Tese Angelo Adriano Faria de Assis

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    DOUTORADO EM HISTRIA

    Angelo Adriano Faria de Assis

    MACABIAS DA COLNIA:

    Criptojudasmo feminino na Bahia Sculos XVI-XVII.

    ORIENTADOR: RONALDO VAINFAS

    Niteri, agosto de 2004.

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    s minhas mulheres, ao seu modo tambm Macabias:

    Minha av, pelo que foi.

    Minha me, pelo que .

    Roberta, pelo que, juntos, nos tornamos e continuaremos a ser.

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    Mas que importava que o no alcanasse a razo onde est aF? Que importa a autoridade dos Homens onde est o testemunho deDeus?

    Padre Antnio VIEIRA, Sermo de Quarta-Feira de Cinza (1672).

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    RESUMO

    Em 1496-97, decretos do monarca portugus impuseram o monoplio catlico em

    Portugal, transformando os antigos judeus em cristos-novos. A criao do Santo Ofcio da

    Inquisio, em 1536, com o intuito de zelar pela pureza da f catlica, teria nos cristos-novos

    suas principais vtimas e justificativa mais intensa para sua instaurao. Com a intensificao

    dos trabalhos inquisitoriais, muitos deixaram Portugal procura de locais onde vivessem

    longe das presses do reino. O trpico braslico tornar-se-ia ento das regies preferidas.

    Durante a primeira visitao inquisitorial s capitanias do Nordeste, entre 1591-95, ganharia

    destaque o nmero de mulheres crists-novas acusadas de prticas judaizantes, sinalizando a

    intensa participao feminina no processo de resistncia judaica, como propagadoras do

    judasmo secreto que se tornara possvel, quando os lares passariam a representar papel

    primordial para a divulgao e sobrevivncia das antigas tradies. Esta Tese procura analisar

    a importncia feminina para a manuteno e sobrevivncia judaica no mundo luso-brasileiro

    durante os sculos XVI e XVII, atravs do estudo dos processos movidos pelo Tribunal doSanto Ofcio da Inquisio lisboeta contra a famlia Antunes principalmente a matriarca

    Ana Rodrigues suas filhas e netas, apontadas como Macabias , radicada em Matoim, no

    Recncavo baiano, insistentemente delatada perante a Inquisio, exemplos dos mais

    significativos do criptojudasmo ento vivido na colnia.

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    ABSTRACT

    From 1496 to 1497, the Portuguese monarch imposed decrees to assure catholic

    monopoly in Portugal; with this, the ancient Jews became the new Christians. The foundation

    of the Holy Office of the Inquisition, in order to protect the catholic faith, victimized mainly

    the new Christians and used this persecution as an excuse for its establishment. The

    Inquisition intensified; so many new Christians left Portugal looking for a place where they

    could live without the kingdoms pressure. The Brazilian tropic would then become the

    preferred region for exile. During the first inquisitorial visit to the northeastern captaincies,

    from 1591 to 1595, the number of new Christian women accused of Jewish practice increased.

    This shows that the female participation in the process of Jewish resistance was intense. They

    were the main disseminators of underground Judaism that had become possible when the

    divulgation and survival of the ancient traditions began to be held at home. This thesis

    analyses the importance of the feminine figure for the Jewish preservation and survival in the

    Portuguese-Brazilian society, during the XVI and XVII centuries. It is based on the study of

    lawsuits filed by the Portuguese Court of the Holy Office against the Antunes family, (mainlythe matriarch Ana Rodrigues, her daughters, and granddaughters that were pointed as

    Maccabees) which was rooted in Matoim, Bahia, and constantly accused by the Inquisition.

    This is one of the most significant examples of the cryptic Judaism that was present in the

    colony.

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    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS 08

    INTRODUO 10

    CAPTULO 1:Batizados em p: os judeus no judeus em Portugal

    1.1 O Tempo dos Judeus em Portugal 18

    1.2 Tempo de perseguio, tempo de excluso 37

    1.3 Por culpa de no ter culpa: o problema dos no judeus judeus 58

    CAPTULO 2: O cl dos Antunes e a esnoga de Matoim2.1Das origens: os Antunes em Portugal 78

    2.2Resistncias, milenarismo e messianismo: Trancoso, Setbal e outros exemplos 111

    2.3Do reino colnia: os Antunes na Bahia 118

    2.4Macabeus de Israel e Macabeus do Trpico 140

    2.5Improvisaes e Continuidades: as sinagogas clandestinas e o judasmo possvel 148

    CAPTULO 3: Esnoga devassada: a visitao quinhentista

    3.1A voz geral contra a gente de Matoim 166

    3.2 Os Macabeus na Mesa da Inquisio 208

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    CAPTULO 4:Ana Rodrigues e a esnoga domstica

    4.1 Jesus, estvamos quietos! Os Antunes na mesa do Santo Ofcio 240

    4.2As Macabiase os sinais de judia 256

    4.3 Patrimnio religioso e judasmo masculino dos Antunes 2924.4 Outras rabis... 306

    CAPTULO 5:A desdita das macabias na teia do Santo Ofcio

    5.1 Criptojudasmo feminino na colnia 339

    5.2Do recncavo ao reino... 345

    5.3Nos Estaus...

    359

    5.4 Os Macabeus processados 367

    5.5Perante o Tribunal: Para defender a memria, fama e fazenda da dita Ana Roiz 399

    5.6 Ecos da memria... 418

    CONCLUSO 425

    BIBLIOGRAFIA 429

    ANEXOS 450

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    Agradecimentos

    A longa preparao de uma Tese envolve esforos que, por vezes, nos isolam do

    convvio de amigos e familiares. A compreenso desta ausncia sinal de que nada se constri

    sozinho. Assim, meu agradecimento a todos que, pacientemente, souberam entender durante

    este tempo que minha ausncia era s fsica.

    De minha famlia, sempre recebi o carinho necessrio para continuar. Sem o amor de

    minha av, me, pai, tios, irm, sobrinha, tudo teria sido infinitamente mais difcil e sem

    sentido.

    Da nova famlia que encontrei, Franco e Norma, principalmente, agradeo a confiana

    e os braos abertos com que sempre me acolhem.

    Roberta, em todas as horas, soube entender minhas ausncias, viagens, atrasos e

    humores. Soube igualmente, de olhar firme e corao tranqilo, ser o porto seguro para meu

    refgio. Com sua delicadeza, me deu vida todo este tempo. Por isto e por tudo o mais

    merece meu agradecimento e amor.Vrios professores mostraram-se generosos e amigos, ajudando-me nos mais diversos

    momentos. Sou-lhes, por isto, sempre grato: Bruno Feitler, Clia Cristina da Silva Tavares,

    Daniela Buono Calainho, Georgina Silva dos Santos, Guilherme Pereira das Neves, Lina

    Gorenstein Ferreira da Silva, Rogrio de Oliveira Ribas, Sonia Aparecida Siqueira, e Tho

    Lobarinhas Pieiro.

    Jacqueline Hermann, ainda na defesa do Mestrado, devo a indagao que deu origem

    a todo este trabalho, e agradeo o cuidado e ateno que sempre demonstrou com minhas

    pesquisas. Junto com Keila Grinberg, com argies ponderadas e certeiras, me ajudaram a

    repensar a pesquisa durante a qualificao.

    Aos companheiros da ps-graduao, colegas de trabalho e alunos, devo a colaborao,

    o apoio e as dicas nas discusses em aula e nas conversas do dia-a-dia.

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    Natlia Seixas de Andrade, nos instantes finais da preparao, gentilmente, livrou-me

    das preocupaes com o abstract. A ela, o meu agradecimento.

    Alguns amigos mais especiais, companheiros nos combates pela Histria,

    demonstraram merecer o valor desta palavra: Carlos Andr Macdo Cavalcanti, CarlosEduardo Calaa, Carlos Eduardo Von Doellinger Manhes, Frank dos Santos Ramos, Joo

    Henrique dos Santos, Luciano Pires Mesquita, Nara Maria Carlos de Santana, Ronaldo Svio

    Paes Alves, e Vivien Ishaq.

    A todos os Professores e Funcionrios do Departamento de Ps-Graduao em Histria

    da Universidade Federal Fluminense, agradeo a ateno e boa vontade que me dedicaram

    toda vez que foi preciso.

    Tambm aos funcionrios da Torre do Tombo, em Lisboa, agradeo a ateno e ajuda

    que recebi, tornando ainda mais aconchegante a estada em Portugal.

    Sem a bolsa fornecida pelo CNPQ, facilitando minha participao em eventos e

    pesquisas pelos arquivos portugueses e brasileiros, esta pesquisa no teria obtido as mesmas

    condies para chegar ao trmino.

    Ronaldo Vainfas , em todos os sentidos, o grande responsvel por este trabalho.

    Acreditou em mim quando era apenas um aluno freqente de seus cursos, s voltas com a

    monografia. Orientou-me, com pacincia e generosidade excessiva desde ento, preparando-

    me em meu contato com a Histria. Alm da maestria da orientao, brindou-me com sua

    amizade. Junto comigo, admirou-se com a delicada resistncia destas Macabias da Bahia

    colonial. Devoto-lhe, pela amizade, confiana, ajuda e apoio maiores do que merecia e

    imaginava receber, admirao, gratido e respeito de orientando eterno.

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    Introduo

    Estamos prontos a morrer, antes que a transgredir as leis denossos pais.

    2Mc 7, 2.

    Ao deixar para trs o reino no ano de 1557 e partir em direo nova vida no Brasil ao

    lado do marido e dos filhos, a crist-nova Ana Rodrigues no poderia imaginar as condiesem que, j idosa, viva e doente, cerca de trinta e cinco anos depois, voltaria a avistar Lisboa.

    Nascida na Covilh, regio da Beira, provavelmente em incios do sculo XVI, Ana

    Rodrigues fazia parte das primeiras geraes de cristos-novos portugueses antigos judeus

    batizados fora por decreto manuelino de 1497, e seus descendentes. Ainda no reino,

    testemunhara o aumento das presses sociais e as perseguies contra os neoconversos,

    intensificadas a partir de 1536 com a instaurao e crescente estruturao do Tribunal do

    Santo Ofcio da Inquisio em Portugal.

    Matriarca de uma famlia duramente atacada perante a Inquisio durante a primeira

    visitao do Santo Ofcio ao Brasil, seria presa a mando do visitador. Sua priso ocorreria por

    conta do alto nmero de acusaes de que fora vtima, afamada pela voz geral e pblica

    fama por suas supostas culpas de judasmo. Enviada para os Estaus, sede do Tribunal

    lisboeta, local de onde nunca mais sairia com vida.

    O casal Heitor Antunes e Ana Rodrigues pertencia a uma famlia de prestgio na Bahia

    Quinhentista. Cavaleiro del Rey e homem de confiana do governador-geral, o patriarca

    Heitor Antunes tornara-se exemplo do avano neoconverso na economia e sociedade luso-

    brasileiras. De comerciante enriquecido, passaria a dono de engenhos, fixando-se em Matoim,

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    no Recncavo baiano, envolvido com a produo e mercancia do acar. O destaque

    alcanado pela famlia gerava frutos. Os Antunes conseguiriam ligaes slidas e duradouras

    com as principais famlias da capitania atravs dos laos do matrimnio que uniam seus filhos

    a cristos velhos honrados e nobres, diminuindo as presses decorrentes do sangue infectoque possuam, herana judaica dos antecessores judeus do tempo de livre crena. Enriquecidos

    e influentes, com boa circulao no poder e nos negcios, colaborando nas aes de conquista

    e pacificao do territrio, possuindo representantes no poder local, espelhavam o convvio

    mais harmnico entre cristos velhos e novos na colnia se comparado complicada situao

    existente no reino. Procuravam ainda esfacelar qualquer desconfiana geral sobre a famlia e

    manter o prestgio dando demonstraes pblicas de boa aceitao da f crist, construindo

    capelas em seus domnios, com padres contratados para as realizaes litrgicas, freqentando

    missas e realizando outras obras de caridade.

    Embora se esforassem por sinalizar sua sincera aceitao ao catolicismo, alguns

    membros da famlia eram apontados publicamente como criptojudeus. De acordo com seus

    acusadores, Heitor Antunes fora uma espcie de rabi, embora clandestino, dos cristos -

    novos judaizantes da regio, inclusive possuindo sinagoga em suas terras, onde se reuniam

    para as celebraes da f e da lei dos antepassados e para a leitura dos textos sagrados. Com a

    morte de Heitor, o controle da famlia passaria viva, grande responsvel pela sobrevivncia

    e manuteno das tradies judaicas, passadas s novas geraes no cotidiano. Tambm as

    filhas e filhos manteriam as prticas aprendidas com os pais, po r sua vez, ensinado-as aos seus

    filhos: embora perdesse em parte seu significado, garantia-se, deste modo, a herana do

    judasmo s novas geraes do cl.

    A chegada visitao acabaria com o clima de relativa tranqilidade vivida pelos

    Antunes. Ana Rodrigues e Heitor Antunes, seus filhos e netos acabariam denunciados mesado licenciado Heitor Furtado de Mendona, inquisidor-responsvel pela visitao do Santo

    Ofcio que percorreria as capitanias aucareiras do Nordeste aucareiro Bahia,

    Pernambuco, Itamarac e Paraba entre 1591 e 1595. De acordo com as denncias, as

    prticas judaizantes da famlia envolviam um variado leque de costumes e tradies

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    domsticas do judasmo, aproximando-o do judasmo vivido pelas primeiras comunidades de

    conversos. Um judasmo, oculto, adaptado, restrito s suas parcas possibilidades, vitimado

    pelas perseguies oficiais e impossibilidade de demonstraes pblicas; enfim, o judasmo

    que se tornara possvel criptojudasmo , de portas a dentro, realizado no silncio ediscrio do ambiente familiar, tendo o lar, em sua pouca privacidade, como principal espao

    de ocorrncia, e as mulheres elevadas posio de me-educadora-rabi , como grandes

    divulgadoras e sacerdotisas deste judasmo oculto. Desta forma, resistia a religio judaica s

    proibies sofridas atravs da manuteno de alguns costumes significativos desta resistncia,

    tais como: guarda do sbado; comemorao da Pscoa; cerimnias religiosas fnebres prprias

    dos judeus; preparao de alimentos tpicos e respeito s interdies alimentares; juramentos

    ao modo dos judeus; celebraes de festas; realizao de jejuns; bnos e oraes judaicas;desprezo aos smbolos catlicos; leitura da Torah e do Alvar dos Macabeus, e realizao de

    esnoga: prticas aprendidas por Heitor Antunes e Ana Rodrigues com as primeiras geraes

    de batizados em p, em incios do sculo XVI, ainda no reino, tudo repassando aos filhos e

    filhas e, da, aos netos.

    A ao do Santo Ofcio em prol da pureza catlica lograria pleno xito na sua ttica de

    dissolver as solidariedades parentais, afetivas e sociais, ao deletria que lhe era essencial

    para descobrir as heresias. O temor geral causado pela chegada da Inquisio ao Nordeste

    braslico levaria um grande nmero de testemunhas a denunciarem o que presenciaram ou

    ouviram dizer em fama geral sobre o que se passava nos limites do engenho de Matoim a

    includos os prprios Antunes, que compareceriam em grande nmero para defender a fama e

    a honra da famlia.

    Os representantes cristos-novos dos Antunes a matriarca Ana Rodrigues frente

    estariam entre os grupos familiares mais insistentemente citados e denunciados na

    documentao relativa visitao. Alguns de seus membros, principalmente as mulheres da

    famlia acabariam presos, processados e condenados pelo Santo Ofcio. Ana Rodrigues

    seria uma das primeiras mulheres que viviam no Brasil processadas pela Inquisio, tornando-

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    se a primeira moradora da colnia a ser condenada ao brao secular e retratada entre seres

    demonacos, mesmo depois de morta h mais de uma dcada!

    Fruto de um aprofundamento de minhas pesquisas para a obteno do Mestrado, estaTese objetiva discutir a importncia feminina na sobrevivncia e divulgao do Judasmo em

    sua liturgia, prticas e ensinamentos no perodo em que a religio dos filhos de Israel manteve-

    se proibida e perseguida em Portugal e seus domnios, atravs de um dos mais marcantes

    exemplos encontrados desta vivncia religiosa na documentao produzida pelo Santo Ofcio,

    seja pelo alto nmero de acusaes a primar pela riqueza de detalhes , seja pelo teor das

    denncias: a famlia Antunes, que viera de Portugal e fixou residncia na regio do Recncavo

    baiano, uma das mais denunciadas durante a presena inicial da Inquisio na colnia,possuindo considervel nmero de membros delatados com grande freqncia, mincia e

    variedade, de manterem conduta e prtica judaizantes, principalmente a sua matriarca, a crist-

    nova Ana Rodrigues, duramente acusada de ensin-las e foment-las aos seus descendentes.

    Para tanto, baseia-se, principalmente, na documentao produzida pelas duas primeiras

    visitaes do Santo Ofcio ao Brasil, entre 1591-95 e 1618-20: as confisses e denncias

    presentes nos livros das visitaes e cdices processuais inquisitoriais da decorrentes, alm de

    farta bibliografia pertinente e de apoio.

    Estruturalmente, optou-se pela concepo desta pesquisa em cinco captulos. O

    captulo inicial,Batizados em p: os judeus no judeus em Portugal, pretende dar conta da

    discusso bibliogrfica acerca do secular convvio entre cristos e judeus na Pennsula Ibrica

    Tempo de Judeus e dos motivos que culminaram com a converso forada destes em

    cristos-novos no Imprio Portugus a partir de 1497, analisando as conseqncias deste fato

    para as relaes econmicas, polticas, sociais e culturais de ento. A veracidade e o grau de

    resistncia dos neoconversos ao catolicismo imposto ao longo do tempo (o criptojudasmo),e a conseqente implantao do Tribunal do Santo Ofcio portugus como principal forma de

    conter as prticas criptojudaicas e defender a pureza e retido catlicas, so motivos de

    discusso ainda freqente entre as vrias correntes que estudam o tema, e a identificao das

    diferentes linhas de pensamento faz-se necessrio. Como pano de fundo do captulo, pretende-

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    se estudar as continuidades e descontinuidades scio-culturais mais significativas decorrentes

    do processo de proibio judaica em Portugal, analisando o impacto das leis de converso

    forada ao comparar os momentos imediatamente anteriores e posteriores ao estabelecimento

    do monoplio catlico, discutindo suas conseqncias no s entre os cristos-novos,principais vtimas, mas tambm na forma como estes eram vistos pelos cristos velhos, e nas

    relaes sociais como um todo, tanto no espao comparando-se as realidades distintas da

    problemtica neoconversa em Portugal e na Amrica lusa, o que se deve, entre outros fatores,

    menor presso eclesistica vivida na colnia se comparada ao reino , quanto no tempo

    abordando manutenes, adaptaes e transformaes enfrentadas pelo judasmo tanto na

    longa quanto na breve durao. Para tal, basear-me-ei na vasta historiografia luso-hispnico-

    brasileira existente sobre a problemtica dos cristos-novos e Inquisio Ibrica, dando

    especial ateno e destaque ao aumento de dissertaes e teses recentemente defendidas sobre

    o tema esforo salutar e louvvel dos historiadores do assunto.

    O captulo segundo, O cl dos Antunes e a esnoga de Matoim, tem como objetivo

    discutir a presena macia e ascendncia dos neoconversos na Amrica lusa, cada vez mais

    fortalecidos pela atuao e presena em diversos ramos da sociedade, envolvidos nas mais

    variadas fases da produo e do comrcio, vivenciando a poltica e temperando, com

    experincias prprias, a religiosidade local. Neste sentido, procura-se moldar um esboo de

    recuperao da biografia da famlia Antunes, reconstruindo o quadro da poca a partir de dois

    eixos em conjunto o social e o religioso , resgatando sua existncia e religiosidade desde

    o tempo em que vivia no reino a poca de livre crena, as presses sofridas com as leis

    proibitivas e implantao do brao inquisitorial em Portugal , e a posterior presena e

    enraizamento na colnia, a exemplificar o processo de mudana social e de diminuio das

    presses sofridas na colnia pelos neoconversos ao longo do Quinhentos, ocorridos graas

    crescente miscigenao entre os de sangue diverso. Neste processo, d -se destaque figura

    de Heitor Antunes, patriarca da famlia, cavaleiro dEl Rey que veio com a famlia para o

    Brasil poca de Mem de S. Heitor, homem de prestgio e bem relacionado com a elite local,

    mantinha, segundo acusaes mesa do Santo Ofcio, a confiana, admirao e respeito dos

    criptojudeus da Bahia, possuindo esnoga e alguns textos sagrados do judasmo em seu

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    engenho, a funcionar como uma espcie de rabi para a comunidade local. Busca-se, ento,

    realar, nessa fase, a sobrevivncia do judasmo rabnico, ainda que desfigurado, e qui do

    messianismo judaico, no apenas no caso especfico dos Antunes, mas comparando-o com

    outras situaes da poca, tanto no Brasil como em Portugal. O captulo termina com a mortedo patriarca Heitor Antunes e o processo que culminou com a ascenso de sua viva Ana

    Rodrigues ao comando da esnoga e liderana da sobrevivncia judaica entre alguns

    membros do cl.

    O terceiro captulo, Esnoga devassada: a visitao quinhentista, um exerccio

    descritivo, e busca recuperar o quadro de acusaes que pesaram sobre os Antunes, devassada

    com mincia excessiva aos olhos espantados do visitador, fazendo desmoronar as tentativas de

    diminuio da poro hertica sangunea e vigilncia social vivida pela famlia atravs dos

    matrimnios com indivduos cristos velhos, estes tambm apontados ao inquisidor como

    cmplices e/ou acobertadores das prticas mosaicas da parcela neoconversa da gente de

    Matoim. Procurarei, desta maneira, fazer uma sociologia no apenas da famlia, mas

    igualmente dos acusadores e testemunhas, caracterizando-os, reconstruindo a preocupao

    social com a retido catlica e a religiosidade efetiva que vivenciavam, apontando possveis

    interesses pessoais que pudessem abalar a veracidade das acusaes e das defesas perante o

    Santo Ofcio, transformado, constantemente, em frum privilegiado para a resoluo de

    problemas pessoais e inimizades, visto o benefcio do segredo que protegia (at certo ponto)

    os acusadores. A fragmentao das sociabilidades existentes a partir da ao deletria do Santo

    Ofcio, e a aflio dos membros da famlia, divididos entre a tentativa de preservar a

    integridade fsica e moral do grupo e o esforo por evitar represlias e penas maiores por parte

    do Santo Tribunal, insatisfeitos com a ameaa representada pelo comportamento hertico de

    alguns elementos dos Antunes, complementam o quadro das denncias e o palco das

    discusses a serem retratadas.

    Explorando os mesmos documentos produzidos a partir das duas primeiras visitaes

    inquisitoriais ao Brasil, Ana Rodrigues e a esnoga domstica, quarto captulo, uma espcie

    de anlise etnogrfica, que procura apreender as relaes das mulheres judias com a Lei,

    pesquisando os modelos femininos enquanto guardis da tradio mosaica. Trata da crescente

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    importncia que passou a desempenhar a figura feminina no processo de resistncia religio

    imposta por lei aos descendentes de Israel desde o apagar do sculo XV nos domnios

    portugueses. Figuras-chave no ambiente familiar, as mulheres ocupariam a um s tempo os

    papis de me, professora e rabi na criao dos filhos, educando-os de acordo com as tradiesdos antepassados, tornando vivel a sobrevivncia judaica apesar das imposies em contrrio.

    A vivncia em ambiente de limitao, proibio, excluso e hostilidade, com a

    impossibilidade de sinagogas e rabinos institudos, contudo, dariam nova importncia ao

    ambiente familiar, assim como posse da palavra e tradio oral devido falta das escrituras

    sagradas, e acabaria por redimensionar o conceito e papel da mulher no criptojudasmo

    colonial. O exemplo, dentre outras mulheres-rabi analisadas, de Ana Rodrigues, matriarca

    dos Antunes, e de Branca Dias, chefe do cl dos Fernandes, em Pernambuco, responsveis

    pela divulgao da f de Israel aos descendentes, igualmente devassadas e vilipendiadas no

    sem-nmero de acusaes de que foram vtimas na Mesa Inquisitorial ambas processadas

    mesmo depois de mortas, assim como seus filhos e netos, tambm eles vtimas da m fama

    de Ana e Branca e da presso pelo sangue hertico que carregavam nas veias, tornam-se

    exemplos especficos na tentativa de recuperao da importncia do ncleo familiar

    encabeado pela mulher na resistncia, sobrevivncia e divulgao do judasmo possvel na

    colnia. Para tanto, alm de recorrer aos processos inquisitoriais contra os Antunes e os

    Fernandes, torna-se necessria a consulta bibliografia especfica sobre a mulher Moderna e

    sua importncia no Mundo Portugus de ento.

    O quinto e ltimo captulo,A desdita das macabias na teia do Santo Ofcio, busca,

    baseando-se ainda nos processos contra a famlia, mapear a sociologia dos denunciantes, na

    procura dos reais motivos que impulsionaram a avalanche de acusaes contra Ana Rodrigues

    e os Antunes. Aborda tambm dos depoimentos prestados pelos Antunes ao visitador e da

    transferncia de alguns membros da famlia para os Estaus, priso do Santo Ofcio em Lisboa,onde teriam seqncia os processos iniciados na regio braslica. Complementando o captulo,

    as licenas, disputas jurdicas, consideraes, defesas e requerimentos dos descendentes de

    Ana Rodrigues durante todo o processo, e mesmo anos aps o seu falecimento nos crceres do

    Santo Tribunal, procurando eximir a famlia do vnculo hertico com a matriarca, relaxada em

    esttua Justia Secular em detestao de to grande crime. Igualmente trata das sentenas

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    processuais, procurando entender os seus significados dentro da linguagem inquisitorial e suas

    conseqncias para a famlia. O captulo termina com notcias sobre a visitao de 1618-20,

    onde o caso da matriarca e sua fama de judaizante seriam novamente lembrados e denunciados

    mesa do visitador.

    Os relatos, estrias documentos e processos inquisitoriais envolvendo os Antunes,

    principalmente as mulheres da famlia, as Macabias da Colnia, so fonte riqussima e

    indispensvel para a reconstruo dentro dos necessrios limites do bom-senso que cabem

    ao trabalho do historiador do cotidiano e religiosidades existentes na colnia. Reconstroem

    alm: morta no crcere, morta novamente nas chamas do Santo Ofcio e no quadro demonaco

    que a retrataria, Ana Rodrigues e outras mulheres-rabi sobreviveriam, juntamente com a fque defenderam at o ltimo suspiro, atravs da Histria.

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    Captulo Um:

    Batizados em p: os judeus no judeusem Portugal

    Aquela imagem entrevista de relance era mesmo a minha? Eusou mesmo assim, de fora, quando vivendo no me penso? Ento para os outros eu sou aquele estranho surpreendido no espelho;aquele, e no mais eu tal como me conheo: aquele ali, que eu, deprimeira, ao nota-lo, no reconheci. Eu sou aquele estranho que no posso ver vivendo nem conhecer seno assim, num momento dedistrao. Um estranho que s os outros podem ver e conhecer, no

    eu. E desde ento me fixei neste propsito desesperado: deperseguir aquele estranho que estava em mim e que me escapava, queeu no podia fixar diante de um espelho porque logo se transformavaem mim tal como eu me conhecia aquele um que vivia pelos outrose que eu no podia conhecer, que os outros viam vivendo, e eu no.Tambm eu queria v-lo e conhece-lo tal como os outros o viam econheciam.

    Luigi PIRANDELLO, Um, nenhum e cem mil.

    Ser no ser? O que eu sei do que eu serei

    Se eu no sei, eu, o que eu sou?Fernando PESSOA1

    o anti-semita quem faz o judeu.Jean-Paul SARTRE,A questo judaica.

    V que os gentios se coligaram contra ns a fim de nosaniquilarem: tu sabes o que tramam contra ns! Como poderemosresistir diante deles, se no vieres tu em nossa ajuda?

    1Mc 3, 52-53.

    O Tempo dos Judeus em Portugal

    1Apud NOVINSKY, Anita. Fernando Pessoa O Poeta marrano. In: Revista Portuguesa de Histria. T.XXXIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Instituto de Histria Econmica e Social,1999,pp. 699-711.

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    A presena hebraica na Pennsula Ibrica encontra seus primrdios na Antigidade.

    Indcios mostram ser de origem mais antiga do que a ocupao daquele espao por mouros,

    godos e romanos. Divergem, contudo, os historiadores, quanto chegada dos primeiros judeus

    na regio. Atestam alguns pesquisadores, autores de estudos clssicos sobre o tema 2, que osjudeus l teriam chegado em variadas pocas e intensidades, deslocando-se para aquela regio

    por razes as mais diversas: uma leva, como comerciantes, poca de Salomo (1015-977 a.

    C.); outra, como fugitivos, trazidos da Babilnia, em conseqncia da destruio do Primeiro

    Templo durante o reinado de Nabucodonosor (597 a. C.)3; grupos menores, ou familiares,

    esporadicamente, tambm teriam seguido a mesma rota, vindos de diferentes partes em

    direo pennsula, imbudos em recomear a vida naquele local. Durante a dominao

    romana na Palestina, sob as intervenes de Pompeu e Tito Lvio, e a destruio do Templo,

    muitos judeus optaram por emigrarem para a regio do Ocidente Mediterrneo. Para Maria

    Pedrero-Snchez, a projetada viagem de Paulo de Tarso Hispnia (Rom. 15,24) permite

    supor com absoluta certeza que existiam assentamentos judeus na Pennsula Ibrica no sculo

    I d. C., seno antes, j que a ao do apstolo se iniciava junto s comunidades judias4. Por

    esta poca, os judeus l estariam em maior nmero, participando, com mais densidade, do

    processo de mescla social, espalhados em numerosas comunidades nas mais longnquas e

    diversas regies do espao peninsular espao este que os judeus denominavam Sepharad5.

    2 AZEVEDO, J. Lcio. Histria dos Cristos-Novos Portugueses. 3a ed. Lisboa: Clssica Editora, 1989,especialmente os cinco captulos do Livro Primeiro As Origens, in: KAYSERLING, Meyer. Histria dosJudeus em Portugal. So Paulo: Pioneira, 1971; NOVINSKY, Anita. Cristos novos na Bahia: 1624-1654. SoPaulo: Perspectiva / Edusp, 1972; LIPINER, Elias. O Tempo dos Judeus segundo as Ordenaes do Reino. SoPaulo: Nobel / Secretaria de Estado da Cultura, 1982.3IANCHEL, Sarah Znayde. A Inquisio na Bahia: Estudo do processo de Ana Rois. Dissertao de Mest radoapresentada ao Departamento de Histria da Universidade de So Paulo. So Paulo, 1981.4 PEDRERO-SNCHEZ, Maria Guadalupe. Os Judeus na Espanha. So Paulo: Editora Giordano, 1994, p. 14. Oversculo em questo faz parte dos Projetosdeviagem do apstolo Paulo, e destaca-se, em itlico, da passagemaqui citada (Rom. 15, 22-29): Foi justamente isto que sempre me impediu de chegar at vs. Agora, porm, notendo mais campo para meu trabalho nestas regies e desejando h muitos anos chegar at vs, irei quando for

    para a Espanha. Espero ver-vos na minha passagem e ser por vs encaminhado para l, depois de ter saboreadoum pouco a alegria de vossa presena. Mas agora eu vou a Jerusalm, a servio dos santos. A Macednia e aAcaia houveram por bem fazer uma coleta em prol dos santos de Jerusalm que esto na pobreza. Houveram porbem, verdade, mas eles lhes eram devedores: porque se os gentios participaram dos bens espirituais, elesdevem, por sua vez, servi-los nas coisas temporais. Quando pois eu tiver resolvido este encargo e tiver entregueoficialmente o fruto da coleta, passarei por vs a caminho da Espanha. Tenho certeza de que indo a vs, irei coma plenitude da bno de Cristo. A Bblia de Jerusalm. So Paulo: Edies Paulinas, 1987, p. 2144.5De acordo com Joseph Prez, la identificacin de Sefarad con Espaa viene de una profeca de Abdas quealude a los desterrados de Jerusaln que estn en Sefarad, es decir, en el finisterre del imperio romano, segninterpretaciones tardas. Quanto identificao do termo para designar os judeus estabelecidos em terras de

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    Para a Ibria, data o mais antigo documento escrito conhecido sobre a presena dos judeus do

    sculo III da Era Crist uma lpide, adornada com caracteres hebraicos, encontrada na

    cidade espanhola de Adra , sendo do sculo VI o mais longnquo deste tipo de vestgio

    conhecido em territrio lusitano6.

    Se, por um lado, a carncia de maiores evidncias e informaes sobre os perodos

    iniciais da presena hebraica apesar da reconhecida riqueza e brilhantismo da atuao

    judaica nestas remotas pocas , tornam questionveis a exatido temporal de alguns

    acontecimentos, a estruturao e importncia social que cada comunidade adquiriu, ou mesmo

    os nmeros efetivos que demonstram a real intensidade das ocupaes acima citadas,

    inquestionvel que, muito antes de qualquer elucubrao a respeito do surgimento dosEstados Nacionais que hoje formam o brao peninsular mais ocidental da Europa

    antecipando-se em sculos invaso moura a partir do ano 711 que manteve o controle de boa

    parte da regio entre os Pirineus e o Atlntico por aproximados oitocentos anos , os judeus

    j conheciam, freqentavam e habitavam este espao h sculos. A penetrao judaica na

    pennsula era constantemente intensificada atravs da interao com as populaes l

    existentes. Alis, durante a Reconquista crist da Pennsula, oficialmente completada no

    segundo dia de janeiro de 1492, com a entrada triunfal dos Reis Catlicos em Granada, algunsjudeus optariam mesmo por participar ativamente, ao lado dos cristos, do combate aos infiis

    mouros, lutando contra muitos de seus prprios irmos de crena, posto que, primeira vista,

    os mouros tinham e contavam com os judeus como partidrios. Apesar de estabelecidos e

    vinculados a razes ibricas criadas e renovadas constantemente na longussima durao, o

    povo judeu seria seguidamente expulso em curto intervalo de tempo, j no opsculo do sculo

    XV, dos reinos de Espanha e Portugal, respectivamente.

    Espanha, o autor explica que no h ainda noo verdadeiramente clara: Es dudoso que ya en la Edad Media. Loms probable es que aquella identificacin del Sefarad bblico con la pennsula ibrica fuese tarda, tal vez

    posterior a la expulsin de 1492. PREZ, Joseph. Histria de uma tragdia. La expulsin de los judos deEspaa. Barcelona: Crtica, 1993, p. 11, nota.6 Trata-se, de acordo com pesquisa de J. Leite de Vasconcellos para sua EtnografiaPortuguesa (Lisboa, 1958),de uma lpide funerria, encontrada na regio de Espiche, perto de Lagos.ApudFERRO TAVARES, Maria Jos.Os Judeus em Portugal no Sculo XIV. 2a ed. Lisboa: Guimares Editores, 2000, p. 11.

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    O nascimento poltico do reino portugus em fins do sculo XII sob a espada

    abenoada por vises divinas e comandada por Afonso Henriques7, d-se num momento em

    que os filhos de Abraho j se encontram, h tempos, sedimentados em algumas localidades

    de grande povoamento e importncia, como Santarm, Coimbra e Lisboa. a Santarm localizada a Norte de Lisboa, cidade que nasceu s margens do Tejo em seu sinuoso percurso

    vindo das terras de Espanha que a histria conhecida reservou a marca de possuir a mais

    antiga das sinagogas do reino, j em pleno funcionamento antes mesmo da conquista desta

    cidade aos mouros, em 1140 sinal da organizao e expressividade da comunidade judaica

    ali residente. Nas localidades conquistadas para o novo reino em formao, regulamentava-se

    desde cedo, via legislaes monrquicas, os negcios civis de cristos, mouros e judeus,

    beneficiando ora mais ora menos cada um dos grupos, de acordo com o caso, as contingnciase os interesses envolvidos.

    Em Portugal, o estatuto dos judeus mostrava-se similar aos de outras reas de maioria

    crist. Era regrado e definido pelo direito cannico e romano, ao que se somavam as

    ordenaes particulares do reino, a legislar sobre as especificidades vivenciadas pelos judeus

    da regio. Segundo nos lembra Antnio Carlos Carvalho,

    No ento possvel falar dos costumes dos judeus em ge ral, sementrar num grande detalhe e em distines particulares. O judeu umcamaleo que toma por toda a parte as cores dos diferentes climas quehabita, dos diferentes povos que freqenta, e das diferentes formas degoverno sob as quais vive8.

    As particularidades do judasmo em Portugal ocorriam no apenas devido s condies

    especficas surgidas no convvio cotidiano, como as adaptaes necessrias sociedade local,

    na qual estavam agora inseridos, mas igualmente necessidade de obedincia ao cdice de leis

    daquele reino e suas respectivas reelaboraes ou prticas variantes de acordo com os anseios

    do monarca em questo. Nas terras portuguesas, onde o clima no lhes era, em princpio,

    7 Sobre a questo das vises divinas alegadas pelo primeiro monarca portugus para viabilizar a improvvelvitria sobre inimigo numericamente superior na Batalha de Ourique, marco inicial do reino portugus, verHERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: A construo do sebastianismo em Portugal Sculos XVI eXVII. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.8 CARVALHO, Antnio Carlos. Os judeus do desterro de Portugal. Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 22.

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    hostil, a adaptao dos judeus s exigncias do Estado no seria mais traumatizante do que em

    outras partes do mundo cristo. Os prprios reinados iniciais apontam para uma srie

    considervel de atitudes de congraamento entre judeus e cristos no cotidiano, alm de toda

    uma grei de leis relativas aos judeus, no raro definindo vantagens e concesses especiaisfeitas em situaes variadas, como, por exemplo, a iseno de determinadas taxas que

    incidiam sobre a maioria crist no reino. Desde o incio de sua estruturao poltica como

    regio independente, j havia uma ateno especial do Estado com o grupo judeu, preocupado

    com as vantagens que a presena deste povo traria para a estruturao scio-econmica

    portuguesa. D. Afonso Henriques (1128-1185) e um seu sucessor, D. Sancho (1188-1211),

    cedo diagnosticariam a importncia da participao hebraica no auxlio ocupao,

    povoamento e controle do territrio peninsular conquistado. Eram os judeus utilizados em

    ofcios que exigiam um maior conhecimento tcnico e preparao acadmica, como a

    medicina, em boa parte exercida por judeus ou utilizando tcnicas trazidas e desenvolvidas por

    este grupo. Tambm formavam no comrcio, onde dominavam espao considervel e que, se

    no exigia maiores predicados intelectuais, capitaneava somas considerveis para a economia

    local. Representavam uma elite econmica e cultural, visto a prpria sedimentao do

    judasmo em origem letrada embora a generalizao seja impensvel: judeus pobres ou

    iletrados no eram raros, nem poucos. Monarcas posteriores, gradativamente, ampliariam esta

    percepo sobre a importncia mosaica, conscientes do peso e utilidade da atuao judaica nos

    projetos de expanso no ultramar.

    No Portugal em formao, a princpio, os judeus viviam, sem maiores distines, entre

    os cristos, a dividirem o mesmo espao, sem que houvesse uma preocupao maior por parte

    dos monarcas em realizar uma separao geogrfica efetiva entre os seguidores dos dois

    credos. Poucas eram as cidades onde possuam suas residncias em bairros separados. Embora

    alguns monarcas, a exemplo de D. Diniz (1279-1325), ensaiassem implementar a segregaoespacial dos judeus em bairros prprios, s a partir do reinado de D. Pedro I (1357-1367),

    nas Cortes de Elvas, no ano de 1361, que a obrigatoriedade de recolhimento dos judeus a

    bairros especiais, separados dos locais onde habitavam cristos, definitivamente posta em

    prtica, apesar da inviabilidade de real cumprimento desta lei na sua totalidade. Neste sentido,

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    espalham-se pelo pas as aljamas9 tambm nomeadas judiarias ou comunas bairros

    fechados criados para os judeus em stios onde o nmero de seguidores da f de Israel

    ultrapassasse dez pessoas. Aljama, define Lipiner, designa o bairro prprio dos mouros em

    terras portuguesas. Este nome, que designava muito primitivamente nos tempos iniciais da

    monarquia portuguesa as mourarias ou ajuntamentos de mouros, passou depois a designar

    as judiarias, bairros de judeus onde, antes da expulso de 1497, os judeus portugueses viviam

    segundo a sua lei, mediante pagamento de tributos especficos. Destes tributos eram

    beneficirios pessoas particulares, em recompensa de seus servios. As aljamas tinham como

    objetivo responder preocupao ento dominante no governo de restringir ao mximo as

    relaes entre os judeus, de crena nefasta, e a populao crist.

    Ademais, cabe lembrar que o conceito de comuna judaica aqui entendido como as

    corporaes administrativas dos moradores judeus, organizadas nos lugares onde havia maior

    nmero deles, e regidas por direito prprio10 deve ser apartado da idia de judiaria ou

    bairro reservado aos judeus. Na maioria dos casos, as comunas eram formadas por uma nica

    judiaria destinada a reunir os habitantes que comungavam da antiga f. Porm, em cidades

    maiores, como Porto ou Lisboa, onde a populao judaica era composta por um nmero

    significativamente mais expressivo de indivduos, as comunas podiam ser subdivididas em

    vrias judiarias. Nesta cidade beira do Tejo, por exemplo, h informaes sobre quatro

    judiarias a formar a comuna embora no fossem todas contemporneas , a saber: a

    Judiaria Grande ou Velha, possivelmente a mais antiga, de que se tem notcia desde o reinado

    de D. Afonso III, localizada na regio da Baixa; a Judiaria das Taracenas, tambm conhecida

    como Pequena ou Nova, que limitava-se rua da Judaria, de que se tem notcia desde 1315, e

    que foi mandada derrubar por D. Fernando em 1370, para a construo de casas na regio; a

    Judiaria da Pedreira, localizada nas proximidades do atual Largo do Carmo, extinta por D.

    Diniz em 1317; a Judiaria de Alfama, talvez criada durante o reinado de D. Pedro I, ou de D.

    Fernando, para abrigar os judeus retirados de outras reas de judiarias destrudas. J na cidade

    do Porto, a comuna judaica dividir-se-ia entre judiarias dentro (burgo velho, arredores da Rua

    9 LIPINER, Elias. Terror e Linguagem. Um Dicionrio da Santa Inquisio. Lisboa: Crculo de Leitores, 1999,pp. 28 e 149-150, respectivamente.10 A definio de Elias Lipiner. Op. cit., 1999, p. 63.

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    Escura e Zona da Munhata) e fora da cidade (Gaia e Monchique). Tambm h notcias sobre

    judiarias em outras importantes regies do reino: Em Coimbra, localizava-se na rua mais tarde

    conhecida como Corpo de Deus, e datava da poca de Afonso Henriques. Em Tavira, estendia-

    se pelo Largo do Juremim. Sobre a judiaria de vora, especula-se que fora criada poca deD. Dinis, existindo referncias documentais que remetem ao ano de 1341: localizava-se a

    ocidente da cidade, delimitada pelas portas de Alconchel e do Raimundo. A judiaria de

    Trancoso reduzia-se a uma nica rua. Na Guarda, prximo fronteira com a Espanha, situava-

    se na freguesia de So Vicente e arredores. Em Beja, a judiaria situava-se nas proximidades do

    Castelo, paraos lados da porta de Avis. Por todo o territrio luso, enfim, espalhavam -se as

    comunas reservadas aos judeus, sinal evidente da expresso e consistncia da comunidade

    judaica que habitava em Portugal antes da fatdica implantao das leis de monoplio catlico

    no apagar do sculo XV11.

    A legislao visando o controle sobre os judeus receberia tambm ateno especial, e a

    ligao entre a comunidade judaica e a Coroa seria feita atravs de seu principal representante

    religioso no reino, o rabino-mor, iado condio de grande responsvel pelo cumprimento

    das leis relativas aos judeus e julgamento e aplicao das penas devidas aos infratores.

    Durante o reinado de D. Afonso III (1248-1279), o sistema de rabinato seria regulamentado,

    com leis prprias e adaptadas realidade e leis portuguesas. Em documento oficial de 1278, j

    se encontra referncia ao Arrabi Moor dos judeus. O cargo de rabino-morera subordinado

    Coroa, conferindo ao seu signatrio distino e poder sobre os demais judeus, comandando as

    questes judiciais envolvendo seus pares, a desempenhar a correio, ou seja, o desempenho

    da intendncia e da punio, referendando suas medidas com selo particular que, alm do

    escudo a representar o reino, trazia como complemento a inscrio: Scello do Arraby Moor

    de Portugal12, sinal evidente da sustentao que tinha da Coroa para atuar em suas funes,

    coibindo com o aval real qualquer descontentamento ou tentativa de insubordinao. O cargomximo do rabinato judaico no pas era exercido por um homem de destaque entre seus pares,

    11 Segundo mapa referente ao perodo de 1279-1383, havia ainda comunas judaicas nas seguintes regiesportuguesas: Bragana, Rio Livre, Chaves, Guimares, Mogadouro, Castelo Rodrigo, Viseu, Sabugal, Monforte,Leiria, Torres Novas, Portalegre, Atouguia, Santarm, Elvas, Estremoz, Olivena, Setbal, Santiago de Cacem,Serpa, Silves, Loul e Faro. FERRO TAVARES, Maria Jos. Op. cit., 2000,pp. 24-27.12 KAYSERLING, Meyer. Op. cit.,pp. 10-11.

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    com grande influncia na Corte e que gozasse da total confiana do monarca, escolhido por

    este, geralmente, dentre aqueles mais ricos e cultos13. O arrabi-morera nomeado para o cargo

    como recompensa pelos bons servios prestados Coroa, e tratava diretamente com o monarca

    dos assuntos de sua alada.

    Apesar de possurem certos direitos e liberdades, estes variavam de acordo com a

    poltica empregada por cada um dos ocupantes do trono ao longo dos tempos. Em relao

    direta com estas variaes de natureza poltica, os judeus, em ritmo crescente, pagariam preo

    consideravelmente distorcido pela manuteno de sua participao social, mormente atravs

    de impostos especficos a compensar, por um lado, certas dispensaes recebidas de

    taxaes eminentemente crists

    , e seriam limitados em suas aes por uma legislao queos impedia de determinados direitos oferecidos aos cristos. Viviam, como define Kayserling,

    numa espcie de Estado dentro do Estado, com justia, policiamento, administrao e bens

    (...) administrados e supervisionados por autoridades prprias, com jurisdio particular

    reconhecida pela Monarquia14. Lipiner, no mesmo tom, o classifica de um pequeno reino

    sombra de outro maior, apontando as respectivas correlaes entre o reino portugus e seu

    sub-reino judeu:

    uma verdadeira cpia, em reduzidas dimenses, do regime jurdicogeral vigente no pas: Aos concelhos do territrio portuguscorrespondiam as comunas dos judeus; ao corregedor da Corte oarrabi-mor; aos corregedores os ouvidores, imediatamente inferioresao arrabi-mor; aos juzes ordinrios os arrabis das comunas que,como aqueles, eram eleitos anualmente15.

    Embora tivessem determinados direitos respeitados por sua condio judaica, o custo das

    vantagens concedidas era definido no se deve perder de vista pelas leis de uma

    monarquia erguida e fundamentada no cristianismo, a que estavam irremediavelmentesubmetidos. O Direito judaico sofria uma srie de limitaes prticas, posto sua situao de

    subordinao s leis vigentes do reino que, em ltima instncia, serviam de parmetro e

    13 FERRO TAVARES, Maria Jos. Op. cit., 2000, p. 30.14 KAYSERLING, Meyer. Op. cit., p. 9.15 LIPINER, Elias. Op. cit., 1982, p. 47. Os grifos so do autor.

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    palavra final aos interesses em julgamento. As leis judaicas, embora de certa forma

    reconhecidas pelo Direito portugus, no eram independentes da vontade maioral deste,

    possuindo liberdade de ao apenas at certo ponto.

    O prprio sistema de comunas e judiarias demonstra os limites impostos no mundo

    luso ao ser judeu. Segundo Maria Ferro Tavares,

    o monarca quem lhes concede, atravs de uma carta de privilgios,autorizao para a criao da comuna. Nela vo escritos todos os usose costumes, foros e privilgios que, infelizmente, se desconhecem,exceptuando a faculdade que o povo judeu possui de construir os seustemplos, de praticar livremente a sua religio, de reunir em

    assemblias comunais e gerais, de eleger magistrados prprios, delanar tributos e de se reger pelo direito mosaico16.

    Sobre os bairros judeus recairiam as cobranas de trs qualidades de impostos: a sisa

    judenga, que devia ser uma capitao; o genesim corruptela do primeiro dos cinco livros

    sagrados dos judeus, a Gnese e, em extenso, nome dado ao imposto que garantia o direito de

    estudo dos livros sagrados dos judeus , para poderem ter nas sinagogas a sua aula de

    Escritura; e o denominado servio novo, institudo por D. Manuel (1495-1521)17, com que o

    rei fazia com freqncia doao aos cavaleiros da sua casa ou a outras pessoas a quempretendia fazer graa e merc18. Nos bairros, os judeus eram constantemente vigiados, sob

    chave e guarda de el-rei, por sentinelas, a acompanhar e limitar a circulao de pessoas. Seus

    moradores s possuam autorizao para sair das aljamas e circular livremente fora do bairro

    no espao de tempo entre o nascer do sol e o anoitecer, quando o horrio do regresso salvo

    excees autorizadas, como problemas de sade, chamados urgentes, ou ofcios determinados

    que exigissem deslocamentos tout lheure era anunciado pelo tanger do sino de orao

    que marcava a hora dos cristos rezarem por trs vezes a Ave Maria , sob o risco degraves penas aos que descumprissem tal ordem.

    16 FERRO TAVARES, Maria Jos. Op. cit., 2000, p. 19.17 AZEVEDO, J. Lcio. Op. cit., 1989, p. 44.18 LIPINER, Elias. Op. cit., 1999,pp. 235-236

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    Ainda durante o Tempo dosJudeus, em 1447, as Ordenaes Afonsinas ltimo

    cdice de leis monrquicas sob o regime de liberdade religiosa regulavam o regime de

    circulao dos judeus em alguns de seus itens, como o que trata das penas que havero os

    judeus, se forem achados fora da judaria depois do sino da orao19. Tempos antes, em

    vora, por deciso do conselho local no ano de 1380, j se definia o procedimento com os

    possveis infratores: se, por ventura, explica Maria Ferro Tavares, tal no acontecer, todo

    aquele que for encontrado fora do seu bairro, ser preso e conduzido perante o juiz, excepto o

    judeu ou o mouro fsico ou boticrio, ou de outro mester que tenha sido chamado por algum

    cristo20. Na vigncia do reinado de D. Joo I (1383-1433), inaugurador da Dinastia de Avis,

    pedidos seriam feitos pelas comunas de judeus para que fossem revogadas ou ao menos

    atenuadas as penas para os que no cumpriam o horrio de recolhimento anunciado pelo sinoda orao, devido constante necessidade gerada por seus ofcios, que os obrigava a

    distanciarem-se da comuna sem tempo suficiente para o retorno no horrio estipulado. O

    monarca, entendendo as dificuldades dos requerentes, retificaria a lei, determinando,

    inicialmente, que qualquer judeu a partir dos quinze anos de idade encontrado fora da judaria

    aps o tocar dos sinos pagaria cinco mil libras na primeira vez que fosse pego, e dez mil, em

    caso de reincidncia, ficando arrestado at o pagamento da multa, em ambas as situaes.

    Uma terceira falta o levaria ao aoite pblico, sendo depois solto, sem que precisasse pagar

    nenhuma quantia. Revia ainda determinadas situaes, isentando os judeus do cumprimento

    do horrio em alguns casos, a saber21:

    caso anoitecesse, estando o judeu voltando de um lugar de fora da vila, poderia vir eentrar na judiaria;

    caso viesse de lugar distante e encontrasse a judiaria fechada quando l chegasse, tinhapermisso para pernoitar na vila, em estalagem ou em outra pousada onde dormissem

    outros homens, inclusive cristos;

    caso chegasse noite de viagem pelo mar, era-lhe permitido dirigir-se diretamente judiaria ou pernoitar em lugar de cristos;

    19Idem,pp. 149-150 e 239, respectivamente.20 FERRO TAVARES, Maria Jos. Op. cit., 2000, p. 76.21ApudLIPINER, Elias. Op. cit., 1982,pp. 51-52.

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    caso tivesse quinta ou lugar fora da cidade onde no houver judaria, e fosse noite buscar seus trabalhadores que o houverem de ajudar a adubar seus bens, poderia

    pernoitar em suas casas, desde que l no houvessem mulheres crists

    desacompanhadas dos maridos ou de outros homens cristos; caso surpreendido pelo toque do sino de orao estando em vila ou cidade, fora da

    judiaria, tinha permisso para l dirigir-se, ou, onde no a houvesse, procurar a

    estalagem mais prxima, no devendo sofrer qualquer tipo de punio, mesmo em caso

    de serem j findas as oraes;

    caso fosse chamado por alguma pessoa a ir casa deste, ou lhe for grande necessidadeir l por cousa que ao cristo ou ao judeu seja mister, ou sendo mdico, cirurgio ou

    outro ofcio especfico, chamado para alguma emergncia durante a noite, que possal ir, levando a companhia de um cristo como fiador e testemunha de seus atos, e

    uma candeia acesa, tanto na ida quanto na volta;

    caso estivesse a realizar viagem, precisando cruzar vilas ou lugares que fizessem partedo caminho por ele traado;

    caso realizasse servios oficiais, como rendeiros das sisas dEl-Rey ou seja:arrematantes e cobradores das rendas reais , que possam andar e guardar e

    arrecadar suas rendas de noite, desde que levando sempre a companhia de um

    cristo22.

    Por outro lado, algumas comunas eram ainda beneficiadas com concesses especiais

    feitas por alguns monarcas, presumivelmente com o intuito de angariar o apoio da comuna

    para determinadas causas ou ainda como espcie de pagamento por algum tipo de favor

    prestado (ou a prestar) pelo grupo Coroa. Assim, algumas comunas poderiam ficar

    dispensadas, por merc, da obrigao de prestarem servio militar ao reino, do pagamento de

    certas taxas; do no-constrangimento dos judeus realizao de alguns trabalhos considerados

    aviltantes pela comunidade; da no-utilizao de smbolos ou divisas identificadores nas

    vestimentas, entre outros tipos possveis de privilgio. Independente das interdies que

    cerceavam seus habitantes ou os benefcios vez por outra recebidos, devemos entender as

    22Ordenaes Afonsinas. Livro II, Ttulo LXXX.ApudLIPINER, Elias. Op. cit., 1982,pp. 194-197.

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    comunidades judaicas como um corpo vivo, administrativa e religiosamente independente,

    directamente ligado ao rei23, a garantir aos judeus no apenas direitos sociais e a manuteno

    de suas estruturas tradicionais mesmo que de forma limitada , mas a sobrevivncia

    enquanto grupo religioso independente dentro de um reino cristo.

    Apesar das proibies que cerceavam aos judeus algumas de suas liberdades individuais, o

    fato que, na prtica, as necessidades mais bsicas da sociedade portuguesa faziam com que

    fossem permitidas muitas excees s limitaes impostas, acabando por invalidar uma grande

    parcela destas interdies. O que ratifica, por conseguinte, o grau de penetrao judaica na

    sociedade portuguesa e a dependncia desta em relao aos judeus, que ocupavam e

    colaboravam em todos os espaos fundamentais

    muitos judeus atuavam como mo-de-obraespecializada em funes de enorme importncia, como a medicina ou a arrecadao dos

    impostos devidos coroa. Eram tantos e to fundamentais os judeus para Portugal que se fazia

    praticamente impossvel e prejudicial proibi-los de circular livremente. Da as aberturas

    permitidas dentro da poltica de confinamento s judiarias. A importncia do grupo judeu

    gerava, desta forma, a falta de um interesse mais fremente por parte de alguns monarcas

    portugueses em fazer cumprir efetivamente as leis proibitivas em sua totalidade, fosse

    permitindo um certo relaxamento no cumprimento das medidas coercitivas contra os judeus,

    ou ainda, conforme enumeradas anteriormente, atravs das isenes permitidas dentro da

    prpria lei.

    Deve-se, ainda, dissociar o significado de aljamas ou judiarias bairros onde

    habitavam os judeus portugueses segundo suas leis e mediante o pagamento de determinados

    tributos, que se manteve vigente no reino antes de 1497 da idia de gueto, principalmente

    do sentido que ganhou o termo durante o regime nazista em certas regies da Europa na

    primeira metade do sculo XX. Os guetos difundiram-se na Europa desde a Idade Mdia, e

    correspondiam, inicialmente, a um espao urbano especfico, destinado aos judeus sem que

    fossem, todavia, hermeticamente fechados ou proibissem a livre circulao de judeus e no-

    judeus. O gueto era uma rea de convivncia da comunidade judaica que usava o local para

    23 FERRO TAVARES, Maria Jos. Op. cit., 2000, p. 49.

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    proteo conjunta de todo o grupo contra as hostilidades da maioria no-judaica. Em algumas

    situaes, contudo, os judeus conviveriam com a obrigatoriedade do confinamento em guetos.

    Em Roma, por exemplo, foram encerrados, em 1556, sob as ordens do Papa Pio IV, ficando

    proibidos, at fins do sculo XIX, de habitarem alm dos limites do gueto. A separao dogrupo judeu promovida pela poltica de guetos atendia aos interesses da Igreja, que procurava

    proteger os cristos do contato com a heresia judaica e dos supostos malefcios do Libelode

    sangue24. Os muros e os portes do gueto, que eram fechados noite, no s proviam

    segurana, ao manter do lado de fora as agressivas turbas crists; eles tambm trancavam os

    judeus do lado de dentro. Malgrado as imposies de enclausuramento, uma das vantagens

    da vida em gueto consistiu em estimular o autogoverno entre os judeus, e ajudou a evitar a

    assimilao, facilitando a transmisso e renovao dos costumes dos ancestrais s novas

    geraes e a prtica conjunta dos ritos e cerimnias pela comunidade. O anti-semitismo

    ganharia novas cores no ltimo quartel do sculo XIX europeu em pases como Rssia,

    ustria, Alemanha e Frana. Durante oHasho holocausto judeu promovido pelos nazistas

    nas dcadas de 1930-40 , os guetos seriam usados como espao privilegiado para a

    realizao da poltica anti-semita judenrein adotada por Hitler, iniciada com medidas

    legislativas e agitaes pblicas e que, no extremo, levaria ao extermnio em massa: os

    judeus eram arrebanhados aos guetos, em sua rota para o extermnio nos campos de

    concentrao25.

    24 O LibelodeSangueera a acusao de que os judeus praticavam o assassinato ritual de cristos para obtersangue que usavam na feitura de Mats o po no levedado ou zimo tpico dos judeus , denncias estasque foram difundidas desde o Medievo at o sculo XX. Subjacente ao Libelo de Sangue estava a crena de queos judeus precisavam de sangue como remdio para sua aparncia medonha e para manter sua existncia quase-humana, pois estavam mancomunados com o Diabo. Eles eram tambm os responsveis pela morte de Jesus, e oassassinato de uma criana crist era considerado uma nova crucificao. Na primeira metade do sculo XX, osnazistas difundiram histrias de Libelo de Sangue como parte de sua propaganda antijudaica. UNTERMAN,Alan. Dicionrio Judaico de lendas e Tradies. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992,pp. 229-230.25 UNTERMAN, Alan. Op. cit., 1992, p. 110. Sobre a poltica anti-semita ver GOLDBERG, David J. e

    RAYNER, John D. Os judeus e o judasmo: histria e religio. Rio de Janeiro: Xenon Ed., 1989, especialmente ocaptuloAnti-semitismo: da Guerra Franco-Prussiana ascenso de Hitler. A ao anti-semita perpetrada peloregime segregacionista alemo assim descrita pelos autores (pp. 198-199): Os nazistas agiram por etapas, parano antagonizar a Igreja, o exrcito ou a classe mdia. No havia motivos para preocupaes, pois no se ouviupraticamente nenhum protesto quando, entre abril de 1933 e setembro de 1935, os no-arianos foram expulsos doservio pblico, das profisses mdica e legal e de cargos no ensino. Em setembro de 1935, foram promulgadasas Leis de Nuremberg, que privavam os judeus do direito de voto, proibiam o casamento ou relaes sexuaisentre judeus e arianos, como sendo um crime contra o sangue e a honra alemes, e definiam um judeu porcritrios raciais como qualquer um que tivesse um av judeu. Tudo isso acontecia na terceira dcada do sculoXX, num pas que se considerava o mais civilizado da Europa. E, mesmo assim, os lderes religiosos, os

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    Em contrapartida e talvez j sinal inicial da brusca campanha de converso crist

    que seria mais tarde perpetrada em Portugal , havia desde o incio do reino uma poltica

    estatal de incentivo constante adoo do cristianismo. Em certos lugares, aponta Lcio de

    Azevedo, eram obrigados a assistir s prdicas, que lhes iam fazer os eclesisticos, umas

    vezes no adro da igreja, outras vezes mesmo na sinagoga26. Tentava-se os possveis adeptos

    do catolicismo atravs do oferecimento de vantagens explcitas aos judeus que, de moto

    prprio, optassem pela mudana religiosa, como a garantia de no serem deserdados, e o

    direito de adiantamento da parte que lhes cabia da herana familiar ainda em vida dos pais.

    Para fazerem valer sua opo e terem direito s vantagens legais que a mudana de religio

    lhes oferecia, os conversos de primeira hora ficavam obrigados a deixar de imediato a casapaterna, independente de terem ou no alcanado a maioridade. Durante o reinado de D. Joo,

    todo judeu convertido ao cristianismo deveria conceder mulher que no aceitasse converter-

    se nova religio documento de divrcio; procurando incentivar os maridos no processo de

    converso das mulheres, o decreto seria alterado por D. Afonso V (1438-1481), certamente

    ciente do sentido matrilinear na divulgao hereditria do judasmo em famlia. Obrigava

    ento o marido convertido a viver por prazo de um ano com a esposa na tentativa de

    arrebanh-la ao cristianismo: findo o prazo e mantido o insucesso, via-se obrigado a conced-

    la o divrcio27. Estas medidas, sem sombra de dvida, foram fatores responsveis por gerar

    dolorosos conflitos e rupturas familiares entre os que se mantinham judeus no cl e os

    membros desertores da Antiga F. Os convertidos, cabe ressaltar, eram legalmente impedidos

    de retornarem prtica do judasmo, delito este punido com a pena de morte.

    A gente hebraica era igualmente utilizada pelos monarcas e seus representantes em

    funes consideradas depreciativas e degradantes pelos cristos, como ofcios manuais,

    professores universitrios e as organizaes profissionais no se pronunciaram oficialmente. O resultado foi umxodo em massa da elite intelectual, cultural e cientfica de judeus alemes. At o fim de 1937, 118 mil judeushaviam fugido, quase um tero para a Palestina, o resto para as Amricas do Norte e do Sul e para outros pasesda Europa.26 AZEVEDO, J. Lcio. Op. cit., 1989, p. 54.27FERREIRA DA SILVA, Lina Gorenstein. O Sangue que lhes corre nas veias. Mulheres crists-novas do Riode Janeiro, sculo XVIII. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Histria da FFLCH-USP. SoPaulo: 1999.

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    determinados cargos pblicos e arrecadao de impostos e rendas pblicas atividade da

    qual os cristos procuravam evitar a todo custo , mas ficavam proibidos de ocupar alguns

    cargos oficiais, reservados unicamente aos cristos. Tambm ficariam interditados de

    possurem criados cristos lei esta que no existia no sentido oposto. As onzenas ou

    emprstimos usurrios, prtica associada aos judeus, tambm eram regidos por leis

    monrquicas. No reinado de Afonso III (1248-1279), ficou especificado que os juros aplicados

    aos emprstimos feitos no poderiam ultrapassar o valor total do capital financiado o que

    atingia, em sua grande maioria, seno totalidade, aos judeus, principal grupo envolvido com

    tal negcio. Seriam, porm, beneficiados com a garantia real dos investimentos da

    comunidade hebria contra a m f de alguns cristos, objetivando tirar privilgios de seu

    status legal. Em Santarm, por exemplo, obrigou o ressarcimento total de dvidas contradas a judeus, obrigando os devedores a restituir-lhes o valor devido ou a assumir as dvidas

    contradas.

    No que diz respeito s querelas judiciais, a situao dos judeus mostrava-se ambgua

    ou, ao menos, parcial. O reinado de D. Joo I, em incios do sculo XV, utilizando-se de

    jurisdio pr-existente, regularia os procedimentos a serem adotados em cada caso. Nas

    disputas envolvendo apenas judeus, ensina Lipiner, era garantida a exclusividade da

    aplicao do Direito escrito ou tradicional judaico, ainda que em certas fases do julgamento

    na instncia superior, por exemplo os juzes fossem cristos. J para o governo de D.

    Afonso V, as apelaes e agravos deveriam ficar reservados Justia do reino, a qual, no

    entanto, devia julgar esses recursos mediante a observncia do Direito escrito e oral dos

    judeus; tirava-se ainda da esfera de jurisdio judaica as causas fiscais referentes a dzimas,

    portagens, sisas e quaisquer outros direitos da coroa, subordinando os judeus, nestes casos,

    jurisdio dos tribunais portugueses. O mesmo monarca, definiria, para contendas envolvendo

    judeus e cristos, que as causas fossem julgadas exclusivamente por juzes cristos

    especialmente nomeados para este fim, denominados geralmente juzes dos judeus. Vrios

    seriam, segundo o autor, os juzes nomeados com esta funo especial, principalmente durante

    o reinado de Afonso V. Exceo feita aos locais onde no funcionasse essa Justia especial,

    e unicamente nas causas cveis, quando o judeu fosse interpelado pelo cristo diante de seu

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    arrabi, e vice-versa, valeria o velho princpio jurdico de que o autor devia seguir o foro do

    ru. Nos demais casos, assim no crime como nas questes fiscais, competia ao juiz

    ordinrio da Coroa julgar as questes e disputas legais que envolvessem cristos e judeus 28.

    A regulamentao das provas testemunhais de parte a parte tambm traria

    diferenciaes ao longo de alguns reinados. Tradicionalmente, devido natural suspeita

    recproca entre os grupos, alimentada constantemente pela rivalidade econmica existente

    entre cristos e judeus na Idade Mdia, a regra estabelecida em Portugal desde os primeiros

    tempos prescrevia, com raras excees, que fosse vlido contra judeus o testemunho de cristo

    somente quando abonado por outro prestado por judeu, e vice-versa. A legislao apresentava

    caractersticas diferenciadas de acordo com a origem dos envolvidos. As leis portuguesas

    teimavam em no conceder paridade entre os depoimentos de cristos e judeus, considerando

    este inferior quele. Em tempos de D. Diniz, este rei ordenava o fim dos abusos contra os

    judeus nas questes judiciais, reconhecendo o direito aos judeus de reciprocidade na suspeita.

    Obrigava, para a validade do testemunho, que fosse provada pelo litigante cristo as alegaes

    que fazia contra o ru judeu utilizando-se de testemunhas de ambas as crenas conjuntamente.

    Durante o perodo de D. Afonso V, as leis efetivadas por D. Diniz seriam alteradas, criando,

    para os judeus, condio de direito inferior a dos cristos:

    Em disputas envolvendo cristo e judeu, este provava com cristo ou com cristo ejudeu nunca s com judeu; aquele, porm, provava s com cristo, sem

    necessidade de corroborar tal testemunho por outro judeu;

    Em contendas entre judeus somente, cada um deles podia provar suas alegaes pormeio de testemunha crist, que esse testemunho valia como se o litgio fosse entre dois

    cristos;

    Em contendas em que as duas partes fossem crists, o testemunho do judeu s tinhavalidade quando abonado por outro depoimento prestado por cristo, salvo acordo

    diferente entre os litigantes. Ficava, outrossim, facultado aos juzes admitirem ou

    28 LIPINER, Elias. Op. cit., 1982,pp. 40-42. O grifo do autor.

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    repelirem o testemunho exclusivamente judaico em caso de crime grave presenciado

    unicamente por judeu29.

    Apesar de delimitados por leis mais ou menos coercitivas de acordo com os monarcasentronados nos reinados iniciais, mas que, sem dvida, vai se agravando com o passar do

    tempo e o aumento geral da intolerncia geral crist com os matadores de Cristo, a presena

    judaica vivia antes um clima de paz e proteco real, embora durante alguns perodos se

    exercesse uma maior aco repressiva sobre certas actividades judaicas e sobre o seu convvio

    com cristos. Os descendentes de Israel eram tratados por alguns reis como meus judeus,

    sinal do estado de sujeio do grupo perante a Coroa e da proteo real que desfrutam 30, posto

    constiturem importante fonte de riqueza tributria, recebendo, em conseqncia, favores,

    proteo e amparo31.

    O relacionamento entre cristos e judeus no mundo portugus encontrava

    particularidades que o diferenciava dos outros pases da Europa crist. De acordo com Anita

    Novinsky, as diferenas comeam na prpria origem: durante a Idade Mdia, Portugal foi o

    pas que antes de qualquer outro da Europa reconheceu os direitos dos judeus; conseqncia

    desta poltica de aceitao social, que foi nessa parte ocidental da Pennsula que a

    propaganda oficiosa antijudaica penetrou mais tarde. Os judeus encontravam-se nas

    principais cidades e vilas do territrio, atuando em variadas atividades econmicas, embora

    concentrados na explorao do solo. Apesar da forte influncia do direito cannico, completa,

    a religio no impediu nem prejudicou seriamente os contatos mtuos, as inter-relaes

    grupais, sendo mesmo considervel o nmero de casamentos mistos. A situao, na prtica

    cotidiana, mostrava-se em Portugal como em nenhuma outra parte favorvel ao bom

    convvio entre os grupos:

    29 LIPINER, Elias. Op. cit., 1982,pp. 42-44.30 FERRO TAVARES, Maria Jos. Op. cit., 2000,pp. 11-18 e 19, respectivamente.31 LIPINER, Elias. Op. cit., 1982, p. 111.

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    O povo no levava muito a srio as proibies dos representantes daIgreja e os monarcas portugueses foram muitas vezes recriminados deRoma por favorecerem aos judeus32.

    Alguns monarcas procederiam de forma visivelmente mais branda para com os judeus.Foi o caso de D. Afonso III e D. Diniz, a dispensarem os judeus, em determinadas situaes,

    do pagamento de certos tributos ao Estado ou dzimos Igreja, alm de concesses outras que

    viabilizavam um melhor convvio entre os grupos no cotidiano, como a dispensa de trajarem

    vestimentas adornadas com divisas que facilitassem sua identificao pblica, segundo

    imposio do IV Conclio de Latro, realizado em 1215. D. Afonso V foi tambm prdigo em

    benefcios aos sditos mosaicos, alguns dentre eles a esbanjar luxo e riquezas, vestidos

    maneira dos mais destacados cristos

    de gala e com espada cinta, montados em cavalosde estirpe, em meio profuso geral de penria e misria. As medidas lateranenses, diga-se de

    passagem, nunca foram cumpridas risca em Portugal. Alguns, influentes, freqentavam os

    crculos mais privados, inclusive com a realeza, como foi o caso de um certo Isaac Abravanel,

    judeu importante e de farta circulao pela nobreza que, aps longo perodo de convvio e

    amizade com o rei, foi obrigado a expatriar-se tempos depois por suspeitas de conspirao

    com Castela. De seu exlio lamentar-se-ia a sorte que lhe abandonara, ao relembrar os

    momentos felizes vividos na Corte, dando-nos detalhes riqussimos da prtica judaica que

    mantinha aberta e livremente e da poltica real em relao ao seu povo:

    Satisfeito encontrava-me em minha terra natal, usufruindo magnficaherana paterna, num lar abenoado por Deus, em Lisboa, a clebrecapital do Reino de Portugal. O Senhor havia-me concedidoprosperidade, abundncia, honra e amigos. Construra eu residncias efaustosos balces; era minha casa o ponto de reunio dos sbios;sabedoria e temor a Deus eram a divulgados. Via-me benquisto nopalcio do D. Afonso, este Monarca poderoso e de vastos domnios

    que reinava sobre dois mares, bem sucedido em todos os seusempreendimentos, deste soberano sentado no trono do Direito,praticando no Pas a clemncia, a justia e a virtude, que confiava emDeus, afastando-se do mal e almejando o bem de seu povo, sob cujogoverno tambm os judeus obtiveram liberdade e salvao. sua

    32 NOVINSKY, Anita. Op. cit., 1972,pp. 24-27.

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    sombra aprazia-me tanto ficar, eu era chegado a ele, que sobre mim seapoiava e, enquanto viveu, freqentei seu palcio33.

    Em resumo: os limites impostos aos judeus em Portugal eram at certo ponto fluidos,

    no se observando quando estas existiam as leis coercitivas contra o grupo hebraico. As

    judiarias so mais uma vez exemplo das continuidades no convvio em boa parte franco entre

    os grupos. Apesar das medidas proibitrias, judeus e cristos continuariam ocasionalmente a

    habitar estes dentro da judiaria; aqueles, fora, em zonas crists locais que lhes eram

    legalmente imprprios, de acordo com as necessidades ou convenincias de cada um. Em

    estudo definitivo sobre o perodo, Elias Lipiner esclarece:

    de se notar que as disposies restritivas referentes aos judeus doreino, quando transpostas para o campo da realidade cotidiana, noparecem ter funcionado eficientemente. Da a constante meno, nasOrdenaes quatrocentistas, a leis desrespeitadas e sucessivarevigorao e readaptao destas a novas realidades a sugerir que asdisposies rigorosas nem sempre foram mantidas. Cedoconvenceram-se os monarcas da injustia de suas prprias ordenaes,ou pelo menos da impossibilidade de sua rigorosa aplicao. Fosseporque os judeus, em defesa prpria ou como desforo de agravosrecebidos, tratavam de as iludir mediante subterfgios, furtando-se aoseu cumprimento; fosse por convenincias polticas e administrativas

    supervenientes da prpria coroa; os monarcas viram-se impelidos aatenuar generosamente o rigor de suas ordenaes, em certos casospara facilitar a arrecadao dos tributos nas comunas dos judeus;noutros porque estavam necessitados de cooperao intelectual dosjudeus34.

    Convencidos ou no da injustia de suas leis relativas aos judeus, o certo que os

    monarcas tinham noo da dificuldade em faz-las cumprir e dos problemas que acarretariam,

    sobretudo porque feriam os interesses do reino. Existiam, para demonstrar os

    comprometimentos do reino com o cristianismo e sua Igreja, e prestar-se contas socialmente,beneficiando os cristos de origem. Se existiam no papel, a prtica era outra. Sem dvida que

    os judeus foram prejudicados pelo fato de serem judeus numa sociedade crist, sustentando o

    peso desta diferena que os fazia legalmente inferiores. Parafraseando Kayserling, viviam

    33 KAYSERLING, Meyer. Op. cit., 1971, p. 67. A grafia foi atualizada. Os grifos so meus.34 LIPINER, Elias. Op. cit., 1982, p. 17. O grifo do autor.

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    quase que num regime de sub-Estado dentro de um Estado. Todavia, e apesar dos

    impedimentos e limitaes legais, em boa parte do tempo em que viveram como judeus em

    Portugal, exerceram livremente o judasmo, encontrando espaos para que no sofressem

    radicalmente a fora do brao do Estado por conta de sua f distinta.

    Como em nenhuma outra parte da Europa crist, os judeus gozaram em Portugal de

    uma legislao que, se os preteria face aos cristos em certos aspectos, lhes garantia a

    sobrevivncia enquanto grupo sem o mesmo grau de perseguies vividos em outras reas, o

    que lhes possibilitava uma participao cada vez maior e mais ativa nas estruturas social e

    econmica do reino. O aumento das perseguies na Europa e as presses dela decorrentes,

    assim como os acontecimentos em Espanha durante o processo de Reconquista, mormente na

    segunda metade do sculo XV, mudariam este quadro e trariam um triste fim ao perodo em

    que os judeus conviviam abertamente com os cristos no reino fundado sculos antes por

    Afonso Henriques.

    Tempo de perseguio, tempo de excluso

    O processo de disperso judaica pelo mundo viveria seus primrdios na Antigidade,

    reflexo no apenas da prpria tradio e cultura hebraicas mas, principalmente, de uma vasta

    gama de imposies polticas levadas a cabo pelo Imprio Romano durante o perodo de

    dominao de Roma sobre os judeus, obrigando-os ao abandono de parte de seus costumes

    tradicionais para adaptarem-se nova realidade, espalhando-se por diversas regies do mundo

    conhecido. De origem mais remota que o prprio controle romano sobre a regio, a Dispora

    judaica seria favorecida e intensificada a partir de 70 d. C., ganhando fora aps a queda de

    Jerusalm e a destruio do Segundo Templo sob as ordens de Tito35

    encarregado por seupai, o imperador Flvio Vespasiano (69-79), de chefiar o exrcito romano na campanha da

    35 ELIADE, Mircea & COULIANO, Ioan P. Dicionrio das Religies. 2a ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p.216.

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    Judia. O processo de Dispora atravessaria quase dois milnios, tendo durado, oficialmente,

    at a criao, em 1948, do Estado de Israel36.

    Durante cerca de 1880 anos de exlio, o povo judeu passaria por situaes de aceitaoe convvio social as mais diversas nas reas de migrao. Destitudos de nao prpria, os

    judeus da disperso ver-se-iam obrigados a procurar constantemente um equilbrio entre o

    respeito s estruturas basilares do judasmo e a necessidade de adaptao s especificidades

    encontradas nas regies que os acolhiam, cientes da impossibilidade de manuteno da

    totalidade das prticas caras ao judasmo tradicional vividas no momento anterior queda do

    Segundo Templo. Buscavam, desta forma, manter viva a essncia estruturalizante da f dos

    antepassados, mas viam-se, ao mesmo tempo, identificados com as culturas que os

    hospedavam, obrigados a assimilar alguns de seus principais aspectos. As diferenas culturais

    entre o judasmo e as tradies das regies hospedeiras, porm, seriam responsveis por um

    certo desconforto no relacionamento com as maiorias no-judaicas e, na longa durao,

    causariam no apenas diferenas dentro do prprio judasmo adaptado s realidades de

    cada regio , mas o aparecimento de alguns conflitos entre os judeus e as sociedades que os

    acolheram: sua maneira de viver, instruo e disciplina, ambio e exclusivismo, circunciso

    36 A palavra grega Dispora (disperso), explica Borger, designa o espao da sobrevivncia de judeusenquanto habitando fora da Terra de Israel. A mais antiga concentrao macia era naturalmente a da Babilnia,onde os judeus viveram numa situao mais estvel do que nas comunidades do mundo helenstico-romano.Embora no existam nmeros absolutamente confiveis sobre a Dispora, estima-se, para o primeiro sculo daEra Crist, um nmero aproximado de oito milhes de judeus distribudos pelas seguintes reas de concentrao:Eretz Israel: 2.500.00; Egito: 1.500.00; Babilnia: 1.000.00; Sria: 1.000.00; sia Menor: 1.000.00; Cirenaica:250.000; Chipre: 250.000; Itlia: 150.000; Grcia: 100.000. Tambm o gegrafo grego Strabo, ou Estrabo (cercade 50 a. C.), afirmava que a nao judaica fez-se presente em quase todas as cidades, sendo difcil encontrar lugarno mundo onde no houvesse penetrao de judeus. Calculando-se a populao do Imprio Romano em 100milhes de pessoas, e considerando-se que os judeus da disperso eram essencialmente urbanos, concentradosao sul e leste do litoral mediterrneo, possvel que, nessas regies, tenham representado algo em torno de 20 a30% da populao. Na Sria, por exemplo a provncia mais rica do Imprio Romano , Josefo relata quehavia cidades em que os judeus constituam metade ou mais do total de habitantes. Na sia Menor, todas as

    grandes cidades, como Pergamon, Sardis, Efeso, Mileto, Laodicia e Tarso, entre outras, possuam importantescomunidades de judeus. No Mundo Grego, as comunidades judaicas estavam presentes em Atenas, Corinto,Tesslia, Macednia, tica, Peloponeso, Chipre, Creta, Delos, Paros, e Euboea. A maior das comunidades daDispora, porm, encontrava-se em Alexandria, no Egito. Os judeus representavam cerca de um tero da

    populao total da cidade, o mais brilhante centro cultural da Antigidade. A descrio da principal sinagogalocal d a noo do tamanho e importncia de sua comunidade judaica: A sinagoga central de Alexandria era togrande que foi necessrio introduzir um sistema de sinalizao para indicar aos fiis o momento apropriado parasuas respostas durante o servio religioso. BORGER, Hans. Uma histria do povo judeu. Volume 1: De Cana Espanha. 2a edio. So Paulo: Sfer, 2001, pp. 235-237. Ver ainda TASSIN, Claude. O judasmo: do exlio aotempo de Jesus. So Paulo: Paulinas, 1988,pp. 14-15.

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    e leis alimentares, sua averso a imagens e a guarda do sbado trariam um nmero crescente

    de simpatizantes para a crena judaica, assim como de indivduos que viam com averso e

    animosidade os costumes do povo judeu, alimentado as hostilidades que se multiplicariam

    com o tempo37.

    Os judeus seriam vitimados por um crescente processo de intolerncia social, que se

    agravaria, num primeiro momento, durante o perodo em que o Ocidente cristo dedicou

    esforos guerra de conquista da Terra Santa, atravs de clebre movimento que passou

    Histria sob a designao de Cruzadas e que, se no obteve sucesso efetivo em seu intuito

    conquistador, por outro lado foi dos grandes responsveis pelo arrefecimento de todo o tipo de

    bom convvio religioso que pudesse existir entre cristos e judeus em terras do Ocidente38. Foi

    nessa poca que ocorreram, por exemplo, os massacres de judeus em algumas regies da

    Europa Central perpetrados pelos exaltados soldados cruzados a caminho da Palestina, que

    justificavam e validavam a matana generalizada como uma luta contra osprincipaisinimigos

    deDeus:

    Ns desejamos ir combater os inimigos de Deus no Oriente; mastemos judeus sob os olhos, raa mais inimiga de Deus do que nenhumaoutra: tomar a coisa toda pelo avesso39.

    Mormente nas regies feudais da Europa crist, os judeus acabariam vtimas de preconceitos

    sociais e perseguies, identificados como o mal absoluto, carregando a sndrome de povo

    maldito e deicida, herdeiros em potencial da maldio desencadeada pelos supostos crimes

    dos seus antepassados, vistos como responsveis pela morte do Messias catlico, entendido,

    pelos cristos, como encarnao da essncia e verbo divinos. Por isso mesmo, faziam-se os

    37 BORGER, Hans. Op. cit., 2001,pp. 238-241.38 HAYOUN, Maurice-Ruben. O Judasmo. In: DELUMEAU, Jean (org.). As Grandes Religies do Mundo.Lisboa: Editorial Presena, 1997,pp. 205-255.39 POLIAKOV, Leon. De Cristo aos Judeus da Corte. Histria do Anti-Semitismo I. So Paulo: Perspectiva,1979, p. 36, nota. De acordo com Unterman, os piores massacres aconteceram na Primeira Cruzada (1096-99)quando foram destrudos os centros de vida judaica ao longo do Reno. Durante a Terceira Cruzada (1189-92),complementa, os judeus da Inglaterra foram violentamente atacados aps a coroao de Ricardo I, o que levouao suicdio em massa dos judeus de York, que preferiram atirar-se fogueira a enfrentar o batismo forado e oantagonismo da turba. As Cruzadas puseram fim ao perodo medieval de prosperidade dos judeus e solembradas na liturgia judaica como um perodo de violncia crist e submisso judaica a Deus. UNTERMAN,Alan. Op. cit., 1992, p. 74.

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    judeus, perante os olhos do Ocidente, merecedores dos castigos e vinganas que lhes eram

    imputados pelo assassnio de Jesus Cristo e males humanos da decorrentes. Este antijudasmo

    vivenciado em boa parte do Velho Continente, todavia, no encontraria inicialmente eco na

    Pennsula Ibrica, onde os judeus gozavam de considervel tolerncia social, miscigenadoscom a populao local e com os mouros, formando o que Jean Delumeau definiria, referindo-

    se maior das naes ibricas, como a Espanha das trsreligies, um pas tolerante porque

    no homogneo, onde os judeus somavam nmero prximo de trezentas mil almas

    misturadas ao resto da populao ao fim do sculo XIII40, enquanto, neste mesmo sculo, la

    legislacin antijuda fue um rasgo comn en toda Europa41.

    O desenrolar do Medievo hispnico caracterizar-se-ia pelo bom convvio e interao

    entre os seus grupos formadores. Segundo Prez, o grau de adaptao dos judeus pennsula

    era formidvel. Para os judeus que habitavam as terras de Sepharad, aquela era en todos los

    sentidos su ptria, la tierra de sus padres y antepassados, sem que formassem uma classe

    social distinta ou sofressem n mesmo grau o peso das discriminaes contra os judeus

    recorrentes em outras partes: los haba ricos, los haba pobres y de todos los niveles. Non

    tenan ninguna dedicacin profesional que les fuera exclusiva, infilt rados em todos os ramos

    da economia:

    el abanico profesional de los judos era tan amplio y variado como elde cualquier otro grupo social. De no ser por la religin, nada lesdistingua del resto de la poblacin42.

    Em pocas de dominao muulmana, seriam os judeus responsveis pelo

    desenvolvimento das cincias aplicadas, mesclando conhecimentos e tcnicas das trs culturas

    monotestas que ocupavam o espao ibrico. Encontram-se entre eles diferentes categorias de

    sbios: mdicos, cartgrafos, astrnomos, alquimistas e tradutores. So numerosos os

    40 DELUMEAU, Jean. Histria do Medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. So Paulo: Companhia dasLetras, 1989, p. 281.41 KAMEN, Henry. La Inquisicin Espaola. 4 ed. Barcelona: Editorial Crtica, 1992, p. 18.42 PREZ, Joseph. Op. cit., 1993, p. 12. Tomemos cuidado, contudo, com as generalizaes. Apesar da relativatranqilidade vivida pelos judeus na Espanha se comparado a outras regies da Europa, longe se estava de umasituao ideal de total harmonia entre os distintos grupos religiosos, e os conflitos, embora pouc