Tese Regina

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA O DISCURSO DO PROTAGONISMO JUVENIL REGINA MAGALHÃES DE SOUZA São Paulo 2006

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Essa tese de REgina Magalhães fala sobre o Discurso do Protagonism Juvenil.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    O DISCURSO DO PROTAGONISMO JUVENIL

    REGINA MAGALHES DE SOUZA

    So Paulo 2006

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    O DISCURSO DO PROTAGONISMO JUVENIL REGINA MAGALHES DE SOUZA

    Tese apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Universidade de So

    Paulo, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor.

    Orientadora: Profa. Dra. Irene Cardoso

    So Paulo 2006

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    A todos aqueles que no se

    conformam com o consenso.

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    AGRADECIMENTOS

    Tenho muito a agradecer minha orientadora, Professora Irene Cardoso. A

    Professora Irene consegue reunir qualidades que no so facilmente conciliveis: rigor terico-metodolgico e pacincia para orientar os caminhos de uma iniciante, solidez intelectual e simplicidade, autoridade do mestre e extrema gentileza. A minha gratido imensa, assim como o desejo de conservar a sua amizade.

    Agradeo tambm s Professoras Cibele Rizek e Maria Clia Paoli pela leitura atenta do meu relatrio de qualificao e pelas valiosas sugestes e indicaes que fizeram naquela oportunidade.

    Aos meus colegas, que se tornaram tambm amigos, do Programa de Ps-

    Graduao em Sociologia, especialmente Celina Bruniera, Mara Volpe, Mrcia Cunha e Nilton Ota, agradeo pelas inmeras vezes que discutiram comigo partes deste trabalho e vrios textos sobre educao. Sou grata tambm pelas dicas e sugestes que me deram, mesmo durante nossas conversas informais pelos corredores da faculdade.

    Guiomar Ferreira e Mrcia Regina Alessandri, agradeo por terem acompanhado, cada uma a sua maneira, os bastidores deste trabalho.

    Ao Nicolau Arcaro e Clia Souza pelo apoio e incentivo constantes.

    Muito obrigada.

    Regina

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    RESUMO

    Desde meados da dcada de 90 observa-se a presena do enunciado protagonismo juvenil nos textos dos organismos internacionais, organizaes no-governamentais, rgos de governo e educadores, em referncia a uma certa forma de participao da juventude na sociedade. Este trabalho faz uma anlise do discurso que d suporte ao protagonismo juvenil, identificando a matriz discursiva que o tornou possvel: uma concepo de sociedade como um aglomerado de indivduos atores sociais que estabelecem relaes de negociao com os outros indivduos enquanto realizam atividades que beneficiam a si prprios e coletividade. A atuao social, caracterstica dos atores sociais, ocorrida no cenrio pblico constitui a essncia da nova forma de poltica prescrita pelo discurso. A tese deste trabalho a de que essa nova forma de participao constitui, em ltima instncia, encenao, implicando a anulao da poltica e funcionando como mecanismo de integrao da juventude pobre. A anulao da poltica ocorre pela adoo do fazer coisas como forma de participao e pela fabricao do consenso pelo discurso, o que impede a fala autnoma e transgressora.

    PALAVRAS-CHAVE: protagonismo juvenil, juventude, discurso, educao, organizao no-governamental.

    ABSTRACT

    Since the middle of the nineties, the presence of the expression youthful protagonism can be observed in texts of international and non-governmental organizations, government agencies and educators, both in Brazil and abroad, referring to a certain mode of youths participation in society. This work makes an analysis of the discourse that supports youthful protagonism, identifying the rationale that became it possible: a conception of society as an accumulation of individuals - social actors - that establish relations with one another while carry through activities that benefit themselves and the collectivity. The social play characteristic of the social actors takes place in the public scene and constitutes the essence of the "new form" of politics prescribed by this discourse. The thesis of this work is that this "new form" of engagement constitutes, ultimately, a role-play that leads to cancellation of politics and social integration of poor youth. The cancellation of politics occurs by the stimulation of making things as the principal way to accomplish social participation, and also by the fabrication of consensus by discursive means, what hinders the autonomous and transgressive speech.

    KEY WORDS: youthful protagonism, youth, discourse, education, non-governmental organization.

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    SUMRIO

    Introduo ..................................................................................................................... 8

    Captulo I Em busca de novas formas de poltica...................................................................... 21 Juventude e poltica........................................................................................................... 21 A hipervalorizao da juventude....................................................................................... 53

    Captulo II A atividade dos atores sociais e do jovem protagonista............................................... 62 A noo de ator social como suporte para o protagonismo.............................................. 62 Os organismos internacionais........................................................................................... 67 Uma poltica de integrao da juventude.......................................................................... 71 A perspectiva do desenvolvimento humano...................................................................... 75 Atividade e passividade na noo de participao............................................................ 79 Poltica e encenao.......................................................................................................... 86 A motivao do jovem para a integrao........................................................................... 94 A emergncia do enunciado protagonismo juvenil no plano internacional...................... 103

    Captulo III Limites e xitos de um discurso compartilhado............................................................ 106 A formao das ONGs e do terceiro setor e sua atuao na educao no formal....... 107 A emergncia do enunciado protagonismo juvenil nos textos do terceiro setor............... 118 O protagonismo juvenil de Antnio Carlos Gomes da Costa........................................... 125 A implantao de polticas de juventude no Brasil........................................................... 129 O protagonismo juvenil no discurso oficial...................................................................... 138 Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio.................................... 139 Plano Nacional de Juventude.............................................................................. 143

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    Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano............................. 146 Limites do discurso............................................................................................................ 147 Modificaes recentes do discurso.................................................................................... 152 A dificuldade de uma crtica............................................................................................. 157

    Captulo IV A pedagogia do protagonismo juvenil............................................................................ 163 Educao como fator de desenvolvimento....................................................................... 163 A educao determinada pelas demandas do presente...................................................... 173 A educao como aprendizagem contnua........................................................................ 180

    Aprender a conhecer.............................................................................................. 185 Aprender a fazer..................................................................................................... 186 Aprender a viver juntos.......................................................................................... 187 Aprender a ser........................................................................................................ 189

    Educao como formao e como tcnica social............................................................... 194 O ataque ao ensino tradicional......................................................................... 195 A ocultao da regra............................................................................................. 199

    A participao juvenil nos projetos................................................................................... 203 O projeto como atividade prtica.......................................................................... 205 O projeto como atividade em grupo...................................................................... 211

    Captulo V Educao para a cidadania ativa.................................................................................. 215 Sobre cidadania e poltica................................................................................................. 216 O atual trabalho voluntrio............................................................................................... 225 Trabalho voluntrio e as demandas do capital.................................................................. 232 A homogeneizao das diferenas e desigualdades.......................................................... 235 Educao para a cidadania ou voluntariado educativo..................................................... 239

    Consideraes finais........................................................................................................ 244

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    Referncias....................................................................................................................... 257

    Anexos............................................................................................................................... 276

    Anexo A Informe sobre o Movimento de Adolescentes Brasileiros (MAB)................. 277

    Anexo B Alguns programas e projetos governamentais destinados aos jovens............ 279 Anexo C Informe sobre a Ao Educativa..................................................................... 290

    Anexo D Informe sobre a Cidade Escola Aprendiz....................................................... 294

    Anexo E Informe sobre o Instituto Ayrton Senna.......................................................... 297

    Anexo F Informe sobre a Fundao Odebrecht.............................................................. 304

    Anexo G Informe sobre a Fundao Educar DPaschoal................................................ 310

    Anexo H Informe sobre o Faa Parte Instituto Brasil Voluntrio............................... 316

    Anexo I Informe sobre o Protagonists Instituto de Protagonismo,

    Jovem e Educao............................................................................................................. 320

    Anexo J Informe sobre a Modus Faciendi e Antnio Carlos Gomes da Costa.............. 321

    Anexo L Informe sobre o Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Cidadania (IIDAC). 323

    Anexo M Informe sobre o Grupo Interagir..................................................................... 329

    Anexo N Informe sobre o Conselho Nacional de Juventude.......................................... 331

    Anexo O Informe sobre a Aracati................................................................................... 332

    Anexo P Informe sobre a Ashoka Empreendedores Sociais.......................................... 337

    Anexo Q Informe sobre o Dia de Fazer a Diferena...................................................... 342

    Anexo R Informes sobre a regulamentao do trabalho voluntrio na rede de ensino.. 343

    Anexo S Informe sobre o Programa Aprendiz Comgs................................................. 345

    Anexo T Informe sobre o Instituto Aliana.................................................................... 347

    Anexo U Informe sobre o Dia Global do Voluntariado Jovem..................................... 350

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    INTRODUO

    Desde meados da dcada passada, tem sido possvel observar, na mdia, nos

    programas partidrios, nas propostas de trabalho de diversas organizaes no-governamentais (ONGs), nos depoimentos de lderes de grupos de jovens, nos encontros, seminrios e congressos de educao, a referncia ao que tem sido denominado protagonismo juvenil. Em nome do protagonismo juvenil, jovens e ONGs espalhados por todo o Brasil tm prestado servios gratuitos coletividade, prtica nomeada, geralmente, de trabalho voluntrio e explicada por meio da valorizao da cidadania, da educao, da solidariedade. Veiculam a idia de que iniciativas particulares podem ser bem-sucedidas na soluo dos problemas sociais, e tentam desmentir a imagem da juventude aptica e alienada, predominante na sociedade desde o arrefecimento do movimento estudantil.

    A grande maioria dos textos que se propem a definir o protagonismo juvenil o fazem, inicialmente, lembrando a sua origem etimolgica: a palavra protagonista deriva do termo francs protagoniste, que, por sua vez, deriva do grego prtagnists, e que

    significa aquele que combate na primeira fila; que ocupa o primeiro lugar; personagem principal (MACHADO, 1990, p. 447). Em francs, o vocbulo foi documentado no sculo XIX, em italiano, no sculo XVIII e em ingls, na segunda metade do sculo XVII (CUNHA, 1996, p. 641). Em portugus, seu primeiro registro data de 1858 (HOUAISS e VILLAR, 2001). J a forma protogonista foi registrada em lngua portuguesa em 1615 e parece ter sido formada com os vocbulos gregos prtos (primeiro, principal) e agnists (lutador, competidor). Conforme Houaiss e Villar (2001), o termo grego agndzomai significa concorrer em jogos pblicos, lutar, disputar o prmio; combater e deriva de agn,nos ou assemblia, reunio, assemblia para os jogos pblicos; jogo, concurso, luta, combate; ao militar, batalha; luta judiciria, processo (p. 2316). O vocbulo agna refere-se luta nos jogos pblicos; luta em geral (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 2316).

    Originalmente, a palavra protagonista designava, portanto, o principal competidor dos jogos pblicos, mas tambm de uma assemblia, reunio, luta judiciria ou processo. Isto , a idia de luta (agna) e a idia de um espao pblico onde se travam as lutas corporais ou verbais encontram-se na formao inicial do vocbulo. Hoje em dia, os autores que escrevem sobre protagonismo juvenil e o definem lembrando da sua origem etimolgica concorrem para uma peculiar operao discursiva: uma assepsia da palavra, em

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    que permanece a idia de espao pblico e, portanto, de poltica , porm de um espao

    pblico transformado em cenrio, em que no existe luta (agnia) e em que os lutadores so substitudos pelos atores sociais. Assim, o jovem protagonista invariavelmente lembrado como o ator principal no cenrio pblico, posio de destaque que supe algum tipo de ao poltica. Contudo, uma ao poltica despida da luta e transformada em atuao social. Numa

    palavra, a tese que este trabalho pretende defender a de que o discurso atual prescreve juventude uma nova forma de poltica, que ocorre mediante a atividade/atuao individual e que contribui para a integrao dos jovens. O apelo ao protagonismo ou posio principal presta-se, sobretudo, para motivar os jovens integrao.

    Nas ltimas dcadas, o eixo das interpretaes dos estudos sobre juventude deslocou-se da noo de crise para a situao de excluso-incluso. Assim, a preocupao dos governos e organismos internacionais tem sido com a integrao da juventude pobre, que vive uma situao considerada como de excluso. Tambm se deslocou a ameaa juvenil. Nos dias de hoje, o temor da desestabilizao social advm da situao de pobreza e excluso de grandes parcelas da populao juvenil, base de grande parte das explicaes para a adeso da juventude s drogas e violncia. Assim que a participao da juventude considerada meio de evitar o descontrole e assegurar a coeso social. Por sua vez, o sucesso das medidas

    de integrao depende menos da coero, disciplinamento ou represso que da motivao do jovem, objeto da interveno. Pode-se afirmar, portanto, que o protagonismo juvenil seja um discurso que suscita no jovem a necessria motivao para ser integrado, na medida em que manifesta uma suposta posio de destaque da juventude diante do objetivo de uma certa mudana social e apela ao sentir-se til ou valorizao do indivduo que se prope a fazer coisas1, base das novas formas de poltica.

    Entre a juventude, as novas formas de poltica j vinham sendo anunciadas, em substituio ao decadente movimento estudantil, por diversos autores desde pelo menos a dcada de 80. As novas formas no seriam privativas dos jovens, mas estariam presentes na atuao dos mais diversos atores sociais e viriam ocupar o lugar da

    1 Conforme Bauman (2000), o homem padece de um medo fundamental, efeito da conscincia da prpria

    mortalidade. A transposio e o parcelamento desse medo existencial para nveis menores torn-lo-ia suportvel e mais fcil de ser enfrentado; e uma das maneiras de combat-lo seria justamente a atividade ou o fazer coisas. Escreve o autor: Na sua forma pura e bruta, o medo existencial que nos torna ansiosos e preocupados incontrolvel, intratvel e, portanto, incapacitante. A nica maneira de suprimir essa verdade horripilante dividir o grande medo esmagador em pedacinhos menores e controlveis reformular a grande questo (sobre a qual nada podemos fazer) num conjunto de pequenas tarefas prticas que podemos esperar realizar. Nada acalma mais o ser pavoroso que no conseguimos erradicar do que se preocupar e fazer algo a respeito do problema que podemos enfrentar (Bauman, 2000, p. 51-52).

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    poltica tradicional, baseada nas instituies da democracia representativa. Hoje em dia parece consensual a idia de que no s os jovens, mas todos os membros da sociedade estariam cada vez mais distantes da poltica nomeada tradicional. Alm das constantes acusaes de corrupo contra os membros do parlamento, partidos e sindicatos, outras razes tm sido apontadas para a apatia, conformismo e indiferena poltica, entre elas a

    incapacidade das democracias latino-americanas para diminuir as desigualdades (cf. RIBEIRO, 2003, p. 22) e a desiluso com as ideologias, segundo as quais a revoluo e a tomada do poder trariam a mudana social (cf. SINGER, 2005, p. 30-31; cf. CASTORIADIS, 2001, p. 32-33). Outros dois fatores interligados tambm tm sido apontados como explicao para a atual descrena na poltica: o esvaziamento dos poderes locais pelo fenmeno da globalizao e a predominncia dos interesses de mercado.

    Num mundo globalizado, em que as decises mais fundamentais para as sociedades e seus membros so tomadas em nveis fora do alcance dos governos e partidos

    nacionais, parece que o indivduo contemporneo tem razes para crer que no h possibilidade de mudana no atual estado de coisas pela via da poltica. A poltica nacional e local esvaziada, no s devido sua posio na hierarquia das instncias de poder (grandes corporaes transnacionais, organismos internacionais, cpulas dos pases desenvolvidos), mas tambm devido ao fato de que, em qualquer nvel ou instncia que seja, as decises submetem-se cada vez mais aos interesses do mercado (cf. OLIVEIRA e PAOLI, 2000; cf. BAUMAN, 2000, p. 80-81; cf. RIBEIRO, 2003, p. 30-31; IANNI, 1997; 1998). A poltica curva-se economia e s presses do mercado, o que a desqualifica e anula. As pessoas no acreditam que sua participao, individual ou coletiva, na poltica surta algum efeito para

    operar algum nvel de transformao na sociedade. Uma palavra que pode bem definir esse estado do indivduo contemporneo impotncia2.

    O pressuposto deste trabalho o estado de insatisfao com o mundo em que as pessoas encontram-se nos dias de hoje concomitante sua descrena na poltica como possibilidade de mudana. Mas tambm pressuposto que alguns (ou muitos) dos indivduos vm tentando quebrar o seu estado de isolamento e impotncia, procurando a participao no espao pblico, na tentativa de canalizar suas aspiraes de mudana social. Mas os meios de que dispem j no so os mesmos, uma vez que os projetos coletivos de transformao social

    2 Segundo Hannah Arendt, impotncia a incapacidade bsica de agir (ARENDT, 2000, p. 526), caracterstica

    de momentos em que as pessoas se retiram do espao pblico, que se enfraquece cada vez mais, configurando o que a autora denominou tempos sombrios. O seu oposto o poder, conforme Arendt (1999), a capacidade humana de agir, mas de agir de comum acordo (p. 123).

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    j no parecem possveis e os ideais de uma nova sociedade parecem cada vez mais distantes. A busca do espao pblico3 nos dias de hoje realizada por intermdio do modelo de poltica em foco neste trabalho e que o protagonismo juvenil prescreve para a juventude. Essa, portanto, a hiptese central do trabalho: a de que as atividades realizadas, especialmente pelas ONGs sob o mote do protagonismo juvenil, pretendem oferecer juventude um certo modelo de ao poltica. O argumento o de que a alternativa de participao prescrita pelo protagonismo tem, contudo, o efeito, no de promover a poltica, mas de anul-la.

    So pelo menos duas as maneiras pelas quais ocorre a anulao da poltica no discurso atual, inclusive na vertente do protagonismo juvenil: pela instrumentalizao da ao, reduzida atividade-meio com vistas a um objetivo material e quantificvel, e pela fabricao do consenso.

    Na nova forma de poltica, a mudana social seria resultado da atividade direta do indivduo, modelo que sups a transformao da prpria noo de mudana, agora

    concebida como alterao imediata e quantificvel de uma situao especfica, considerada negativa, e que atinge um nmero determinado de pessoas. Numa palavra, tal modelo valoriza o ativismo privado seja ele do indivduo, da empresa ou da ONG como meio de provocar a mudana.

    um tipo de participao baseada na atividade, em realizaes concretas, ou seja, em fazer. As atividades ou realizaes concretas, ou esse fazer, consistem, na maior parte das vezes, em trabalho no-remunerado em prol de um grupo determinado de pessoas, grupo em que se inclui, no raro, o prprio trabalhador, referido como voluntrio. Desse modo, fazer trabalho voluntrio eqivale a encontrar solues concretas para problemas reais e passa a ser identificado com participao cidad e cidadania. As instncias em que ocorre essa nova forma de participao no so os partidos, sindicatos ou movimentos sociais, portadores de ideologias desacreditadas, mas predominantemente as organizaes do terceiro setor, s quais tm sido creditada, segundo

    Ribeiro (2003), uma nova legitimidade baseada na constituio dos mais pobres como beneficirios de uma ao intensamente voluntria (p. 29).

    3 A expresso de Bauman (2000), que reflete sobre a condio dos indivduos contemporneos (solitrios,

    amedrontados e inseguros) e a possibilidade de partilharem sua misria sofrida em particular, gerando idias que indiquem uma mudana na sociedade. Ou seja, Bauman (2000) reflete sobre a possibilidade do indivduo contemporneo aplacar seu medo, solido, incerteza e insegurana, saindo de seu isolamento em busca do espao pblico.

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    O trabalho dito voluntrio no novidade dos dias atuais: ao longo dos

    sculos vm sendo realizado e sustentado por motivos religiosos, ticos, humanitrios ou mesmo polticos. O voluntariado contemporneo, por sua vez, distingue-se, especialmente, pelo fato de ser apresentado como caminho para a mudana social, papel que antes cabia poltica. Meio para se atingir um fim predeterminado e quantificvel a mudana , o fazer trabalho voluntrio funde-se com uma noo igualmente transformada de cidadania, e ambos convertem-se numa forma de participao social cujo princpio a racionalidade prpria do mercado. A fuso trabalho voluntrio/cidadania operacionaliza-se por meio do projeto, principal estratgia pedaggica e de atuao das organizaes do terceiro setor, que busca os

    meios mais eficazes para a consecuo de um fim. Pode-se afirmar que na nova forma de poltica, dominada pela instrumentalidade e racionalidade do mercado, o agir, que introduz o novo, lembrando uma vez mais Hannah Arendt, foi substitudo pelo fazer, que acrescenta artefatos ao mundo.

    Alm da prescrio do fazer como modelo de participao, a anulao da poltica ocorre pelo consenso forjado pelo discurso. O discurso atual no probe as pessoas de falarem pela represso direta ou coero, mas, pelo contrrio, alimenta a repetio infinita e tautolgica. Hoje em dia, h ampla liberdade de expresso, mas pode-se dizer, tomando de emprstimo as palavras de Castoriadis (2001), que uns e outros dizem a mesma coisa (p. 26). Ou seja, os perigos da ampla liberdade de expresso so conjurados por uma peculiar operao do discurso: noes bsicas da vida pblica, construdas no exerccio da poltica e/ou em outros quadros de referncias, em outros campos explicativos direitos, cidadania, juventude, ONG, sociedade civil, mudana, entre outras tantas so apropriadas e ressignificadas. Conceitos e objetos so transformados; teorias, autores, princpios, idias e representaes dspares so reunidos num mesmo argumento; e produzido um lxico, em que novos termos so incorporados, alguns, descartados e outros, adequadamente ressignificados. Ressignificadas, as noes so apresentadas como naturais e a-histricas,

    como se emanassem da prpria realidade imediatamente verificvel, podendo, desse modo, retroagirem ao passado e universalizarem-se no presente, em que os conflitos so omitidos e as incongruncias, afastadas. O campo semntico construdo de tal forma que no possvel (ou pelo menos, muito difcil) a produo de um contra-discurso oriundo de foras sociais contrrias ao consenso fabricado.

    O consenso no , pois, concordncia, mas fruto de uma operao do discurso, que se apropria e incorpora discursos precedentes, atribuindo-lhes, no entanto,

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    outros sentidos e significados4. Com isso, o discurso controla os termos do debate e estende-

    se pelos mais variados setores da sociedade: rgos governamentais, empresrios, trabalhadores, meios universitrios e intelectuais, organizaes do terceiro setor e assim por diante. Esquerda e direita, se que ainda faz sentido a classificao das foras polticas nesses termos, compartilham o mesmo discurso, fato que contribui para aproxim-las ainda

    mais (cf. ARANTES, 2004). Foi justamente em vista da sucesso de governos eleitos que guardavam poucas diferenas entre si e reproduziam as mesmas polticas, que Castoriadis, em entrevista a Daniel Mermet, em 1996, falava da insignificncia da poltica, porque uns e outros dizem a mesma coisa (CASTORIADIS, 2001, p. 25-26).

    O consenso no abre espao para a resistncia ou oposio, pois no permite a fala autnoma e transgressora. A nova forma de poltica, baseada no consenso, no supe um espao pblico onde homens livres, na sua pluralidade de pontos de vista, possam se encontrar e ensejar o debate, a discordncia, a contestao, a reivindicao e a transgresso do estabelecido. A fala torna-se incua e impotente, pois no consegue se fazer acompanhar pelo poder de interveno no mundo, isto , da capacidade de agir. Pode-se afirmar, portanto, que a nova forma de fazer poltica no permite, justamente, a alterao do rumo dos eventos e a inaugurao do novo, interditando a mudana e, em ltima instncia, a histria.

    Este trabalho defende o argumento de que o discurso do protagonismo juvenil prescreve essa nova forma de poltica, baseada na execuo de atividades em benefcio do prprio indivduo e dos outros, e mediante a qual ocorre a integrao social da juventude. A prescrio, no entanto, no ocorre por meio de um discurso que estabelece a regra e a impe a todos aqueles que esto fora dela. O discurso no se apresenta como emissor

    4 No discurso educacional contemporneo, p.ex., tem sido comum a estratgia discursiva de amenizar e/ou

    ocultar as diferenas entre autores de linhas tericas incompatveis de modo que estes passem a conviver no interior de um mesmo modelo explicativo; entre tantos casos, pode-se citar a aproximao, num certo momento do discurso construtivista, entre Vigotski e Piaget, o primeiro, psiclogo marxista do desenvolvimento e o segundo, naturalista e bilogo formulador da epistemologia gentica. Tal aproximao foi criticada por Duarte (2001), que identificou nesse e em outros casos o que denominou pragmatismo ecltico: estratgia ideolgica, segundo ele, que despreza as diferenas entre teorias, apresentadas como quimeras sem importncia, para privilegiar a adoo de solues imediatas para problemas imediatos pelos profissionais e pesquisadores em educao (p. 177-78). Segundo Duarte (2001), tal estratgia visa tambm construir um ambiente de diluio dos antagonismos de modo a propiciar a aceitao consensual e acrtica de idias alinhadas com os atuais interesses do capitalismo, que o autor identifica com os iderios neoliberal e ps-moderno (p. 112-13). Sob diferentes perspectivas, outros autores tambm j trataram da aproximao e diluio das diferenas entre teorias, conceitos e idias originalmente incompatveis, e no s no discurso educacional. Um deles Revah (2004), que fez uma anlise do percurso do construtivismo, apontando a incorporao dos nomes de Paulo Freire, Freinet, Vigotski entre outros, pelo discurso. Por sua vez, Montao (2002) examinou os diversos conceitos e autores apropriados pelo que denomina debate ideolgico sobre o terceiro setor, entre eles o conceito de sociedade civil de Gramsci, identificado, naquele debate, com o conceito de terceiro setor (ver especialmente p. 120-34).

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    da regra, apresentada como algo exterior que se aplica ao objeto do discurso. A prescrio ocorre por meio da prpria atividade. a atividade do prprio jovem protagonista, objeto de interveno, que se encarrega de confirmar e materializar o discurso. A atividade em questo o fazer coisas ou a prestao gratuita de bens e servios, tambm nomeada trabalho voluntrio. O fazer coisas ocupa o lugar da cidadania, com ela se confunde e oferece uma alternativa saudvel de participao juvenil. Participao, cidadania e trabalho voluntrio eqivalem-se e so definidos, todos, pela atividade.

    Na nova forma de poltica, no h protesto, mas cooperao, e no h criao, mas criatividade na execuo de projetos em busca de solues para problemas; o conflito omitido pelo consenso, e o poder desconhecido (expresso usada por FORACCHI, 1972, p. 105 em referncia ao movimento estudantil) anulado pela atividade para a consecuo de um objetivo previamente fixado. Numa palavra, a nova forma de poltica no modalidade de rebelio juvenil, mas constitui mecanismo de integrao da juventude5.

    Embora tenha se mantido o ttulo inicialmente fixado para este trabalho, cabe esclarecer que o objeto de estudo aqui no exatamente o discurso do protagonismo juvenil. O protagonismo juvenil est sendo tomado como dos enunciados possveis de um discurso que prescreve um certo modelo de participao poltica, no s para a juventude, mas para todos os segmentos da sociedade. Identificou-se uma matriz discursiva ou, em outros termos, um discurso explicativo do social, que concebe a sociedade como um aglomerado de atores sociais. Um discurso que homogeneiza o social na medida em que oculta as divises de classe ou quaisquer outras: a sociedade seria composta por tomos, entre os quais no haveria

    relaes de dominao, de poder ou explorao, mas relaes de negociao. Grosso modo, o ator social seria aquele indivduo que, visando a consecuo de interesses particulares, estabelece relaes de negociao com os outros indivduos ao mesmo tempo em que realiza atividades que beneficiam a si prprio e a esses outros. Essa maneira de conceber a sociedade

    5 Certamente no a primeira vez na histria que a prestao gratuita de servios colocada como alternativa de

    participao juvenil. No Brasil, alm da violncia e represso, uma das maneiras do regime autoritrio enfrentar a ameaa do radicalismo juvenil dos anos 60 foi o Projeto Rondon. Vrios autores apontam o objetivo no-declarado do Projeto Rondon de direcionamento do comportamento e da participao juvenis (cf. SILVEIRA, 1987). Interessante observar que o Projeto Rondon foi reeditado, em janeiro de 2005, como uma das medidas que fazem parte das recentes polticas pblicas de juventude. Por outro lado, tambm na sociologia pode-se encontrar a referncia prtica do bem como mecanismo para prevenir o radicalismo, estabelecendo uma alternativa sustentvel, um fac-smile, para os jovens de tendncias belicosas e idealistas (MATZA, 1968, p. 105). Tudo indica que o protagonismo juvenil, tal como seus antecessores, tambm promove a integrao da juventude, mas deles se distingue, sobretudo, pela presena de um especfico discurso de poder, de cuja anlise este trabalho pretende se ocupar.

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    como um aglomerado de indivduos, cuja sobrevivncia depende de sua atividade e capacidade de negociao, foi identificada neste trabalho como o discurso que tem fornecido as bases para organismos internacionais, rgos governamentais, organizaes do terceiro setor, acadmicos, empresrios e outros segmentos sociais explicarem a vida em sociedade e produzirem suas interpretaes a respeito. Dessa intensa produo discursiva emergem

    enunciados diversos, nem sempre compatveis entre si, mas que se prestam a reafirmar a matriz inicial. Resilincia, empoderamento, capital social, empreendedorismo so alguns desses enunciados, alm daquele dirigido diretamente juventude e que objeto deste trabalho, o protagonismo juvenil.

    O enunciado protagonismo juvenil, portanto, foi considerado como via de acesso a um discurso que prescreve juventude a nova forma de participao, prpria dos atores sociais, indivduos que, isoladamente, defendem interesses pessoais e trabalham pela sua materializao a partir de um diagnstico das possibilidades abertas pelas circunstncias e

    da negociao com os outros atores igualmente portadores de interesses particulares. A emergncia do protagonismo juvenil foi possvel graas a essa matriz discursiva ou discurso sobre o social que se utiliza da metfora teatral para explicar a sociedade: um elenco de atores em negociao num espao pblico concebido e nomeado como cenrio. Este trabalho

    defende a hiptese de que essa nova forma de poltica, nomeada por uma metfora teatral, , sim, simulacro ou encenao.

    O ator social por excelncia a organizao no-governamental (ONG). Alis, tambm o termo ONG passou por um processo de construo e reconstruo de significado nas ltimas duas dcadas. Hoje ONG a instncia que faz a intermediao entre os indivduos e o cenrio pblico, oferecendo-lhes um canal de participao. A realizao do objetivo de integrao da juventude pobre coube, em grande parte, s ONGs que tm se dedicado chamada educao no-formal. E no cumprimento da mais importante finalidade da educao no-formal a transformao do jovem em ator social as ONGs tornaram-se as principais produtoras e reprodutoras do discurso do protagonismo juvenil.

    O protagonismo juvenil, portanto, um discurso de adultos, produzido e compartilhado pelos organismos internacionais, rgos governamentais, ONGs, empresrios e educadores, ou seja, pelos adultos que se dedicam integrao da juventude, considerada objeto de interveno. O jovem protagonista objeto e no sujeito de polticas e medidas governamentais e no-governamentais. Seu poder para agir limita-se aos aspectos tcnicos e execuo dos projetos e polticas pblicas. Os critrios tcnicos (supostos reflexos diretos da

  • 16

    realidade) esvaziam o poder de interveno dos agentes, reduzindo-os a instrumentos de uma racionalidade apresentada como objetiva, e a execuo de projetos e medidas eqivale ao fazer, atividade que acrescenta coisas ao mundo, mas no interfere no seu curso. Embora evoque as idias da distino e do destaque, e funcione, certas vezes, como uma espcie de smbolo de avano pedaggico, poltico ou social, o protagonismo juvenil um simulacro, posto que o jovem do discurso no sujeito.

    Entretanto, trata-se de um discurso em que o sujeito social da enunciao no se distingue do objeto, anulando a distncia entre aquele que fala, seja qual for o lugar em que se situe, e o outro (LEFORT, 1990, p. 318). Ou seja, como se o prprio objeto de discurso a juventude encarnasse o discurso sobre si mesma ou, em outras palavras, como se a explicao de uma suposta realidade estivesse auto-evidente, impressa nessa realidade. A anulao da distncia entre a suposta realidade e o discurso no permite a visibilidade do discurso como discurso; entre outras palavras, o protagonismo juvenil no se deixa exibir como discurso e se apresenta como se fosse a prpria realidade das coisas. A no exibio como discurso, torna ainda mais difcil a contraposio e a crtica ao protagonismo juvenil.

    Em linhas gerais, tais so as reflexes a respeito do protagonismo juvenil que devem ser desenvolvidas ao longo deste trabalho. A inteno primordial identificar o

    enunciado protagonismo juvenil como aquele que conseguiu aglutinar noes, objetos e outros enunciados, e passou a designar um discurso que prescreve uma nova forma de participao para a juventude. Na nova forma, a poltica funciona como mecanismo de integrao, posto que o jovem no sujeito, mas objeto da interveno. Espera-se delimitar o discurso aglutinado e designado pelo enunciado protagonismo juvenil, localizando-o especialmente numa encruzilhada discursiva, ponto de convergncia entre os discursos: do empresariado e da iniciativa individual; do terceiro setor e, no seu interior, do voluntariado e da solidariedade; e da valorizao da educao como soluo dos problemas nacionais.

    Conceitos e objetos de discurso no so entidades categoricamente firmadas e fixadas, mas resultantes do movimento do discurso em meio s disputas de poder. E assim que se abre a possibilidade de analisar a transformao de significados e a atribuio de novos sentidos s noes que fundamentam a vida em sociedade. Este trabalho espera descrever as noes que fazem parte do discurso do protagonismo juvenil, identificando suas condies de emergncia e produo. Espera, especialmente, identificar as metamorfoses de algumas das categorias importantes da nossa vida social como juventude, educao, cidadania, sociedade civil, participao e poltica.

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    O discurso, portanto, no se apresenta como algo discernido, pronto e

    acabado ao pesquisador uma vez que no um conjunto delimitado de textos, mas uma prtica social com um movimento prprio. O discurso tambm no esconde uma essncia, algo que deva ser desvendado; ele no uma aparncia sob a qual pode ser descoberta a verdade. Este trabalho props-se a examinar o protagonismo juvenil, no em profundidade, na busca de origens e essncias ocultas, no-ditos que deveriam enfim ser ditos, mas interrogando-o sobre suas condies de possibilidade, contradies e sobre seu movimento de articulao e transformao. Desse modo, este trabalho props-se a descrever o discurso, isto , identificar seus elementos, contradies e condies de produo, e no pretendeu coment-

    lo. No se props a esclarecer ou repetir algo j dito pelo discurso, mas ao mesmo tempo mantido apenas implcito. A descrio do discurso no supe uma inteno secreta ou algo no dito que carea de explicao ou comentrio (cf. FOUCAULT, 2001a, p. 21-26).

    Uma vez que o discurso no algo fixado de antemo, dele podem ser

    recortados e analisados diferentes estados (cf. ORLANDI, 2002, p. 62). Por conseguinte, o trabalho proposto aqui exigiu a constituio de um corpus, ou seja, o recorte de amostras de regularidades enunciativas que viessem a construir o discurso. Em outras palavras, foi estabelecida uma amostra dos textos que materializaram o discurso em questo e por meio da

    qual foi possvel ter acesso a ele (cf. ORLANDI, 2002). Tal amostra comps-se de material escrito (flderes, livros, textos divulgados via Internet, publicaes diversas), devidamente referenciado ao longo deste volume e produzido, principalmente no perodo 1985-2005, por organismos internacionais (especialmente CEPAL e UNESCO), organizaes no-governamentais brasileiras e autores (pedagogos, socilogos, psiclogos) que vm escrevendo sobre juventude, educao e polticas pblicas. Da materialidade dos textos, dos dados empricos, pretendeu-se a construo de um objeto terico.

    Por outro lado, os efeitos sociais do protagonismo juvenil as maneiras de ser, pensar e agir estabelecidas pelo discurso e que fundamentam subjetividades e relaes sociais devem ser objeto de anlise apenas na medida em que puderem ser detectadas no interior do prprio discurso. Ou seja, este estudo no se volta para os depoimentos, comportamento e subjetividade do jovem protagonista, aquela figura por meio da qual o indivduo supostamente se inscreve no discurso protagonismo juvenil. Tambm no feita uma investigao sobre as prticas das organizaes que trabalham com educao de jovens. O alcance da amostra discursiva em questo to-somente o discurso escrito, adulto e institucionalizado do protagonismo juvenil.

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    Em ltima instncia, o discurso tambm inesgotvel uma vez que tem

    relaes com outros, predecessores, contemporneos e sucessores. Concomitante interrogao sobre o movimento interno do discurso, tentou-se, ao longo deste trabalho, estabelecer pontos de confronto do protagonismo juvenil com outros discursos, precedentes e contemporneos, que lhe estabelecem limites e lhe oferecem possibilidades. Assim, as noes

    centrais do protagonismo juvenil so, ao longo deste volume, confrontadas com suas antecessoras ou com noes distintas acerca dos mesmos objetos ou de objetos igualmente transformados. Ou seja, as noes do protagonismo juvenil so confrontadas com outras noes construdas em quadros tericos e/ou histricos distintos. Assim, este trabalho

    menciona o conceito de ao de Hannah Arendt, a idia de poltica como contestao, uma certa definio de cidadania ativa, a defesa da educao como transmisso de contedos, para citar apenas alguns exemplos. Tais noes, historicamente construdas, no devem ser tomadas como parmetros definitivos de verdade para julgar a validade ou o grau de mentira e iluso do discurso em questo, mas como contrapontos. Diante de um discurso consensual, cujo campo semntico no permite a palavra transgressora, buscou-se identificar alternativas possveis ao consenso, ainda que derivadas de outras matrizes discursivas. De acordo com o princpio de que a crtica no seria possvel a partir de uma situao de completo

    envolvimento com o objeto, buscou-se, pois, uma posio de afastamento, uma posio relativamente exterior ao discurso em questo, que marcasse a diferena em relao a ele. Buscou-se evidenciar, no protagonismo juvenil, o seu carter de discurso, passvel, portanto, de contraposio.

    Um dos fatores que tornou possvel o discurso do protagonismo juvenil foi a transformao fundamental da prpria noo de juventude, que hoje inclui tanto os universitrios, quanto os estudantes de nvel mdio e os no-estudantes, de todas as classes e grupos sociais. O radicalismo poltico definia o jovem da dcada de 60, comportamento possvel apenas ao estudante universitrio, proveniente das camadas mdias da populao.

    Assim, a idia de poltica tomou parte da prpria constituio da categoria jovem e, conforme o argumento deste trabalho, continua orientando o discurso sobre juventude. Desde o arrefecimento do movimento estudantil, elevado a movimento ideal de juventude, no poucos autores seguiram tentando identificar as novas formas de poltica nas manifestaes juvenis. possvel afirmar que o discurso do protagonismo juvenil seja uma resposta expectativa adulta de reencontro da juventude com a poltica, porm, de uma juventude ampliada em

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    termos de faixa etria e origem social que faz uma poltica tambm transformada. Essa discusso o tema do Captulo I deste trabalho.

    O Captulo II detecta a emergncia do enunciado protagonismo juvenil em meio s propostas de polticas de integrao da juventude elaboradas pelos organismos internacionais. Identificada a matriz discursiva que define a atuao do ator social, o Captulo

    segue argumentando a respeito do carter de encenao da nova forma de poltica.

    J a execuo dessas polticas de integrao tem ficado a cargo predominantemente do terceiro setor, tema do Captulo III. A descrio do discurso do protagonismo juvenil tal como se apresenta nos textos das organizaes no-governamentais e na legislao brasileira pretende identificar seus limites e possibilidades de xito. Enquanto a afirmao do protagonismo juvenil, em ltima instncia, torna visvel seu carter de discurso e a encenao da poltica, modificaes recentes incorporaram um lxico (em que se inclui, por exemplo, o sujeito de direitos) que forja o consenso e impede a contestao.

    O instrumento de que tem se utilizado o terceiro setor para a integrao da juventude tem sido, predominantemente, a educao e seus projetos. A valorizao da educao no-escolar ou no-formal, como tem sido chamada, e que inclui uma pedagogia social, coerente com a concepo de educao ao longo de toda a vida preconizada pela

    UNESCO e presente nos Parmetros Curriculares Nacionais. pela educao que se pretende desenvolver as habilidades necessrias ao ator social contemporneo, especialmente aquelas agrupadas sob o mote aprender a aprender: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. A concepo em questo estabelece uma oposio entre teoria e prtica, privilegiando a segunda em detrimento da primeira. Sua principal estratgia o

    projeto, instrumento que busca a soluo mais eficaz para um problema predeterminado e circunscrito. A concepo de educao presente no protagonismo juvenil tema do Captulo IV.

    J o Captulo V pretende salientar a tautologia do discurso que tudo define

    segundo um denominador comum: a atividade. Pretende destacar a equivalncia entre fazer e prestao gratuita de servios, ou seja, a equivalncia entre trabalho voluntrio, cidadania e poltica. Assim, a educao para a cidadania proposta pelo protagonismo juvenil , em ltima instncia, treinamento prtico para uma cidadania concebida como atividade

    individual, passvel de aprendizado. E o jovem cidado/ator social/protagonista a figura para a qual convergem o usurio e o prestador de servios.

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    A emergncia do protagonismo juvenil como um discurso que prescreve sobre a participao poltica da juventude conduz necessariamente a uma discusso sobre o poder na sociedade contempornea. Hoje em dia, o poder tende a no mais se exercer pela coero e pelo controle direto dos corpos, como o poder disciplinar. No que este tenha desaparecido totalmente e no se encontre em algumas instituies ou setores sociais; mas

    certo que no a rgida disciplina que vem operando nas engrenagens da sociedade. Atualmente, o poder parece menos palpvel, menos materializvel, menos exterior, mas no menos presente e potente. O discurso encarnado na atividade no s, mas , tambm, instrumento privilegiado do poder contemporneo. Tal argumento encerra o trabalho.

    Finalmente, cabem um esclarecimento e uma escusa ao leitor. O primeiro diz respeito s referncias, ao longo deste trabalho, a cada um dos autores dos textos analisados. Por um lado, so pessoas ou organizaes que efetivamente escreveram, assinaram e tornaram pblicos os seus textos, motivo pelo qual encontram-se aptas a

    receberem os devidos crditos. Seus textos so singulares, uma vez escritos por indivduos singulares. Mas ao mesmo tempo, entende-se aqui que o discurso atravessa os textos individuais, por vezes dominando-os completamente e por outras, apenas em parte (FOUCAULT, 1987, p. 160). O discurso um produto coletivo, ou seja, emerge graas existncia de discursos predecessores e contemporneos, alm de circunstncias relacionadas s disputas de poder e ao movimento do prprio discurso na sua tarefa de dissimulao. Isto , embora indivduos e organizaes sejam devidamente identificados, ao longo deste trabalho, como aqueles que efetivamente subscreveram os textos em anlise, cada um deles eles no pode ser considerado como autor de um discurso absolutamente original e nico, princpio

    que se aplica, inclusive, a este pesquisador (cf. FOUCAULT, 2001a, p. 26-29).

    Cabe pedir escusas ao leitor pela quantidade de transcries ao longo deste volume. Embora haja o risco de uma leitura cansativa ou montona, as transcries justificam-se pela tentativa de oferecer ao leitor algum contato direto com o exerccio do discurso, ou seja, a maneira pela qual ele constantemente produzido e transformado, de modo a ocultar sua determinao de discurso do poder. Assim, espera-se exibi-lo tal como ele , ou seja, um discurso, o que talvez permanecesse obscurecido pela intermediao do pesquisador.

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    CAPTULO I EM BUSCA DE NOVAS FORMAS DE POLTICA

    Este Captulo pretende colocar em evidncia dois suportes do discurso do

    protagonismo: alm da hipervalorizao da situao juvenil, a aliana entre uma noo ampliada de juventude e uma noo limitada de poltica. Para tanto, traa um breve retrospecto das transformaes de significado e de sentido ocorridas com a noo da juventude na produo acadmica, especialmente na sociologia, do Brasil nos ltimos 40 anos.

    Na dcada de 60, os estudos concebiam o jovem como agente poltico, com um papel no processo do desenvolvimento do pas, com capacidade de interveno numa sociedade em crise. Com o arrefecimento do movimento estudantil, transformado em mito e

    referncia de ao poltica de juventude, o discurso acadmico (mas tambm o no acadmico) passou a registrar a alienao da Gerao AI-5. No entanto, permanece o mito do jovem como agente poltico: durante as dcadas de 80 e 90, at os dias de hoje, os pesquisadores seguem reagindo imagem de apatia, individualismo e conformismo juvenis, e vm procurando a ao poltica na juventude. O protagonismo juvenil resposta a essa procura.

    Juventude e poltica

    A juventude, como fase de preparao e transio para a vida adulta, foi uma inveno da sociedade moderna. Isto porque em sociedades mais complexas como a

    industrial, com acentuada diviso do trabalho e diferenciao social, a socializao efetuada pela famlia no suficiente para integrar o indivduo sociedade. Tal integrao supe um tempo mais ou menos longo de preparao para as responsabilidades e tarefas do mundo adulto, resultando num adiamento da maturidade social. A preparao para a vida adulta ficou

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    a cargo de instituies como a escola que, ao segregar ainda que parcialmente as novas

    geraes em formao, certamente contribuiu para o reconhecimento social da existncia da juventude (cf. ARIS, 1981). Durante essa fase de preparao e de relativa segregao do mundo adulto, os grupos de pares (os colegas de escola, amigos ou agrupamentos maiores) exercem importante papel na formao da personalidade e na definio do comportamento

    juvenil. Como fase de transio em direo autonomia da vida adulta, a juventude

    no ocorre sem contradies. A maior delas talvez seja a prpria situao juvenil: etapa da vida em que o indivduo j alcanou as condies fsicas e biolgicas para assumir certos papis e tarefas que, por seu turno, ainda lhe so negados pela sociedade (cf. FORACCHI, 1982d, p. 26). Nesse sentido, a juventude j foi apontada pela sociologia como uma fase de suspenso da vida social, em que os jovens ainda no exercem as funes produtivas e reprodutivas e no tm acesso ao poder, momento de negao do pleno usufruto de direitos e

    da total responsabilizao pelos deveres sociais. Do mesmo modo, juventude tambm j foi definida como uma situao de moratria em que uma certa relativizao das normas sociais sobre o comportamento dos jovens abre a possibilidade da experimentao (ABRAMO, 1994, p. 1-53).

    As dificuldades do indivduo em crescimento diante de situaes contraditrias fizeram com que a crise noo que traz consigo a possibilidade de ruptura se tornasse um tema freqente nos estudos de juventude. Assim, a psicologia tem se ocupado da crise da adolescncia, desencadeada a partir do fenmeno da puberdade, fase de transformaes biolgicas e psquicas, momento de tenses, incertezas e inseguranas em que

    o indivduo comea a se defrontar com o mundo adulto e compelido a elaborar respostas ao fato de estar situado em certa cultura, nesta ou naquela classe social, no sexo masculino ou feminino etc.

    Na sociologia, o fenmeno social da crise da juventude extrapolou a noo psicolgica de crise da adolescncia. Mesmo que considerados seus determinantes sociais, a crise da adolescncia ainda um fenmeno vivido pelo indivduo, diferentemente da crise da juventude, cujas manifestaes grupais dirigem-se sociedade toda (LAPASSADE, 1968). Na sociedade americana do segundo ps-guerra, a juventude foi considerada uma situao especialmente vulnervel revolta ou rebelio, cujas verses extremas, adotadas por uma parcela minoritria da populao jovem, segundo Matza (1968, publicado originalmente em 1961), so a delinqncia, o radicalismo e a bomia. A crise e

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    seus desdobramentos especialmente a nomeada rebeldia, rebelio ou revolta

    transformaram-se em componente importante do interesse das cincias humanas e da sociedade em geral pela juventude. A juventude, inveno da sociedade moderna, na dcada de 50 j era considerada uma ameaa estabilidade social, um problema que carece de investigao e interveno.

    Martnez e Valenzuela (1986) observam que a produo sociolgica latino-americana sobre juventude teve como elemento central a classificao do comportamento juvenil em termos de rebeldia ou conformismo em relao aos processos de mudana social. Especialmente do segundo ps-guerra at fins dos anos sessenta, a referncia para tal

    classificao foram os projetos de modernizao e desenvolvimento dos pases latino-americanos, sendo o conformismo identificado com a sociedade tradicional e suas estruturas oligrquicas, rigidez de normas e valores, pequena mobilidade social e grande desigualdade. Conforme Falleto (1986), os jovens estudantes latino-americanos, portadores da nova cincia e da nova tcnica, consideravam-se os promotores do processo de transformao e desenvolvimento (p. 187) e foram, por conseguinte, os principais porta-vozes da ideologia do desenvolvimento (p. 188).

    Numa segunda fase, quando o projeto modernizador e desenvolvimentista j se mostrava insatisfatrio em relao s expectativas de crescimento econmico, reduo das desigualdades e maior integrao social e poltica de parcelas marginalizadas da populao, a referncia para a interpretao da ao no s dos movimentos estudantis, mas de diversos grupos sociais, deslocou-se para as diferentes possibilidades de reorientao do desenvolvimento (MARTNEZ e VALENZUELA, 1986; FALLETO, 1986). A sociologia funcionalista latino-americana freqentemente interpretou a rebelio juvenil como decorrncia de uma situao de anomia, em que no teria havido uma adequada internalizao dos papis sociais pelos jovens. Conforme Martnez e Valenzuela (1986), as situaes anmicas foram identificadas, como se disse, em relao aos processos de mudana social: de

    incio, nos marcos da transio sociedade tradicional sociedade moderna e, posteriormente, tendo em vista as dificuldades impostas s populaes pelos projetos de desenvolvimento (alguns autores balizando-se pelo eixo excluso-incluso, segundo FALLETO, 1986).

    Por outro lado, Foracchi (1972), pioneira nos estudos sobre juventude no Brasil, no atribui a rebelio juvenil s falhas de socializao, responsveis pelos desvios dos jovens, conforme a corrente funcionalista, nem identifica o conflito (de valores ou de geraes) como seu contedo bsico. Tal como Lapassade (1968), Foracchi (1972) identifica

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    uma crise da adolescncia, marcada pelo conflito de geraes e mais restrita ao plano das

    relaes pessoais, e uma segunda crise, em que a sociedade, em suas dimenses cultural, poltica, econmica etc., passa a ser o alvo da contestao. na juventude que o indivduo encontra-se, de fato, diante das opes de vida oferecidas pelo sistema e deve, portanto, decidir sobre o tipo de adulto que quer ser. Uma vez que as opes so parcas ou esto em

    desacordo com os ideais e valores cultivados pelo jovem que, por sua vez, no v aceitos os seus esforos de criao, busca e improvisao, a contestao do mundo adulto extrapola o plano das geraes e atinge todo o sistema.

    Para Foracchi (1972), o fator fundamental e subjacente rebelio juvenil a rejeio da condio adulta (p. 27), tal como imposta pela sociedade e nos limites da qual o jovem deve realizar suas escolhas. Continuamente exposto e particularmente sensvel s contradies da sociedade, o jovem se rebela, no contra os valores bsicos que fundamentam a convivncia humana, mas contra o fato de que tais valores, inviabilizados pelas

    possibilidades reais que se apresentam, j se encontrarem desgastados pelas normas externas e no mais orientarem a conduta adulta (FORACCHI, 1972, p. 27-29; 74; IANNI, 1963, p. 167-68; 174).

    A rejeio ou recusa pode originar, conforme Foracchi (1972, p. 34-35), dois tipos de comportamentos o alienado ou o radical definidos em termos do nvel de conscincia das contradies do sistema social e do grau de engajamento em prol da mudana. Em ensaio que se tornou clssico, tambm IANNI (1963) se ocupa do comportamento radical, produto de uma conscincia peculiar da condio social do prprio jovem, da sua situao de classe e da sociedade global (p. 160), chamada conscincia de alienao, e resultado de uma relao de negatividade com o presente (p. 163).

    , portanto, sob a perspectiva da luta de classes que a sociologia no Brasil (aqui citados Foracchi e Ianni) identificou a crise de juventude como reflexo de uma crise de toda a sociedade, ou crise da sociedade em mudana, que repercute de maneira diferente nos

    diversos setores, afetando adultos e jovens6. Estes, devido a sua particular situao, formariam o contingente mais suscetvel s contradies e, por conseguinte, o mais diretamente atingido

    6 Conforme Foracchi (1982d): falso e artificial dizer que existe um conflito de geraes, no qual o bloco dos

    jovens se ope ao bloco dos mais velhos. No h luta entre as geraes ou algo que no plano biolgico fosse equivalente luta de classes, por exemplo. H, sim, um estado de perplexidade social que atinge indistintamente os jovens e os adultos. H uma sociedade em crise, pouco capaz de solucionar os problemas que ela mesma criou. Todos os indivduos so afetados por esse estado em que se encontra a sociedade (p. 26). Conclui a autora: Afinal, no tem cabimento indagar o que est acontecendo com essa juventude, e sim investigar o que acontece com essa sociedade, que produz jovens que a rejeitam to fortemente (FORACCHI, 1982d, p. 28).

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    pela crise, assim como as instituies encarregadas de sua socializao, a famlia e a

    universidade. Assim, Foracchi (1972) considera a juventude como a categoria social sobre a qual inflete, de modo particular, a crise do sistema (p. 11) e os jovens como os agentes da mudana social (p. 39).

    O comportamento radical se organizaria sob a forma de movimento social

    no movimento estudantil, entendido por Foracchi (1982a) como o produto das contradies e tenses constitutivas da sociedade como um todo. Desse modo, a autora interpreta o movimento estudantil no Brasil como o resultado do conflito entre a emergente classe mdia, frustrada na sua aspirao de ascenso social num pas subdesenvolvido e dependente, e os

    setores dominantes resistentes modernizao (FORACCHI, 1982a, p. 39-42). Guilhon Albuquerque (1977), por sua vez, afirma que o movimento estudantil foi a manifestao da proletarizao das camadas mdias urbanas que, seduzidas pela burguesia industrial, ao mesmo tempo aspiravam a um controle maior sobre o processo de industrializao. Foracchi

    (1972, 1982a) e Guilhon Albuquerque (1977) convergem, portanto, ao identificar no movimento estudantil uma orientao para a industrializao. A ideologia subjacente ao movimento no seria revolucionria, fundada numa proposta de transformao radical da sociedade, como faziam crer os pronunciamentos e documentos estudantis, mas sim de

    afirmao social, no sentido de ampliar e aperfeioar as possibilidades de mobilidade e ascenso (FORACCHI, 1982b).

    O aspecto central do movimento estudantil, reconhecido por diversos autores, foi a sua politizao:

    ... nenhuma organizao, sindical ou no, dos meios urbanos, experimentou essa politizao de todos os aspectos e de todas as atividades, tal como ocorreu com o movimento estudantil. Nenhuma outra organizao pde exercer uma influncia to completa sobre todos os aspectos da experincia de seus membros. (GUILHON ALBUQUERQUE, 1977, p. 138)

    Para Ianni (1963), a ao poltica parece decorrer quase automaticamente do desenvolvimento da conscincia de alienao pelo jovem: No instante em que a conscincia das contradies inerentes situao se estrutura, o jovem passa a canalizar politicamente a sua ao, transformando-se em agente dinmico da histria (p. 171). Foracchi (1982c), por sua vez, afirma que, no Brasil, o movimento estudantil definiu seu papel poltico ao reconhecer que a prpria condio de estudantes impunha-lhes um posicionamento diante dos problemas do subdesenvolvimento; o movimento teria assumido,

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    assim, o que considerava a sua responsabilidade histrica e teria fixado o engajamento como requisito para a ao (p. 32).

    O movimento estudantil foi considerado a forma predominante da rebelio juvenil na sociedade moderna (FORACCHI, 1972, p. 11) e uma das nicas (para no dizer a nica) foras vivas atuantes na sociedade brasileira do presente (FORACCHI, 1982a, p. 43), expresso nica de vitalidade poltica (FORACCHI, 1982a p. 48); a politizao foi considerada como o principal meio de expresso dos problemas da juventude numa situao de mudana social (FORACCHI, 1972, p. 84). Por outro lado, o movimento foi considerado adulto, uma vez que sua contestao utilizava argumentos e alternativas polticas e

    ideolgicas que, embora reprimidas, haviam sido geradas e modeladas pelo prprio sistema. Ou seja, um movimento que contestava o mundo adulto em termos adultos, posto que polticos (ao contrrio do movimento hippie, por exemplo, citado por FORACCHI, 1972, p. 89-93).

    Em suma, a juventude para a sociologia dos anos 60 e 70 no Brasil constituiu-se em categoria social e histrica, a que se atribuiu um papel poltico. Na sociedade moderna que pode ser considerada uma situao de crise permanente, conforme Lapassade (1968, p. 117) , mas tambm nas sociedades em mudana, em vias de modernizao, como a brasileira dos anos 50 e 60, o jovem foi encarado como um agente da possvel transformao das estruturas sociais (agente da mudana social, segundo FORACCHI, 1972, ou agente dinmico da histria, nos termos de IANNI, 1963). Alis, reside a o centro do interesse da sociologia inclusive deste trabalho pelo tema da juventude: a sua relao com a preservao e/ou com a mudana social, com a continuidade e/ou com a introduo do novo.

    De fato, na segunda metade da dcada de 60, tendo como marco o ano de 1968, simultaneamente em diversos pases do mundo ocidental, manifestaes juvenis diversas extrapolaram a oposio ao regime e resultaram em mudanas culturais, sociais e

    polticas profundas7. No s os movimentos estudantis, mas os movimentos de juventude que tentavam a criao de uma contracultura, entre outros, consistiram em expresses da

    7 Uma breve cronologia dos fatos de 1968, relacionados ao movimento estudantil no Brasil: em 28 de maro

    morreu o estudante Edson Lus, o que desencadeou dez dias de protestos e conflitos com a polcia; no dia 21 de junho, a sexta-feira sangrenta, os conflitos entre a polcia e os estudantes deixaram vrios mortos e feridos, alm de centenas de presos; dia 26 de junho aconteceu a passeata dos cem mil no Rio de Janeiro; nos dias 02 e 03 de outubro ocorreram as histricas batalhas entre os estudantes da USP e do Mackenzie, na Rua Maria Antnia; no dia 12 do mesmo ms, o XXX Congresso (clandestino) da Unio Nacional dos Estudantes (UNE)

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    contestao radical do establishment. Cardoso (1998) aponta o carter de ruptura do acontecimento 68: ainda que complexo e multifacetado, sem uma identidade unificadora, o acontecimento 68 colocou em questo a ordem social, poltica e cultural. A liberao da sexualidade, as novas relaes entre os gneros e entre as geraes, dentro e fora da famlia, o questionamento da moral e das hierarquias, a valorizao do prazer e do lazer, o

    desenvolvimento de uma conscincia ecolgica so, entre tantos outros, aspectos de 68 que foram lentamente assimilados pela sociedade ocidental (cf. CARDOSO, 1998, 2005; ABRAMO, 1994, p. 38-42).

    Por outro lado, importante observar que o pleno desenvolvimento da

    conscincia (IANNI, 1963, p. 175) ou a seqncia completa do processo de radicalizao (FORACCHI, 1972, p. 36, p. 43) foram considerados possveis pelos autores citados apenas a uma minoria de jovens, submetidos a condies psicossociais especficas. O foco dos estudos, no s de Ianni e Foracchi, mas da produo sociolgica no Brasil restringiu-se, pois, a esses

    jovens: estudantes universitrios, provenientes das camadas mdias da populao em ascenso social (FORACCHI, 1982b, p. 53). Acrescente-se que, mesmo entre o conjunto dos estudantes universitrios, apenas uma parcela participou efetivamente do movimento estudantil, em que a chamada minoria ativa ou vanguarda desempenhava forte papel mobilizador (cf. FORACCHI, 1972, p. 79-80). Ou seja, pretende-se ressaltar aqui que no Brasil dos anos 60, a nfase da produo acadmica no movimento estudantil contribuiu por fazer prevalecer na sociologia e disseminar pela sociedade uma noo de juventude que, de fato, referia-se a um segmento bastante especfico da populao. Tal como era concebido agente poltico, impulsionado pela sua rebeldia e consciente de suas responsabilidades no processo de

    desenvolvimento do pas, dadas as suas condies privilegiadas de vida o jovem era o estudante universitrio, mas no o estudante pobre (nomeado trabalhador-estudante ou estudante-trabalhador em certo momento, cf. CARVALHO, 1984; SPOSITO, 1989), no o aluno dos ensinos secundrio ou primrio, muito menos o no-estudante.

    Alm da origem de classe (camadas mdias, burguesia, classes favorecidas), tal noo de juventude supunha, pois, tambm um corte etrio uma vez que o ingresso na universidade normalmente s era possvel aos dezoito anos. Antes dos dezoito anos de idade, o indivduo das mesmas camadas mdias e altas, era comumente designado por

    adolescente; em idades mais tenras, por pr-adolescente ou ainda, criana. J o termo menor

    foi invadido por policiais, e centenas de estudantes foram presos. Em 13 de dezembro de 1968 foi decretado o Ato Institucional n 5 (AI-5), o auge da represso do regime militar.

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    era um termo jurdico aplicvel a esse mesmo adolescente ou criana apenas em situaes legais. Por sua vez, o indivduo pobre, antes de completar dezoito anos, era sempre menor. Os menores no faziam parte da juventude e nem tinham adolescncia, dada a sua origem de classe (cf. COIMBRA e NASCIMENTO, 2003). Ora vistos como vtimas de uma situao de marginalizao em uma sociedade injusta, ora vistos como ameaas ao patrimnio e vida das pessoas de bem, os menores eram classificados segundo uma tipologia inaplicvel aos adolescentes e jovens das camadas mdias e altas: menor infrator, menor carente, menor abandonado, de um lado, e, menor trabalhador, de outro (cf. SCHWARZSCHILD, 1987; MARCO ANTNIO, 1987).

    Efeitos indesejados e, ao mesmo tempo, inevitveis das polticas econmicas e sociais vigentes, vtimas, mas tambm ameaas estabilidade da sociedade, os ento menores eram considerados objetos de polticas de assistncia social, preveno, correo, disciplinamento e/ou encaminhamento ao mercado de trabalho. A promulgao, em

    julho de 1990, da Lei Federal n 8.069 o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) , resultado da mobilizao popular, em cuja frente esteve o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR, que hoje se identifica como organizao no-governamental), veio especificar e ampliar os direitos das crianas e adolescentes, elevados categoria de

    sujeitos de direitos e no mais designados menores. A promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) teve intensa repercusso em toda a sociedade, banindo, pelo menos do discurso institucional, o termo menor, que se tornou cada vez mais pejorativo.

    Nas ltimas dcadas, a noo de juventude ampliou-se, portanto, para alm de limites etrios e de posio social, diluindo as diferenas e omitindo as desigualdades:

    encobriu a menoridade e a adolescncia. Os menores desapareceram e em seu lugar surgiram os jovens pobres ou dos setores populares. Adolescente mantm-se como termo jurdico, indicando a pessoa entre 12 e 18 anos, conforme a definio do Estatuto da Criana e do Adolescente (BRASIL, 1990). A noo de adolescncia tambm vem se mantendo na rea de sade, na psicologia e psicanlise (cf. MEZAN, 1998), mas vem perdendo terreno para a noo de juventude no discurso das ONGs. O trabalho das ONGs nas reas de sade e sexualidade (preveno de doenas sexualmente transmissveis, gravidez, drogas) dirige-se adolescncia, mas na medida em que atribui algum nvel de ao poltica ou atuao social

    ao adolescente, este passa a ser identificado como jovem. o caso do texto de Ribeiro e Campos (2002), que registra o histrico do Movimento dos Adolescentes Brasileiros (MAB), nascido do projeto de orientao sexual da Secretaria Municipal de Educao de Campinas, e

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    originalmente destinado, portanto, aos adolescentes (Anexo A). Mais de dez anos depois do incio do projeto, quando a ele haviam sido incorporados objetivos sociais e polticos, o texto de Ribeiro e Campos (2002) alterna os termos adolescente e jovem, ora utilizados como sinnimos, ora como indicativos de etapas do desenvolvimento do indivduo. Interessante observar que o Movimento dos Adolescentes Brasileiros (MAB) tende atualmente a considerar os adolescentes como jovens.

    O impacto de 68 foi tamanho que se disseminou pela sociedade um mito do movimento ideal de juventude (cf. ABRAMO, 1994, p. xiii), transformando tambm em mito no Brasil, segundo Ribeiro Neto (1985), a Unio Nacional dos Estudantes (UNE). Segundo Cardoso (2005):

    As mudanas decorrentes do movimento histrico de uma gerao [...] ao se congelarem numa unidade imaginria, gerao anos 60 ou gerao 68, preservam o que seria o seu menor denominador comum, ao mesmo tempo em que perdem a sua historicidade. Esse processo constri a identidade herica de uma gerao, cujo peso para as geraes posteriores tem sido considervel, seno desmedido. (p. 1-2)

    As geraes posteriores, em comparao com a imagem congelada e caricaturada dos universitrios dos anos 60 (cf. CARDOSO, 2005), foram consideradas pela mdia e pelo senso comum, mas tambm pela sociologia apticas e alienadas, incapazes de uma crtica social consistente. Em comparao com o mito, acontecimento deslocado do tempo e da histria, figura unitria que transformou em identidade o que era pluralidade e movimento de desidentificao (CARDOSO, 2005, p. 12), o comportamento juvenil posterior comeou a aparecer como negao ou traio.

    Nessa linha, talvez o texto de maior repercusso tenha sido o de Martins (2004), publicado em 1979, em que o autor estabelece as conexes entre autoritarismo e alienao. Martins (2004) denomina Gerao AI-5 a parcela dos jovens entre 16 e 20 anos de idade em 1968, da alta classe mdia da cidade do Rio de Janeiro, que aderiu a uma certa contracultura como forma de rejeio ao autoritarismo e cujos fenmenos mais expressivos eram o culto da droga, a desarticulao do discurso e o modismo psicanaltico (grifo do autor, p. 18). Territorial e socialmente localizado, mas nem por isso menos importante do ponto de vista de sua disseminao na sociedade, aquele conjunto de valores, prticas e comportamentos no chegava a fundar uma autntica contracultura, segundo Martins (2004). Expresso e instrumento da alienao produzida pelo prprio autoritarismo, aquela contracultura teria um carter apenas reativo ao regime. Na interpretao de Martins (2004), mantiveram-se as idias de crise alm da crise familiar (p. 37-38), a resultante do conflito

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    entre as aspiraes juvenis e as reais possibilidades que se lhe apresentam (p. 49-52) e a noo de rejeio ou recusa do mundo adulto (p. 35-37; 52-54). Ao mesmo tempo, Martins (2004) identifica na Gerao AI-5 a ausncia de um atributo at ento essencial da juventude: conscincia crtica.

    A idia de que a juventude (noo que exclua os adolescentes e os menores) sofria de apatia e alienao, resultado direto da represso operada pelo regime militar a partir de 1964, foi predominante em fins dos anos 70 e incio da dcada seguinte. Em 1985, quando o pas j atravessava um perodo de redemocratizao poltica, a revista Desvios publicava o Dossi Movimento Estudantil Hoje, cujos artigos comentavam o esvaziamento do movimento. Ser estudante j no significava ser agente poltico, conforme o artigo de Ribeiro Neto (1985). Contudo, a decadncia do movimento estudantil no foi interpretada por Paoli (1985) como apatia ou negao da poltica pelos estudantes, mas como recusa das entidades tradicionais de representao e possibilidade de emergncia de novas prticas coletivas,

    exemplo do movimento de moradia abordado no artigo de Beltro (1985). Em ltima anlise, a crtica dirigia-se s instncias tradicionais de representao e exerccio da poltica (partidos, diretrios acadmicos, centrais universitrias) e permitia considerar aes polticas legtimas outras formas de interveno no espao pblico.

    Essa foi, alis, a perspectiva com que foram interpretados os movimentos sociais da dcada de 70 por vrios pesquisadores, entre eles Sader (1995). Os novos movimentos sociais (Comunidades Eclesiais de Base, clubes de mes, o movimento de sade, o novo sindicalismo de So Bernardo do Campo, entre tantos outros), ao rechaarem as instituies polticas tradicionais e reivindicarem direitos a partir da problematizao da

    experincia cotidiana dos locais de trabalho e moradia, foram interpretados como novos sujeitos coletivos8 que inauguravam novas prticas polticas. As pequenas lutas, atos e manifestaes at ento considerados ineficazes, sintomas de imaturidade ou impotncia polticas, sofreram deslocamentos de sentido e passaram a ser consideradas pelos militantes

    e pelos acadmicos aes de resistncia e autonomia. Em suma, emergia um discurso de valorizao do cotidiano (domstico, fabril, da vida no bairro etc.) como instncia de ao poltica e possibilidade de transformao social.

    8 Conforme Sader (1995): quando uso a noo de sujeito coletivo no sentido de uma coletividade onde se

    elabora uma identidade e se organizam prticas atravs das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas (p. 55).

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    A valorizao do cotidiano, em contraposio ao poltica institucional,

    e o questionamento do marxismo como modelo terico-explicativo repercutiram nos estudos sobre juventude no Brasil, cujo enfoque, a partir de meados da dcada de 80, dirigiu-se s dimenses do lazer9 e consumo, tomados como partes de uma certa cultura juvenil10. o caso de Sposito (1993/94) que identifica a visibilidade do tema juventude numa conjuntura descrita como de um certo refluxo das mobilizaes de base popular (p. 162) e de uma pequena insero juvenil tanto nesse tipo de ao coletiva como nos partidos e sindicatos. No mesmo artigo, Sposito (1993/94) aponta um certo esvaziamento da capacidade de socializao de instncias tradicionais como a famlia, a escola e o trabalho. Em tal

    conjuntura, caracterizada como de relativa perda do poder socializador e/ou mobilizador da famlia, escola, trabalho, partidos, sindicatos e movimentos populares, os elementos definidores de juventude passaram a ser identificados em dois mbitos inter-relacionados: nos grupos de jovens ou numa certa sociabilidade juvenil (cf. SPOSITO, 1993/94), e no consumo e lazer, conceitos com freqncia indistintos nos textos dos pesquisadores.

    A reconhecida contribuio dos outros em situao semelhante na formao da personalidade, na estruturao do sujeito (cf. KEHL 2000a, 2000b) e na definio do comportamento juvenil passou a ser enfatizada pelos pesquisadores, que dirigiram ateno especial aos grupos de jovens. Mais do que isso, no grupo procurou-se detectar uma vivncia juvenil, oportunidade de novas manifestaes de juventude, base de novas formas de atuao social:

    Eles [os grupos juvenis] se apresentam como novas formas de celebrar os vnculos entre uma gerao. Na verdade j no se trata de um vnculo monoltico como havia sido outrora o do movimento estudantil, mas um arranjo complexo e multifacetado de novas identidades, que passam a ser referncia individual e coletiva para os jovens. Em geral, a dimenso poltica se faz presente na atuao desses grupos de uma forma ampla, atravs dos contedos crticos de suas msicas ou do carter contestatrio de seu estilo de se vestir. [...] Signos de um outro tempo social e histrico, essas associaes juvenis apresentam novos repertrios polticos, cuja leitura requer um tipo diferente

    9 Conforme Abramo (1994): O lazer, para os jovens, aparece como um espao especialmente importante para o

    desenvolvimento de relaes de sociabilidade, das buscas e experincias atravs das quais procuram estruturar suas novas referncias e identidades individuais e coletivas um espao menos regulado e disciplinado que os da escola, do trabalho e da famlia. O lazer se constitui tambm como um campo onde o jovem pode expressar suas aspiraes e desejos e projetar um outro modo de vida. Podemos dizer, assim, que uma das dimenses mais significativas da vivncia juvenil (p. 61-62, grifo do autor). 10

    Inspirada nos escritos de Edgar Morin, Abramo (1994) refere-se cultura juvenil como aquela surgida no ps-Guerra: ... ampla e internacional, ligada ao tempo livre e ao lazer, que abarca novas atividades e espaos de diverso e novos padres de comportamento, especificamente juvenis, que produzem uma srie de atritos e conflitos com as normas e as instituies e seus representantes (p. 28).

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    de escuta e de decifrao por parte da sociedade. (CORTI e SOUZA, 2005, p. 61)

    A noo de juventude se expandiu, acompanhando a expanso do mercado do consumo11, e passou a incluir, sem limites etrios, alm dos jovens universitrios e os jovens das camadas mdias, tambm os jovens dos setores populares, os jovens trabalhadores, os jovens empobrecidos (SPOSITO, 1993/94), os jovens pobres12, o que deu fora ao argumento de heterogeneidade da categoria social juventude13 (cf. ABRAMO, 1994, p. 55; 65-66, 74).

    Esse o enfoque do Mapa da Juventude (SO PAULO, CIDADE, 2004a), pesquisa encomendada pela Coordenadoria Especial da Juventude da Prefeitura do Municpio

    de So Paulo ao Centro de Estudos da Cultura Contempornea (CEDEC), em que os elementos definidores da situao juvenil, independentes de estratificao socioeconmica e posio no processo produtivo, so as prticas de lazer e a participao em grupos, ambos entendidos como estratgias que expressam profundamente o significado de ser jovem (p. 4). Contudo, essa definio esbarra em pelo menos duas dificuldades evidenciadas pelos prprios dados divulgados no trabalho.

    Dos 2.259 jovens entre 15 e 24 anos entrevistados em inqurito domiciliar, 25,3% afirmaram no realizar nenhuma atividade de lazer, fato que os autores atribuem a uma concepo especfica de lazer, que o vincula a algo necessariamente dispendioso (SO PAULO, CIDADE, 2004a, p. 19). Ora, no caso de, como sugerem os autores, adotar-se uma concepo mais ampla de lazer, desvinculada do consumo e que inclua, por exemplo, o encontro com os amigos (na rua ou em casa para conversar, ouvir msica, assistir futebol pela televiso, jogar bola etc.) ou ainda as festas em famlia e/ou com os amigos (os almoos, os

    11 Nas dcadas anteriores, em que o mercado de consumo era mais restrito, era igualmente mais restrita a noo

    de juventude. Em 1968, Foracchi (1982d) apontava o papel do consumo: Esses jovens fazem parte de uma sociedade que convida ao consumo. Situam-se exatamente no centro da faixa dos consumidores mais ativos: as chamadas novas classes mdias. No h dvida de que o problema da juventude de hoje tem que ser encarado como um problema de juventude de classe mdia. Com algum exagero podemos dizer que, antes, o que enquadrava socialmente as pessoas era saber se eram bem nascidas ou o que o indivduo produzia ou possua como seu. Hoje, ele socialmente definido pelo fato de deixar claro que ostensivamente consome, e muito, as mercadorias tpicas do sculo XX: roupa, cultura e diverso (p. 27). 12

    Jovens pobres expresso decorrente de uma noo de juventude alargada e do reconhecimento de uma situao nomeada explicitamente pobreza. Sposito e Corrochano (2005) assim justificam a sua opo pela expresso jovens pobres: A designao utilizada jovens pobres intencional, uma vez que no se pretende aceitar alguns adjetivos que vm sendo adotados, como excludos, vulnerveis, em situao de risco ou miserveis (p. 146). 13

    Conforme Dayrell (1997): Se na dcada de 60 falar em juventude era referir-se aos jovens estudantes de classe mdia e participao poltica, nos anos 80 falar em juventude implica incorporar os jovens das camadas populares e a diversidade de estilos existentes. Impe-se a necessidade de falar em juventudes, no plural,

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    churrasquinhos no final de semana, as comemoraes de aniversrios etc.), no seria lcito supor que, em alguma medida, toda a populao, e no s os jovens, pratica atividades de lazer? Por outro lado, a concepo de lazer identificada com consumo sofre a influncia direta do nvel de renda do grupo em questo, qualquer que seja a faixa de idade. Prova disso o fato de que dentre os jovens em situao de excluso, beneficiados pelo Programa Bolsa-Trabalho da Prefeitura14, o percentual de entrevistados que no pratica atividades de lazer sobe para 34,9%. Ou seja, a prtica de algo identificado como lazer no critrio suficiente para a definio do comportamento juvenil; adotar o lazer como critrio implicaria necessariamente uma investigao sobre as noes entrelaadas de diverso, tempo livre,

    descanso etc. dos entrevistados (a natureza das atividades, a freqncia, a companhia, o local de sua realizao, a motivao e o significado atribudo pelos praticantes, entre outros aspectos). Tal investigao, que poderia identificar elementos distintivos entre jovens e adultos, componentes de uma certa cultura juvenil, foi esboada, mas no aprofundada pelos pesquisadores.

    A segunda fragilidade da definio de juventude adotada no Mapa (SO PAULO, CIDADE, 2004a) reside na participao em grupos. Apenas 13,1% dos entrevistados afirmaram participar de grupos; na tentativa de explicar esse pequeno

    percentual, os autores supem uma representao particular dos jovens sobre a noo de grupo, diferenciada da prtica de simplesmente reunir-se com pessoas, amigos em geral, para realizar atividades de lazer (SO PAULO, CIDADE, 2004a, p. 23). Tal explicao, no entanto, pode ser questionada pelos dados relativos aos grupos efetivamente cadastrados pelos autores.

    O Mapa cadastrou 1.609 grupos, 839 dos quais formados exclusivamente por jovens e que totalizaram 92.234 componentes, cifra que correspondia a 4,9% da populao da cidade na faixa etria considerada (1.881.054 residentes de 15 a 24 anos de idade, no Municpio de So Paulo, em 2003, ano de realizao do Mapa, conforme estimativa

    populacional da Fundao SEADE). A maioria dos grupos cadastrados tinha, sim, as atividades de lazer, artsticas e religiosas como principal eixo para sua formao (respectivamente:

    designando no s as diferenas de classe e raa, mas principalmente a heterogeneidade cultural presente no meio juvenil (p. 5-6). 14

    O Programa Bolsa-Trabalho da Prefeitura do Municpio de So Paulo, criado pela Lei n 13.163, de 05 de julho de 2001 (gesto Marta Suplicy), oferecia 45% do salrio mnimo, auxlio-transporte e seguro de vida coletivo a jovens desempregados, com idade entre 16 e 20 anos, pertencentes a famlias de baixa renda, que comprovassem freqncia s aulas em escola pblica. Os jovens beneficirios do Programa desenvolviam atividades de carter comunitrio e recebiam capacitao adicional e qualificao profissional (SO PAULO, CIDADE, 2001). Ver Anexo B.

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    13,7%, 35,8% e 14,4%). E a maioria absoluta (56,4%) dos componentes (303.582) dos 1.609 grupos cadastrados (exclusivamente juvenis ou no) fazia parte de grupos que se dedicavam predominantemente a atividades esportivas. Os prprios autores chegaram concluso de que os grupos eram, em geral, bastante abertos, bastando algum interesse ou afinidade para tomar parte deles (SO PAULO, CIDADE, 2004a, p. 46).

    O fato de que a maioria absoluta daqueles que se consideraram em condies legtimas para se cadastrarem fosse de grupos abertos (dedicados prtica de esportes, atividades de lazer, artsticas, especialmente musicais, e religiosas) contradiz a suposio dos autores de que vigoraria entre os entrevistados uma concepo de grupos mais

    rgida e formal. Conclui-se, portanto, que alm de ser pequeno o percentual de participantes em grupos (13,1% entre os entrevistados e 4,9% a estimativa para o conjunto da populao juvenil com base nos grupos cadastrados) muito provvel que essa participao ocorresse predominantemente em grupos informais. Tais dados podem ser extrados do prprio Mapa,

    que, apesar disso, enfatiza, no o carter numericamente minoritrio dos grupos juvenis, mas a sua heterogeneidade (em termos de composio, objetivos, natureza das atividades etc.), anunciada como riqueza da diversidade (SO PAULO, CIDADE, 2004a, p. 56).

    Numa palavra, a prtica de lazer e a participao em grupos, adotados como

    os principais critrios de pesquisa, resultaram, ao contrrio da inteno dos autores, na identificao de apenas uma minoria de jovens, entre a populao paulistana na faixa etria de 15 a 24 anos, pelo Mapa da Juventude.

    A perspectiva adotada pelo Mapa da Juventude j pode ser notada nos trabalhos de alguns pesquisadores sobre os grupos juvenis urbanos que surgiram a partir do final dos anos 70 e ao longo dos 80, e cujo comportamento era bem diferente da gerao que comps o movimento estudantil: os punks, metaleiros, rappers, darks, rastafris, funkeiros e outros. Tais grupos adotavam, conforme Abramo (1994), um estilo espetacular, cuja diferenciao se d atravs da msica, da roupa e de adereos, da postura e do comportamento

    no lazer (p. xi). A dissertao de mestrado de Helena Abramo, datada de 1992 e intitulada Grupos juvenis nos anos 80 em So Paulo: um estilo de atuao social (ABRAMO, 1994), um dos primeiros trabalhos nessa linha, alcanou grande repercusso, transformando-se em referncia obrigatria para os estudos posteriores; por essa razo aqui ser tomada como o

    texto principal de toda uma vertente discursiva.

    Abramo (1994) defende a posio de que a classificao alienao-radicalismo em relao transformao social no seria mais adequada para entender o

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    comportamento juvenil contemporneo (ressalte-se que a autora centrou suas investigaes em grupo social diverso, inclusive com relao faixa etria e camada social, daquele que havia composto o movimento estudantil: os darks, estudantes do ensino mdio ou universitrio, cujas roupas, comportamento, adereos, opo musical compunham um estilo sombrio, distpico). Para Abramo (1994), os anos 80 caracterizam-se por uma outra conjuntura social, que coloca outras questes s novas geraes, que, por sua vez, encontram outros ngulos para problematiz-las, outras possibilidades de equacion-las e outras formas de express-las (p. 52). Permanece no discurso, portanto, a idia de crise, explicitada na passagem seguinte:

    Pode-se dizer que a experincia comum que marca esta gerao de jovens parece ser mesmo a experincia da crise, principalmente a de perspectivas e possibilidade de estruturar projetos de vida individual e coletiva. E esta questo que est sendo tematizada, o tema para o qual, nas suas diferentes dimenses, esses grupos juvenis esto procurando elaborar respostas. (ABRAMO, 1994, p. 156, grifo do autor)

    J nessa outra passagem, Abramo (1994) enumera as questes relativas vivncia da condio juvenil na atual conjuntura (p. 84):

    ento que emergem como personagens expressivos desse novo universo juvenil os grupos articulados em torno do estilo. So fenmenos que se desenrolam justamen