuntamente as problemticas de pesquisa. Neste captulo pretende-se explanar sobre os mtodos da biomecnica para anlise do movimento, j que estes conhecimentos so fundamentais aos propsitos desta pesquisa. Inicialmente, abordar-se-o as noes bsicas da cinemtica e posteriormente se discutir o que j existe na literatura sobre a biomecnica da capoeira, que um dos enfoques desta pesquisa. A Biomecnica tem como um de seus componentes de pesquisa a cinemtica que, segundo Pinheiro (1992), um termo citado por Ampre (Andr Marie, 1775 1836), para designar a parte da mecnica relativa aos movimentos, sem considerar as foras que os produzem, ou a massa dos corpos em movimento. o estudo das caractersticas do movimento (velocidade e acelerao), relativamente a um marco convencional e da decomposio de movimentos. A cinemtica se ocupa da determinao da posio dos corpos mveis no espao, em funo do tempo, com abstrao das causas e circunstncias do movimento. Do ponto de vista cinemtico, um ponto material caracterizado simultaneamente por uma posio no espao e o instante em que ele ocupa esta posio. O conjunto destas quatro coordenadas, trs espaciais e uma temporal, indicado em relao a um sistema de referncia, ou referencial, de espao-tempo. Com esta caracterstica a cinemtica divide-se em: a) clssica e b) relativista; O tempo universal e no depende do referencial; A dimenso dos objetos rgidos depende de sua velocidade em relao ao referencial onde se efetua a medida. (Andr Marie, 1775 1836), Cinemtica, segundo Hall (1991, p.158), o estudo da geometria, padro ou forma do movimento em relao ao tempo. J para Hamil & Knutzen (1999, p.329), cinemtica a parte da mecnica que lida com a descrio de componentes de movimentos espaciais e temporais, portanto, esta descrio envolve: posio, deslocamento, velocidade e acelerao de um corpo, humano ou no, que pode ser descrito pela representao de seu centro de massa. Espao implica posio e deslocamento. Posio de um objeto ou ser humano refere-se a sua localizao no espao com respeito a uma referncia. Um movimento s ocorre quando um objeto ou corpo mudar de posio. Os objetos no mudam de posio

20 instantaneamente, portanto o tempo precisa ser considerado para a realizao de um movimento. Ento, de acordo com Hamil & Knutzen (1999, p.335), o movimento pode ser entendido como uma mudana progressiva de posio em um perodo de tempo. O deslocamento exige uma posio inicial e uma posio final diferenciada e medido em linha reta a partir destas referncias. Hamil & Knutzen (1999, p.335/336) dizem que no se deve confundir deslocamento com distncia. Distncia uma grandeza escalar e deslocamento uma grandeza vetorial, ou seja, considera o sentido e a direo. Pensando em espao (posio, deslocamento) e tempo chega-se a outros dois conceitos: velocidade e acelerao. Essas grandezas tambm podem ser escalar ou vetorial, depende de que uso pretende-se desses conceitos. Neste estudo nos interessa as grandezas vetoriais, sendo importante destacar que Hamil & Knutzen (1999, p.337) conceituam velocidade como a razo entre deslocamento e o tempo, ou seja, pela mudana de posio (s) num determinado intervalo de tempo (t). V=s/t. A partir da velocidade e da categoria tempo tem-se a acelerao. Dificilmente a velocidade de um movimento humano constante, portanto, se a velocidade se altera, altera-se em um intervalo de tempo. Conceitua-se, ento, acelerao por mudana na velocidade num determinado intervalo de tempo, ou seja, a = v / t. Tanto a velocidade, quanto acelerao podem ser representadas como uma inclinao indicando posio e tempo ou velocidade e tempo respectivamente. Na representao grfica que se ver ao tratar da cinematografia, o declive e a direo da inclinao indicam se a velocidade ou a acelerao positiva ou negativa e se ela aumenta ou diminui. Para tanto, nos estudos biomecnicos e para a representao grfica, toma-se o centro de massa articular. Assim, centro de massa denominado por Hall (1991, p.235) como o ponto em torno do qual o peso do corpo est igualmente distribudo em todas as direes ou o ponto no qual a soma dos torques produzidos pelos pesos dos segmentos corporais igual a zero. A cada movimento humano apresenta-se uma nova resultante de torques, portanto, um novo posicionamento de centro de massa ou de gravidade. Assim como varia a posio, so impressas tambm a velocidade e a acelerao, pois ocorre um deslocamento em um intervalo de tempo deste centro de massa. Para Hay (1976, p.109), a anlise biomecnica dos movimentos presume uma possvel e exata descrio do centro de massa total e parcial do corpo humano. A determinao do centro de massa do corpo de igual significado, tanto para a cinemtica como para a dinmica. Na determinao analtica do centro de massa, calcula-se o centro

21 de massa da cabea, tronco, braos, antebraos, mos, coxas, pernas e ps. Para obter esses dados so feitas vrias anlises. Segundo vila et. al (2002), na cinemetria os sistemas so orientados para as medies dos movimentos e posturas dos gestos desportivos atravs de imagens, registros de trajetrias, decurso de tempo, determinao de curvas de velocidade e acelerao, entre outras variveis. Hoje, com o avano tecnolgico, dispe-se de equipamentos de cinematografia tridimensional muito sofisticados. Uma das tcnicas utilizadas para avaliar a descrio do movimento a CINEMATOGRAFIA. Segundo Gilbert, surgiu em 1882 atravs da anlise realizada por Morey (1830 1904) dos movimentos de um animal. Os mtodos para anlise quantitativa de dados cinemticos so: Acelermetros, Cinematografia de alta velocidade ou vdeo de alta velocidade. Os dados obtidos resultam na localizao de posies do segmento do corpo em relao ao tempo. O avano na tcnica de registro temporal (lupa temporal) resultou na Cinetomatografia de alta freqncia para a captao e observao de processos extremamente rpidos, na cincia e na tcnica. Seqncias de imagens a mais de 8000 fotografias por segundo por meio de prismas e lentes que fixam durante um breve instante sobre um filme a imagem do objeto; possvel a obteno de mais de um milho de fotografias por segundo com obturadores eletrnicos de alta freqncia na cmara fotogrfica e uma seqncia intermitente de fulguraes ou fascas para a iluminao do objeto. Ultimamente se utilizam cmaras de retculo, com as quais se tomam at mil fotografias por segundo. Esta uma realidade de pas de primeiro mundo. No Brasil, nos laboratrios de biomecnica, tem-se sistemas de cinematografia de 40 a 180 quadros por segundo. Para determinar claramente as coordenadas de espao (x, y, z) de um ponto do objeto, necessita-se de dois a quatro quadros de medio tirada de posies distintas tomados simultaneamente. Nas tomadas cinematogrficas, armazenam-se fases do objeto de seqncia temporal, em quadros individuais separados no espao (processo de seqenciamento de quadros). O desenvolvimento do movimento medido em tempo real e as cmaras esto ligadas diretamente ao sistema, aps a digitalizao dos pontos tmse os grficos para a anlise quantitativa. Para uma melhor anlise dos movimentos de capoeira deve-se compreender algumas relaes e processos, como o que segue: Relao Entre Velocidade e Amplitude de Movimento quanto maior a amplitude do movimento, maior a velocidade do movimento. O ngulo de trao se modifica medida

22 que o msculo se contrai. Quanto menor o ngulo de trao, mais longe e mais rpido uma dada quantidade de contrao muscular (encurtamento) move o osso. Em ngulos superiores a 90, parte da trao tende a puxar o osso para fora da articulao, novamente reduzindo a quantidade de trao disponvel para realizar o trabalho externo. Em conseqncia, o aumento da distncia e velocidade de movimento em ngulo de trao pequeno alcanado apenas custa da eficincia, e o movimento efetivo que em outros ngulos que no 90 o resultado de componentes de duas foras (Tipler, 1978). Esse preceito aplica-se para o aperfeioamento dos movimentos da capoeira Regional, que tem como caracterstica a amplitude e a velocidade. Estabilidade e Equilbrio - A estabilidade definida mecanicamente como a resistncia acelerao tanto linear quanto angular, ou resistncia a romper o equilbrio. O conceito de estabilidade est intimamente ligado ao princpio de equilbrio, entendido como a capacidade individual para controlar a estabilidade. J o equilbrio quando um corpo permanece estacionrio, diz-se que est em equilbrio esttico, condio esta em que a fora resultante dever ser nula. Logo, uma vez que a acelerao do centro de massa de um corpo igual fora resultante dividida pela massa total, esta condio tambm e necessria para o equilbrio de um corpo rgido (Tipler, 1978). Neste sistema, as condies necessrias para o equilbrio so: A fora resultante externa dever ser nula e O torque externo resultante, em relao a qualquer ponto, deve ser nulo. Segundo Hall (1991), um dos fatores que afeta a estabilidade o tamanho da base de sustentao. Ela consiste na rea contida entre as bordas externas do corpo que est em contato com a superfcie de apoio. Quando a linha de ao do peso de um corpo, dirigido ao centro de gravidade, move-se para fora da base de apoio, cria-se um torque que tende a provocar um movimento angular do corpo atravs do centro de gravidade, desta maneira rompendo a estabilidade. Quanto mais ampla for a base, menor a possibilidade de desestabilidade. A capoeira Angola, geralmente, fixa sua base em trs apoios, levando vantagens no equilbrio e estabilidade. Centro de Gravidade - o ponto de um corpo slido no qual a soma de todos os momentos devido ao peso zero. Corresponde ao centro de massa. Teoricamente, determina-se o centro de gravidade por clculo integral; experimentalmente, por suspenso do corpo; ou seja, onde atua a fora da gravidade. Sendo o centro de massa o ponto sobre o qual a massa est uniformemente distribuda, este deve tambm ser o

23 ponto de equilbrio do corpo; portanto, o centro de massa pode ser definido como o ponto sobre o qual a soma dos torques equivale a zero (Hamill e knutzen, 1999). Centro de gravidade (CG) o ponto onde se podemos considerar aplicada a fora peso de um corpo; e o ponto de aplicao da resultante de todas as foras gravitacionais que atuam sobre um corpo. No que se refere ao corpo humano, o peso de um corpo a resultante de grande nmero de foras paralelas, e nesta perspectiva o centro de gravidade igual ao centro de massa. Considerando o corpo formado por um grande nmero de foras (w), sabe-se que para a determinao do centro de gravidade preciso conhecer as coordenadas que o determinam, sendo estas representadas por x e y no plano cartesiano. De acordo com os parmetros mecnicos, todo corpo comporta-se como se sua massa estivesse concentrada no centro de massa. O corpo humano enquanto sistema de segmentos rgidos articulados constitudo por movimentos que alteram a posio do centro de gravidade a cada deslocamento. Neste parmetro, h vrios mtodos para determinar a posio do centro de gravidade; o que ser utilizado nesta pesquisa ser o mtodo analtico, no qual a determinao da posio do CG feita matematicamente, atravs de modelos que representam o sujeito, como: modelos matemticos e segmentares, em que as partes individuais do corpo so consideradas como sendo slidos regulares, homogneos e segmentos de reta articulados. Todos esses preceitos so subsdios para discutir a tcnica da capoeira e sua eficincia enquanto arte marcial. Os estudos j realizados nesta perspectiva so: A Biomecnica da Capoeira, dissertao e artigo publicado por Marco Antonio Bechara Santos (1985): faz uma anlise qualitativa da ginga, e descreve que a ginga consiste no deslocamento do centro de gravidade a cada movimento. A partir da descrio de todas as etapas mecnicas da ginga, ele faz uma anlise dos msculos agonistas e antagosnistas recrutados para o movimento, alm de descrever e desenhar as linhas de fora ou linhas de aes do movimento. Dissertao Anlise Tridimensional da Ginga, de Rodrigues (1988), Artigo Anlise Tridimensional do Chapu de Couro na capoeira (1993) e Anlise Tridimensional do A Espinha (1995) realizados por Rodrigus et.all.: apresenta uma anlise quantitativa dos movimentos j referidos. Este autor se preocupa em descrever e quantificar a magnitude do deslocamento do centro de gravidade e determinar suas velocidades durante a

24 execuo dos movimentos. A amostra desses estudos foram de 4 capoeiristas do sexo masculino com dois anos de prtica de capoeira, na faixa etria de 17 a 25 anos. A metodologia utilizada foi a cinemetria, mais especificamente, anlise tridimensional da ginga, do chapu de couro e do a espinha. No estudo mencionado constata-se a trajetria, a velocidade e acelerao do centro de massa de cada movimento analisado. Esses resultados so comparados com os dados desta pesquisa no captulo IV. Salienta-se que a pesquisa no se encontra vinculada anlise de um movimento isolado como a dos artigos aqui discutidos. O ponto de partida o princpio de totalidade, portanto, analisam-se situaes de jogo e faz-se um cruzamento da descrio dessas situaes com as demais fontes de produo de dados aqui propostos.

25

CAPTULO III

OS CAMINHOS DA PESQUISA - PRODUO DE DADOS

As

estratgias

selecionadas

em

uma

pesquisa

de

dimenso

qualitativa/quantitativa devem ter uma afinidade com a proposta do trabalho como um todo. Diante disto, os recursos utilizados neste estudo possibilitaram a troca e o contato entre os diversos atores da pesquisa com a pesquisadora. O objetivo central deste trabalho foi o de realizar uma anlise descritiva/interpretativa do jogo da capoeira praticada no mbito da UFSC, atravs do dilogo entre reas de conhecimentos epistemologicamente diferentes, qual seja, a Antropologia (natureza interpretativa neste caso, atravs da descrio densa) e a Biomecnica (natureza descritiva neste caso atravs da cinemetria). Para essa consolidao, enquanto proposta de anlise procurouse estabelecer um dilogo entre as duas naturezas metodolgicas.

Da Descrio DensaO processo de descrio densa permite uma observao aprofundada pelo contato direto da pesquisadora com os sujeito da pesquisa, o que foi fundamental para analisar os atores pesquisados dentro da sua prpria produo cultural, ou seja, do cenrio real de suas expresses. Para isso, participou-se conjuntamente em outros espaos de atuao, como: encontros, congressos, jornadas e, principalmente, batizados e rodas de capoeira. Geertz (1989) diz que em etnografia o dever da teoria fornecer um vocabulrio no qual possa ser expresso o que o ato simblico tem a dizer sobre ele mesmo, isto , sobre o papel da cultura na vida humana. Neste sentido, optou-se pela descrio densa que depende de um repertrio de conceitos muito gerais, feitos na academia e sistemas de conceitos integrao, racionalizao, smbolo, ideologia, ethos, revoluo, identidade, metfora, estrutura, ritual, viso de mundo, ator, funo, sagrado e, naturalmente, a prpria cultura se entrelaam no corpo da etnografia de descrio

26 minuciosa na esperana de tornar cientificamente eloqentes as simples ocorrncias. O objetivo tirar grandes concluses a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaados; apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na construo da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificaes complexas (Geertz, 1989, p.38). A observao participante, como procedimentos metodolgicos de coleta satisfazem s necessidades principais de uma pesquisa qualitativa, no caso especfico da capoeira, porque possibilita ao pesquisador, alm de uma flexibilidade maior ao observar o fenmeno pesquisado, assegura uma flutuao na ao do pesquisador. Consonante a isso, nessa proposta metodolgica o observador (pesquisador) tem a inteno de jogar capoeira com os pesquisados, procurando interagir e melhor compreender o contexto. O primeiro momento da observao na pesquisa foi o contato do pesquisador com a comunidade pesquisada e depois a filmagem das aulas e rodas realizadas pelos mesmos. Optou-se por filmagens e observao participante por acreditar que a oralidade, na perspectiva da tradio oral, permite dialogar com o nativo, conforme Geertz (1989).

Tentar formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar-se situado, eis no que consiste o texto antropolgico como empreendimento cientfico. No estamos procurando, pelo menos eu no estou, tornar-nos nativos (em qualquer caso, eis uma palavra comprometida) ou copi-los. (...) O que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do que simplesmente falar, conversar com eles, o que muito mais difcil, e no apenas com estranhos, do que se reconhece habitualmente. (...) o objetivo da antropologia o alargamento do universo do discurso humano (p.23/24). Nesse sentido, o conceito de cultura semitico se adapta especialmente bem, como sistemas entrelaados de signos interpretveis, a cultura no um poder, a cultura um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligvel, isto , descritos com densidade. Porm, para poder exercer mais facilmente o papel de pesquisadora e realizar o exerccio de um certo distanciamento para melhor anlise dos dados, recorreu-se s seguintes estratgias: Dirio de campo - com informaes de conversas informais, falas dos atores durante as atividades, percepes da pesquisadora com o andamento das aulas e do jogo em si. Filmagem - gravaes (VHS) sistemticas de cinco aulas, de cada grupo de capoeira que atua no mbito da UFSC, sendo estes em nmero de trs, dois grupos do estilo angola (com grandes diferenas de estilo entre si como se ver adiante) e um grupo de

27 capoeira contempornea. Para esse procedimento de coleta de dados, a filmadora era instalada com antecedncia nos locais dos encontros, em um canto da sala de forma discreta, para causar o menos possvel de estranhamento ou constrangimento para os que estavam sendo filmados. As aulas foram filmadas, com a cmera fixa, por todo perodo das atividades do dia. As transcries foram realizadas por duas pessoas separadamente e depois foram comparadas no sentido de sanar dvidas e de complementar as informaes.

Da anlise biomecnica

Esta

etapa

do

trabalho

caracteriza-se

como

uma

pesquisa

descritiva/quantitativa, em que, a partir da coleta de dados, pautada na cinematografia, processou-se a devida anlise. A partir da, agrupou-se uma srie de informaes (parmetros) provenientes do decurso do gesto corporal do jogo da capoeira em funo da grandeza espao-temporal, com nfase na trajetria dos movimentos executados e na determinao das velocidades e aceleraes do centro de massa (CM) dos sujeitos escolhidos para a execuo (simulao do jogo) dos movimentos em ambiente de laboratrio. Esse processo permitiu avaliar as caractersticas estruturais dos gestos dos capoeiristas e os seus graus de complexidade no estabelecimento de contrastes entre prticas tradicionais e dos diferentes estilos praticados. Esta etapa do trabalho foi realizada no Laboratrio de Biomecnica da UFSC, com o auxlio do Sistema de Cinemetria (DMAS 5.0 da Spica Techology Corporation), operando com trs cmeras na resoluo 1024x1024 dpi, da marca Dalsa. O sistema digital, e as cmeras filmadoras so interligadas individualmente a uma CPU especfica, que, por sua vez, operam sincronizadas um computador central ligado em rede. A freqncia das cmeras para a filmagem foi estabelecida em 40 quadros por segundo, ou seja, de 0,025 segundos por quadro. As imagens captadas foram de 6 situaes de jogos diferentes, sendo 2 situaes de 5 segundos para cada grupo. Aps a digitalizao e processamento dos dados, o sistema fornece as informaes espaciais de cada ponto anatmico demarcado no sujeito. Essa demarcao seguiu os parmetros anatmicos propostos pelo Instituto de Biomecnica de Colnia (Riehle, 1979). O processo para captura das imagens obedeceu s seguintes etapas: confeco e calibrao do referencial espacial (calibrador de 14 pontos de referncia), baseado no Calibrador de Prumo de Moro (2000); posicionamento e regulagem das cmeras para a

28 melhor visualizao do calibrador; demarcao dos pontos anatmicos nos sujeitos; filmagem propriamente dita das situaes de jogos. Aps este primeiro momento de coleta, foram digitalizados manualmente todos os pontos (14 pontos articulares) das imagens capturadas, obtendo-se, ento, os valores em metros das coordenadas X, Y e Z para assim, compor os grficos das suas trajetrias e velocidades, para cada situao de jogo, respectivamente. O segundo momento foi calcular o Centro de Massa dos sujeitos nas trs situaes de jogos propostas. Foi estabelecido um limite de uma situao de jogo devido ao excessivo nmero de informaes geradas pelo sistema no decorrer das filmagens e por problemas tcnicos s um dos vdeos estava completamente enquadrado a rea de filmagem. Ao todo, tem-se 200 quadros de anlise para cada um dos 14 pontos articulares, com vistas a limitar o estudo, focando somente 1 situao de jogo escolhido para anlise. Os dados, por sua vez, foram transportados para uma planilha eletrnica (Microsoft Excel), conforme pode ser observado no anexo 1. Na seqncia, obteve-se os grficos das trajetrias, velocidade e acelerao das coordenadas do Centro de Massa do sujeito. As frmulas trabalhadas para a localizao dos centros de massa foram as seguintes: Para o centro de massa segmentar: XCM = [x1 + (r . x2)] / (1 + r) YCM = [y1 + (r . y2)] / (1 + r) ZCM = [z1 + (r . z2)] / (1 + r) onde, XCM, YCM e ZCM so as coordenadas do centro de massa calculadas para cada segmento corporal; X1, Y1 e Z1 so as coordenadas dos pontos anatmicos localizados na poro proximal do respectivo segmento corporal; X2, Y2 e Z2 so as coordenadas dos pontos anatmicos localizados na poro distal do respectivo segmento corporal; e, r a razo do respectivo segmento corporal em funo da localizao do seu centro de massa (Tabela 1).

Para o centro de massa total: XCMtotal = (x1 . p1) + (x2 . p2) + (x3 . p3) + ...+ (xn . pn) YCMtotal = (y1 . p1) + (y2 . p2) + (y3 . p3) + ... + (yn . pn)

29 ZCMtotal = (z1 . p1) + (z2 . p2) + (z3 . p3) + ... + (zn . pn) onde, XCM, YCM e ZCM, representam as coordenadas cartesianas do centro de massa corporal de cada sujeito, respectivamente; x1, y1 e z1, so as coordenadas dos centros de massa parciais, provenientes da equao anterior, representados por XCM, YCM e ZCM; e, p1, p2 e p3, representam o peso em decimal do respectivo segmento corporal, de acordo com a Tabela 1.

Tabela 1: Propriedades inerciais de indivduos, utilizadas para o clculo do centro de massa (CM) dos sujeitos, de acordo com Riehle, 1979. Segmentos Cabea Brao Antebrao +mo Tronco Coxa Perna + p CM Prox. 43% 64% 44% 43.3% 61% raio Peso (%) 7.8 2.7 2.2 51 9.7 6.0 100% Peso (p) Razo (r) (decimal) 0.078 0.027 x 2 0.022 x 2 0.510 0.097 x 2 0.060 x 2 1 0.754 1.778 0.786 0.764 1.564

30

Figura 1 Print screen da tela do software do Sistema DMAS (verso 5.0), mostrando o processo de digitalizao das imagens e seus respectivos menus.

A maior limitao do estudo o fato de que, como o movimento capturado complexo, dinmico e muitas vezes cncavo, tm-se pontos que em certos momentos ficam completamente escondidos, no podendo ser capturados na filmagem e, conseqentemente, tiveram que ser estimados na digitalizao. Por isso, assumimos essa limitao, pois o estudo no conta com total preciso, j que teve que assumir essa possibilidade de estimar uma certa trajetria de pontos do movimento. Esses dados foram trabalhados numa planilha do programa Excel, a partir das frmulas j expostas na metodologia e disponvel no anexo 1. Acredita-se que para solucionar os problemas tcnicos e estruturais as pesquisas deveriam ser transdisciplinares, contando com engenheiros, tcnicos em computao e biomecnicos. Atualmente, no mundo, essa realidade fato nos Institutos de pesquisa do primeiro mundo. No Brasil, os laboratrios de biomecnica encontram-se atrelados s Universidades, portanto, a maioria dos pesquisadores so passageiros e as verbas de manuteno so insuficientes para manter os equipamentos necessrios ao avano das pesquisas de ponta na rea do esporte.

31

CAPTULO IV

Anlise dos dados

A partir da produo de dados e da interao entre pesquisadora e comunidade pesquisada, foi possvel descrever e perceber a diversidade de jogo de capoeira que existe no contexto que a UFSC representa, alm de sua rica produo cultural, que vai alm da manifestao capoeira, como por exemplo: maculel, puxada de rede, afox, coco, samba de roda, poesias populares e dramatizao que de alguma forma cultuada e produzida por esses grupos. Para redigir um texto que possibilite essa interao cultural atravs das diferentes formas de coleta de dados desta pesquisa apresenta-se uma possibilidade de entrelaar um dilogo com todos esses dados. Geertz (1989) diz que uma descrio densa sempre interpretao de interpretaes e esse o ponto de partida. Inicia-se com a descrio dos jogos de cada grupo que foi filmado, colorindo com as falas dos sujeitos pesquisados e percepo prpria da pesquisadora atravs da observao participante e, para finalizar, descreve-se e analisa-se esse jogo em termos espao-temporal, atravs da anlise biomecnica. I vamos joga Camar... Caractersticas Gerais dos Grupos Pesquisados Os grupos de capoeira com atuao na UFSC apresentam-se com caractersticas semelhantes, j que em sua maioria so formados por alunos da prpria Universidade, sendo assim o nvel de escolaridade da maioria ensino mdio e superior em andamento. Pode-se dizer que todos os grupos so mistos quanto ao sexo, sendo que o nmero de homens maior que o nmero de mulheres. Quanto idade e nvel scio-econmico h variaes considerveis entre os grupos, pois no Grupo A tm-se somente adultos universitrios e alguns arteses com um nvel scio-econmico mdio/baixo, a maioria com formas alternativas de sobrevivncia. J no grupo B tm-se adultos universitrios e tambm um grande nmero de adolescentes na faixa de 12 a 18 anos, podendo caracterizar-se como nvel mdio. Enquanto que no grupo C tem-se na

32 maioria adultos, universitrios e trabalhadores do bairro e da prpria UFSC, considerados de nvel scio-econmico mdio/baixo. Quanto distribuio tnica bem variada nos trs grupos, sendo que de acordo com os critrios de classificao do IBGE tem-se uma maioria parda, depois branca e por ltimo negra.

Descrio e anlise das aulas e rodas de capoeira de cada grupo

O jogo da capoeira para o grupo A

Esse grupo realiza suas aulas trs vezes por semana com uma mdia de 1h e 30min s 2h de aula. Duas aulas por semana so de aulas tcnicas e uma aula (sextafeira) de percusso e roda. um grupo pequeno, do estilo Angola. Suas aulas geralmente comeam com alongamentos e relaxamentos individuais e personalizados de forma autnoma e perceptiva (expresso corporal) observa-se que eles j tm um trabalho corporal e trabalham o seu corpo de acordo com suas percepes. A fala do professor em algumas filmagens sinta seu corpo, veja o que ele est pedindo e da faz o alongamento. Enquanto realizam essas atividades de preparao, conversam sobre assuntos cotidianos, sempre de forma muito descontrada e amigvel. Aps esse momento, o professor comea a gingar e realizar alguns movimentos, os quais todos realizam conjuntamente. Em certos momentos da aula, o professor explica e demonstra algumas seqncias de movimentos que os alunos realizam enquanto ele toca um dos instrumentos (berimbau ou pandeiro). Em vrias aulas, o professor prope brincadeiras e simulaes que favorecem o desenvolvimento do reflexo, da ginga e das negaas, atividades que contribuem para o desenvolvimento de um jogo expressivo. Os ltimos trinta minutos de aula so destinados roda. As aulas de percusso acontecem com todos sentados em crculo e em cadeiras: o professor explica o toque de cada berimbau e a seqncia da percusso demonstra o toque e a variao de cada berimbau, faz a sonorizao, marcao com a boca, para facilitar a compreenso dos alunos. Todos passam por todos os instrumentos e cada um canta uma ladainha e um canto corrido; sempre que necessrio, o professor orienta e ensina. O professor explica que os cantos e as improvisaes nos cantos so para se falar do contexto da roda ou das situaes e para mandar mensagens aos

33 jogadores, portanto, as letras das msicas so plenas de significados para o momento da roda. Antes de falar na roda, importante salientar que neste grupo o professor d uma grande importncia ginga, e sempre solicita que os alunos se soltem e criem a partir da movimentao bsica. Para esse professor, a ginga e a forma de jogar deve ser criativa e personalizada. A vestimenta e a postura na roda para esse grupo fundamental. Eles jogam vestidos (como dizem), ou seja, de cala branca, camiseta do grupo por dentro da cala e sapatos. A maioria dos grupos de Angola tem essa preocupao com a vestimenta, por dois motivos: 1) preservar o legado cultural, em que no tempo da escravido era importante estar vestido, porque para os escravos significava a forma de identificar o negro liberto, alforriado, pois s podia comprar sapatos o negro liberto que trabalhava e era pago por seu trabalho livre motivo de orgulho na poca. 2) atualmente, na era da comercializao do corpo, para alguns grupos, importante contrapor-se ao mercado globalizado, que visa comercializao de roupas da moda para a prtica de atividades fsicas e a comercializao dos prprios corpos que ficam mostra. A formao dessa roda sentada, a bateria senta-se em banco ou cadeiras e formada de 3 berimbaus, 2 pandeiros, atabaque, reco-reco, agog. Neste grupo no h palmas como parte da percusso. Essa formao depende da quantidade de pessoas presentes na aula. A percusso comea com o Toque de Angola no Gunga, depois os outros berimbaus e os pandeiros entram na bateria; quem est com o berimbau Gunga comea com um I e canta uma ladainha e a louvao; todos respondem a louvao; os demais instrumentos se integram e canta-se um canto corrido e ento dois jogadores que esto agachados no p do berimbau desde o incio, concentrando-se para o jogo e pedindo proteo, fazem sua ritualizao personalizada e do incio ao jogo, comeando sempre com a cabea no cho, entram na roda e, sempre se olhando, brincam com o corpo num jogo de movimentos lentos, de encaixe, circulares, preenchendo espaos. O tempo de jogo determinado pelo professor e fica em mdia de 10min cada dupla. Para esse grupo, no h jogo de compra, os dois que iniciam o jogo o terminam e o tempo aqui fundamental para o desenvolvimento e interao entre os capoeiras que esto jogando. O professor diz jogar capoeira pensar, estudar o movimento, tem que ter sentido. O Professor sempre expressa algumas idias sobre o jogo e o jogar: sentir o corpo, o ax, ficar solto, olhar deixar o jogo fluir e primar pela lentido.

34 Os movimentos mais realizados so: movimentos circulares como as meia luas, compasso, rabo de arraia, martelo rodado, rols, rasteiras, chapas, as, alm das negativas, esquivas, negaas, tesouras, cabeadas, queda de rins, paradas de mo e de cabea, combinaes complexas desses mesmos movimentos e as gingas soltas e personalizadas. Os jogos e movimentos se apresentam maliciosos, brincam muito com o corpo para, na hora certa, hora da distrao, passar uma rasteira. A maior parte do tempo fica-se com a cabea para baixo. O professor sempre estimula os alunos a pesquisarem sobre a capoeira e assuntos culturais e para socializarem esses conhecimentos com o grupo. Na ocasio aqui descrita, um dos alunos falou sobre algumas semelhanas da capoeira com outras danas-guerreiras dos ndios Guaranis. O comentrio do professor foi:

com certeza a capoeira teve influncia indgena e negra, pois os dois se encontravam em situaes de explorao e desapropriao semelhante. O Brasil cultura, arte e cincia da mistura de negros, ndios e brancos.

Como se pode perceber nesta descrio realizada atravs das filmagens e das observaes, esse grupo est sempre discutindo e produzindo cultura, formando e se formando atravs da sua prpria produo cultural da capoeira.

O jogo da capoeira para o grupo B

Esse grupo tem trs turmas, sendo que duas delas realizam suas aulas trs vezes por semana com uma mdia de 1h de aula e a turma pesquisada realiza duas aulas por semana com uma mdia de 1h e 30min de aula. um grupo grande, com muitos adeptos, do estilo contemporneo. Alguns alunos apaixonados por capoeira freqentam todas as aulas do grupo. Suas aulas geral