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  • GLOBALIZAO E REGULAO SANITRIA

    Os rumos da Vigilncia Sanitria no Brasil

    Geraldo Lucchese

    Tese de concluso Curso de Doutorado em Sade Pblica ENSP/FIOCRUZ

    Orientao: Profa. Cristina Possas

    agosto/2001

  • Ao Gino (in memorian) e Odete

    Ao Gino, filho, e Patrcia

    A todos os que se dedicam

    Vigilncia Sanitria no Brasil

  • A civilizao nascida no Ocidente, soltando suas

    amarras com o passado, acreditava dirigir-se para o

    futuro de progresso infinito, da economia, da

    democracia. Entretanto, aprendemos com Hiroshima

    que a cincia era ambivalente; vimos a razo retroceder

    e o delrio staliniano colocar a mscara da razo

    histrica; vimos que no havia leis da Histria que

    guiassem irresistivelmente em direo ao porvir

    radiante; vimos que em parte alguma o triunfo da

    democracia estava assegurado em definitivo; vimos que

    o desenvolvimento industrial podia causar danos

    cultura e poluies mortais; vimos que a civilizao do

    bem-estar podia gerar ao mesmo tempo mal-estar. Se a

    modernidade definida como f incondicional no

    progresso, na tecnologia, na cincia, no

    desenvolvimento econmico, ento esta modernidade

    est morta.

    EDGAR MORIN, 2001

    ii

  • AGRADECIMENTOS

    Preciso expressar minha gratido a muitas pessoas que me ajudaram neste trabalhoso

    empreendimento, apesar de considerar impossvel agradecer a todos que efetivamente

    contriburam:

    Professora Cristina Possas, pela orientao acadmica efetiva e atitude de

    incentivo, mesmo nos momentos mais crticos e improdutivos do trabalho;

    Profa. Suely Rozenfeldt, pelos comentrios nos seminrios do doutorado;

    aos professores examinadores do trabalho de tese, Edin Alves Costa, Jorge Antonio

    Zepeda Bermudez, Maria Eliana Labra, Jos da Rocha Carvalheiro, Jeni Vaitsman e

    Andr Gemal;

    ao Flvio Freitas Faria, ento Diretor da Consultoria Legislativa da Cmara dos

    Deputados, que aprovou o meu afastamento do trabalho para fazer o curso de

    doutorado, o que foi ratificado pela Direo Geral e pela Primeira Secretaria da

    mesma Casa;

    ao Ricardo Rodrigues que, como novo Diretor da Consultoria, teve a mesma

    compreenso;

    aos meus companheiros de trabalho Mariza Lacerda Shaw, Hugo Fernandes Jnior e

    Jackson Semerene Costa, que assumiram uma dolorosa sobrecarga em seu trabalho

    nas minhas ausncias;

    aos diretores dos rgos estaduais de vigilncia sanitria entrevistados: Marisa Lima

    Carvalho (SP), Maria Ceclia Martins Brito (GO), Sirlei Famer (RS), Maria

    Conceio Queiroz Oliveira Riccio (BA), Jlio Csar Martins Siqueira (MG) e

    Fernando Antonio Viga Guimares (PA), bem como alguns de seus principais

    assessores, dos quais no registrei todos os nomes, mas no esqueci a sua atitude

    cooperativa;

    aos funcionrios da ANVISA, Marta Fonseca Veloso, Ana Paula Juc da Silva e

    Tas Porto, pelas entrevistas e informaes;

    iii

  • ao Hlio Dias e ao Gonalo Vecina Neto, pelas entrevistas, mas, principalmente,

    pela atitude de aberta colaborao enquanto Consultor Jurdico e Diretor-Presidente,

    respectivamente, da ANVISA;

    ao Lauro Moretto e ao Vicente Nogueira, do Sindicato da Indstria de Produtos

    Farmacuticos no Estado de So Paulo, pela entrevista;

    ao Rubens Szyszkowsky e Jos Maria Parisi, do Centro Industrial de Laboratrios

    Farmacuticos Argentinos, pela entrevista;

    ao Alexandre Pea Ghisleni, do Ministrio das Relaes Exteriores/Diviso do

    Mercado Comum, pela entrevista;

    ao Nilson do Rosrio Costa, da ENSP/FIOCRUZ, pelas sugestes bibliogrficas e

    bibliografia;

    Susana Machado DAvila, Ana Clia Pessoa da Silva, rsula Gottschald, Enir

    Guerra Macedo de Holanda, Lgia Giovanella, Nelly Marin Jaramillo, ao Carlos

    Alberto Pereira Gomes, Ricardo Luis de Melo Martins, Paulo Srgio de M. Tavares,

    Luis Fernando Marques e Oviromar Flores, que, mesmo sem saberem exatamente

    como, me ajudaram muito;

    e, em especial, Patrcia Lucchese, por seu apoio e carinho, pela interlocuo de

    idias e por me ajudar em um monte de coisas.

    iv

  • RESUMO O estudo analisa o modelo brasileiro de regulao do risco sanitrio relativo ao campo de

    atuao do setor sade no contexto de mudanas recentes no cenrio poltico e econmico de reforma

    do Estado, de internacionalizao dos mercados e de acordos e regulamentaes internacionais.

    Utiliza os conceitos de avaliao do risco e gerenciamento do risco para caracterizar a natureza

    do trabalho de regulao do risco sanitrio e as diferenas existentes em sua execuo no mbito das

    agncias regulatrias dos pases centrais e dos pases perifricos. A caracterizao do modelo brasileiro

    de regulao do risco sanitrio apresentada a partir de uma anlise descritiva dos principais

    componentes do Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria (SNVS) federal, estadual e municipal com

    destaque criao da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) e o processo de

    descentralizao. O estudo aponta insuficincias e precariedades do desenho do Sistema em sua

    configurao poltica, jurdica e administrativa, alm de problemas estruturais dos componentes estaduais

    e municipais, que comprometem a eficincia da sua ao tanto no plano nacional quanto no

    internacional.

    Discute ainda processos de regulamentao internacionais, atualizando, luz da literatura

    relativa s relaes internacionais, o debate sobre suas implicaes para a democracia e a soberania das

    decises locais para o sistema de regulao do risco sanitrio nacional. Como resultado, identifica a

    fragilidade institucional nacional em especial, nas reas da poltica, da cincia e tecnologia e da

    administrao como o principal constrangimento eficincia do Estado na mediao de interesses

    domsticos e externos, necessria para a organizao de intervenes eficazes. Aponta ainda a

    significativa ascendncia econmica na determinao dos processos regulatrios analisados, que atua na

    conformao de agendas nem sempre compatveis com as necessidades sanitrias.

    Por fim, sugere algumas alternativas para a implementao e aperfeioamento do Sistema

    Nacional de Vigilncia Sanitria destacando a necessidade de revises em sua estrutura e doutrina de

    ao e indica algumas reas para o desenvolvimento de estudos que contribuam para consolidar o

    conhecimento do campo da regulao sanitria no Pas.

    Palavras-chaves: vigilncia sanitria, avaliao do risco, regulamentao internacional,

    globalizao, sistema nacional de vigilncia sanitria.

    v

  • ABSTRACT This study analyzes the Brazilian health risk regulation model in relation to the health sectors

    sphere of activity and within the context of recent changes in the political and economic scenario: public

    sector reform, internationalization of markets, and international agreements and regulations.

    The author uses the concepts of risk assessment and risk management to characterize the nature

    of health risk regulation work and the existing differences in its implementation within the sphere of

    regulatory agencies in the central and peripheral countries.

    Characterization of the Brazilian health risk regulation model is presented through a descriptive

    analysis of the creation of the National Health Surveillance Agency (ANVISA) and the main components

    (federal, state, and municipal) of the National Health Surveillance System (SNVS). The study identifies

    insufficiencies and gaps in both the systems design and its policy, legal, and administrative

    configuration, in addition to structural problems in the state and municipal components which jeopardize

    the systems efficiency at both the national and international levels.

    He discusses international regulation processes and turns to the literature on international

    relations to update the debate on their implications for democracy and sovereignty in local decision-

    making, as well as for the national health risk regulation system. As a result, the study identifies national

    institutional weaknesses, especially in the areas of policy, science and technology, and administration, as

    the main constraints to state efficiency in the mediation of domestic and external interests, necessary for

    the organization of effective interventions. The study further identifies a significant economic primacy in

    determining the respective regulatory processes, acting to shape agendas that are not always compatible

    with health needs.

    Finally, the author suggests some alternatives and instruments for the implementation and

    enhancement of the SNVS as well as key areas for the development of studies to help consolidate

    knowledge in the field of health regulation in Brazil.

    Key words: health surveillance, risk assessment, risk management, globalization, national

    health surveillance systems.

    vi

  • SUMRIO

    LISTA DE ANEXOS ................................................................................................................................viii LISTA DE QUADROS E TABELAS.........................................................................................................ix LISTA DE SIGLAS .....................................................................................................................................x APRESENTAO ...................................................................................................................................xiv INTRODUO..........................................................................................................................................19 CAPTULO I METODOLOGIA E ARGUMENTOS DE ANLISE ....................................................26

    1.1 Situao problema e principais indagaes .....................................................................................26 1.2 Conceitos e argumentos de anlise ..................................................................................................32 1.3 Consideraes metodolgicas..........................................................................................................38 1.4 Sntese histrica do objeto de anlise ..............................................................................................46

    CAPTULO II VIGILNCIA SANITRIA E REGULAO DO RISCO...........................................49 2.1 Inovao tecnolgica e vigilncia sanitria .....................................................................................49 2.2 A vigilncia sanitria e o Sistema nico de Sade..........................................................................54 2.3 Risco sanitrio e sistemas regulatrios ............................................................................................56

    CAPTULO III A REFORMA DO ESTADO E A CRIAO DA AGNCIA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA - ANVISA....................................................................................................78

    3.1 Reforma do Estado e administrao gerencial.................................................................................80 3.2 A criao da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria ..................................................................92 3.3 Uma anlise do processo ...............................................................................................................104 3.4 O modelo de vigilncia sanitria no final dos anos 90 ..................................................................108

    CAPTULO IV O SISTEMA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA .....................................125 4.1 A vigilncia sanitria federal: nova estrutura ................................................................................129 4.2 A vigilncia sanitria estadual .......................................................................................................133 4.3 Os municpios e a vigilncia sanitria ...........................................................................................152 4.4 A descentralizao e o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria .................................................163

    CAPTULO V NEGOCIAO INTERNACIONAL DO CONTROLE SANITRIO .......................178 5.1 Soberania, democracia e controle sanitrio nos acordos do Gatt ...................................................180 5.2 Harmonizao dos regulamentos tcnicos sanitrios no Mercosul................................................205 5.3 Processo de regulamentao do Codex Alimentarius.....................................................................236 5.4 Conferncia Internacional sobre Harmonizao ............................................................................243 5.5 Harmonizao da regulamentao farmacutica na Amrica Latina .............................................249 5.6 Regulamentao reducionista ........................................................................................................253 5.7 Outros acordos e regulamentos internacionais de importncia para a sade .................................262

    CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................................265 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................................294 ANEXOS..................................................................................................................................................308

  • LISTA DE ANEXOS

    Anexo 1. Diagrama Elementos da avaliao do risco e gerenciamento do risco.......312 Anexo 2 Organograma do Mercosul .............................................................................313 Anexo 3 Organograma do SGT11 Sade ...................................................................314 Anexo 4 Relao das aes de vigilncia sanitria por graus de complexidade...........315 Anexo 5 Lista de entrevistas .........................................................................................316 Anexo 6 Questionrio para levantamento dos recursos dos rgos estaduais de

    Vigilncia Sanitria.................................................................................................317 Anexo 7 Roteiro para grupo focal com o diretor e/ou tcnicos dos rgos estaduais de

    Vigilncia Sanitria.................................................................................................326

  • LISTA DE QUADROS E TABELAS

    Quadro 1. Existncia de rgos estaduais regionais de sade nas unidades federadas maio/2000 ......142 Quadro 2. Suporte laboratorial para aes de vigilncia sanitria nas unidades federadas pesquisadas maio/2000.................................................................................................................................................143 Tabela 1. Dotao oramentria do rgo federal de vigilncia sanitria 1995-2000 valores correntes R$ 1.000,00 ..............................................................................................................................................130 Tabela 2. Transferncias de recursos da ANVISA 1999/2000 em R$ 1.000,00.................................130 Tabela 3. ANVISA arrecadao de receita prpria 2000 em R$ 1.000,00 ......................................131 Tabela 4. Denominao dos rgos de vigilncia sanitrias nas unidades federadas pesquisadas maio/2000.................................................................................................................................................141 Tabela 5. Localizao hierrquica dos rgos de vigilncia sanitria nas unidades federadas pesquisadas maio/2000.................................................................................................................................................141 Tabela 6. Distribuio percentual de tcnicos das vigilncias estaduais, por categoria profissional maio/2000.................................................................................................................................................145 Tabela 7. Distribuio de tcnicos das vigilncias estaduais, por categoria profissional, nos estados pesquisados, exceto So Paulo maio/2000 ............................................................................................146 Tabela 8. Amplitude salarial dos servidores estaduais da vigilncia sanitria .........................................147 Tabela 9. Nmero de resolues do Mercosul aprovadas nas comisses 1992 - 2000..........................234

  • LISTA DE SIGLAS

    ABRASCO Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva ADPIRC Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao

    Comrcio Tambm referido como TRIPS (Trade Related Intelectual Property)

    ALADI Associao Latino-Americana de Integrao ALALC Associao Latino-Americana de Livre Comrcio ALCA rea de Livre Comrcio das Amricas ALIFAR Associao Latino-americana de Indstrias Farmacuticas AMSF Acordo de Medidas Sanitrias e Fitossanitrias.

    Tambm referido como SPS (Sanitary and Phitosanitary) ANMAT Administracin de Medicamentos, Alimentos y Tecnologia Mdica ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria ANVS Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento.

    Mais conhecido como Banco Mundial BSE Bovine Spongiform Encephalopathy BTC Acordo sobre Barreiras Tcnicas ao Comrcio CA Comisso de Alimentos / SGT 3 Regulamentos Tcnicos e Avaliao de

    Conformidade CEBES Centro Brasileiro de Estudos da Sade CF Constituio Federal CFC Cloro-flor-carbono CILFA Centro Industrial de Laboratorios Farmacuticos Argentinos CLT Consolidao das Leis do Trabalho CNI Confederao Nacional da Indstria CNS Conselho Nacional de Sade CO2 Gs carbnico ou dixido de carbono CONASS Conselho Nacional dos Secretrios Estaduais de Sade CONASSENS Conselho Nacional dos Secretrios Municipais de Sade CONMETRO Conselho Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial COOPERALA Cooperativa de Laboratrios Argentinos de Especialidades

    Medicinales CPI Comisso Parlamentar de Inqurito CPS Comisso de Produtos para a Sade / SGT 11 Sade / Mercosul CPSC Comisso de Segurana ao Consumidor de Produtos (Consumer Product Safety

    Comission)

  • CRAME Comisso Tcnica de Assessoramento de Assuntos de Medicamentos e Correlatos CTNBio Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana CVS/SES/SP Centro de Vigilncia Sanitria/ Secretaria Estadual de Sade/So Paulo DATASUS Departamento de Informtica do Sistema nico de Sade DCJ Doena de Creutzfeldt-Jakob DOA Servio de Inspeo e Segurana dos Alimentos (Food Safety and Inspection

    Service) DOL Administrao da Segurana e Sade nas Minas (Mine Safety and Heath

    Administration) EEB Encefalopatia Espongiforme Bovina EMEA European Medicines Evaluation Agency EPA Agncia de Proteo Ambiental (Enviromental Protecting Agency) FAA Administrao Federal da Aviao (Federal Aviation Administration) FAO Organizao para a Alimentao e Agricultura (Food and Agriculture

    Organization) FDA Administrao dos Alimentos e Medicamentos (Food and Drug Administration) FENAFAR Federao Nacional dos Farmacuticos FENAM Federao Nacional dos Mdicos FIFARMA Federao Latino-americana da Indstria Farmacutica FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz FMI Fundo Monetrio Internacional GATT Acordo Geral de Tarifas e Comrcio (General Agreement on Tariffs and Trade)

    GMC Grupo Mercado Comum IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renovveis ICDRA Conferncia Internacional de Autoridades Reguladoras ICH Conferncia Internacional de Harmonizao IDEC Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidos IFPMA International Federation of Pharmacetical Manufacturers Associations INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social INCQS Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Sade INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial INVIMA Instituto de Vigilncia de Medicamentos e Alimentos JECFA Joint Expert Comitte on Food Additives MARE Ministrio da Administrao e Reforma do Estado Mercosul Mercado Comum do Sul MP Medida Provisria MPAS Ministrio da Previdncia e Assistncia Social MPO Ministrio do Planejamento e Oramento MS Ministrio da Sade NESCON Ncleo de Estudos de Sade Coletiva NESP/UnB Ncleo de Estudos de Sade Coletiva da Universidade de Braslia NHS National Health Service NHTSA Administrao Nacional do Trfego de Autopistas (National Highway Traffic

    Safety Administration) NOB 96 Norma Operacional Bsica de 1996 NRC Comisso de Regulao Nuclear (Nuclear Regulatory Commission) OECD Organization for Economic Co-operation and Development OGMs Organismos geneticamente modificados OMC Organizao Mundial do Comrcio

    xi

  • OMS Organizao Mundial da Sade ONG Organizao No-governamental ONGs organizaes no-governamentais ONU Organizao das Naes Unidas OPS Organizao Pan-americana da Sade OSHA Administrao da Segurana e da Sade Ocupacional (Occupacional Safety and

    Health Administration) P&D Pesquisa e Desenvolvimento PAB Piso Assistencial Bsico PDAVS Programa Desconcentrado de Aes de Vigilncia Sanitria PITS Programa de Interiorizao do Trabalho em Sade PP Partido Popular PRO-LACEN Programa Nacional de Reconstruo dos Laboratrios Centrais de

    Sade SAF Secretaria da Administrao Federal SES Secretaria Estadual de Sade SGT Subgrupo de Trabalho / Mercosul SIA/SUS Sistema de Informaes Ambulatoriais do Sistema nico de Sade Sindusfarma Sindicato da Indstria de Produtos Farmacuticos no Estado de So |Paulo SMS Secretaria Municipal de Sade SNVS Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria SNVS/MS Secretaria Nacional de Vigilncia Sanitria do Ministrio da Sade SOBRAVIME Sociedade Brasileira de Vigilncia de Medicamentos SPGV Solues Parenterais de Grande Volume SUS Sistema nico de Sade SVS Secretaria de Vigilncia Sanitria TBC Tecnical Barriers on Trading TRIPS Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights UNCTAD United Nations Conference on Trading and Development UNTACD Conferncia das Naes Unidas sobre o Comrcio e o Desenvolvimento (United

    Nations Conference on Trading and Development) VISA Vigilncia Sanitria WHO World Health Organization

    xii

  • APRESENTAO

    Este estudo destina-se concluso do Curso de Doutorado em Sade Pblica, rea de Polticas

    Pblicas, da Escola Nacional de Sade Pblica/FIOCRUZ. Ele aborda o tema da vigilncia sanitria, ou

    melhor, examina o arranjo estatal encarregado de executar as aes de vigilncia sanitria no Brasil.

    Durante minha trajetria profissional, uma parte dela dedicada vigilncia sanitria, percebi a

    relevncia social e econmica deste importante campo de regulao estatal, que padecia de muitas falhas

    de desempenho, em especial por sofrer de graves problemas estruturais de organizao. Entretanto, mais

    lamentvel do que a precariedade de sua estrutura era a sua marginalidade dentro do debate da sade

    pblica brasileira que, sistematicamente, sempre esteve presente na agenda pblica e dos movimentos

    sociais.

    Apesar da precariedade de sua estruturao e da pouca importncia e visibilidade dentro do

    espao acadmico e do debate da sade, percebi que a vigilncia sanitria era uma rea fascinante e muito

    importante para: i) a sade pblica, por buscar o controle dos riscos sanitrios envolvidos na produo e

    consumo de produtos e servios; ii) a reverso do modelo antigo de ateno sade, pela possibilidade de

    regulamentar os servios, organizando-os segundo uma nova lgica dentro do novo sistema de sade; e

    iii) para o desenvolvimento da cidadania no Pas.

    Identifiquei tambm uma relao importante com muitos setores da economia, em funo de

    seu potencial para implementar o valor da qualidade, no apenas nos produtos sob seu controle, mas

    tambm nas relaes sociais que envolvem toda a cadeia da produo ao consumo de produtos e servios

    de interesse para a sade.

    Uma bela misso. Porm com escassa possibilidade de ser cumprida por sua baixa visibilidade,

    precria estruturao e pouca fora poltica. A fragilidade institucional e o patrimonialismo tpico da

    administrao pblica brasileira deixava-a suscetvel aos interesses polticos e econmicos mais

    poderosos.

    Era tambm uma rea praticamente inexplorada em termos de debates no processo da reforma

    do nosso sistema de sade, intenso durante os anos oitenta, e em termos de estudos acadmicos. Toda a

    literatura sobre o sistema de sade e previdncia e sobre a reforma sanitria no Brasil, at meados dos

    anos noventa, praticamente no contemplava a vigilncia sanitria de forma especfica.

    A reforma do Estado, promovida durante o Governo Collor, embora estivesse embalada pela

    diretriz da qualidade e produtividade, no percebeu o potencial reformador da vigilncia sanitria. Em

    lugar de dot-la dos recursos necessrios ao seu pleno funcionamento, realizou uma convulso gerencial

    simplificadora apenas no sentido de agilizar as respostas s peties das indstrias. A situao de

  • precariedade estrutural da Secretaria Nacional de Vigilncia Sanitria que perdeu o Nacional no nome -

    no apenas continuou, mas tornou-se maior, deixando-a mais vulnervel ainda. A vigilncia sanitria nos

    estados e municpios igualmente permanecia precria.

    A criao do Mercosul, por outro lado, tinha um potencial de alavancar a ao da SVS/MS pois

    exigia debates, organizao e propostas, tendo em vista a necessidade de harmonizar os regulamentos

    tcnicos e a perspectiva de receber produtos dos outros Estados Partes. Mas essa atividade era tambm

    marginal dentro do Ministrio da Sade.

    Mesmo dentro do Ministrio da Sade, percebia que poucas pessoas entendiam a importncia

    da vigilncia sanitria para a sociedade. E tambm que a sua lamentvel situao trazia muitos riscos

    coletividade e que incomodava at mesmo alguns agentes privados pela incerteza da ao regulatria

    estatal.

    Sua marginalidade parecia crnica. Era evidente que a vigilncia sanitria tinha que ser mais

    conhecida, mais estudada, mais problematizada. Assim, mesmo aps ter deixado o trabalho no Ministrio

    da Sade, me propus a fazer um doutorado tendo como objeto de estudo a vigilncia sanitria no Brasil.

    Entretanto, a abertura econmica e a globalizao traziam novas demandas e presses como

    o grande volume de importaes, os acordos internacionais e a formao do Mercosul e de outros blocos

    de integrao econmica. A influncia externa parecia ser cada vez mais presente e influente nos

    processos de tomada de deciso na agenda pblica.

    Um dilema metodolgico logo se apresentou: estudar os processos de regulamentao sanitria

    no mbito das relaes internacionais, como o do Mercosul, ou estudar a organizao da vigilncia

    sanitria no Brasil?

    Apesar das presses para fazer uma ou outra coisa, uma vez que requerem tratamento terico e

    metodolgico distintos, decidi fazer, talvez muito ousadamente, as duas, pois entendia que, a partir da

    poltica de abertura ao mercado global, elas fatalmente andariam cada vez mais juntas, interdependentes.

    Em outras palavras, a organizao da vigilncia sanitria, assim como outras instituies nacionais, seria

    cada vez mais entrelaada com os acordos, convenes, protocolos regulamentaes e outros processos

    normativos pactuados e realizados em foros internacionais.

    Problemas com a Argentina, referentes aos trabalhos de harmonizao da regulamentao no

    Mercosul, em 1996, e os escndalos das falsificaes e outros problemas graves que aconteciam

    principalmente na rea dos medicamentos e dos servios de sade, nos meses finais de 1997, fizeram a

    sociedade, e o Estado tambm, tomar conhecimento da importncia da vigilncia sanitria. Ela saa,

    finalmente, da marginalidade. Todos queriam uma agncia forte e poderosa para tratar da regulao

    sanitria; algo como era a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, citada por todos

    envolvidos no assunto.

    Entretanto, algo me parecia estranho: o tipo de trabalho que faz a FDA poderia ser realizado no

    Brasil? Coaduna-se com o tipo de trabalho que necessitamos? Este estudo tambm buscou elucidar estas

    questes.

    A velocidade dos acontecimentos aps os problemas de 1996 e os escndalos de 1997, que

    continuaram em 1998, atropelaram literalmente o meu estudo. A entrada da vigilncia sanitria na agenda

    poltica e a segunda onda de reformas do Estado, iniciada em 1995, no Governo FHC formavam um

    xiv

  • cenrio especialmente favorvel para a desejada reestruturao da Secretaria de Vigilncia Sanitria do

    Ministrio da Sade, em cogitao desde 1994. A Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA)

    foi criada no final de 1998, de forma relativamente rpida aps a posse do Ministro Jos Serra no

    Ministrio da Sade. O custo deste aproveitamento do momento poltico favorvel foi a pobreza do

    debate sobre o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria (SNVS), que foi formalizado na mesma

    legislao que criou a Agncia.

    Como est constitudo esse Sistema? Parte considervel deste estudo buscou responder essa

    pergunta. Unio, estados e municpios, principalmente, articulados de forma precria em um arranjo

    extremamente diversificado, so os atores principais neste cenrio, cujo movimento segue a linha-mestra

    da descentralizao.

    Enquanto parte integrante do Sistema nico de Sade, o SNVS deve seguir a mesma lgica de

    descentralizao desenhada para os servios assistenciais, certo? Sem estar convencido desta lgica,

    empreendi um esforo para analisar a interpretao predominante do conceito de descentralizao, mais

    ou menos emblematizada no jargo o nvel federal no executa nada, o estado, somente o

    imprescindvel; a execuo cabe ao municpio. Essa interpretao ma parecia carente de poder

    orientativo suficiente para comandar a estruturao do SNVS.

    Os estados devem prestar cooperao tcnica para que os municpios assumam e executem as

    aes de vigilncia sanitria que eles executavam, certo? Errado. O processo de municipalizao das

    aes de vigilncia sanitria constitui um valioso potencial para a impulso da mudana do modelo

    tradicional de organizao da ateno sade no nvel local. Na maioria dos municpios, que so mdios

    e pequenos, no precisaria (nem) existir, necessariamente, um rgo especfico de vigilncia sanitria.

    Suas aes, que no deveriam ser executadas de forma separada das outras aes de sade, poderiam

    compor o conjunto de novas prticas sanitrias, como aquelas contidas na concepo de vigilncia da

    sade, proposta j suficientemente tematizada por autores como Jairnilson Paim, Carmem Teixeira, Ana

    Vilasbas e Eugnio Vilaa Mendes, entre outros dedicados sanitaristas brasileiros.

    Em resumo, o SNVS, que no foi objeto de nenhum debate ex ante, durante o seu processo de

    criao, ou formalizao, e que apresenta srios problemas estruturais, est a exigir um urgente debate

    especfico ex post, que encontre alternativas para melhor orientar a sua complexa estruturao, ou melhor,

    a sua existncia de fato.

    Entretanto, no se podem mais conceber instituies domsticas sem entender seus vnculos

    com demandas e presses oriundas de processos internacionais. Apesar de ainda se estar longe de poder

    afirmar a desimportncia do estado-nao, como pregam alguns autores globalistas, foroso reconhecer

    que este j no o mesmo, principalmente em autonomia e soberania, de algumas dcadas atrs. Uma

    comunidade internacional vai, gradativamente se tornando mais consistente, acompanhada de uma

    normatizao, tambm cada vez mais ampla, das relaes entre os estados, que limita sua ao autnoma.

    Por sua vez, o processo da globalizao est gerando grandiosas corporaes empresariais, cujo

    poder econmico e poltico j ultrapassa aquele de muitos estados-nao, at ento os atores principais do

    sistema de relaes internacionais.

    xv

  • Como a questo dos movimentos internacionais interagem com a institucionalidade interna dos

    pases e qual a importncia desta relao para o sistema de vigilncia sanitria? Outra parte deste estudo

    foi direcionada para examinar esta questo.

    O SNVS faz parte desta institucionalidade, do estado-nao Brasil, no plano da regulao do

    risco sanitrio. Sua fragilidade o deixar inadimplente ao mesmo tempo nos dois planos nacional e

    internacional pois os problemas cada vez menos podero ser classificados como internos ou externos.

    Em outras palavras, a tendncia, no contexto da abertura ao mercado global, a diminuio da quantidade

    de problemas exclusivamente domsticos, sem contraface nenhuma com algum processo internacional.

    Por isso, enganoso pensar que o SNVS deve preocupar-se apenas com os problemas internos.

    Processos internacionais de regulamentao foram analisados no sentido crtico dos seus

    objetivos. O estudo realizado na rea de relaes internacionais fundamentou minha anlise desses

    processos internacionais de regulamentao e confirmou a intuio a respeito da importncia da

    normatizao internacional para o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria.

    Enfim, este estudo, buscou debater a rea de vigilncia sanitria, ao mesmo tempo em que

    procurou realizar uma espcie de diagnstico, o qual chamei de caracterizao do modelo brasileiro de

    regulao do risco sanitrio. Esta caracterizao identificou algumas teses a respeito do SNVS que trazem

    apreenso a todos aqueles preocupados com a rea de Vigilncia Sanitria no Brasil, apesar dos avanos

    que vemos nela acontecendo.

    xvi

  • INTRODUO

    O objetivo deste trabalho o de analisar o modelo de vigilncia sanitria existente no Brasil,

    examinando sua funo regulatria e caracterizando sua atual estrutura, tendo em conta, principalmente,

    os processos da reforma do Estado e da internacionalizao da regulamentao.

    A vigilncia sanitria, tal como foi instituda no Brasil, abrange a regulao de um leque muito

    grande de produtos e servios, de natureza diversa, agrupados nos grandes ramos: dos alimentos; dos

    medicamentos; dos produtos biolgicos, tais como vacinas e derivados de sangue; dos produtos mdicos,

    odontolgicos, hospitalares e laboratoriais; dos saneantes e desinfestantes1; dos produtos de higiene

    pessoal, perfumes e cosmticos, alm do controle sanitrio dos portos, aeroportos e estaes de fronteiras

    e da ampla gama de servios de interesse sade2.

    A variedade dos tipos e de graus de complexidade das tecnologias envolvidas nesses produtos e

    servios confere vigilncia sanitria uma natureza de alta especializao nesses ramos e nos sub-ramos

    que eles contm. Cada um desses produtos ou grupos de produtos constitui um universo prprio, passvel

    de estudo, cuja realizao exige conhecimentos de diferentes disciplinas.

    Entretanto, o propsito maior deste estudo no o de examinar a forma e o contedo do

    controle institudo para algum desses produtos ou grupo de produtos. Antes, a inteno empreender uma

    descrio analtica do arranjo de instituies moldado historicamente, que, no Brasil, permite a

    interveno do Estado no controle sanitrio de todos os principais produtos e servios que envolvem risco

    sade.

    Assim, importante enfatizar que o objeto deste estudo a estrutura institucional3 construda

    no pas para realizar a regulamentao e o controle dos potenciais perigos decorrentes da tecnologia

    incorporada nos produtos e servios includos no regime da vigilncia sanitria. Em outras palavras, o

    estudo aqui mostrado no se refere vigilncia sanitria de alguns desses produtos ou grupo de produtos,

    em especial, nem ao controle sanitrio nos pontos de entrada do pas. As menes feitas a eles no interior

    do texto servem apenas para ilustrar as descries e exemplificar as anlises efetuadas.

    No foi apenas a carncia de estudos com essa abordagem mais horizontal da rea da

    vigilncia sanitria o principal incentivo para a escolha deste recorte. Outros fatores tambm contriburam

    1 Desifestante o termo utilizado pela vigilncia sanitria para produtos tais como inseticidas e raticidas. Difere, pois, de desinfetante, mais utilizado para germicidas em geral. 2 A Lei n 8.080/90 tambm inclui, nas atribuies da vigilncia sanitria, o controle dos riscos sade derivados do meio ambiente. 3 O conceito de instituio aqui utilizado inclui organizaes formais, regras informais, procedimentos e prticas padronizadas que moldam as relaes na sociedade.

  • para essa deciso. Em primeiro lugar, a falta de clareza quanto natureza do arranjo institucional

    existente e sua adequao face realidade e s necessidades nacionais. Em segundo, a ausncia de

    avaliaes mais formalizadas acerca da operacionalidade desse arranjo escolhido para executar o controle

    sanitrio no pas. Em terceiro talvez, com maior ponderao a existncia de um processo de reformas

    ensaiado desde o incio da dcada passada no nvel federal, muito necessrio, mas que demanda

    direcionamento e decises bem informadas tanto no plano analtico diagnstico das fragilidades

    estruturais e organizacionais, dados e indicadores sociais e econmicos, principais riscos sanitrios e

    assim por diante quanto no de polticas participao dos agentes envolvidos com o controle sanitrio.

    Enfim, a questo que se impe : qual o modelo de interveno da vigilncia sanitria nacional, quais

    seus problemas e suas tendncias?4

    No obstante a amplitude do objeto recortado, a abordagem do estudo privilegiou uma de suas

    variadas inter-relaes, ou seja, ampliou-o um pouco mais. Ateno especial foi dada dimenso da

    regulamentao internacional em funo do visvel crescimento da importncia dos acordos e processos

    internacionais de regulamentao ou de harmonizao de regulamentos na rea sanitria, processos esses

    que influenciam a tomada de decises e a formulao das polticas nacionais.

    De fato, no plano do comrcio internacional, o incremento do volume de produtos

    manufaturados submetidos a controles no tarifrios menos de 1% em 1974, para cerca de 20% em

    1985 (MILNER, 1997b:193) fez aumentar a importncia das instituies relacionadas com a regulao

    sanitria.

    Ter-se-ia intensificado a preocupao da comunidade internacional, principalmente, a dos

    pases mais industrializados, com o risco sanitrio e com a sade das populaes do mundo? Ou o

    crescimento da importncia das instituies regulatrias internacionais estaria relacionado, antes, no

    contexto da liberao econmica mundial, possibilidade do uso de medidas sanitrias como barreiras

    disfaradas ao comrcio internacional? O estudo busca oferecer algumas descries e anlises acerca

    desse intrigante assunto.

    Parto da constatao de que a velocidade e a intensidade das mudanas ocorridas no

    funcionamento do mercado internacional trouxeram a exigncia de alteraes no desenho e nas funes

    do Estado, inclusive no desenho e nas funes do aparato da vigilncia sanitria. No Brasil, no incio da

    dcada de noventa, houve modificaes bastante decisivas tanto em relao estrutura e organizao do

    Estado brasileiro, quanto nas concepes a respeito de suas funes na busca do desenvolvimento do pas.

    No plano da economia, no que concerne aos objetivos deste trabalho, a mudana mais

    importante , certamente, a derrubada das fronteiras alfandegrias atravs da extino, equiparao ou

    diminuio dos impostos aduaneiros. Esta abertura vista como imperativa para estabilizar a economia e

    inserir o pas na concorrncia do mercado internacional, alm de significar o cumprimento de acordos

    internacionais de liberao do comrcio.

    A abertura alfandegria desencadeia um processo que percebe a regulamentao sanitria como

    uma barreira livre circulao de mercadorias e submete nossa legislao ao crivo de tratados

    internacionais de comrcio, multi ou bilaterais, exigindo sua acomodao s regras da recm fundada

    4 Emprego o termo modelo para referir-me composio e ordem dos elementos do todo, bem como as relaes que eles determinam entre si, e no no sentido de exemplo, de um arranjo exemplar que deveria

  • Organizao Internacional do Comrcio e s dos blocos regionais de integrao econmica, como o

    Mercosul.

    Nesse contexto, foros e processos de regulamentao internacionais a exemplo do Codex

    Alimentarius, entre outros assumem importncia cada vez maior e suas regras so tomadas como

    referncia para a avaliao e a gerncia do risco sanitrio, tal como para a arbitragem de controvrsias no

    comrcio mundial. O deslocamento de decises de avaliao e gerenciamento do risco sanitrio para

    espaos internacionais tem reflexos no plano da soberania e da democracia dos Estados, em particular,

    nos pases perifricos ou em desenvolvimento.

    No plano poltico, o novo modelo de desenvolvimento trouxe a necessidade de mudar as

    funes e o aparato do Estado. Alm da consolidao das instituies e do processo de redemocratizao,

    a reforma do Estado e seus corolrios, como, por exemplo, a desregulamentao, a privatizao, a

    descentralizao e as novas formas de regulamentao e controle representadas pelas agncias

    regulatrias e executivas introduz inovaes de igual relevncia para este estudo.

    O desenvolvimento da cincia e da tecnologia, por seu lado, traz novas questes como os

    organismos geneticamente modificados e as clonagens de seres vivos que significam mudanas nas

    relaes humanas e com a natureza, demandando novas formas de regulao e de controle para a proteo

    da sade e da vida.

    Considero tambm as reiteradas manifestaes de descontentamento quanto eficcia da

    vigilncia sanitria no Brasil.5 A anlise que se faz da vigilncia sanitria brasileira seja no trabalho

    formal dos autores que a estudam, nas apreciaes informais dos empresrios que so seus clientes, nos

    relatos dos tcnicos dos diferentes nveis de governo que nela trabalham, ou, ainda, pelos cidados e

    consumidores atravs de suas representaes a de uma rea de interveno do Estado que funciona

    precariamente.

    Tanto a abertura da economia, que muda a estrutura do setor produtivo6 e requer maior esforo

    de regulao sanitria, quanto a realizao da reforma do aparelho do Estado, que pretendeu

    redimensionar seu tamanho, suas funes e seu modelo de administrao processos vistos como de

    importncia estratgica para o pas , tm impactos significativos no campo da vigilncia sanitria e

    questionam sua precariedade.

    A relao analtica mais geral , portanto, entre o modelo de vigilncia sanitria de que

    dispomos e alguns dos acontecimentos que marcaram especialmente a economia e a poltica durante a

    dcada de noventa e que tm repercusses na sade coletiva em particular, a internacionalizao dos

    mercados e da regulamentao sanitria e as mudanas no aparelho do Estado.

    ser copiado, como a sua interpretao mais formal. 5 Ver Revista Sade em Debate n 19, 1987; ROZENFELD (1989); VAITSMAN et al (1991); Revista Sade em Debate n 7, 1992; BERMUDEZ (1995); Souto (1996); BONFIM & MERCUCCI (orgs.) (1997); COSTA (1999); a respeito de denncias de corrupo ver, por exemplo, Correio Braziliense de 28. 08.96, de 29.09.96 e de 10.05.97; Folha de So Paulo de 17.10.96; e O Estado de So Paulo de 07.10.97, entre muitas outras referncias. 6 Determina, entre outras coisas, deslocamentos da produo a outros pases, fuses de empresas, maior escala de produo, terceirizao de etapas produtivas dentro e fora do pas, aumento de competitividade em termos de qualidade e produtividade e de inovaes tecnolgicas.

  • Ponderando que a vigilncia sanitria e sua possibilidade de atuao so elementos ainda

    pouco (re)conhecidos7 apesar de sua importncia para a sade pblica, empenho-me em contribuir para

    um melhor esclarecimento da populao, dos interessados e dos profissionais da rea, buscando uma

    interpretao plausvel do modelo brasileiro de vigilncia sanitria, tendo em conta os processos externos

    que interceptam a ao regulatria do Estado nessa rea. Um esforo de teorizao para melhor conhecer

    e entender a natureza da vigilncia sanitria e situ-la entre os temas sociais de necessidade de estudos

    tambm faz parte deste empenho.

    Trs linhas de indagao orientam a anlise realizada. A primeira, busca esclarecer a natureza

    bsica do trabalho da vigilncia sanitria. Para isso, estabeleo inicialmente um dilogo com os conceitos

    de avaliao do risco e de gerncia do risco, fundamentais para a estruturao das intervenes do

    Estado no campo da regulao do risco sanitrio, procurando caracterizar esse processo e identificar as

    diferenas entre a regulao efetuada pelos pases mais desenvolvidos e os pases em desenvolvimento.

    A segunda linha trata de investigar como esto institucionalizadas as aes de vigilncia

    sanitria no Brasil, com nfase no estudo dos rgos estaduais de vigilncia sanitria. As respostas

    orientaram-se para o desvendamento da situao legal, da estrutura organizacional e das formas de

    participao ou controle da sociedade sobre o aparato administrativo que executa a regulao sanitria.

    Assim, busquei identificar a organizao do modelo atual e sua funcionalidade: de quais recursos dispe,

    quais as relaes entre os nveis de governo e quais suas principais deficincias.

    Inspirado no uso que HOCHMAN (1998) fez dos conceitos utilizados por DE SWAAN (1988) em

    sua anlise do surgimento das polticas sociais, concebo o modelo de vigilncia sanitria existente no

    Brasil como uma tentativa de coletivizao da administrao dos efeitos externos, ou externalidades,

    decorrentes da produo e circulao de bens e pessoas e da prestao de servios de interesse para a

    sade. A conscincia da interdependncia das partes constituintes do sistema rgos federais, estaduais

    e municipais vista como elemento indispensvel para a construo da administrao coletivizada,

    assim como a existncia de laos de unidade nacional. A tipologia das alternativas construdas

    historicamente para a superao dos problemas da interdependncia utilizada por aqueles autores

    solues individuais, solues voluntrias e cuidados coletivizados (estatais) usada, em forma de

    analogia, para identificar as formas possveis de organizao do sistema de vigilncia analisado.

    Uma terceira linha de indagao ocupa-se em analisar os processos internacionais de

    regulamentao sanitria, procurando identificar suas relaes com a nossa realidade institucional em

    especial, no que se refere s tenses entre as presses externas e a formulao das polticas domsticas e

    considerando as repercusses que esses processos internacionais criam com os pressupostos de

    democracia e soberania da regulao estatal.

    Foram as orientaes de BECKER (1996:70) que determinaram a ateno em organizar essas

    linhas indagativas que contm o conjunto principal de questes que precisavam ser respondidas na

    pesquisa como fundamento para a definio dos procedimentos e da metodologia que seriam adotados

    para efetuar o estudo pretendido. Assim, atentando para as caractersticas dos diferentes objetos de estudo

    7 No ano de 1997, a populao tomaria conhecimento da vigilncia sanitria infelizmente, de forma negativa , em funo dos escndalos com medicamentos falsificados e adulterados noticiados durante meses na televiso e outros meios de comunicao.

  • componentes destas linhas de indagao, fui buscando formas para perceb-los e examin-los, tendo em

    conta meus objetivos e as limitaes de recursos.

    As respostas primeira linha de indagao vieram do estudo terico da literatura sobre risco

    sade. Aquelas da segunda linha foram obtidas por meio de grupos focais e de entrevistas, de documentos

    oficiais, de levantamentos por meio de questionrios, de fontes secundrias e de observao participante.

    Novamente, na terceira linha de questionamento, recorri literatura de modo mais enftico, mas tambm

    utilizei a observao participante, bem como a busca de informaes na rede web e em documentos

    oficiais dos organismos internacionais, principalmente para fazer descries tcnicas de seus processos de

    regulamentao/harmonizao.

    Desse modo, esta tese tem uma natureza mais terica, estando constituda de cinco captulos. O

    primeiro, tem feio metodolgica: complementa a introduo no sentido da descrio do campo e da

    importncia da vigilncia sanitria, da situao-problema que ela representa e das principais indagaes;

    explicita conceitos analticos fundamentais, bem como os argumentos de anlise; e dispe sobre as

    principais idias metodolgicas que serviram de orientao ao estudo. Traz ainda um breve fragmento

    histrico que, a despeito de aparecer um pouco deslocado no contexto, me pareceu til para mostrar o

    carter de processo que a vigilncia sanitria percorre nos diferentes momentos polticos e econmicos da

    histria, at localizar o modelo atual, objeto do estudo.

    O segundo captulo explicita um esforo terico para: i) caracterizar uma concepo de

    vigilncia sanitria, sua importncia para o Sistema nico de Sade (SUS) e os termos de sua insero

    neste mesmo Sistema; ii) identificar a natureza do processo regulatrio do risco sanitrio avaliao,

    gerenciamento e comunicao do risco e o tipo de instituies que o executa; e, iii) entender as

    dificuldades dos pases perifricos na execuo da regulao do risco sanitrio.

    O terceiro captulo aborda o tema da reforma do Estado acontecimento que marcou a agenda

    poltica da maioria dos governos nacionais, principalmente, para os latino-americanos, na dcada de 90 ,

    visando contextualizar tanto os pressupostos dessas reformas e as mudanas buscadas em relao forma

    e s funes do Estado, quanto a criao da agncia regulatria da vigilncia sanitria no Brasil.

    O quarto captulo mostra o resultado da anlise dos trs principais componentes do Sistema

    Nacional de Vigilncia Sanitria federal, estadual e municipal com destaque para o exame da esfera

    estadual pela sua posio de articuladora entre os outros dois governos. Ateno especial tambm foi

    dirigida diretriz da descentralizao, por sua importncia na atual poltica de sade.

    O quinto captulo descreve e analisa os principais acordos (tendo em mente os objetivos deste

    estudo) e processos internacionais de regulamentao sanitria, incluindo uma anlise da harmonizao

    de regulamentos no Mercosul. Procuro entender a natureza desses acordos e regulamentaes, alm de

    identificar o seu impacto sobre as instituies do sistema domstico de vigilncia sanitria, considerando

    as dimenses da soberania e da democracia.

    Nas consideraes finais, exponho algumas teses avaliativas que dizem respeito ao Sistema

    Nacional de Vigilncia Sanitria, destacando a necessidade de urgentes revises em sua estrutura e a

    construo de uma doutrina de ao, bem como a exigncia de constantes avaliaes da poltica em curso.

    Aponto tambm algumas reas em que h necessidade de estudos, bem como fao sugestes de assuntos e

    de diretrizes de ao que esto a merecer maior ateno.

  • CAPTULO I METODOLOGIA E ARGUMENTOS DE ANLISE

    1.1 Situao problema e principais indagaes No mbito especfico da sade, as aes promocionais e preventivas ocuparam lugar de

    destaque aps as descobertas que identificaram, mais especificamente, os fatores determinantes dos srios

    agravos que acometeram, de modo sistemtico, as populaes ao longo da histria da humanidade.

    A partir das observaes empricas a respeito da ocorrncia de doenas, as comunidades

    antigas foram estabelecendo leis e outros regulamentos acerca de muitos aspectos da vida em

    comunidade, visando objetivos polticos e econmicos, a proteo sade e a continuidade da vida de

    seus habitantes.

    Com as noes bblicas das impurezas do corpo e da alma entidades inseparveis nas culturas

    pr-modernas foram institudos princpios e leis que tanto fundamentavam os rituais de diagnstico e

    purificao (cura) quanto normatizavam a vida em sociedade. As unies ilcitas (entre membros da

    famlia) e as doenas sexualmente transmissveis, por exemplo, eram energicamente reprovadas e

    penalizadas porque ameaavam a sobrevivncia, comprometendo a vida futura, como se pode perceber

    nos escritos do Levtico, no Antigo Testamento.

    No mundo ocidental, a partir do sculo XIV, no incio do renascentismo europeu, quando a

    civilizao medieval comeava a ser superada, buscavam-se aes mais efetivas e sistemticas para

    prevenir e tratar as grandes epidemias. Posteriormente, nos sculos XVII e XVIII, estas aes foram

    sendo aperfeioadas com base em novos conhecimentos que revolucionavam a cincia da poca e

    acumulavam os elementos essenciais para formar o que se conhece hoje como cincia moderna.

    Desde a Idade Mdia e, principalmente, nas primeiras dcadas do sculo XIX, os sanitaristas e

    administradores afirmavam a necessidade da criao de leis que regulamentassem certos assuntos. Os

    cdigos propostos indicavam a sua abrangncia: a higiene da habitao e do ambiente, a higiene dos

    alimentos e das bebidas, a higiene do vesturio, a sade e o bem-estar das mes e das crianas, a

    preveno e controle de doenas comunicveis humanas ou animais , a organizao do pessoal mdico

    e das boticas e assim por diante (ROSEN, 1994:177).

    Como demonstrou magistralmente FOUCAULT (1979:79) em sua conferncia sobre o

    nascimento da medicina social, a interveno do Estado neste espao da sade pblica remonta ao sculo

    XVIII e concretizou-se de diferentes formas na Europa: na Alemanha, absolutista e cameralista, originou-

    se a medicina de Estado e o conceito de polcia sanitria; na Frana, por exigncias da unificao

    territorial e urbanizao das grandes cidades, instituiu-se a medicina urbana; e na Inglaterra, a da Lei

  • dos Pobres, a medicina social recebeu um componente assistencial (aos pobres) e um componente

    administrativo (controle geral da sade pblica).

    Nos estados nacionais, tais aes foram estruturando sistemas de regulamentao e controle de

    agravos sade, conformando o campo de atividades que hoje costumamos designar por sade pblica,

    sade coletiva ou, ainda, medicina social conceitos que incorporaram, ao longo do tempo, diferentes

    abordagens metodolgicas8.

    Por sua vez, a epidemiologia como novo campo de estudo e a vigilncia epidemiolgica

    rea de ao estatal constituram-se ao se procurar a elucidao dos fatores determinantes das doenas,

    analisando-os em relao a formaes sociais especficas e em determinados perodos de tempo, bem

    como buscando formas de interveno nos mecanismos de implantao da doena.

    Depois das descobertas bacteriolgicas nas ltimas dcadas do sculo XIX, as aes de sade

    pblica ancoradas no desenvolvimento dos registros estatsticos j existentes desde o sculo XIV nas

    cidades mais importantes do perodo mercantilista , foram gradativamente instituindo princpios e aes

    mais sofisticados de controle, como os conceitos de portador e de contato, de hospedeiro e de vetor, o

    rastreamento de focos e o clculo do nmero de casos esperados. Mais adiante, buscando superar a

    concepo estritamente biologicista, tpica da era bacteriolgica, a epidemiologia avanou para o

    estudo da diversidade dos fatores predisponentes s doenas.

    Paralelamente s descobertas relativas s causas e s formas de interveno nas epidemias, o

    avano espetacular da cincia e da tecnologia impulsionava a industrializao e ensejava a produo, em

    grande escala, de amplo leque de produtos e de servios, dirigidos a satisfazer as exigncias e

    necessidades da populao.

    Contudo, numerosos casos de graves prejuzos sade coletiva e verdadeiras catstrofes na

    sociedade moderna, com elevados nmeros de mortes ou seqelas relacionadas ao consumo de muitos

    produtos e servios, foram sendo identificados como novas fontes de risco sade e, como tal, tornados

    objetos de regulamentao e controle sanitrio.

    Dentre os casos mais conhecidos, originados pelo uso em larga escala de produtos

    industrializados, pode-se citar, pela sua importncia para a conformao desta rea de regulamentao e

    controle sanitrio, o do Elixir de Sulfanilamida, que teve lugar em 1937, nos Estados Unidos. Este

    produto, lanado com um componente txico em sua frmula, matou mais de uma centena de pessoas em

    poucos dias. Outro caso que comoveu o mundo pela sua dramaticidade, ocorrido inclusive em pases

    europeus, foi o das vtimas da talidomida, no final dos anos 50.

    As economias mais desenvolvidas desde o sculo passado, mas, principalmente, nas

    primeiras dcadas do sculo XX estabeleceram leis, criando rgos e outros mecanismos para

    implement-las e para controlar a produo e a comercializao de bens e servios com potencial de risco

    sade pblica. Frutos de construes sociais especficas de cada pas, estas instituies modelaram-se ao

    longo da histria em funo de adequaes aos sistemas produtivos, realidade social e s culturas.

    Alm da regulamentao das categorias profissionais que trabalhavam na rea da sade, foram

    enquadrados em legislao especial, de cunho sanitrio, a produo e distribuio de medicamentos,

    alimentos, cosmticos, produtos de higiene pessoal, perfumes, saneantes domiciliares, dispositivos e

    8 Sobre o debate destes conceitos, consultar a reviso bibliogrfica de SCHRAMM (1996:103).

  • aparelhos de uso mdico, odontolgico, hospitalar e laboratorial, bem como os servios que interferem

    com a sade das pessoas.

    Nascia, assim, outro campo de promoo e preveno dentro do espao da sade pblica, o

    qual cuidaria da regulamentao e controle sanitrios de produtos e servios, correspondendo ao que

    chamamos de vigilncia sanitria. Desse modo, embora a regulamentao sanitria tenha origens remotas,

    pode-se afirmar que a vigilncia sanitria filha da revoluo industrial e assume diferentes

    conformaes em cada lugar, em funo de valores culturais, polticos e econmicos, bastante

    relacionados com a diviso internacional do trabalho, pois o grau de desenvolvimento tecnolgico da

    produo determina funes diferenciadas para a regulao nessa rea.

    Os pases menos desenvolvidos buscaram seguir os modelos das economias mais

    desenvolvidas, tentando adapt-los sua realidade. Em funo disso, a ao da vigilncia sanitria nos

    pases de menor desenvolvimento parece ter sido sempre problemtica. Segundo diagnstico do Programa

    Regional de Medicamentos da Organizao Mundial da Sade, as entidades reguladoras de medicamentos

    por exemplo, na Amrica Latina tm baixa capacidade operacional, pouco apoio poltico e operam

    sem os recursos adequados (OMS, 1996).

    No Brasil, o termo vigilncia sanitria foi empregado para demarcar esse campo da sade

    pblica, que tem como finalidade maior a proteo da sade por meio da eliminao ou da reduo do

    risco envolvido no uso e consumo de tecnologias produtos e servios e nas condies ambientais.

    A conformao do campo da vigilncia sanitria no Pas, sua institucionalizao e

    desenvolvimento, ainda no foi objeto de muitos estudos. Tal carncia apontada em trabalhos de alguns

    autores, como DUARTE (1990), LUCCHESI (1992) e SOUTO (1996) , comea a ser superada, em especial,

    depois dos acontecimentos relacionados falsificao de medicamentos e da criao da Agncia Nacional

    de Vigilncia Sanitria, deram destaque social rea. No tocante compreenso das origens e

    desenvolvimento da vigilncia sanitria no Brasil, saliento o trabalho pioneiro e exaustivo de Edin

    COSTA (1999).

    De acordo com COSTA (1994), apesar dos avanos em termos de ordenamento jurdico, a

    vigilncia sanitria no Brasil tem apresentado, na prtica, uma atuao frgil, isolada e marcadamente

    cartorial.9

    Tudo indica que, ao longo de sua histria, a Secretaria Nacional de Vigilncia Sanitria do

    Ministrio da Sade, criada em 1976, assim como os rgos que a antecederam, no contaram com a

    infra-estrutura necessria para o cumprimento dos seus objetivos finais e, no raramente, foram

    manipulados pelos interesses polticos e empresariais da rea. Cronicamente deficiente de recursos e

    meios, a Secretaria viveu sempre um conflito de identidade: dar respostas mais rpidas s demandas

    empresariais ou zelar pela sade da populao mediante a realizao de estudos e anlises cuidadosas

    daquelas demandas. Sem estrutura de pessoal, normativa, operacional, tcnico-cientfica e de suporte

    poltico, as duas alternativas mostraram-se quase excludentes (LUCCHESI, 1992).

    9 Com controles baseados em papis e em processos burocrticos que no tm correspondncia com a verificao emprica.

  • Embora a rea de abrangncia da vigilncia sanitria tenha sido ampliada ao longo dos anos, a

    legislao sanitria brasileira, bem como a estrutura organizacional dos rgos de atuao na rea, no

    acompanhou esse avano (DUARTE, 1990:64).

    Segundo SOUTO (1996:133), apesar de seu objetivo ser o de contribuir na proteo sade da

    populao, a vigilncia sanitria, desde a sua conformao enquanto espao institucional, na dcada de

    70, sempre se destacou mais como instncia burocrtica que responde aos interesses do setor produtivo do

    que finalidade para a qual foi criada. Os interesses polticos e econmicos se evidenciaram como fortes

    definidores das polticas de vigilncia sanitria, e a produo de seu saber voltou-se prioritariamente para

    atend-los.

    Desprovida de consistncia tcnica, por no possuir um quadro de pessoal qualificado e

    suficiente; frgil em sua ao administrativa, por no contar com os mais elementares instrumentos de

    gesto eficaz, a exemplo de um sistema moderno de informtica ou uma organizao administrativa

    mnima; sem fora poltica para constituir-se em interlocutor firme em defesa da sade pblica frente a

    outras instncias do prprio Estado, como a agricultura, indstria e comrcio, fazenda, congresso e

    judicirio, bem como frente s instituies da sociedade que representam interesses especficos; sem

    legitimidade frente sociedade, por sua expressa ineficincia ao longo de sua histria, a Secretaria

    Nacional de Vigilncia Sanitria transformou-se em alvo fcil de denncias de corrupo, srias ou

    levianas, graves ou leves; em palco de personalismos e de oportunismos, alm de conformar uma arena

    para mesquinhas barganhas polticas (LUCCHESI, 1997:99).10

    A partir de 1999, este quadro tem mudado, em especial, porque houve crescente interesse

    poltico em reverter a situao crtica dessa rea no contexto da internacionalizao dos mercados e das

    mudanas necessrias no padro de interveno estatal. A criao da Agncia Nacional de Vigilncia

    Sanitria pode ser vista como o emblema de tal preocupao.

    Hoje, o amadurecimento e a consolidao de nosso processo democrtico e da formao da

    cidadania demandam instituies de regulao bem estruturadas. Por sua vez, o acirramento da

    competio pelos mercados mundiais transforma a vigilncia sanitria em rea estratgica, enquanto

    vantagem diferencial que um pas pode oferecer para receber investimentos das grandes empresas.

    Um sistema de vigilncia sanitria sem regulamentos claros e efetivos, sem administrao

    racional e gil, sem canais bem delimitados de participao social, sem corpo suficiente de funcionrios

    qualificados e sem estrutura condizente com a demanda de um parque produtor como o brasileiro,

    certamente ser incapaz de sinalizar claramente as regras nesta rea sanitria e de garantir a sua

    observao por todos os agentes envolvidos.

    10 Ver, por exemplo, Correio Braziliense de 29.09.96, sobre esquema de corrupo na Secretaria de Vigilncia Sanitria - SVS/MS engendrado por polticos do extinto Partido Popular (PP); Correio Braziliense de 21.08.96, sobre denncias do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) de testes de gravidez sem qualidade; Folha de So Paulo de 17.10.96 sobre preservativos masculinos sem qualidade; Correio Baraziliense de 10.05.97, sobre associaes de antibiticos que foram proscritas mas no proibidas pela SVS em 96; Jornal do Brasil de 19.03.97, sobre graves problemas com kits para identificao do HIV; O Estado de So Paulo de 07.10.97 sobre a qualidade dos hemoderivados Fator VIII e IX, sobre o sangue contaminado e sobre a qualidade dos kits de diagnstico sorolgico e, ainda denncias de chantagem que a Fundao Pr-sangue/Hemocentro de So Paulo estaria fazendo com os empresrios e favorecimentos da SVS/MS a esta Fundao.

  • Sob o ponto de vista sanitrio, a necessidade de se pensar melhor a reestruturao da vigilncia

    sanitria brasileira reconhecida pelo simples acompanhamento de fatos ocorridos durante os ltimos

    anos no Brasil, que envolvem falta de qualidade e de legitimidade de produtos e servios11, uma vez que,

    no cenrio do comrcio mundial, os produtos e servios originrios de um pas que tem um sistema de

    regulamentao e controle reconhecido pela sua eficcia, agrega naturalmente um valor s mercadorias ali

    produzidas, contribuindo para sua melhor aceitao em mercados estrangeiros.

    Frente a esta situao, algumas indagaes fazem-se pertinentes para o maior conhecimento

    dessa rea no Brasil: qual o arranjo da vigilncia sanitria vigente e qual sua perspectiva de

    reestruturao dentro do SUS? Como se realiza sua funo regulatria? De que maneira os processos

    internacionais de regulamentao repercutem nessa funo? Com quais mecanismos opera o controle

    social sobre o Estado nesta rea? Como se d a participao social?

    Tais questes conformam um quadro que demanda, para a vigilncia sanitria no Brasil,

    urgente debate prprio, fundamentado em estudos que ajudem a identificar suas fragilidades, iluminar as

    causas de sua acanhada eficcia e que apontem possibilidades futuras e de sua reestruturao na medida

    da importncia econmica e social do Brasil.

    Sob outra perspectiva tem-se que os cenrios do final e do incio de sculo apresentam

    enfticas mudanas em alguns planos da vida no planeta, as quais se refletem, com maior ou menor

    intensidade, na rea da sade e, dentro dela, nos sistemas de regulamentao e controle sanitrio de

    produtos, servios e ambientes. Entre elas destacam-se as atividades de biologia celular, que deriva

    organismos geneticamente modificados, clonagens, fertilizao artificial e medicamentos, vacinas e

    mtodos de diagnstico cujas formas de ao diferem completamente das tradicionais farmacocintica,

    farmacodinmica e farmacologia.

    Todos esses processos de mudana na natureza das relaes humanas remetem tambm

    necessidade de igual mudana na tica no somente devido aos novos objetos, como a clonagem e a

    engenharia gentica, que exigem novas regras de conduta, mas porque se abriu uma dimenso

    inteiramente nova do significado da tica, para o qual no existem precedentes nos modelos e princpios

    da tica tradicional (JONAS, 1994:27).

    Em face deste cenrio, outro questionamento coloca-se como necessidade: o sistema brasileiro

    de vigilncia sanitria est preparado para enfrentar tais desafios?

    Este estudo buscou avanar o exame das questes aqui levantadas, contribuindo para a

    reflexo, o debate e a construo de conhecimentos nessa rea pouco conhecida da sade coletiva.

    Pretendeu tambm contribuir para que a vigilncia sanitria ocupe o lugar de sua importncia como

    componente crtico da regulao estatal tanto no aspecto sanitrio da reforma setorial por sua

    potencialidade na reorientao do antigo modelo assistencial que se pretende superar por meio da plena

    implantao do SUS quanto no aspecto econmico, como potencializador da qualidade dos produtos,

    processos e relaes sociais.

    11 Com destaque para o acidente radiativo em Goinia (1988); a intoxicao fatal em um servio de hemodilise em Caruaru (1996); diagnsticos errados por falta de preciso dos testes de HIV; alimentos como sal, leite, acar, gua sanitria e gua mineral que no obedecem aos requisitos de qualidade (IDEC, 1997); falsificaes de medicamentos crticos na teraputica de doenas graves (1997 e 1998) e

  • 1.2 Conceitos e argumentos de anlise Apoiando-se nas idias de DE SWAAN (1988) para a anlise do aparecimento das polticas

    sociais, HOCHMAN (1998) destaca o conceito de interdependncia social como o fundamento das

    respostas aos problemas gerados no processo social em dada sociedade. Para esses autores, os efeitos

    indiretos das deficincias e adversidades de uns indivduos atingem imediatamente outros, apesar de estes

    no sofrerem das mesmas deficincias ou adversidades. Tais conseqncias so identificadas como efeitos

    externos ou externalidades, formadores dos elos de interdependncia que fundam a necessidade da

    coletivizao do cuidado com os indivduos.

    No campo da sade, por exemplo, um indivduo infectado com doena contagiosa tem um

    potencial de externalidades que ameaa os no portadores daquela doena. O mesmo raciocnio vale para

    a ameaa de violncia causada pela pobreza e pela destituio de alguns em relao aos demais membros

    da comunidade.

    Encaminhando o tema para a vigilncia sanitria, pode-se afirmar que um medicamento, uma

    vacina ou um alimento, produzido e distribudo sem a observncia de todos os requisitos que garantem

    sua qualidade, segurana e eficcia, representa uma potencial externalidade. Ou seja, este medicamento,

    vacina ou alimento, ao circular no mercado, pe em risco no apenas a comunidade que pertence ao

    municpio ou unidade federada onde esses bens so produzidos e consumidos, mas constitui perigo para

    todas as comunidades por onde aqueles bens circulam e so consumidos.

    Tome-se um exemplo relacionado ao meio ambiente: a atividade de garimpo existente em

    algumas unidades federadas contamina os rios do lugar com grande quantidade de mercrio, causando

    prejuzo substancial flora e fauna de todos os cursos dgua em contato com os rios contaminados,

    inclusive por intoxicar os peixes que servem de fonte alimentar s populaes ribeirinhas ou a outras mais

    distantes. A externalidade produzida no afetar apenas o municpio ou o estado onde a atividade

    garimpeira realizada, mas, sim, todos os estados e municpios percorridos pelos rios e cursos dgua

    prejudicados, alm da populao de todos os estados e municpios que consumirem o peixe intoxicado.

    No campo da vigilncia epidemiolgica possvel fazer raciocnio idntico: um municpio ou

    um estado realiza cuidadoso trabalho de controle do Aedes aegypti, mosquito vetor da dengue. Um estado

    ou municpio vizinho, por inpcia, inao ou absoluta falta de recursos, no providencia o mesmo

    controle e, em decorrncia disso, sua populao sofre a presena endmica ou epidmica da doena.

    Tanto os doentes de dengue que circulam por outros municpios e estados, quanto as populaes de

    mosquitos aedes que se reproduzem e aumentam em tamanho populacional e so transportados, de

    vrias maneiras, para outros estados e municpios representam efeitos externos negativos para os outros

    municpios ou estados unidades do sistema.

    Existe, portanto, no campo da sade pblica, uma interdependncia social entre as unidades

    federadas e entre os municpios gestores do SUS e executores de aes de preservao ou recuperao da

    sade, na medida em que as externalidades de uns provocam riscos e danos sade de outros. Desse

    modo, os problemas sanitrios devem ser tratados como importantes elos de interdependncia entre os

    estados ou municpios sejam eles produtores e consumidores ou apenas consumidores de bens, processos

    empresas clandestinas, entre muitos outros casos, alguns dos quais recentemente reanalisados pela CPI

  • e servios em regime de vigilncia sanitria. A externalidade negativa, nesse caso, pode ser entendida

    como risco sanitrio.

    Ao se conceber os estados e municpios como unidades da comunidade nacional, torna-se claro

    que o controle que uma unidade faz, ou deixa de fazer, repercute de forma imediata ou mediata nas

    outras. Se uma unidade tem grandes deficincias para a produo de aes de vigilncia sanitria, ou

    apresenta um nvel muito baixo de conscincia dos efeitos externos, ou, ainda, uma frgil percepo da

    unidade nacional, estar atingindo negativamente as outras unidades que no contribuem para a existncia

    de externalidades.

    Dito de outra forma, os problemas sanitrios de uma localidade podem produzir efeitos

    externos negativos sobre outras localidades, independentemente de qualquer ao ou desgnio destas

    (HOCHMAN, 1998:161).

    Ainda de acordo com esses autores, as tentativas de superao dos problemas da

    interdependncia humana ou social transitam em trs principais formas: a) solues individuais isolar-se

    do contato com destitudos, e/ou deix-los entregues prpria sorte e/ou a uma soluo via mercado; b)

    solues voluntrias como as organizaes filantrpicas, de caridade ou auxlio mtuo, de carter

    comunitrio e societrio; e, c) cuidados estatais atravs da coletivizao dos cuidados por meio de

    polticas de Estado.

    Ante a ineficcia das duas primeiras alternativas, as sociedades urbanas e industriais do

    ocidente acabaram por coletivizar a administrao da interdependncia social como resultado histrico de

    seus conflitos sociais, produzindo as polticas dos estados de bem-estar social (HOCHMAN, 1998:26). Esta

    ltima forma se d por meio da obrigatoriedade da contribuio e da produo da proteo via autoridade

    pblica. Segundo BODSTEIN (2000:78), a coletivizao aparece como contrapartida ao processo de

    individualizao, como necessidade de tornar viveis aes coletivamente coordenadas tanto para evitar

    riscos e perdas socialmente relevantes, quanto para a obteno de bens pblicos.

    No entanto, para que tal poltica de coletivizao se concretize, haveria a necessidade de

    existir, ou de se criar, uma conscincia social que constitua uma identidade coletiva e nacional capaz de

    contribuir para remediar os progressivos efeitos externos da destituio e das adversidades.

    Considerando esses conceitos de interdependncia social e de efeitos externos como

    bastante pertinentes para o estudo do modelo de vigilncia sanitria e tomando emprestado ainda algo do

    esquema analtico de HOCHMAN (1998:38) com certas adaptaes necessrias anlise do objeto do

    presente estudo, aponto alguns pressupostos como base para a investigao aqui proposta:

    a) a simples existncia de externalidades no suficiente para a constituio de um modelo eficaz de

    coletivizao da vigilncia sanitria; a conscincia e a percepo da interdependncia e a existncia

    de interesses comuns e de laos com uma comunidade nacional, bem como a compulsoriedade da

    contribuio, so elementos cruciais;

    b) as aes capazes de eliminar, diminuir ou prevenir riscos sade e de intervir nos problemas

    sanitrios decorrentes do meio ambiente, da produo e circulao de bens e da prestao de servios

    de interesse da sade carecem de cooperao e de ao coletiva por parte de todas as unidades sociais

    sejam pessoas ou unidades poltico-administrativas;

    dos Medicamentos realizada pela Cmara dos Deputados (BRASIL, 2000b).

  • c) a formulao das polticas pblicas e nacionais de vigilncia sanitria, por meio das aes da

    vigilncia sanitria estatal, resulta da formao da conscincia da interdependncia ou da conscincia

    dos efeitos externos dos problemas causados pela produo e circulao de bens e servios de sade;

    d) a conscincia da interdependncia social elemento indispensvel constituio de um modelo de

    coletivizao da administrao da vigilncia sanitria, que somente plausvel enquanto resultado da

    percepo de uma identidade nacional;

    e) essas aes estatais significam tambm a conscincia das oportunidades de obteno de benefcios

    com a regulao e controle estatais, ou seja, do benefcio da coletivizao da administrao das

    externalidades prprias do campo da vigilncia sanitria;

    f) o desenho institucional-legal da coletivizao aqui entendido como o sistema de vigilncia sanitria

    depende da combinao de interesses, da conscincia social da interdependncia, tal como da

    existncia de laos da unidade nacional e dos clculos dos custos impostos pelo modelo s unidades

    participantes.

    Neste estudo, o sistema de vigilncia sanitria percebido como uma forma de coletivizao

    da administrao das externalidades prprias do campo da vigilncia sanitria, ou seja, da administrao

    dos riscos sade decorrentes do meio ambiente, da produo e circulao de bens e da prestao de

    servios de sade. Para anlise do modelo brasileiro de vigilncia sanitria, considero que a

    interdependncia existe no somente em sua dimenso horizontal, entre as unidades federadas ou entre os

    municpios, mas tambm em sua dimenso vertical, entre as trs esferas de governo que compem, com

    autonomia, as instncias gestoras do modelo. Assim, essa interdependncia administrativa assume

    centralidade na argumentao desenvolvida.

    Ao analisar o modelo de vigilncia sanitria mediante essa argumentao e os conceitos

    analticos que a sustentam, tenho que considerar tambm que: a) a coletivizao sua forma e qualidade

    de ao funo do amadurecimento e da consolidao do processo democrtico e do desenvolvimento

    econmico; e, b) o Brasil atravessa um momento de particular importncia para suas instituies polticas

    e administrativas, as quais podem ou no alterar a forma de coletivizao dos problemas inerentes

    vigilncia sanitria.

    Dentre os processos importantes relacionados aos pontos acima indicados, destaco:

    a) a proposta governamental de Reforma do Estado, que pretende redimensionar seu tamanho e suas

    funes face ao crescimento da internacionalizao da economia e o esgotamento do modelo de

    substituio de importaes;

    b) o processo de abertura da economia, visando o aumento do poder competitivo do parque produtivo

    nacional, principalmente, em termos de qualidade e produtividade;

    c) os processos internacionais de regulamentao e de harmonizao de regulamentos tcnicos na rea

    sanitria;

    d) dentro desse processo de abertura econmica, a construo de um mercado comum regional o

    Mercosul que necessita, para seu funcionamento, da eliminao das barreiras no alfandegrias para

    a livre circulao de produtos em seu mbito e, para isso, tem como pr-requisito imprescindvel a

    harmonizao dos regulamentos sanitrios e dos procedimentos de vigilncia sanitria a curto prazo

    entre os Estados Partes.

  • No interior de tais processos, vistos como de importncia estratgica para o Pas no panorama

    atual, a vigilncia sanitria exerce funo particular, especfica de sua rea de atuao: a funo

    regulatria, aqui entendida como a competncia de definir e estabelecer regulamentos prprios ao

    controle do risco sanitrio, bem como a de atuar para o seu cumprimento. Esta funo, ao mesmo tempo

    em que tem potencial para contribuir com a reforma do Estado, com a organizao do Sistema nico de

    Sade e com a implementao do poder competitivo do parque produtivo e a construo do Mercosul,

    atingida por estes processos de reformas, pela internacionalizao da economia e, dentro desta, pela

    formao do Mercosul.

    O modelo de vigilncia sanitria atual constitudo pela diviso de atribuies entre os trs

    nveis de governo, com nfase no poder estadual e no poder federal. A funo regulatria, atravessada

    pelos processos acima referidos, percebida com nveis diferentes de conscincia pelos gestores da sade

    e pela sociedade. A reforma do Estado, a implementao do SUS e a construo do Mercosul podem

    contribuir para um maior grau de conscincia das partes e de laos de unidade na administrao coletiva

    das externalidades sanitrias.

    Ao considerar aqui a questo da interdependncia entre esferas de governo, possvel

    identificar o nvel federal como o mais interessado nesses processos, por ser aquele que desempenha o

    papel coordenador da coletivizao. Os processos de internacionalizao tambm necessitam do nvel

    federal como interlocutor, pois outras unidades do sistema internacional no podem estabelecer conexo

    com 27 (estados) ou 5.625 (municpios) interlocutores.

    Porm, esses processos de internacionalizao, de reformas e de construo da administrao

    coletiva repercutem tambm nas outras unidades poltico-administrativas estados e municpios que

    estabelecem suas estratgias de presso no sentido de contratualizar arranjos mais benficos a suas

    realidades. Em sntese, a busca de um arranjo cooperativo certamente influenciada por esses processos

    de internacionalizao e de reforma, e o estabelecimento de incentivos ganhos materiais e polticos

    decorrentes da reforma torna-se o ponto crtico para que o modelo ganhe em eficincia.

    O sistema de vigilncia sanitria, enquanto fruto da coletivizao da administrao das

    externalidades potenciais das mercadorias, ambientes e servios, no tem seus efeitos limitados aos

    benefcios sociais decorrentes da profilaxia das externalidades neles envolvidos riscos que tm origem

    na maior ou menor eficcia das unidades poltico-administrativas (estados e municpios) em realizar as

    funes da vigilncia sanitria. Existe, claramente, um benefcio comum, de cunho econmico, decorrente

    da coletivizao da administrao dos riscos sanitrios relacionados s externalidades potenciais das

    mercadorias, servios de sade e ambientes, quando a regulao de seus processos de produo e

    distribuio estabelecida de maneira transparente e sinaliza coerentemente a qualidade que deve ser

    buscada.

    Assim, a ineficcia do modelo causa prejuzos sociais principalmente, os de natureza

    sanitria e prejuzos econmicos, por falta de confiana na qualidade dos produtos e servios e das

    relaes de troca estabelecidas entre os diferentes agentes da cadeia, que vai da produo ao consumo de

    bens e servios.

    O modelo de coletivizao dos cuidados s externalidades geradas em cada unidade federada

    ou municipal somente completo se abarcar todo o nvel nacional. Embora o nvel federal coordene as

  • polticas nacionais e as relaes com outros pases, quanto menos o modelo for assimilado pelos outros

    nveis de governo que operam a coletivizao, maior dificuldade haver para uma ao cooperativa e

    coordenada. Como essa composio no mecnica ao contrrio, poltica , h permanente tenso

    entre esses nveis de governo, pois eles tendero a maximizar sua importncia e barganhar incentivos a

    sua ao.

    Tais reflexes reforam o entendimento da vigilncia sanitria como um dos campos de ao

    da sade pblica que envolvem complexas relaes entre o Estado desde os poderes federais at os

    locais e a Sociedade desde os grandes produtores transnacionais at o mais simples consumidor.

    Essas relaes necessitam de pressupostos minimamente pactuados com base na conscincia da

    interdependncia social e dos efeitos externos da carncia de qualidade, de segurana e de eficcia dos

    produtos e servios com risco sanitrio, como tambm na existncia de laos de unidade nacional.

    1.3 Consideraes metodolgicas O espao que abarca desde a produo de um bem ou servio at o seu consumo ou uso por

    parte da populao, constitui um mbito complexo, onde se cruzam direitos e interesses de uma srie de

    agentes sociais. A vigilncia sanitria que a atua, conforma um campo eminentemente intersetorial, cujo

    estudo, alm dos conhecimentos tcnicos especficos acerca dos objetos em que age medicina, farmcia,

    enfermagem, nutrio, epidemiologia e direito sanitrio, entre outros , requer a contribuio de

    disciplinas que no pertencem ao campo da sade, como, por exemplo, o direito administrativo, o direito

    comercial, civil e penal, as relaes internacionais, os direitos difusos (consumidor), a poltica tributria, a

    poltica industrial, o planejamento, a matemtica probabilstica, as cincias sociais e assim por diante.

    At o momento, no entanto, a vigilncia sanitria no chegou a derivar uma disciplina prpria

    de estudo que recorresse s inter-relaes entre estas outras disciplinas, afora ser alvo de poucos estudos

    especficos. Isso acontece no obstante o fato de ser possvel perceber que, na literatura que aborda

    aspectos da histria da sade pblica, alguns dos temas da vigilncia sanitria constituem antigos objetos

    de estudo em termos de problemas sanitrios de uma sociedade e que sua normatizao remonta aos

    primrdios das aglomeraes humanas.

    A busca de bibliografia concernente vigilncia sanitria no Brasil revela a escassez de

    trabalhos sobre este tema. Evidencia igualmente a sua marginalidade enquanto objeto de estudo na

    abundante literatura voltada ao nosso sistema de sade, produzida principalmente a partir de meados dos

    anos setenta, quando melhor se delineou o campo de pesquisas em sade coletiva no Pas.

    COSTA (1999) fez um trabalho pioneiro de anlise da conformao do campo da vigilncia

    sanitria no Brasil, no qual partiu das leis e de outros ordenamentos jurdicos e identificou os conceitos

    orientadores das diferentes concepes e conjunturas histricas relativas ao tema. Desenvolveu tambm

    um esforo de tematizao a respeito da vigilncia sanitria, buscando destacar os principais elementos

    tericos oriundos de diferentes campos do conhecimento que se entrecruzam para formar a base da ao

    nessa rea. Assim, estudou os temas das relaes produo / consumo / ideologia do consumo, controle

    sanitrio / ordenao normativa, administrao pblica / burocracia / poder normativo / poder de polcia e

    interesse pblico / interesse difuso / responsabilidade, entre outros. A autora percebe as aes de

  • vigilncia sanitria como componente imprescindvel do direito sade, que deve ser assegurado pelo

    Estado.

    SOUTO (1996) construiu uma histria dos ltimos tempos da vigilncia sanitria no Brasil de

    1976 a 1994 com base em documentos e depoimentos de pessoas vinculadas a essa rea em seus

    distintos contextos. Como caractersticas do arranjo vigente que teria sido implantado no perodo

    compreendido entre 1976 e 1980 , ela apontou a distino entre vigilncia sanitria e epidemiolgica, da

    mesma forma que a ausncia de um marco conceitual para a primeira.

    PILATI (1995), em sua tese