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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOSCENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
O FENMENO DA SUPERVALORIZAO DO SABER
COTIDIANO EM ALGUMAS PESQUISAS DA EDUCAO
MATEMTICA
Jos Roberto Boettger Giardinetto
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao, do Centro deEducao e Cincias Humanas daUniversidade Federal de So Carlos comoparte dos requisitos para a obteno dottulo de Doutor em Educao (rea deConcentrao: Fundamentos da Educao)
So Carlos
1997
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Orientadora: Prof Dr Betty Antunes de Oliveira
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A
Andra, esposa querida
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RESUMO
A relao entre o saber matemtico escolar e o saber matemtico cotidiano tem
sido objeto de muita discusso no quadro das pesquisas em educao matemtica.
Dentre essas pesquisas, algumas tm defendido como soluo para a melhoria do
ensino da matemtica, a valorizao do conhecimento que se manifesta no cotidiano. Essa
valorizao justificada pela constatao da ineficcia da escola na garantia da apropriao
do conhecimento matemtico escolar, em contraste com a eficcia da apropriao do
conhecimento matemtico no cotidiano.
Ocorre que a valorizao do saber cotidiano, pretendida por essas pesquisas, se
d sem uma reflexo mais profunda quanto ao papel da escola e tambm, quanto concepo
de cotidiano que se est adotando.
Por falta dessa reflexo, essas pesquisas acabam criando um problema
pedaggico: em lugar da necessria valorizao do conhecimento cotidiano, v-se ocorrer
uma supervalorizao desse conhecimento, na qual se perde de vista a relao com o saber
escolar.
A hiptese dessa tese que essa supervalorizao, decorre de uma anlise do
ensino da matemtica na qual no se considera a atividade escolar como mediadora entre o
saber cotidiano e o saber no-cotidiano.
Visando a superao desse problema, essa tese apresenta subsdios tericos que
concebem a relao entre o saber cotidiano e o saber escolar de forma a no se perder de
vista a importncia da apropriao do conhecimento matemtico escolar como um
instrumental para o indivduo se relacionar num nvel alm do imediato.
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SUMMARY
The relation between the mathematical scholastic and quotidian knowledge has
been an object of substancial discussion on the research field of mathematic education.
Some of these researches have defended, as a solution for the improvement in
mathematic teaching, the appreciation of the knowledge revealed in the quotidian life. Such
appreciation takes place when the ineffectiveness of the school in guaranteeing the
appropriation of the scholastic mathematical knowledge is verified, in contrast to the efficacy
of the appropriation for the quotidian mathematical knowledge.
It happens that the appreciation of the quotidian knowledge, accomplished by
these researches, it is given without a reflection more profound as for the role of the school,
and also, as for the quotidian conception that has been adopted.
By lack of this reflection, these researches create a pedagogical problem: instead
of the necessary appreciation of the quotidian knowledge, we can an overappreciation of this
knowledge moving away the relation from the scholastic knowledge.
The hypothesis of this thesis is that this overappreciation comes from the analisis
of the mathematic teaching in which it is not considered the scholastic activity as being a
mediator between the quotidian knowledge and the non-quotidian knowledge.
In order to overcome this problem, this thesis presents theoretical subsidies that
understand the relation between the quotidian and the scholastic knowledge, without leaving
aside the importance of the appropriation of the mathematical scholastic knowledge as an
instrument for anyone to get acquainted beyond the imediate level.
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ASSINATURAS
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S U M R I O
INTRODUO
1- O PROBLEMA : SUA ORIGEM E DELIMITAO. .....................................................................9
2- ALGUMAS CONSIDERAES TERICAS E HIPTESE DE TRABALHO .................................16
CAPITULO I: A CONCEPO HISTRICO-SOCIAL DA RELAO ENTRE
CONHECIMENTO E REALIDADE.
CONSIDERAES INICIAIS.........................................................................................................22
I.1. A REALIDADE ENQUANTO PRODUTO HISTRICO-SOCIAL DETERMINADO PELA
ATIVIDADE HUMANA: O TRABALHO. ....................................................................................26
I.2. A DINMICA DA RELAO ENTRE INDIVDUO E REALIDADE HUMANIZADA..................36
I.2.1. A parcialidade de captao do real; a atividade como elemento mediador entre o
indivduo e sua interpretao da realidade;.....................................................................37
I.2.2. O indivduo e sua relao com a realidade humanizada a partir da esfera da vida
cotidiana; a familiaridade na parcialidade de captao do real;....................................45
I.2.3. Sobre a alienao permeando a relao entre indivduo e realidade...........................58
I.3. A CONCEPO HISTRICO-SOCIAL DA RELAO ENTRE A REALIDADE E A
PRODUO DO CONHECIMENTO MATEMTICO. ...............................................................70
I.3.1. A origem da matemtica se dando nos limites da dimenso corporal humana;...........75
I.3.2. A expresso conceitual matemtica tendo como referncia a prtica-utilitria...........86
I.3.3. O conhecimento matemtico enquanto processo de abstraes de abstraes: as
relaes.............................................................................................................................96
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CAPITULO II: A PRTICA PEDAGGICA ENQUANTO MEDIAO ENTRE O
INDIVDUO E AS OBJETIVAES GENRICAS.
CONSIDERAES INICIAIS.......................................................................................................105
II.1. A FUNO PRECPUA DA PRTICA EDUCATIVA NA FORMAO DO INDIVDUO: A
QUESTO DOS CONTEDOS ESCOLARES; ...........................................................................109
II.2. A PRTICA EDUCATIVA ENQUANTO PRODUO DE NOVOS CARECIMENTOS;.............116
II.3. A PRTICA EDUCATIVA E A FORMAO DO INDIVDUO PARA-SI: A CATARSE. .............126
CAPTULO III: O PROBLEMA DA SUPERVALORIZAO DO SABER
COTIDIANO NAS PESQUISAS EM EDUCAO MATEMTICA
CONSIDERAES INICIAIS.......................................................................................................133
III.1. O CARTER ESPONTNEO, EFICAZ E NATURAL PRPRIO DO CONHECIMENTO
COTIDIANO, CONSIDERADO COMO GARANTIA DO CONHECIMENTO VERDADEIRO..........136
III.2. A ESCOLA ENQUANTO INSTNCIA PERPETUADORA DO STATUS QUO , SITUAO
ESTA PRPRIA DA ESTRUTURA SOCIAL ALIENADA, CONSIDERADA COMO A NICA
FUNO DA ESCOLA NA RELAO EDUCAO E SOCIEDADE. ..........................................171
III.3. A AFIRMAO DA EXISTNCIA DE "DIFERENTES MATEMTICAS" CONSIDERADO O
ELEMENTO DETERMINANTE PARA DELIMITAO DA FORMA E CONTEDO DA PRTICA
ESCOLAR DO ENSINO DA MATEMTICA. ............................................................................196
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................228
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................235
ANEXO A: CITAES NO ORIGINAL ....................................................................................239
ANEXO B. ETNOMATEMTICA: DEFINIES .......................................................................242
ANEXO C: TRABALHOS DA ETNOMATEMTICA CITADOS PARA ANLISE..........................244
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INTRODUO
1- O Problema : sua Origem e Delimitao.
No meio educacional da chamada educao matemtica, tem havido discusses
cada vez mais crescentes, com vista necessidade de melhoria do ensino da matemtica. Tais
discusses tm exigido o crescente envolvimento de matemticos, pedagogos, psicopedagogos e
demais profissionais comprometidos com a melhoria do ensino de matemtica no Brasil. Reflexo
de tais discusses pode ser notado com a organizao desses profissionais em uma entidade
aglutinadora, a Sociedade Brasileira de Educao Matemtica, a SBEM, fundada em 1987
quando da realizao do II Encontro Nacional de Educao Matemtica (II ENEM).
Com a SBEM, viu-se ocorrer um incentivo maior organizao de congressos
nacionais (o V Encontro Nacional de Educao Matemtica, o V ENEM, ocorreu em julho de
1995), encontros regionais, seminrios, etc. O Brasil chegou a sediar, em julho de 1994, o II
Congresso Ibero-Americano de Educao Matemtica (o II CIBEM).
Da mesma forma, foi-se delineando nos cursos de ps-graduao em educao no
Brasil, a linha de pesquisa em educao matemtica. Algumas ps-graduaes exclusivas
educao matemtica foram criadas.
Tambm se viu ocorrer uma crescente publicao de revistas especializadas nessa
rea. Alm da j existente revista do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educao Matemtica,
publicada no Rio de Janeiro (GEPEM), destacam-se o BOLEMA (Boletim de Educao
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Matemtica - UNESP - Rio Claro), A Educao Matemtica em Revista (Revista da Sociedade
Brasileira em Educao Matemtica), o Zetetik (Publicao do Crculo de Estudo, Memria e
Pesquisa em Educao Matemtica da Faculdade de Educao da UNICAMP - SP) e a Revista
do Professor de Matemtica (publicao do Instituto de Matemtica Pura e Aplicada).
Dentre os vrios temas de pesquisa presentes no ensino de matemtica, um tem
merecido especial destaque: trata-se da relao entre o saber escolar matemtico e o saber
matemtico presente na vida cotidiana dos indivduos. A preocupao por esse tema surge da
crtica situao do ensino vigente. O ensino de matemtica tem sido desenvolvido de forma
enfadonha, com nfase numa memorizao aleatria de resultados conceituais, apresentados sem
nexo, como se fossem pr-determinados. Entre outras coisas, esse ensino no tem levado em
considerao o conhecimento matemtico adquirido pelos indivduos nas atividades da vida
cotidiana. preciso, ento, resgatar a matemtica j presente nos indivduos. Tanto que para
muitas pesquisas, a ausncia dessa relao apontada como o fator determinante da dificuldade
hoje encontrada pelos alunos na apropriao do conhecimento matemtico escolar. Para
justificar isso, essas pesquisas argumentam que os conceitos escolares, na medida em que no
apresentam uma relao imediata com a vida dos alunos, so regidos por procedimentos de
ensino arbitrrios, como que um amontoado de regras sem nexo que so impostas aos alunos.
Para essas pesquisas, a defesa da necessidade de se considerar a experincia de vida
dos alunos parte da constatao de que em muitas situaes, o indivduo j apresenta um certo
domnio de um determinado contedo em suas atividades cotidianas. Esse domnio apresenta-se
eficaz, porque responde efetivamente a um problema colocado pela atividade do indivduo em
sua prtica social. Trata-se de um conhecimento essencialmente prtico-utilitrio, pois, nasce da
necessidade da resposta imediata de superao dos problemas prprios da vida cotidiana.
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A idia da defesa de se considerar a experincia de vida dos alunos ganha maior
nfase ao constatar o fato de que ao mesmo tempo que o aluno domina um determinado
contedo, esse mesmo aluno fracassa ao lidar com as formas mais sistematizadas desse mesmo
contedo no mbito escolar.
Assim, diante da ineficcia da escola em garantir a apropriao do saber escolar em
contraste com a eficcia da apropriao do conhecimento no cotidiano, muitas pesquisas
passaram a defender como uma soluo para melhoria do ensino da matemtica a valorizao do
conhecimento que emerge do cotidiano, elevando-o a elemento orientador para o
desenvolvimento do conhecimento na esfera escolar. Assim, os conceitos matemticos seriam
apresentados mediante uma conotao de ordem prtica a partir do interesse manifestado pelo
aluno.
Interessante verificar que, conforme ser devidamente esmiuado, para essas
pesquisas, a eficcia da apropriao dos conceitos matemticos no cotidiano denota uma forma
pura, natural, genuna de manifestao do conhecimento.
Tal fato influenciou determinados pesquisadores a buscar a caracterizao dessas
formas de conhecimento matemtico nas atividades cotidianas de grupos sociais. A maneira
encontrada para tal caracterizao foi a direta insero desses pesquisadores no meio de vida de
tais grupos. Assim, muitos pesquisadores passaram a conviver com comunidades indgenas,
aldeias de pescadores, comunidades de bairros de baixa renda, etc. Essa proposta metodolgica
tinha como base o pressuposto de que o cotidiano o locus da manifestao do conhecimento
natural e genuno e, portanto, verdadeiro.
Interessante constatar que com a divulgao dessas pesquisas, passou-se a enfatizar
ainda mais a necessidade de se valorizar o conhecimento cotidiano como soluo para os
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problemas do ensino da matemtica. Se por um lado, o ensino hodierno no tem levado em
considerao a matemtica presente nas atividades da vida cotidiana, por outro lado, essas
pesquisas passaram a supervalorizar o conhecimento matemtico cotidiano elevando-o
condio de premissa para o desenvolvimento da prtica pedaggica. Da necessria valorizao
do conhecimento cotidiano, viu-se ocorrer uma supervalorizao do conhecimento cotidiano
perdendo-se de vista a relao com o saber escolar.
Embora, o problema da ausncia de relao entre o conhecimento escolar e o
conhecimento cotidiano seja algo que necessita ser superado, essa superao no se d pela
supervalorizao da vida cotidiana como parmetro para o desenvolvimento da prtica escolar.
preciso promover uma reflexo sobre as especificidades do processo de produo do
conhecimento matemtico no cotidiano, assim como, questionar os condicionantes histricos e
sociais que determinam que a vida cotidiana hoje constituda seja dessa forma e no de outra. No
interior dessa reflexo, evidencia-se, dentre outras coisas, que na vida cotidiana o indivduo se
apropria de fragmentos, grmens de um conhecimento sistematizado que desenvolvido no
contexto histrico-social do qual ele faz parte. Trata-se de uma apropriao parcial do
conhecimento sistematizado que se revela em funo da necessidade de conhecimento que ele
tem de utilizar no cumprimento de determinada atividade que ele obrigado a desenvolver nas
relaes sociais de explorao, para garantir o mnimo da fora de trabalho necessria para essa
atividade.
preciso compreender que o conhecimento no cotidiano um conhecimento
fragmentrio que se manifesta segundo uma lgica conceitual que prpria s exigncias de toda
a vida cotidiana. Trata-se de uma lgica conceitual adequada aos objetivos prtico-utilitrios e
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que responde eficazmente s necessidades do cotidiano (isso ser esmiuado no captulo I, item
I.2.2.).
O que precisa ser salientado aqui que quando essa vida cotidiana faz parte de uma
sociedade baseada nas relaes de subordinao e domnio, essa cotidianidade acaba
determinando tambm, no nvel da atividade do indivduo e na forma de como ele vai
reproduzindo para si esse conhecimento existente, uma forma alienada dentro de condies de
injustia social.
Na sociedade alienada, a lgica conceitual adequada aos objetivos prtico-utilitrios
j no vai ser prtico-utilitria de uma vida cotidiana que humanize o homem, mas vai ser uma
lgica prtico-utilitria servio dos interesses do capital. No caso do processo de apropriao
dos conceitos escolares preciso considerar que no se pode trat-los dentro de uma mera
lgica do cotidiano, muito menos, de uma lgica de um cotidiano alienado. A lgica conceitual
inerente aos conceitos escolares retrata formas de pensamento mais complexas que aquelas
utilizadas no cotidiano. No caso especfico da matemtica, seus conceitos alcanam um tal nvel
de desenvolvimento por fora dessa complexidade, que ocorre um distanciamento cada vez
maior entre o conhecimento matemtico processado no cotidiano e o conhecimento matemtico
sistematizado que vai exigindo um determinado mtodo de pensamento que por sua vez, utiliza
abstraes em nveis cada vez mais elevados superando os raciocnios pragmticos inerentes ao
cotidiano. Trata-se de um conhecimento que se insere no plano da esfera do conhecimento no-
cotidiano, isto , o plano relativo aos raciocnios que exigem nveis de abstraes complexas
(como na cincia, na arte, etc.), sem se limitar a uma relao objectual emprica imediata como
fonte geradora de conhecimento.
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Alm disso, a evoluo dos conceitos para alm da esfera do cotidiano direciona-se
para dar respostas que vo servir ao prprio cotidiano, em ltima instncia. No caso da
matemtica, hoje, mais do que nunca, o domnio deste campo do conhecimento se faz presente
no mundo de vida das pessoas dada o avano da informtica e das constantes alteraes
tecnolgicas e cientficas. O domnio crescente dos conceitos matemticos est passando a ser o
cotidiano de muitos. O acesso ao conhecimento matemtico sistematizado tem sido
imprescindvel para prpria transformao da vida cotidiana. Alijar os indivduos desse acesso
alij-los das condies bsicas para o usufruto dos avanos tecnolgicos que modificam a
prpria estrutura da vida dessas pessoas e que permitem o acesso aos demais produtos das
objetivaes humanas. Em outras palavras, o prprio conhecimento que cada indivduo elabora
para sua vida cotidiana no d conta de responder s necessidades de sua prpria vida cotidiana.
Esse indivduo precisa constantemente estar reelaborando esse conhecimento porque as
exigncias so cada vez mais apresentadas. Portanto, a prpria vida cotidiana necessita de
interferncias do no-cotidiano. Com isso, a valorizao do cotidiano que era inicialmente uma
reivindicao feita por essas pesquisas, acabou sendo um problema (a supervalorizao do
cotidiano) porque restringe o cotidiano gerando limitaes ao acesso ao conhecimento no-
cotidiano e ao prprio cotidiano.
Alm do mais preciso tambm considerar que as formas de pensamento mais
complexas tornam-se instrumentos imprescindveis para o indivduo adquirir uma postura o mais
intencional possvel para com a sua realidade na medida em que
a praxis utilitria imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem emcondies de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manej-las, masno proporcionam a compreenso das coisas e da realidade.
(KOSIK,1985,p.10)
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Com a decorrncia da evoluo do conhecimento cientfico, tecnolgico e filosfico
e a complexificao cada vez maior da sociedade, a escola surge como um elemento
fundamental para a necessria formao do indivduo enquanto cidado participante de um
determinado contexto social, pois, atravs dela que esse indivduo tem a possibilidade de se
apropriar de um conhecimento que no lhe possvel apropriar ao nvel da vida cotidiana. O
conhecimento escolar elaborado segundo uma lgica do conhecimento sistematizado e das
exigncias etrias da clientela, lgica essa que permite a compreenso das coisas muito alm
daquela lgica da vida cotidiana que fornece as condies de orientao do mundo e
familiarizao das coisas no nvel mais imediato, prtico-utilitrio.
Em outras palavras, o saber sistemtico, metdico, cientfico, "dosado e
seqenciado para efeitos de sua transmisso-assimilao no espao escolar
(SAVIANI,1991b,p.26), se constitui o elemento indispensvel na relao com o saber cotidiano
com o saber no-cotidiano. A natureza e especificidade da educao procura responder a uma
necessidade que o desenvolvimento do conhecimento humano e da vida em geral coloca, a
saber, a de apropriao do saber historicamente acumulado para que o indivduo se torne cada
vez mais um ser social.
No entanto, na medida em que no se compreende a escola enquanto instituio
mediadora que possibilita essa transio do desenvolvimento do aluno do cotidiano para o no-
cotidiano, perdendo-se de vista a necessidade de se garantir essa mediao, no se viabiliza a
tarefa precpua da escola enquanto instncia socializadora do saber escolar historicamente
acumulado. Nota-se que a apropriao desse saber nessa instncia socializadora, indispensvel
para a formao do cidado porque sem a apropriao desses instrumentos culturais, ele no tem
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como participar dessa sociedade e ficar sempre marginalizado. A escola, portanto, acaba sendo
uma instncia democratizadora.
Portanto, o problema a ser analisado nessa tese a supervalorizao do saber
cotidiano com a conseqente secundarizao tanto da apropriao, pelo indivduo, do saber
matemtico histrico e socialmente acumulado, quanto do papel mediador da prtica pedaggica
escolar na socializao desse saber.
2- Algumas Consideraes Tericas e Hiptese de Trabalho
Conforme mencionado no item anterior as dificuldades presentes na apropriao dos
conceitos matemticos tm sido freqentemente apontada por muitas pesquisas, como uma
conseqncia da desvinculao desses conceitos em relao aos conceitos matemticos
adquiridos a partir da experincia de vida dos alunos. Com isso, muitas pesquisas passaram a
supervalorizar o conhecimento emergido da vida cotidiana em detrimento da relao para com o
saber escolar, colocando o conhecimento emergido do cotidiano como o elemento necessrio e
norteador para se trabalhar os conceitos formais.
Embora essa tese tenha tambm como ponto de partida uma crtica ao ensino atual
de matemtica, este trabalho aponta para uma necessria anlise historicizadora do saber
cotidiano, do saber escolar e da relao entre ambos.
A posio terica aqui adotada, fundamentada na concepo histrico-social de
indivduo e de realidade, entende a relao entre o saber escolar e o saber cotidiano como sendo
uma relao no-conflitante. O saber cotidiano, dada a sua objetividade prtica e imediata, no
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est aqui sendo entendido como o elemento norteador para se trabalhar os conceitos escolares
na medida em que estes apresentam uma lgica interna que no regida pelo carter utilitrio
presente no cotidiano. Na verdade, o conhecimento emergido do cotidiano necessita, apenas
quando for possvel, ser utilizado conscientemente como ponto de partida para se trabalhar com
os conceitos escolares garantindo o acesso s formas de conhecimento que no se manifestam
imediatamente no cotidiano. Tal posio difere totalmente daquela em que o conhecimento
escolar entendido como algo imposto e arbitrrio por no estar refletindo o mundo de vida e os
interesses do conhecer de nossos alunos.
O conhecimento matemtico aqui concebido enquanto uma objetivao genrica
(produto da atividade humana) que se faz presente ao longo das esferas da sua produo quer
na esfera da produo cognoscente relativo aos raciocnios que exigem nveis de abstraes (a
esfera do no-cotidiano) sem se limitar uma relao objectual emprica imediata como fonte
geradora de conhecimento, quer no plano cognoscente relativo aos raciocnios mais imediatos
prprios da vida cotidiana. Nas diferentes esferas o indivduo elabora hipteses matemticas
cujos dados so reflexos do conhecimento matemtico nessa determinada esfera regida pela
atividade do sujeito.
Assim, uma forma especfica de manifestao do conhecimento acessvel aos
homens a sua forma sistematizada e gradualmente trabalhada de acordo com a faixa etria do
indivduo. Trata-se, sem dvida do conhecimento escolar. Interessante observar que o
conhecimento escolar aborda somente os traos histricos essenciais da produo maior do
conhecimento que a produo cientfica. A escola, entre outras coisas, garante, via
instrumentos conceituais, as ferramentas bsicas, imprescindveis para a perpetuao da
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produo cientfica. Como tal, o saber inerente ao processo educativo escolar no se apresenta
sob um carter prtico-utilitrio.
Uma outra forma especfica de manifestao do conhecimento ocorre no mbito
da vida cotidiana. Nota-se que aqui no se est falando de outro tipo de conhecimento mas sim
de uma outra forma de manifestao do conhecimento j produzido pela humanidade. Neste
caso, o conhecimento a se manifesta regido por uma lgica essencialmente prtico-utilitria,
prpria desse mbito da vida humana.
Ocorre que no cotidiano, o conhecimento regido por raciocnios que servem
eficazmente para dar respostas s tarefas do cotidiano. Os limites dessa eficcia no so
adequados a raciocnios complexos necessrios para apropriao do saber historicamente
acumulado via escola. Conforme ser aqui melhor explicitado, o indivduo desenvolve no mbito
de sua vida cotidiana, um tipo de raciocnio muito ligado resposta imediata que ele tem que dar
e esse tipo de raciocnio, se tomado como elemento norteador da prtica pedaggica, determina
limites ao acesso s formas sistematizadas do saber. Na escola, o indivduo tem a possibilidade
de aprender a matemtica enquanto contedo e processo de pensamento. Na medida em que no
ultrapassa os raciocnios mais imediatos, ele no s no aprende esse processo de pensamento
complexo, como no se apropria das formas sistematizadas do saber matemtico determinando a
impossibilidade de se objetivar num grau cada vez mais complexo.
Alis, as pesquisas que supervalorizam o saber cotidiano, tm-se pautado por uma
busca freqente de dados para caracterizar os conceitos adquiridos em situaes no-escolares.
Constata-se, porm, que muito pouco se tem questionado "como" tais conceitos tm sido
apropriados.
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Ocorre que todo conhecimento um produto da relao do indivduo com o mundo
construdo pela atividade social e histrica dos homens, relaes mediatizadas tanto pelas
relaes sociais quanto pelos demais produtos dessa atividade. O indivduo, no cumprimento de
suas tarefas cotidianas freqentemente associadas ao tipo de trabalho que realiza, cumpre-as
inseridas no quadro atual da diviso social do trabalho. Neste contexto, o indivduo obrigado a
adquirir um conhecimento que restrito s respostas necessrias para superao de suas
necessidades e que retrata aquilo que foi possvel, dentro de um determinado meio social, sob
relaes sociais alienadas e alienantes, apropriar do existente. Assim, por exemplo, a criana
feirante, o engraxate, o vendedor, no apropria o conhecimento de uma forma "espontnea" e
"natural". Na verdade, tais indivduos objetivam aquilo que as injustias sociais, atravs da
marginalizao a inerente, os obrigam a aprender por um processo verdadeiramente
massificador e autoritrio.
Na medida em que no se compreende os condicionantes histrico-sociais que
permeiam a produo do conhecimento em suas diferentes esferas de produo, as pesquisas que
supervalorizam o saber matemtico cotidiano ignoram as especificidades estruturais da vida
cotidiana tomando o conhecimento cotidiano como modelo para prtica pedaggica. Com isto,
acabam determinando a reproduo, pela prtica pedaggica, das relaes sociais alienadas e
alienantes que permeiam a vida cotidiana.
Ao impossibilitar-se a apropriao dos instrumentos lgico-conceituais
imprescindveis para elevao do conhecimento matemtico para alm dos problemas restritos
lgica do conhecimento cotidiano, no se efetiva as condies para superao do nvel de
entendimento da realidade restrito mera familiarizao e orientao das coisas. A escola, de
instituio mediadora do saber cotidiano para o no-cotidiano, passa a se restringir aos limites da
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lgica do cotidiano, transformando-se numa instncia legitimadora dessa lgica pragmtica e
imediata. O contedo matemtico torna-se restrito aos parmetros daquilo que pode ser
apropriado fora da escola pelo cotidiano. Assim, a prtica escolar desescolariza o indivduo.
Com base no que foi exposto, a hiptese de trabalho que orienta essa tese justamente
a de que o desconhecimento das especificidades da relao entre o saber escolar e o saber
cotidiano, requer a compreenso da atividade escolar como a mediadora dessa relao de forma
a resgatar o papel imprescindvel da escola para a formao do indivduo, superando as
interpretaes superficiais e imediatas que supervalorizam o saber cotidiano em detrimento da
apropriao do saber escolar.
A presente tese prope resgatar a necessidade de uma compreenso mais profunda
do processo de produo do conhecimento matemtico com vista a necessidade da apropriao
do conhecimento matemtico historicamente acumulado como um instrumental para o indivduo
se relacionar num nvel alm do pragmtico. Para isto, pretende-se apontar subsdios tericos
que visam superar o nvel mais imediato de entendimento da relao entre saber escolar e saber
cotidiano presente em algumas pesquisas em educao matemtica.
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CAPITULO I: A Concepo Histrico-Social da Relao
entre Conhecimento e Realidade.
Consideraes Iniciais
Inicialmente, preciso esclarecer que este captulo est sendo feito por fora da
necessidade de se apresentar fundamentos que subsidiem a anlise da problemtica a ser feita no
captulo III, na medida em que constatou-se que as pesquisas que supervalorizam o saber
cotidiano utiliza-se um processo de raciocnio em que o conceito de realidade considerado
como uma obviedade e, como tal, restringe-se no nvel do imediatamente perceptvel. Mas, as
questes educacionais so por demais complexas para serem entendidas nos meros limites do
imediatamente perceptvel. A imediaticidade do real insuficiente para analisar qualquer
fenmeno educacional. Diante disso, este captulo se tornou uma exigncia precpua para a
anlise da problemtica enunciada.
Assim, verifica-se que comumentemente, a realidade associada ao que se
imediatamente se v, se manifesta. Em outras palavras, a realidade aquilo que concebido por
nossos sentidos.
No quadro da chamada educao matemtica hoje presente no Brasil, as pesquisas
em sua maioria, no apresentam um questionamento do conceito de realidade, pois, partem da
idia de que o conceito de realidade j um fato conhecido, um elemento no passvel de crtica,
enfim, uma obviedade.
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Da mesma forma, a maioria das pesquisas no questionam a concepo de
conhecimento que est presente tambm em ntima relao com uma concepo de realidade.
Entretanto, como muito bem observa SAVIANI(1991b,p.23), tudo o que bvio
acaba na sua aparente simplicidade, ocultando problemas que escapam nossa ateno.
Ocorre que refletir sobre o conceito de realidade implica necessariamente uma
postura conceitual de elaborao de conhecimento, pois, a compreenso da realidade implica o
processo de elaborao do conhecimento desta. Em outras palavras, em qualquer proposta de
ensino, est subjacente, quer se tenha conscincia disto ou no, uma concepo de conhecimento
inserida num processo de compreenso de realidade. Portanto, no se ater a essa explicitao
pode determinar concepes de ensino no condizentes com a prpria dinmica da relao entre
realidade, conhecimento e formao do indivduo que da se deriva.
A realidade no se limita ao que se imediatamente se v. Segundo a concepo
marxiana, o imediato uma primeira manifestao do real. A realidade aqui entendida
enquanto um concreto, "sntese de mltiplas determinaes" (cf MARX,1983,p.218) que no
so imediatamente perceptveis. Trata-se de um processo em que, o que imediatamente se v,
uma primeira manifestao desse todo.
Esse todo multifactico, sntese de mltiplas determinaes, de carter scio-
histrico, o que coloca a compreenso das formas de produo da existncia humana no quadro
de uma perspectiva historicizadora. Nesse devir, resgata-se o prprio processo de elaborao do
conhecimento, pois, como j havia dito, compreender a realidade implica necessariamente numa
postura cognoscente sobre ela.
Para se compreender esse processo se faz necessrio apresentar alguns subsdios de
ordem terica.
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Assim, num primeiro momento, explicita-se a dinmica que determina a
transformao da realidade natural em realidade humanizada. Este primeiro momento intitula-se
"A Realidade enquanto Produto Histrico-Social Determinado pela Atividade Humana: o
Trabalho".
Entendida essa realidade enquanto um produto histrico-social, num segundo
momento, este captulo evidencia o fato de como se processa a relao do indivduo com a
realidade, j que a realidade no se manifesta em sua essncia, mas enquanto manifestaes
fenomnicas, ponto de partida para as mediaes necessrias de compreenso do real. Trata-se
da anlise da relao do indivduo com a realidade mais imediata. Este segundo momento
intitula-se "A Dinmica da Relao entre Indivduo e Realidade Humanizada".
Em face da complexidade presente no estudo da relao entre indivduo e realidade,
necessrio fundamentar esse segundo item em alguns sub-tens que revelam questes cruciais
para uma melhor compreenso dessa relao.
Assim, apontado trs sub-tens.
No primeiro sub-item, se faz necessrio compreender a impossibilidade de captao
plena do real, isto , os mecanismos que explicitam os diferentes nveis de compreenso do real.
No segundo sub-item, considera-se a relao do indivduo com os produtos das
objetivaes humanas (cf DUARTE,1993 e HELLER,1972 e 1977) a partir da sua vivncia mais
imediata, a vida cotidiana. Para tanto, alm de explicitar as formas de compreenso do real pela
atividade da vida cotidiana, se faz necessrio ressaltar a questo da familiariedade na parcialidade
de captao do real.
Finalmente, no terceiro sub-item observa-se que a relao entre indivduo e
realidade numa sociedade marcada pelas relaes de dominao, se faz segundo processos
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sociais alienantes e alienados. Se no primeiro sub-item, procura-se apontar a parcialidade da
compreenso do real, nesse terceiro sub-item aponta-se para o fato fundamental de que a relao
entre o indivduo e a realidade s pode ser entendida no quadro das relaes sociais de
dominao, j que as formas de interpretao do real manifestam-se em funo das atividades
dos indivduos inseridas no quadro dessas relaes sociais.
Para tanto, neste terceiro sub-item apresentado uma primeira compreenso da
teoria da alienao, j que as relaes sociais hoje existentes, so relaes alienadas e alienantes,
relaes intrnsecas ao modo de vida de nossa sociedade. D-se destaque para a necessria
compreenso da no-identificao entre vida cotidiana e vida alienada.
importante esclarecer que neste terceiro sub-item, as consideraes sobre a
alienao se pautam ao estritamente necessrio para a compreenso da relao do indivduo com
a realidade, no cabendo proceder quaisquer outras consideraes. A teoria da alienao por
demais complexa e exige um estudo muito maior. Diante disso, limitou-se a retirar dessa teoria,
o necessrio para a elaborao deste sub-item.
Finalmente, num terceiro momento deste captulo, abordado a relao entre
realidade e conhecimento para o caso especfico da produo do conhecimento matemtico.
Trata-se de um momento da tese em que se procurou explicitar o processo de elaborao do
conhecimento enquanto um processo histrico e social oriundo do processo de transformao da
natureza pelo homem. Para tanto, as reflexes desenvolvidas ao longo de trs sub-tens, a saber:
a origem da matemtica se dando nos limites da dimenso corporal humana; a expresso
conceitual matemtica tendo como referncia a prtica utilitria e, finalmente, o conhecimento
matemtico enquanto processo de abstraes de abstraes: as relaes.
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Nessa explicitao, procurou-se destacar o papel da atividade humana como
elemento motor da produo do conhecimento e como essa produo atinge uma etapa histrica
em que ocorre uma diferenciao entre um plano cognoscente relativo aos raciocnios mais
imediatos prprios da cotidianidade prtica-utilitria, e um outro plano, a esfera do no-
cotidiano relativo aos raciocnios que exigem nveis maiores de abstraes, sem se limitar a uma
relao objectual emprica imediata como fonte geradora de conhecimento.
Dados esses esclarecimentos, possvel agora iniciar a apresentao das
consideraes relativas ao primeiro item deste captulo:
I.1. A Realidade enquanto produto histrico-social determinado pela
atividade humana: o trabalho.
Segundo a concepo histrico-social, a realidade uma realidade humanizada tanto
objetivamente quanto subjetivamente. A humanizao da realidade significa um longo processo
histrico-social de transformao da realidade natural em realidade humanizada.
A dinmica transformadora da realidade natural em realidade humanizada se d pelo
trabalho. Segundo MARX(1985,p.111-2), o trabalho a atividade vital humana que distingue os
homens dos animais.
O trabalho atividade vital humana que se diferencia dos animais porque estes
ltimos mantm uma relao de mero consumo dos objetos naturais visando a sobrevivncia da
espcie. Os produtos da atividade dos animais algo restrito a condies biolgicas da espcie.
J o homem, ao transformar a realidade, produz uma realidade humanizada. Os produtos dessa
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realidade humana so as objetivaes. As objetivaes carregam em si as caractersticas do
gnero humano, as caractersticas e faculdades essencialmente humanas. Os animais no fazem
isso, isto , esse processo de transportar para o produto, as caractersticas do gnero. Os animais
no criam uma realidade objetivamente portadora das caractersticas do gnero a serem
apropriadas pelos demais.
J o homem, no primeiro ato de insero na realidade visando sua sobrevivncia,
cria, produz meios que garantam suas necessidades.
Segundo MARX1(1985,p.112)1:
Sem dvida o animal tambm produz. Faz o ninho, uma habitao, como as abelhas, oscastores, as formigas, etc. Mas s produz o que estritamente necessrio para si ou paraas suas crias; produz apenas numa s direo, ao passo que o homem produzuniversalmente; produz unicamente sob a determinao da necessidade fsica imediata,enquanto o homem produz quando se encontra livre da necessidade fsica e s produzverdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas se produz a si, ao passoque o homem reproduz toda a natureza; o seu produto pertence imediatamente ao seucorpo fsico, enquanto o homem livre perante seu produto. O animal constri apenassegundo o padro e a necessidade da espcie a que pertence, ao passo que o homem sabeproduzir de acordo com o padro de cada espcie e sabe como aplicar o padroapropriado ao objeto; deste modo, o homem constri em conformidade tambm com asleis da beleza.
Ocorre que a produo material humana dessas necessidades no se identifica com a
produo restrita dos meios necessrios para a garantia da sobrevivncia da espcie. Cada novo
produto da atividade humana objetivada cria novas necessidades que apropriadas, geram novas
necessidades num processo interminvel de produo da histria segundo uma relao entre
objetivao e apropriao (cf DUARTE,1993,p.28).
1 As citaes assinaladas so tradues feitas pelo autor desta tese. No anexo A pode ser vista afonte original de cada citao.
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Explicando. Cada produto da atividade humana, uma objetivao. Essa
objetivao reflete uma transformao humanizadora do elemento objetivado, pois, se na sua
origem apresenta uma determinada composio natural, mediante a interveno humana, seu
carter natural ganha feies de ordem estritamente social, humana. O homem objetiva-se no
objeto, isto , transfere ao objeto, a materializao de determinadas qualidades humanas.
Ocorre que cada objetivao s possvel mediante a apropriao das qualidades
desse objeto. E este resultado acaba se tornando objeto de apropriao para os demais homens.
Se, a princpio, o homem, para se objetivar, necessita apropriar-se das qualidades naturais do
objeto, numa segunda etapa, a objetivao resultante, ao refletir qualidades humanas, gera novas
e novas necessidades. O objeto apropriado passa a ser portador de funes sociais (cf
DUARTE,1993,p.35).
A relao entre objetivao e apropriao passa a ser dinmica geradora do
processo histrico porque cada apropriao gera novas e novas necessidades num processo sem
fim. O produto desse incessante processo histrico uma realidade social, pois, o homem
apropria-se do carter social implcito a cada objetivao, carter esse ditado pela atividade
social a presente.
Enquanto que o animal reproduz o existente, o homem supera suas limitaes
biolgicas, seu corpo orgnico. Se, em etapas histricas muito remotas, o homem para
sobreviver at ento se limitava totalmente natureza, paulatinamente sua evoluo retrata a
superao de suas condies meramente naturais, enquanto espcie animal.
Ao longo do processo de apropriao da realidade natural, o homem produz todo
um conjunto de objetivaes que em seu produto, retratam uma superao de sua limitao
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orgnica. Da, MARX(1985) se referir a essas objetivaes como o processo de formao do
corpo inorgnico do homem.
Hoje mais do que nunca, o homem atinge nveis em que ele supera suas limitaes
biolgicas. Essa superao ocorre sob dois aspectos: a superao ao nvel da cooptao de
caractersticas at ento exclusivas outras espcies e, concomitante a isso, a superao assim
entendida quanto capacidade humana de atingir nveis de conhecimento at ento somente
limitados anlise mais imediata da realidade a sua volta.
Quanto ao primeiro aspecto, interessante observar que o homem "voa" sem ter
condies biolgicas para voar; adapta para si a utilizao de animais para trao com vista,
entre outras coisas, a possibilitar um deslocamento muito alm da fora de suas passadas; a viso
humana se beneficia da construo de aparelhos pticos que permite, a qualquer homem, ter
uma capacidade visual muito melhor que a de qualquer ave de rapina; cria mquinas que lhe
possibilitam ter acesso ao universo aqutico, universo at ento inacessvel dadas as
caractersticas biolgicas humanas. Enfim, o homem apropria caractersticas de outras espcies
para seu benefcio e desenvolvimento.
Quanto ao segundo aspecto, o homem inicialmente elabora seu conhecimento a
partir da realidade em sua volta gerando um conjunto de dados empricos. Posteriormente, esses
dados empricos lanam as bases para progressivos esforos sistematizadores, determinando uma
nova etapa em que a produo do conhecimento passa a se processar em esferas de abstraes
sobre abstraes, em outras palavras, a teoria ganha autonomia frente prtica, sua inspiradora.
No entanto, se trata de uma autonomia que jamais ganha graus de autonomia absoluta. Esse
processo em que a teoria ganha relativa autonomia frente prtica, estar sendo contextualizado
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no terceiro momento deste captulo, para o caso especfico da elaborao do conhecimento
matemtico.
Ao longo desse processo histrico-social de elaborao vai-se criando uma
diferenciao entre o saber restrito esfera da vida cotidiana e um saber no mais atrelado vida
cotidiana, isto , um saber no-cotidiano. Ao longo desse processo de elaborao o que vai
ocorrendo que o saber no-cotidiano supera por incorporao esse saber cotidiano, esse saber
restrito s limitaes do cotidiano.
Em ambos os aspectos acima apontados, a formao do corpo inorgnico do
homem revela seu carter ilimitado e universal. O homem produz universalmente suas
objetivaes que ocorrem na ordem material quanto espiritual (subjetiva), quer dizer, o homem,
ao apropriar-se da natureza, cria uma realidade humanizada tanto objetiva quando
subjetivamente. Nas palavras de DUARTE(1993,p.31):
O homem, ao produzir os meios para a satisfao de suas necessidades bsicas deexistncia, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, humaniza a siprprio, na medida em que a transformao objetiva requer dele uma transformaosubjetiva. Cria, portanto, uma realidade humanizada tanto objetiva quantosubjetivamente. Ao se apropriar da natureza, transformando-a para satisfazer suasnecessidades, objetiva-se nessa transformao. Por sua vez, essa atividade objetivadapassa a ser ela tambm objeto de apropriao pelo homem, isto , ele deve se apropriardaquilo que de humano ele criou. Tal apropriao gera nele necessidades humanas denovo tipo, que exigem nova atividade, num processo sem fim.
Importante ressaltar que a humanizao da realidade no se limita produo
material objetiva. A transformao do real engendra, no prprio indivduo, transformaes de
ordem subjetivas.
O prprio homem, ao nvel de sua dimenso corporal, transformou-se. A postura
erecta, os rgos envolvidos na aquisio da fala, a mo, so produtos da necessidade da
atividade laboral sob a gide de relaes sociais.
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Os sentidos tambm so um produto da atividade laborial. A humanizao dos
sentidos j havia sido apontada por MARX e, posteriormente, confirmada pelas pesquisas
desenvolvidas pela psicologia russa em nosso sculo (cf DUARTE,1993,p.50).
MARX(1991,p.171) afirma:
todos estes sentidos e qualidades se fizeram humanos, tanto objetiva comosubjetivamente. O olho fez-se um olho humano, assim como seu objeto se tornou umobjeto social, humano, vindo do homem para o homem. Relacionam-se com a coisa poramor da coisa, mas a coisa mesma uma relao humana e objetiva para si e para ohomem e inversamente. Carecimento e gozo perderam com isso sua natureza egosta e anatureza perdeu sua mera utilidade, ao converter-se a utilidade em utilidade humana.
(grifos do autor)
LEONTIEV2(1978a,p.32) afirma que o pensamento histrico-social:
Como funo do crebro humano, o pensamento um processo natural, mas no existe margem da sociedade, margem dos conhecimentos acumulados pela humanidade e dosprocedimentos da atividade pensante elaborados por ela. Deste modo, cada homem seconverte em sujeito do pensamento somente quando domina a linguagem, os conceitos ea lgica, que constituem um reflexo generalizado da experincia da prtica social:inclusive aquelas tarefas que o homem coloca em seu pensamento so um produto dascondies sociais de sua vida. Em outras palavras, o pensamento dos homens, assimcomo sua percepo, so de natureza histrico-social.
O carter ilimitado e universal da produo das objetivaes humanas determina,
para cada indivduo singular, a necessidade da apropriao de tais objetivaes. Esse processo
o que determina a possibilidade da histria. MARKUS(1974b,p.52) afirma:
Como resultado de uma primeira atividade de trabalho, o ambiente "natural" torna-se"civilizado" ou seja, um ambiente no qual se objetivaram as necessidades e capacidadesdo homem. E to-somente porque o homem vive num mundo que se tornou por essemodo um mundo humano, to-somente porque ao nascer j encontra objetivadas aquelasnecessidades e capacidades que se manifestaram no passado, podendo assim dispormaterialmente dos resultados de todo o desenvolvimento social que lhe antecedeu, to-somente por isso torna-se possvel que o processo de desenvolvimento no se vejaobrigado a recomear sempre do incio, mas possa partir do ponto em que se deteve aatividade das geraes anteriores. Apenas o trabalho, enquanto objetivao da essnciahumana, configura de modo geral a possibilidade da histria.
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Dado o nvel de desenvolvimento do gnero humano, suas objetivaes apresentam-
se ao indivduo segundo relaes que ocorrem em nveis qualitativamente distintos.
HELLER(1977,p.227) apresenta os conceitos de objetivaes genricas em-si e objetivaes
genricas para-si para caracterizar esses diferentes nveis atingidos pelas objetivaes genricas.
As objetivaes genricas em-si referem-se ao mbito da vida cotidiana dos
indivduos. So a base da vida social. Representam o mnimo de apropriao de certas
objetivaes necessrias para a vida em seu meio social. So objetivaes genricas em-si a
linguagem, os costumes e os utenslios (os objetos).
J as objetivaes genricas para-si traduzem-se num nvel qualitativamente maior
atingido pelas objetivaes humanas. So objetivaes genricas para-si a cincia, a filosofia, a
arte, a moral, etc. Segundo DUARTE(1993,p.140), as objetivaes genricas para-si
representam o grau de desenvolvimento histrico da relao entre a prtica social e a
genericidade, isto , representam o grau de liberdade alcanado pela prtica social humana.
As objetivaes para-si traduzem uma necessidade de superao do carter
espontneo, no-intencional presente na apropriao das objetivaes genricas em-si. Estas, se
situam na esfera da vida cotidiana.
A dinmica da relao do homem com essas objetivaes ocorre da seguinte forma:
se, por um lado, cada indivduo tem que se apropriar de um mnimo desse conjunto de
objetivaes, esse mnimo ser determinado pelas circunstncias de sua vida social,
particularmente a partir de seu meio social imediato (cf DUARTE,1993:41). Alm disso, a
apropriao das objetivaes no ocorre sem o auxlio dos demais homens.
LEONTIEV(1978b,p.272) observa que
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As aquisies do desenvolvimento histrico das aptides humanas no so simplesmentedadas aos homens nos fenmenos objetivos da cultura material e espiritual que asencarnam, mas so a apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazerdeles as suas aptides, "os rgos da sua individualidade", a criana, o ser humano, deveentrar em relao com os fenmenos do mundo circundante atravs doutros homens,isto , num processo de comunicao com eles. Assim, a criana aprende a atividadeadequada. Pela sua funo, este processo , portanto, um processo de educao.
(grifos do autor)
Assim, por exemplo, para a criana,
o ambiente humano algo dado, mas no os objetos em sua qualidade humana: esses,enquanto objetos humanos, so apenas indicados como uma tarefa a levar a cabo. Paraque o menino possa entrar em relao com esses objetos enquanto objetivaes dasforas essenciais do homem, para que possa portanto utiliz-los de um modo humano,deve desenvolver tambm em si prprio as mesmas faculdades e as mesmas foras.Naturalmente, nesse caso, ocorre um processo que j no mais espontneo, pois serealiza apenas atravs da mediao dos adultos e, por conseguinte, da sociedade: o queexplica o tempo inacreditavelmente breve no qual esse processo pode ocorrer.
(grifos do autor) (MARKUS,1974b,p.54)
Importante destacar, na citao acima, o carter mediatizador inerente apropriao
espontnea da realidade. E para isso torna-se imprescindvel esclarecer o conceito de
espontneo aqui utilizado.
comum, no meio educacional da chamada educao matemtica, utilizar o
conceito de espontneo como que significando algo que surge do interior do prprio indivduo,
como que o conhecimento fosse algo interior ao indivduo, um conhecimento sem intervenes
externas, "puro", "genuno".
Ora, as consideraes tericas at aqui desenvolvidas evidenciam a insuficincia
desse conceito cotidiano de espontneo, pois, no existe apropriao da realidade sem as
mediaes de ordem histrico-sociais. O conceito de "espontneo" aqui utilizado difere do
conceito presente na maioria dos trabalhos na rea da educao matemtica.
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O conceito de "espontneo" empregado nesta tese, tem o significado de algo "no-
intencional". Na vida cotidiana, a apropriao da realidade se d de forma no-intencional,
porque dentre as caractersticas ineliminveis da vida cotidiana, h a espontaneidade. Entretanto
essa espontaneidade no significa que no haja mediaes de ordem histrico-sociais. Um
exemplo disso, a apropriao da linguagem escrita e da linguagem oral.
Nenhuma me ou pai coloca em questo qual seria o mtodo ideal para ensinar seu
filho a falar. O processo da aquisio da fala se d de forma no-intencional, de forma
espontnea. J a apropriao da linguagem escrita coloca para os educadores, a questo sobre
quais seriam as formas, quais os mtodos, quais as teorias sobre a apropriao da linguagem
escrita, que eles deveriam se basear para elaborar procedimentos lgico-metodolgicos que
garantiriam aos indivduos a apropriao. Aqui, trata-se de uma apropriao intencional, no-
espontnea.
Importante observar que em ambas apropriaes (da linguagem oral como da
escrita) se faz presente as mediaes histrico-sociais entre os homens.
Mais precisamente, o processo espontneo (no-intencional) no significa que no
seja mediatizado. Ele mediatizado, mas segundo uma mediao em-si, espontnea (no-
intencional). J um processo intencional (no-espontneo), como por exemplo a apropriao da
linguagem escrita, algo que tambm se d por mediaes, mas mediaes da ordem de
mediaes para-si, intencionais, no-espontneas.
Assim, se for dito que "espontneo tudo que parte do indivduo sem nenhuma
interveno externa", ento se faz necessrio discordar, pois, a rigor, no existe apropriao
espontnea (aqui espontneo enquanto sem interveno externa). Agora se for dito que
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"espontneo aquilo que no envolve uma relao para-si, uma relao de intencionalidade", a
sim, nesse significado correto dizer que existe apropriao espontnea (isto , no-intencional).
Trata-se, sem dvida, de um significado pouco utilizado no quadro das pesquisas
em educao matemtica e, embora, no captulo referente s implicaes de ordem pedaggicas
decorrentes da concepo imediata de realidade, ser apresentado reflexes mais detalhadas
sobre essa questo, desde j ressalta-se a insuficincia de algumas teorias educacionais apoiadas
na idia de que o conhecimento no-escolar, freqentemente apropriado em tarefas da vida
cotidiana, algo "puro", "genuno", "isento de intervenes externas", enfim, no significado
"espontneo" adotado por eles. A apropriao do real no ocorre sem a interferncia dos
demais homens. A criana no "constri" determinado conhecimento mas reproduz o que ela
capta das relaes com os demais homens.
At aqui foi exposto o carter scio-histrico inerente realidade. Tal carter revela
a universalidade da produo material e no-material dessa realidade. Pensando ao nvel do
indivduo singular, sua formao enquanto elemento do gnero humano ocorre apropriando-se
dos resultados das geraes anteriores e, graas a essa apropriao, elaborando sempre novas
objetivaes. O homem se faz enquanto produto da histria, pela incessante apropriao das
objetivaes existentes gerando, cada vez mais, novas objetivaes. No item a seguir, ser
abordado a relao existente entre o indivduo e essas objetivaes no que se refere ao fato de
que a formao da individualidade exige a apropriao de mediaes para garantir o acesso
essas objetivaes no se limitando realidade imediata.
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I.2. A Dinmica da Relao entre Indivduo e Realidade Humanizada.
Neste segundo item deste captulo, o objetivo explicitar aspectos inerentes
compreenso da relao entre o indivduo e a realidade. Para tanto, se faz necessrio considerar
trs aspectos mutuamente presentes e que so aqui apresentados na forma de trs sub-tens,
assim denominados:
I.2.1. A parcialidade de captao do real; a atividade como elemento mediador
entre indivduo e sua interpretao de realidade;
I.2.2. O indivduo e sua relao com a realidade humanizada a partir da esfera
da vida cotidiana; a familiaridade na parcialidade de captao do real;
I.2.3. Sobre a alienao permeando a relao entre indivduo e realidade.
Dada a complexidade das questes envolvidas na compreenso da relao entre
indivduo e realidade, no se pretendeu exaurir com a apresentao desses trs sub-tens, essas
questes, mas sim, possibilitar dar subsdios tericos necessrios para a anlise da problemtica
no que se refere relao entre indivduo e realidade.
Dito isso, possvel ento iniciar a anlise de cada um dos sub-tens apontados.
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I.2.1. A parcialidade de captao do real, a atividade como elemento mediador
entre indivduo e sua interpretao da realidade;
A realidade no se apresenta de imediato ao indivduo. Enquanto um todo de
mltiplas determinaes, a realidade aparece para o indivduo no nvel das primeiras
manifestaes. O pensamento capta as formas mais imediatas, formas que na verdade j so
mediaes de ordem histrico-sociais conforme estudos de autores da psicologia sovitica (cf
LURIA(1988), LEONTIEV(1978a e 1978b) e VYGOTSKY(1987 e 1988)).
Esse todo imediatamente captado (dado os estudos da psicologia sovitica, o termo
"imediatamente captado" aqui entendido enquanto relativa imediaticidade (cf
JARDINETTI,1991,p.35) revela-se ao pensamento como um todo catico, confuso em que no
se evidencia os diferentes aspectos e relaes.
Partindo-se desse todo catico, o pensamento promove um processo analtico em
que se elaboram abstraes necessrias para identificar cada aspecto de per si e suas mltiplas
determinaes. partir dessas abstraes, o pensamento rearticula as partes de per si
promovendo um movimento de sntese mediante a rearticulao dessas partes. O resultado um
todo compreendido em sua essncia.
As abstraes so, portanto, as mediaes necessrias que garantam a superao de
uma viso imediata de um concreto real que inicialmente se manifesta emprico, catico, para a
compreenso desse mesmo concreto compreendido na multiplicidade de suas determinaes. Da
MARX(1983,p.218) referir-se ao concreto como ponto de partida e de chegada do processo de
elaborao do conhecimento:
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por isso que ele para o pensamento um processo de sntese, umresultado, e no um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida eportanto o ponto de partida da observao imediata e da representao.
A captao do real nunca plena. Para o pensamento, apropriao do concreto em
toda a sua multiplicidade, jamais alcanada. O que pode ocorrer a necessria compreenso,
cada vez maior, das mltiplas determinaes que compem o objeto observado. O pensamento
no capta o concreto enquanto totalidade porque isso s possvel ao longo de todo o processo
histrico-social de elaborao do conhecimento. Na verdade, o conhecimento se compe de
verdades relativas, e no se pode falar de uma verdade que abarca a essncia do real se esta
essncia no for entendida como sendo o processo histrico-social que, em constante
elaborao, aponta para a captao progressiva da realidade enquanto totalidade concreta,
enquanto sntese de mltiplas relaes. A realidade enquanto totalidade concreta um longo
processo de elaborao histrico-social do conhecimento pela mediao das abstraes tericas.
Se, por um lado, a realidade no se apresenta de imediato ao indivduo, por outro
lado, as manifestaes mais imediatas do real, a realidade enquanto aparncia, permite de certa
forma, uma primeira interpretao da realidade e, muitas vezes, lana condies para o indivduo
nela se situar satisfatoriamente. KOSIK(1985,p.24) afirma
O homem sempre v mais do que aquilo que percebe imediatamente. A casa diante daqual me encontro, no a percebo como um conjunto de formas geomtricas, dequalidades fsicas do material de construo, de meras relaes quantitativas; dela tomoconscincia antes de tudo como habitao humana e como harmonia, no claramentepercebida, de formas, cres, superfcies etc. Do mesmo modo o rudo que ouo no opercebo como ondas de uma certa freqncia, mas sim como o rudo de um aparelho quese afasta ou se aproxima, e apenas por sse rudo posso distinguir se se trata de umhelicptero, de um avio a jato, de um caa ou de um avio de transporte etc. Da minhaaudio e da minha vista participam, portanto, de algum modo, todo o meu saber e aminha cultura, tdas as minhas experincias - sejam vivas, sejam ocultas na memria ese manifestando em determinadas situaes -, os meus pensamentos e as minhasreflexes, apesar disto no se explicitar nos atos concretos da percepo e da experinciasob um aspecto predicativo explcito. Na apropriao prtico-espiritual do mundo, daqual e sbre o fundamento da qual derivam originriamente todos os outros modos deapropriao - terica, artstica etc. - a realidade , portanto, concebida como um todo
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indivisvel de entidades e significados, e implcitamente compreendida em unidade dejuzo de constatao e de valor.
Nessa citao, KOSIK analisa o momento da captao do real. Trata-se de uma
captao no todo de sua imediaticidade, na indivisibilidade dos aspectos multifacticos captados
pelo indivduo. Essa captao da realidade rica mas ao mesmo tempo, revela seus limites. Ela
rica porque abarca uma multiplicidade de aspectos, mas limitada porque essa multiplicidade
no revela a essncia desses aspectos. A primeira captao da realidade funde essncia e
aparncia numa coisa s, sem a possibilidade de distino entre o que essencial e o que
secundrio.
Freqentemente, a relao do indivduo com a realidade se coloca ao nvel da
apropriao de formas de interpretao da realidade segundo o esquema explicativo do
pensamento pragmtico-utilitrio. Trata-se de uma forma de relao do indivduo com a
realidade que inerente prpria atividade do indivduo sobre a realidade. KOSIK(1985,p.09)
afirma:
A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, no a de um abstratosujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente,porm a de um ser que age objetiva e prticamente, de um indivduo histrico que exercea sua atividade prtica no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista aconsecuo dos prprios fins e intersses, dentro de um determinado conjunto derelaes sociais. Portanto, a realidade no se apresenta aos homens, primeira vista, sobo aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender tericamente, cujoplo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existefora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita asua atividade prtica-sensvel, sbre cujo fundamento surgir a imediata intuio prticada realidade. No trato prtico-utilitrio com as coisas - em que a realidade se revelacomo mundo dos meios, fins intrumentos, exigncias e esforos para satisfazer a estas -o indivduo "em situao" cria suas prprias representaes das coisas e elabora todo umsistema correlativo de noes que capta e fixa o aspecto fenomnico da realidade.
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Embora nessa citao, KOSIK afirme que o indivduo "cria" suas prprias
representaes das coisas, preciso observar que o indivduo no cria as representaes das
coisas do "nada", ele no cria isoladamente a partir das meras construes de significados
individuais que ele produz. Ele cria a partir da apropriao de todo um mundo de significados j
existentes socialmente.
A manifestao fenomnica do real muitas vezes fornece uma interpretao
equivocada da realidade j que
"a existncia real" e as formas fenomnicas da realidade - que se reproduzemimediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada praxis histrica, comoconjunto de representaes ou categorias do "pensamento comum" (que apenas por"hbito brbaro" so consideradas conceitos) - so diferentes e muitas vzesabsolutamente contraditrias com a lei do fenmeno, com a estrutura da coisa e,portanto, com o seu ncleo interno essencial e o seu conceito correspondente...Por isso, apraxis utilitria imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem emcondies de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manej-las, masno proporcionam a compreenso das coisas e da realidade.
(KOSIK,1985,p.10)
A imediaticidade na manifestao da realidade no algo a se descartar no que
tange sua validade enquanto critrio de conhecimento. Conforme j dito, o imediato
parmetro para o indivduo se situar, pois transmite alguma forma de esclarecimento. O
problema est em elevar o imediato como sendo o nico parmetro, a realidade inteira. O
imediato parte da realidade, sua parte emprica.
Para se entender a realidade enquanto multiplicidade de suas determinaes, o
homem necessita ir alm de suas sensaes. Ele no pode limitar-se s suas percepes
imediatas. Ele precisa utilizar-se de abstraes, pois, a realidade sempre dinmica e, portanto,
se d por relaes. O homem precisa utilizar rgos de seu corpo inorgnico atravs do trabalho
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e da comunicao com os demais homens. As mediaes necessrias so produtos histrico-
sociais gerados pela sua atividade.
O conceito de atividade aqui utilizado no o de atividade de um indivduo isolado,
de um indivduo que cria a partir do "nada" suas prprias significaes. Trata-se de uma
atividade na qual o indivduo se relaciona com a natureza e com os demais seres humanos e,
nessa relao, ele se apropria das significaes socialmente existentes, das funes sociais dos
objetos, dos comportamentos, da linguagem, etc.
Se a relao do indivduo com a realidade algo que se d de forma inerente
prpria atividade do indivduo sobre a realidade, essa atividade o parmetro para as diversas
interpretaes do real. Trata-se de uma particular interpretao de realidade determinada pelo
tipo de relao de produo que se estabelece e essa interpretao, no inerente "essncia"
do indivduo, mas sim, determinada pelas circunstncias de sua vida social, particularmente a
partir de seu meio social imediato.
A interpretao de determinado objeto da realidade se d sob esse objeto, em sua
condio transformada pela atividade de trabalho. No se trata de um objeto inato, imediato,
mas algo que sofreu a interveno da atividade e se transformou em produto humano e social.
Na medida em que a atividade o parmetro para o entendimento do real, diferentes
objetos podero apresentar diferentes qualidades de interpretao de acordo com a insero do
indivduo na sua produo social. A atividade revela-se ser a chave para apropriao dos
diversos aspectos da prtica social. KOSIK(1985,p.22-3) esclarece
No possvel compreender imediatamente a estrutura da coisa ou a coisa em simediante a contemplao ou a mera reflexo, mas sim mediante uma determinadaatividade. No possvel penetrar na "coisa em si" e responder pergunta - que coisa a "coisa em si" ? - sem a anlise da atividade mediante a qual ela compreendida; aomesmo tempo, esta anlise deve incluir tambm o problema da criao da atividade que
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estabelece o acesso "coisa em si". Estas atividades so os vrios aspectos ou modos daapropriao do mundo pelos homens (...).No possvel apropriar-se, e, portanto,tampouco compreender, a matemtica e a realidade a que a matemtica nos introduz,mediante uma intencionalidade no correspondente realidade matemtica, por exemplo,mediante a experincia religiosa ou a percepo artstica. O homem vive em muitosmundos mas cada mundo tem uma chave diferente, e o homem no pode passar de ummundo para o outro sem a chave respectiva, isto , sem mudar a intencionalidade e ocorrespondente modo de apropriao da realidade. Para a filosofia e a cincia moderna(a qual permanentemente enriquecida pelo conceito de praxis), o conhecimentorepresenta um dos modos de apropriao do mundo pelo homem; alm disso, os doiselementos constitutivos de cada modo humano de apropriao do mundo so o sentidosubjetivo e o sentido objetivo. Qual a inteno, qual a viso, qual o sentido que ohomem deve desenvolver, como deve "preparar-se" para compreender e descobrir osentido objetivo da coisa ? O processo de captao e descobrimento do sentido da coisa ao mesmo tempo criao, no homem, do correspondente sentido da coisa. possvel,portanto, compreender o sentido objetivo da coisa se o homem cria para si mesmo umsentido correspondente. Estes mesmos sentidos, por meio dos quais o homem descobre arealidade e o sentido dela, coisa, so um produto histrico-social. (grifos do autor)
Importante destacar nessa citao, a questo da atividade do indivduo como uma
atividade social historicamente localizada. O acesso para os diferentes "mundos", em outras
palavras, o acesso s objetivaes do gnero humano no se d "sem mudar a intencionalidade e
o correspondente modo de apropriao da realidade".
Por exemplo, a criana ao manipular talheres, empresta ao objeto um significado
diferente daquele enquanto instrumento para as refeies. A criana s entende a utilidade dos
talheres na execuo das refeies se ela se apropriar da funo social implcita ao objeto. O
garfo, a faca, a colher, cada um tm uma funo especfica. No adianta a criana tentar utilizar a
colher para cortar os alimentos. A compreenso das funes de cada talher ser transmitida para
a criana pelos adultos presentes.
J para um presidirio, a colher, a faca e o garfo ganham outras feies, pois, podem
transformar-se em instrumento de fuga, quer sejam transformadas em armas para coagir e
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viabilizar a fuga, quer sejam instrumentos para cavar um tnel, por exemplo. A realidade social
do presidirio empresta aos talheres outro significado que aquele restrito alimentao.
Um outro exemplo o clssico experimento de LURIA (apud
VIGOTSKII,1988,p.45) em que ele apresenta, para diferentes grupos sociais de aldeias e
campos nmades do Uzbekisto e da Khirgizia na sia Central, diferentes estmulos geomtricas
para serem nomeados e agrupados.
Os grupos sociais eram cinco: mulheres analfabetas sem qualquer envolvimento em
determinada atividade social; camponeses analfabetos sem qualquer envolvimento com o
trabalho socializado; mulheres que passaram por cursos rpidos para o ensino nos jardins de
infncia; trabalhadores e jovens de fazendas coletivas com experincia na produo mas pr-
alfabetizados e, finalmente, estudantes do sexo feminino admitidas na escola de preparao de
professores.
O que se percebeu que as respostas dos grupos com nenhuma instruo escolar
eram associadas aos objetos de seu ambiente de trabalho e os agrupavam tambm de acordo
com o ambiente de trabalho. Por exemplo, para as mulheres analfabetas, um crculo, um
quadrado e um tringulo eram respectivamente, um prato, um espelho e um paneleiro.
Conforme os grupos apresentavam maior instruo escolar, as respostas eram dadas
segundo os nomes geomtricos abstratos.
Tal procedimento estava relacionado uma finalidade especfica, a experincia
prtica ditada pela atividade especfica de trabalho.
O experimento de LURIA demonstra, entre outras coisas, que a interpretao da
realidade se d pela mediao da atividade do sujeito na realidade.
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Portanto, a diversidade das objetivaes humanas revela que a multiplicidade das
objetivaes s possveis de ser apropriada ao longo dos diferentes modos de vida de todo o
homem.
J adiantando a discusso, tendo como base ainda aquela citao de
KOSIK(1985,p.22-3), possvel afirmar que a estrutura da vida cotidiana no abarca a plenitude
das objetivaes humanas. Por exemplo, o conhecimento matemtico apropriado ao nvel da
vida cotidiana apresenta-se mediante uma particular atividade que difere da atividade especfica
presente na esfera escolar. Neste aspecto, a prtica pedaggica justifica-se enquanto a atividade
correspondente ("a chave" a que se refere o autor citado) que coloca o indivduo em contato
com raciocnios e pensamentos de conceitos matemticos que no so produzidos, a no ser na
forma de grmens, na vida cotidiana. Para que esses grmens, idias, conceitos matemticos
fragmentrios, presentes na vida cotidiana se desenvolvam, preciso ultrapassar a atividade
correspondente colocada no mbito da vida cotidiana e se situar no mbito da genericidade para-
si mediante a sua atividade correspondente que est presente na prtica escolar. Maiores detalhes
sobre a essa questo, estar sendo apresentado presente no segundo captulo desta tese.
preciso agora considerar a relao do indivduo com a realidade a partir do modo
de vida mais imediato, isto , a vida cotidiana. Trata-se de uma esfera da realidade em que
ocorre uma pretensa idia de familiaridade para com os fenmenos presentes na realidade.
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I.2.2. O indivduo e sua relao com a realidade humanizada a partir da esfera
da vida cotidiana; a familiaridade na parcialidade de captao do real;
O conceito de vida cotidiana aqui utilizado apoia-se no conceito de vida cotidiana
apresentado por HELLER3(1977,p.19). Segundo a autora, a vida cotidiana
o conjunto de atividades que caracterizam a reproduo dos homens particulares, osquais, por sua vez, criam a possibilidade da reproduo social.
Como observa DUARTE(1995,p.21), HELLER diferencia atividades cotidianas das
atividades no-cotidianas segundo a relao dialtica entre reproduo da sociedade e
reproduo do indivduo. Assim, as atividades cotidianas abarcam o conjunto das atividades
voltadas para a reproduo do indivduo e que contribuem, indiretamente, para a reproduo da
sociedade. J atividades no-cotidianas referem-se s atividades voltadas para a reproduo da
sociedade e que contribuem, indiretamente, para a reproduo do indivduo.
Na vida cotidiana, o indivduo se lana tarefa de se apropriar de um conjunto
mnimo de objetivaes do gnero humano enquanto o mnimo para que esse indivduo possa se
situar socialmente. A vida cotidiana
se desenvolve e se refere sempre ao ambiente imediato. O ambiente cotidiano de um reino o reino mas a corte. Todas as objetivaes que no se refere ao particular ou a seuambiente imediato, transcendem o cotidiano. (grifos no original)
(HELLER4 , 1977,p.25)
Esse mnimo compem-se das objetivaes genricas em-si, isto , os costumes, os
objetos e a linguagem. O termo "em-si" caracteriza a "genericidade que se efetiva sem que haja
uma relao consciente dos homens para com ela" (DUARTE,1993,p.135).
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Assim, na esfera da vida cotidiana, as relaes dos indivduos com as objetivaes
se do mediante a realizao das atividades da vida cotidiana sob o reino da apropriao dessas
objetivaes em-si.
HELLER, ao referir-se s atividades cotidianas como aquelas que estariam
contribuindo indiretamente para a reproduo da sociedade, quer dizer que mediante a
apropriao das objetivaes em-si estaria sendo garantida a base para a vida social, "o
fundamento da atividade do indivduo" (cf DUARTE,1993,p.138). essa "base" que orienta e
permite, inclusive, a apropriao dos demais mbitos da genericidade. A vida cotidiana ,
portanto, o mbito por excelncia das objetivaes em-si e o fundamento das objetivaes para-
si. HELLER5(1977,p.229) afirma
A humanizao efetiva do homem ... comea no momento em que o homem se apropriadesta esfera de objetivaes em-si por meio de sua atividade. Este o ponto de partida detoda cultura humana, o fundamento e a condio de toda esfera de objetivaes para-si,com uma particular importncia na vida cotidiana ... Cada um, em sua vida cotidiana,deve apropriar-se das objetivaes genricas em-si como fundamento necessrio einequvoco de seu crescimento, de se converter em homem.
Segundo a autora (ibidem,p.241) as objetivaes em-si so sistemas unitrios
(indissolveis) de referncia e de instrumentos elaborados pela atividade humana, mas ao mesmo
tempo seu guia. Assim, se por um lado os objetos (os utenslios) guiam atividade material-
concreta, por outro lado, os objetos so produtos do trabalho.
Da mesma forma ocorre para as demais objetivaes em-si. Assim, os costumes (o
mundo dos usos) orientam os modos de comportamentos e, ao mesmo tempo, so objetivaes
de modos de vida derivados da produo e distribuio das demais atividades sociais. J a
linguagem orienta as atividades do pensamento e, ao mesmo tempo, o pensamento humano se
objetiva na linguagem.
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A vida no-cotidiana refere-se s esferas das apropriaes das objetivaes para-si,
isto , a cincia, a arte, a moral, a filosofia, etc. Traduzem o grau de desenvolvimento histrico
atingido pelo gnero humano. Nas palavras da autora (ibidem:233), o para-si constitui a
encarnao da liberdade humana.
Um fator determinante que permite diferenciar a apropriao das objetivaes em-si
das objetivaes para-si a relao existente entre o indivduo singular e o modo de apropriao
de tais objetivaes. As objetivaes em-si so apropriadas segundo uma relao no-consciente,
no-intencional. J as objetivaes genricas para-si so apropriadas segundo uma relao
intencional para com a genericidade, intencionalidade que permite uma relao consciente do
indivduo para com sua prpria vida cotidiana.
O que explica a efetivao de uma relao consciente para com a realidade social ao
longo do processo de apropriao das objetivaes para-si est no carter essencialmente
homogeneizador das objetivaes para-si em oposio ao carter heterogneo das objetivaes
em-si (cf DUARTE,1995,p.43-9, HELLER,1977,p.115-8).
Segundo HELLER(1972,p.17)
A vida cotidiana a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vidacotidiana com todos os aspectos de sua individualidade de sua personalidade. Nele,colocam-se "em funcionamento" todos os sentidos, todas as suas capacidadesintelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixes, idias,ideologias. O fato de que todas as suas capacidades se coloquem em funcionamentodetermina tambm, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe,em toda sua intensidade. O homem da cotidianidade atuante e fruidor, ativo ereceptivo, mas no tem nem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente emnenhum desses aspectos; por isso, no pode agu-los em toda sua intensidade. A vidacotidiana , em grande medida, heterognea; e isso sob vrios aspectos, sobretudo no quese refere ao contedo e significao ou importncia de nossos tipos de atividade.
(grifos no original)
E a autora complementa (ibidem, p.27)
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Sabemos que a vida cotidiana heterognea, que solicita todas as nossas capacidades emvrias direes, mas nenhuma capacidade com intensidade especial. Na expresso deGeorg Lukcs: o "homem inteiro" ["ganze Mensch"] quem intervm na cotidianidade.O que significa homogeneizao ? Significa, por um lado, que concentramos toda nossaateno sobre uma nica questo e "suspenderemos" qualquer outra atividade durante aexecuo da anterior tarefa; e, por outro lado, que empregamos nossa inteiraindividualidade humana na resoluo dessa tarefa. Utilizemos outra expresso deLukcs: transformamo-nos assim em um "homem inteiramente" ["Menschen ganz"]. Esignifica, finalmente, que esse processo no se pode realizar arbitrariamente, mas to-somente de modo tal que nossa particularidade individual se dissipe na atividadehumanogenrica que escolhemos consciente e autonomamente, isto , enquantoindivduos. (grifos no original)
O processo de homogeneizao aquele em que se efetiva a superao da
heterogeneidade da vida cotidiana mediante a suspenso de outras atividades no relacionadas
quela especfica que est sendo realizada, e no a suspenso da atividade exigida. Na
apropriao das objetivaes em-si, o contedo a exigido se apresenta enquanto um elemento
do quadro multifactico das atividades heterogneas. Da que se verifica no haver a devida
suspenso das outras atividades no relacionadas atividade exigida.
J na apropriao das objetivaes para-si, o contedo a apropriado, por exemplo,
a cincia, ocorre em intrnseca unidade para com a atividade exigida. Da, a autonomia presente
nas atividades cientficas, artsticas e filosficas. Essa autonomia se efetiva porque a
homogeneizao promove a reproduo do gnero humano sem que haja (ao menos de forma
muito indireta) a reproduo do homem singular.
O processo de homogeneizao envolve trs critrios para sua realizao
(HELLER,1977,p.117-8). Tais critrios so: a necessria relao imediata para com determinada
objetivao genrica; a concentrao nesta realizao em uma nica tarefa; e o fato de que, no
decorrer da atividade homogeneizadora, seja suspensa a particularidade do indivduo pela
efetivao de uma relao direta para com sua genericidade.
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Na medida em que as objetivaes genricas para-si traduzem-se em uma
necessidade de superao do carter espontneo, no-intencional, presente na apropriao das
objetivaes genricas em-si, e essa superao e suspenso, se d pelo processo de
homogeneizao, este proces