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UNIVERSIDADE DE SO PAULO ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
GISA FERNANDES DOLIVEIRA
So Paulo 2009
Saberes Enquadrados:
Histrias em Quadrinhos e (Re)Construes Identitrias
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GISA FERNANDES DOLIVEIRA
SABERES ENQUADRADOS: HISTRIAS EM QUADRINHOS E
(RE)CONSTRUES IDENTITRIAS
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Cincias da Comunicao da Escola de Comunicaes e
Artes da Universidade de So Paulo, como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias
da Comunicao.
rea de concentrao: Interfaces Sociais da
Comunicao.
Orientador: Prof. Dr. Waldomiro de Castro Santos
Vergueiro
So Paulo
2009
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer
meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que
citada a fonte.
Dados Internacionais de Catalogao da Publicao (CIP)
Bibliotecria: Ktia Soares Braga (CRB/DF 1522)
_______________________________________________________________ DOliveira, Gisa Fernandes.
Saberes enquadrados: histrias em quadrinhos e (re)construes identitrias / Gisa Fer-
nandes DOliveira. So Paulo: [s.n.], 2009.
199 p.; il. (tiras e capas de peridicos e revistas em quadrinhos).
Orientador: Prof. Dr. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro. Tese (Doutorado em Cin-
cias da Comunicao) Universidade de So Paulo, Escola de Comunicaes e Artes, Programa
de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao, 2009.
1. Histrias em quadrinhos, aspectos sociais e polticos. 2. Linguagem das histrias em
quadrinhos. 3. Identidade social. 4. Representao cultural. 5. Arte e literatura. 6. Cultura visual de
massa. 7. Foucalt, Michel crtica e interpretao. I.Vergueiro, Waldomiro de Castro Santos. (Ori-
entador). II Ttulo: histrias em quadrinhos e (re)construes identitrias.
CDU 304 : 741.5 CDD 305.4
______________________________________________________________
-
Nome: Gisa Fernandes DOliveira Ttulo: Saberes enquadrados: (Re)construes identitrias nas histrias em quadrinhos Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias da Comunicao. rea de concentrao: Interfaces Sociais da Comunicao. Aprovada em: ____________________________________________________
Banca Examinadora:
Prof. Dr._________________________________________________________ Instituio: ______________________________________________________ Julgamento:_____________________________________________________ Assinatura:______________________________________________________
Prof. Dr._________________________________________________________ Instituio: ______________________________________________________ Julgamento:_____________________________________________________ Assinatura:______________________________________________________
Prof. Dr._________________________________________________________ Instituio: ______________________________________________________ Julgamento:_____________________________________________________ Assinatura:______________________________________________________
Prof. Dr._________________________________________________________ Instituio: ______________________________________________________ Julgamento:_____________________________________________________ Assinatura:______________________________________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________ Instituio: ______________________________________________________ Julgamento:_____________________________________________________ Assinatura: ______________________________________________________
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Para
Gilce Glria, por tornar possvel
e Osas (in memorian), pela proteo.
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Agradecimentos:
Agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior (CAPES) pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa e
eficiente e prestativa equipe de funcionrios da ps-graduao da ECA.
Agradeo minha famlia, pela compreenso e pelo apoio, assim como
a todos que tornaram a concluso deste trabalho possvel, em especial ao Prof.
Dr. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, pelo acompanhamento dedicado
durante todo o percurso e pela leitura atenta das verses preliminares do texto.
Devo ao Prof. Waldomiro, alm de sua orientao rigorosa, generosa e
paciente, a grande lio de que o pesquisador pode (e deve) encarar a
experincia da pesquisa como um exerccio prazeroso.
A solicitude, o carinho e o sincero interesse pelo trabalho de seus
orientandos por parte do Prof. Waldomiro so provas de que as Cincias
Humanas sero to mais cientficas, quanto mais se permitirem ser humanas.
Agradeo a Juliana Sampaio Farinaci, a Maurcio de Carvalho Teixeira,
irmos por afinidade, a quem devo todo o apoio material e psicolgico, desde a
poca do processo seletivo. Palavras seriam insuficientes para expressar
minha gratido e carinho por vocs.
Victor Machado, Andr Mesquita e Eliene Quadros conseguiram a
proeza de fazer de So Paulo um lar para uma niteroiense acanhada e lhes
serei eternamente grata pelas gentilezas e favores que me prestaram.
Agradeo tambm aos amigos de longa data: Cristiana Schettini, em
particular por seu empenho em me proporcionar o acesso aos originais
publicados na Argentina; Gustavo Magalhes Lopes, pelas informaes a
respeito da aplicao das categorias de cultura na gesto de projetos pblicos;
Marcelo Lion Villela Souto, pelas aulas de filosofia e Lgia Maria Coelho de
Souza Rodrigues, sobretudo por sua diligente busca de bibliografia em lngua
alem.
Agradeo aos amigos: Marcelo Senna Guimares, por me apresentar a
Deus, Buda e a toda a galeria de personagens de seu excelente acervo e por sempre duvidar, forando-me a elaborar solues para suas crticas e, com
isso, amadurecer intelectualmente; Marco Aurlio Brandt, pelas informaes a
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respeito dos procedimentos de anlise de imagens e Filipe Ceppas por suas
valiosas sugestes, as quais interferiram de maneira inesperada e decisiva nos
rumos da investigao.
Agradeo ainda a meus amigos de alm-mar, Rut Maria Collado,
Rdiger Schmelz, Frederik Vo e Robert Jaquet, que tanto contriburam com
suas sugestes, alm do prdigo envio de material indito no Brasil.
Por fim, agradeo a Joo Guilherme Portela Bauzer, pequeno brasileiro
nascido no Reino Unido, por me ensinar, com suas tiradas infantis, tantas
coisas a respeito de identidades. Espero que ele um dia leia esta tese ou, pelo
menos, se divirta com as figuras.
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Resumo:
DOLIVEIRA, Gisa Fernandes. Saberes Enquadrados: (Re)construes identitrias nas histrias em quadrinhos. Tese (Doutorado). Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo (USP). So Paulo, 2009.
Analisa o processo de construo e reconstruo de identidades por
meio das histrias em quadrinhos e a consolidao da imagem que a
linguagem reivindica para si.
Utiliza os fundamentos do mtodo arqueolgico/genealgico
(FOUCAULT, 1979) como uma via de aproximao do processo de construo
cultural na sociedade. A hiptese sustentada a de que as linguagens, como
um todo, esto sujeitas a um duplo movimento de incorporao de aspectos da
sociedade disciplinar e construo de novas realidades identitrias.
Os resultados da pesquisa reforam a necessidade de se lanar um
novo olhar em relao s histrias em quadrinhos no contexto social de
esmaecimento das fronteiras identitrias. possvel se perceber, por meio da
linguagem, os novos papis reservados representao e interao entre
imagens e coisas, arte e produto.
Palavras-chave: Quadrinhos. Identidades. Representao. Cultura. Foucault.
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Abstract:
DOLIVEIRA, Gisa Fernandes. Squared Knowledge: Comics and the (Re)construction of identities. Thesis (PhD). Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo (USP). So Paulo, 2009.
Discusses the process of construction and reconstruction of identities in
comics and how this form of expression builds a particular image for itself. The
process of cultural construction in society is analyzed by means of the
archaeological and genealogical methodology (FOUCAULT, 1979).
The work sustains that any form of expression, comics included, is
subject to a double movement that comprises the incorporation of some aspects
of the disciplinary society but also creates new possibilities for identitarian
expressions.
The results reinforce the importance of a new look at comics, considering
the context of vanishing identity boundaries in present society. The language of
comics makes it possible to recognize new roles performed by representation
and the interaction between images and things, art and products.
Keywords: Comics. Identities. Representation. Culture. Foucault.
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Lista de Ilustraes:
As referncias s ilustraes utilizadas no decorrer do texto encontram-se em
suas respectivas legendas, respeitando o sistema autor-data, com exceo de:
Ilustraes provenientes de websites, listadas a partir da pgina 200. Figura de encerramento da pgina de agradecimentos: Mafalda, de Joa-
quin Salvador Lavado (Quino). In Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, volume 1, 1999. p. 3.
Figura que abre o captulo 1 (pgina 12) e figura de encerramento (pgi-na 202): As Cobras, de Luis Fernando Verssimo. In. As cobras em: se Deus existe que eu seja atingido por um raio. Porto Alegre: L&PM, 1997. pp. 159 (detalhe) e 114, respectivamente.
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Sumrio:
Captulo 1: Metodologia, Objetivos e Hipteses 12 1.1. Metodologia 17 1.2. Objetivos e Hipteses 21 Captulo 2: O Quadro Ululante 26 2.1. Sobre histrias em quadrinhos 26 2.2. Os quadrinhos brasileiros 43 2.2.1. A relao com o humor 43 2.2.2. Entre a pedagogia e o entretenimento 44 Captulo 3: Fundamentao Terica 51 3.1. Enquadrando conceitos 51 3.2. Identidades Lquidas 85 Captulo 4: Saberes Enquadrados 94 4.1. Os duplos 94 4.2. Pai e Filho: Erich Ohser e crtica poltica em quadrinhos 99 4.3. Poder e Saber na Modernidade Lquida 104 4.4 As identidades brasileiras 110 4.4.1. Pag e a construo de uma identidade poltica 115 4.4.2. O curioso personagem de Mauricio de Sousa 117 4.4.3. Laerte e as reconfiguraes da brasilidade 119 4.4.4. Verssimo: desconstrues no suporte, reconstrues discursivas 138 4.4.5. Os trapalhes: identidade e pardia 144 4.5. Argentina em dois tempos: Mafalda e Liniers 148 4.6. Calvin e Haroldo: identidade versus publicidade 155 4.7 Mahler, Knig e Moers: mesma lngua,
diferentes construes identitrias 158 4.7.1. Nicolas Mahler e a teoria da arte 159 4.7.2. Ralf Knig: o mercado de identidades sexuais 164 4.7.3. Moers e os problemas da Histria 167 4.8. Alinhavando as idias, enquadrando saberes 169 Captulo 5: O que Querem os Quadrinhos 172 Referncias 188
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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Captulo 1: Metodologia, Objetivos e Hipteses
Introduo: Eu, que no desenho...
Durante o lanamento do livro Muito Alm dos Quadrinhos (VERGUEIRO e RAMOS, 2009), passei por curiosa experincia. Dividindo com
os colegas autores a mesa de autgrafos, mais precisamente a ponta da mesa,
vi o ilustrador e pesquisador Eloar Guazzelli chegar e tomar lugar a meu lado.
Com sua quota de autgrafos atrasada em relao aos colegas, Guazzelli
optou por desenhar nos exemplares. Um sucesso! Nada mais apropriado num
livro sobre quadrinhos, nada mais constrangedor para mim.
A partir dali, os exemplares que chegavam s minhas mos vinham
acompanhados da expectativa em relao ao desenho que serviria de
dedicatria. Percebi certa decepo em alguns olhares: a figura sorridente ao
lado do Obrigada pelo apoio era, na melhor das hipteses, tosca. Receio que
alguns leitores, os mais cticos, tenham duvidado inclusive da autoria de meu
artigo. Afinal, como explicar o interesse em estudar histrias em quadrinhos por
parte de uma pessoa cuja produo no campo do desenho no vai muito alm
de bonecos de palito? No seria uma limitao, um empecilho para a
compreenso do objeto de estudo?
No decorrer desta pesquisa, alm dos percalos usualmente
encontrados durante a jornada pelo desconhecido que todo objeto (ou
deveria ser para o pesquisador, desse desconhecimento instigante, curioso,
investigativo, que faz da falta de saber uma mola propulsora do conhecimento),
no raro tive de responder a algum tipo de variao das perguntas acima.
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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Confesso que nenhuma vez foi agradvel. Em nenhuma das abordagens
ocorreu-me uma resposta boa, exata, le mot juste que aplacasse a curiosidade de meu interpelador e qualquer dvida a respeito da legitimidade de falar sobre
uma linguagem com a qual possuo, a um s tempo, confortvel intimidade e
acachapante ignorncia. Porm, tais momentos de incmodo, ao se repetirem,
foraram-me a repensar minha relao com o tema que eu escolhera para
trabalhar h seis anos.
Ao refletir sobre a possvel arbitrariedade de minha escolha, vi o quanto
dela no era mesmo minha, ou seja, no havia partido de uma deciso
pensada, racional. Lembro-me de uma histria antiga, lida no sei onde, da
Turma da Mnica, a obra de referncia do quadrinista Mauricio de Sousa, na qual os animais de estimao apareciam pertos de seus donos, evidenciando a
semelhana fsica e/ou comportamental entre eles: Casco e seu igualmente sujo porquinho Chovinista, Mnica e Sanso, dentuos, Magali e Mingau, ambos graciosos. Acredito que na relao entre pesquisadores e temas
pesquisados acontea o mesmo: buscamos uma aproximao possvel com
algo que nos toca para alm do recorte exigido pela anlise.
Pesquisas reverberam anseios internos do pesquisador que, por sua
vez, encontra no seu objeto um caminho possvel de se ver, de entender
melhor determinados aspectos do seu carter. Em suma: pesquisamos para
conhecermos algo mais profundamente, para entendermos algo melhor.
Contudo, pesquisamos tambm para nos conhecermos e, com alguma sorte,
nos entendermos melhor. Mas em que isso me ajudaria na formulao de uma
resposta definitiva para os descrentes da capacidade de uma no-desenhista
pesquisar quadrinhos?
Meu interesse pelas histrias em quadrinhos se revelou para alm de
uma diverso durante um longo intervalo entre o bacharelado e o mestrado. A
vontade de ingressar num programa de ps-graduao esbarrava na
dificuldade de eleger um tema de pesquisa que atendesse a todos os requisitos
que julgamos necessrios e fosse instigante, indito, atraente e, sobretudo,
soasse respeitvel. Na dvida, para passar o tempo, lia e relia histrias de
minha coleo de infncia. E comprava outras, descobria autores, alimentava o
encanto proporcionado pelos quadrinhos.
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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Por que a leitura de histrias em quadrinhos nunca vista como um
fardo, um trabalho? O que tornava aquela combinao de texto e imagens to
fluente, to agradvel? Pois justamente a se encontrava meu objeto de
anlise. Queria, de fato, enveredar pelas histrias em quadrinhos, v-las mais
de perto, escrutinar as peculiaridades de sua narrativa. Tal abordagem se
diferencia de uma investigao sobre quem produz, comercializa ou consome
quadrinhos. A este respeito existem vrios e excelentes trabalhos, mas no era
o enfoque pretendido. Meu ponto de vista no seria o da criadora, que nunca
fui, nem da receptora que tinha sido at ento, mas da investigadora.
A investigao como meio de se elucidar uma dvida pessoal remonta a
outra histria, a de Giambattista Yambo Bodoni que acorda num hospital,
aps um acidente. Apesar de no se lembrar de seu nome ou onde mora, ou
seja, de seus dados pessoais, discorre largamente sobre conhecimentos
enciclopdicos. Sem conseguir diferenciar entre o que leu e ouviu daquilo que
vivenciou, impossibilitado de vincular o presente ao seu passado, Yambo sente-se confuso: se as experincias das quais se recorda podem ter sido
vividas por qualquer outro, tambm ele pode ser qualquer outro e, portanto,
ningum em especial. O problema do protagonista do romance de Umberto
Eco (2005) no est ligado a uma memria temporal, mas sim insero desta
numa zona espacial privilegiada, a das afetividades.
A fim de recuperar a dimenso individual de sua existncia, Yambo
recorre a representaes prprias de sua infncia e juventude, dentre as quais
as histrias em quadrinhos desempenharo um importante papel. Fruto do
embate entre a memria pessoal, intransfervel, e os acontecimentos externos,
a identidade de Yambo, como a de todos ns, depende (a um s tempo) do
reconhecimento coletivo e de uma prtica individual.
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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Figura 1: reconstruo da identidade pessoal com a ajuda de quadrinhos,
no romance de Umberto Eco (2005)
Identidades se constroem, se reconstroem e se desfazem com muita
rapidez, mas um grande engano atribuirmos tal fenmeno a mais um
predicado do mundo contemporneo. certo que atualmente o tema ganhou
espao nas mdias, virou moda, se explicitou. Mas como negar, para citarmos
alguns exemplos, o carter pouco raro de tantas mudanas ocorridas em
outras pocas, como a transformao de judeus em cristos novos, de plebeus
em nobres, de escravos em forros, de monarquistas em republicanos?
As identidades so mveis, geis e flexveis por si mesmas. Sua
afirmao e seu estabelecimento como objeto coeso esto ligados a um eterno
vir-a-ser. As identidades no se completam em si, mas buscam no outro um
limite que no se demarca, pois tambm o outro busca se afirmar e, para tanto,
precisa deslizar em diferentes direes.
Nem algo em si, nem definvel exclusivamente pelo outro, as identidades
vagam ligeiras e vez por outra pousam em ns. No do pouso que tratamos,
mas do deslize, das trocas e da busca. No da narrativa construda, mas da
construo do discurso: verbal ou no, sonoro, hbrido.
Negar a possibilidade de uma via especfica de entrada compreenso
de uma linguagem, sob a alegao de que para falar de algo, necessrio
dominar todos os canais de acesso ao objeto uma maneira excludente de
lidar com a alteridade. Negando ao outro formas possveis de construo de
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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saberes, impede-se o fluxo das relaes de poder e o discurso passa a ser
ordenado e dividido em setores autorizados, cada qual competente em um
nico assunto.
Ao final do artigo De outros Espaos, Michel Foucault (FOUCAULT,
1986) exemplifica por meio da imagem de um barco, um conceito que esteve
presente no decorrer deste trabalho: a heterotopia, ou seja, lugares que, ao
contrrio das utopias, existem e tm por funo sumarizar, sintetizar, justapor
ou ainda representar uma dada cultura, no raro pela contestao ou
contradio de seus significados iniciais. Servem, quando se encerram na
linguagem, para avizinhar o que estava distante (FOUCAULT, 1999, p. 11).
Quando dela extrapolam, desempenham papel contrrio: afastam, pela funo,
o que est perto na forma, aquilo que teima em se aproximar geograficamente
mesmo sem um convvio possvel.
Nesta definio incluem-se as favelas cercando os bairros ricos, cidades
planejadas misturando suas belas avenidas a estreitas vias malcheirosas
povoadas por casas de trabalhadores que de l saem muito cedo em direo
aos centros e a ela s retornam bem tarde; so os aeroportos, estaes de
trem, rodovirias, lugares de estar e no-estar, lugares que mais se parecem
com veios, canais por onde nos deslocamos. Lugares onde no se quer parar,
porque sua prpria razo de existir ser fluxo (CASTELLS, 2005, 2008).
As heterotopias geram, em seu interior, positividades: ao se apartarem
do ambiente que os desdenha, criam mundos em si, transformam-se em seus
prprios lugares, satlites espaciais em torno de corpos maiores, mas
desenvolvendo uma trajetria nica. Da a aproximao com o barco: O navio
a heterotopia por excelncia. Em civilizaes sem barcos esgotam-se os
sonhos e a aventura substituda pela espionagem, os piratas pela polcia.
(FOUCAULT, 1986, p.27)
Seria motivo de grande alegria levantar, com este trabalho, questes
ligadas ao nosso papel de piratas da linguagem. Podemos dominar as
heterotopias, saquear as utopias, pilhar identidades variadas e pendur-las no
pescoo, como adereos e conviver com outros piratas, praticando aquela que
nas palavras do socilogo polons Zigmunt Bauman a nica forma possvel
de uma vivncia comunicativa na sociedade contempornea: a tolerncia
(BAUMAN, 2001).
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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Segundo o autor, toda tradio de segunda ordem. No herana
inata, mas habilidade adquirida. Se o navio, como diz Foucault, a heterotopia
por excelncia, o pirata a utopia realizada. Domando o lugar que e no ,
senhor do movimento, ele personifica o agente imaginado, idealizado.
A linguagem dos quadrinhos desliza, como um navio, por diversos
territrios, apresentando caractersticas hbridas, no s em relao aos
elementos que a compem, como tambm por mesclar atributos prprios do
que se costuma (ou at no muito tempo atrs se costumava) considerar alta e
baixa cultura, por sensibilizarem pessoas de diferentes faixas etrias e extratos
sociais, criadores e consumidores. Os quadrinhos transitam entre a
incorporao de valores estabelecidos e a gerao de novos significados,
servem de mais uma ferramenta para a compreenso de nosso entorno e o
fazem sem que nos demos conta, de maneira simples e funcional, como
bonecos de palito.
Figura 2: autgrafo da autora
1.1. Metodologia
Antes de constiturem, em si, pontos positivos ou deficincias, cada
forma de aproximao com o tema diz respeito diretamente aos problemas
propostos ao objeto e identificao do pesquisador com determinada linha de
raciocnio. O presente trabalho se identifica com abordagens como as do
terico alemo Dietrich Grnewald (1996, 2000), por utilizar exemplos
provenientes de diferentes obras. No h um autor principal, nem personagem-
chave, no so seguidos padres cronolgicos na apresentao das obras. Os
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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exemplos soltos encontram sua unidade na linguagem, entendida como
processo comunicacional, reconhecido pelos sujeitos cognitivos.
Quadrinhos no so apenas um meio, mas tampouco podem ser
definidos como um subgnero da literatura, tal a parcela de importncia da
imagem em sua constituio (STRANER, 2002). Sero levadas em
considerao suas caractersticas prprias, dentre elas a construo da
narrativa num entre-lugar, as chamadas calhas ou sarjetas, espaos entre
os quadros que correspondem lacuna na ao a ser preenchida pelo leitor.
A dependncia em relao ao quadro explorada pelo lingista e
especialista em mdia Erich Straner, quando afirma que quanto mais jovem o
meio, maior sua dependncia em relao imagem. Esta, por sua vez,
trabalhar com uma maior carga emocional, equiparando-se ao texto
(STRANER, 2002, p. 21).
Em sua relao com a imagem, as histrias em quadrinhos se deparam
com novas configuraes. Embora manifestaes da linguagem como os
quadrinhos virtuais (produzidos para este tipo especfico de distribuio,
diferentes, portanto, das exibies na tela de histrias construdas maneira
tradicional) no estejam sendo ignoradas, por estarem ainda em plena
adequao interface, no sero analisadas aqui.
Em sua crtica ao modelo construtivista de interpretao da realidade, o
especialista em teoria das mdias Hans-Dieter Kbler afirma no ser possvel
identificar, partindo desta teoria, se os quadrinhos seriam apenas meios de
construo de realidade ou se tambm so capazes de formar realidades
parte (KBLER, 2000, p. 39).
A idia de uma construo de realidades miditicas entendida como
complementar da teoria foucaultiana dos limites da representao
(FOUCAULT, 1999) e, desta forma, admite-se que sim, as mdias constituem,
em certa medida, realidades autnomas. Equivale a dizer que as imagens no
apenas refletem seus referencias (sendo esta inclusive a menor de suas
funes, a de um espelho do real), mas apontam para realidades em si,
prprias da representao, que afetaro o que se encontra do lado de fora. O
espao nunca vazio; ele sempre incorpora um significado (LEFEBVRE,
1991, p.154)
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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Dois autores em particular facilitaram o processo de aproximao com
os problemas propostos pela pesquisa: o socilogo Zigmunt Bauman - e seu
conceito de modernidade lquida - e o filsofo Michel Foucault, com seus
trabalhos a respeito das representaes (1999), das disciplinas e da vigilncia
(1987) e, sua questo maior, do poder (1979). Seu conceito de linguagem
utilizado aqui de forma distendida e, a partir deste desdobramento, aplicada ao
objeto.
Por fazer uma varredura lgica no campo, deixando espao para que o
objeto a ser tratado possa falar, e por servir tambm como bssola, ao indicar o
caminho de conduo da anlise do corpus, a semitica peirceana uma resposta bastante adequada ao problema apontado por Edgar Morin (1999) a
respeito da dificuldade de se realizar trabalhos verdadeiramente
transdisciplinares. Como instrumento de apoio anlise, justificou a escolha
pela compreenso dos quadrinhos como um signo (SANTAELLA 1983, 2002),
sem a necessidade de fragment-los em elementos verbais e visuais.
A fim de delimitar o campo criado pela linguagem dos quadrinhos, optou-
se pela anlise feita dentro da prpria linguagem, aqui entendida no como
sinnimo de lngua, nem de discurso, mas como um cdigo com caractersticas
prprias, formado por signos que podem ser verbais, sonoros, tcteis, visuais.
A partir de Michel Foucault (1979) foi possvel entender que as
linguagens criam campos de representao do real, exteriores a ele.
Linguagem, para os fins aos quais se destina este trabalho, deve ser entendida
como uma manifestao lato sensu, sinnimo de processo, de um conjunto de regras que visam transmisso e recepo de dados, informaes,
processos comunicacionais. Para que tenham efeito, essas regras precisam
ser conhecidas, reconhecidas e respeitadas pelos sujeitos cognitivos. Note-se
que, por esta definio, so linguagens a dana, a pintura, a escultura, o teatro
e o cinema, por exemplo.
Entretanto, interfaces com outras linguagens, embora presentes em
diversos momentos da anlise, no constituem o foco principal da pesquisa.
No se prope uma abordagem comparativa entre as relaes das histrias em
quadrinhos e o cinema ou a pintura, mas sim o deslocamento do foco de
ateno para as positividades (FOUCAULT, 1987) ligadas s construes
identitrias geradas nos quadrinhos. As formas que estas podem assumir so
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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variadas: processos que se lanam em projetos futuros, dilogos com
paradigmas sociais preexistentes, resgate de conflitos sociais passados.
As representaes no so, portanto, apenas um meio de dar voz aos
indivduos, de lhes permitir declarar de onde vm e o que so. Encaradas como
participantes do congresso da construo de realidades e sentidos na
produo cultural, as representaes assumem tambm o papel de estabelecer
os lugares de onde os indivduos gostariam de falar e, portanto, no podem ser apenas vistas como um espelhamento do real, sendo mais prximas dos
simuladores de realidades, meios de experimentao ligados ao devir.
A partir deste entendimento sobre o objeto, partiu-se para a delimitao
dos captulos, divididos da seguinte forma:
Breve histrico das histrias em quadrinhos: sem pretender formular um compndio das histrias em quadrinhos, o captulo tece
consideraes a respeito da trajetria da linguagem. Buscou-se
pontuar momentos-chave dos quadrinhos, no somente a partir de
exemplos de autores e personagens conhecidos do grande pblico,
mas tambm por meio de histrias menos populares, porm no
menos importantes para o entendimento do meio.
Fundamentao terica: o captulo lista os autores que serviram de base para a pesquisa. apresentao dos pontos principais de suas
anlises, seguem-se consideraes que aproximam a teoria geral
das especificidades do objeto. Equivale dizer que antes de um
levantamento sobre a teoria de quadrinhos em geral, buscou-se
apresentar e confrontar vises que estivessem ligadas ao tema das
identidades.
Captulo analtico: anlise propriamente dita do objeto, a partir de blocos temticos, contemplando tanto o autor, quanto o assunto
abordado. No que diz respeito reproduo de desenhos, optou-se
pela no descrio dos contedos, de modo que o leitor seja levado
a interagir com as figuras e, com isso, poder confrontar sua
experincia de fruio com as interpretaes propostas. Alguns
autores so citados mais de uma vez e no houve a preocupao de
uma equiparao numrica do nmero de obras apresentadas por
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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autor. Buscou-se contemplar autores nacionais e estrangeiros. No
entanto, dentre estes ltimos, possvel notar a predominncia de
autores alemes, tanto desenhistas, quanto tericos. Tal escolha
justificada pela oportunidade de se travar contato com material, em
grande parte, indito em lngua portuguesa, possibilitando novas
abordagens e novos entendimentos sobre o tema.
Concluses: neste captulo so resgatadas as idias principais discutidas ao longo do texto, com nfase no processo de
reconhecimento da linguagem como uma forma de arte, ao mesmo
tempo em que se busca uma preservao da liberdade do meio. So
levantadas as conseqncias desta situao de aparente conflito,
bem como possibilidades de desdobramento da pesquisa.
Referncias: ndice de obras citadas ao longo do texto.
Assim como os sujeitos histricos, tambm os temas tratados nas
histrias em quadrinhos so historicamente construdos. Buscou-se verificar
como e que tipo de saberes so aceitos, quais so rejeitados e, com isto,
acompanhar o movimento orquestrado pelos agentes culturais e executado
pelas construes e reconstrues identitrias, na luta pela afirmao e pelo
prolongamento de sua sobrevida, dentro da esfera de configurao de saberes.
1.2. Objetivos e Hipteses
Certa enciclopdia chinesa dedicada a guardar conhecimentos
benvolos, cataloga seus animais com pacincia e rigor, classificando-os sob
uma ordem peculiar: pertencentes ao imperador, leites, fabulosos, includos
na presente classificao...
Esta lista, descrita no conto O Idioma Analtico de John Wilkins (BORGES, 1999), divertiu e intrigou profundamente o autor de As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 1979). Logo no prefcio, Michel Foucault admite que a idia principal de sua obra nasceu do conto de Borges, mais precisamente pela
discrepncia entre a forma e o contedo do inventrio e a constatao de que
um procedimento de organizao, pode ser ao mesmo tempo aleatrio. A
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Metodologia, Objetivos e Hipteses
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ordem, simbolizada pela lista, permite o agrupamento do que normalmente no
se reuniria. na linguagem que o distante se aproxima, gerando novos locus discursivos, engendrando novos significados. A linguagem , ela mesma,
portanto, um espao diferenciado, uma heterotopia.
A presente anlise corresponde ao desdobramento da investigao
anteriormente realizada, sob a forma de dissertao de mestrado, a respeito
das potencialidades da linguagem dos quadrinhos construrem identidades. A
investigao defende a necessidade de uma posio ativa frente s realidades
em processo de construo.
Ao deslocar o foco de ateno das negatividades impingidas aos objetos
para as positividades geradas a partir deles, defende-se uma insurreio dos
saberes dominados (FOUCAULT, 1979), formados pelo conjunto de saberes
histricos que se mantm renegados a um segundo plano, em relao aos
contedos formais e s categorizaes cientficas e pelos saberes particulares,
individuais, pessoais.
A capilarizao das relaes de saber-poder no campo das histrias em
quadrinhos e o processo de construo e reconstruo de identidades na
linguagem so analisados com o objetivo de perceber como as histrias em quadrinhos transitam no movimento dual entre a incorporao de valores estabelecidos pelos saberes dominantes e a gerao de novas positividades e assim verificar o processo de construo e reconstruo de identidades por meio desta linguagem, bem como de levantar questionamentos a respeito da consolidao da imagem que a linguagem constri para si.
A hiptese sustentada a de que as linguagens, como um todo, esto
sujeitas a um duplo movimento:
1. represso: incorporando aspectos da sociedade disciplinarizante e
refletindo uma dada realidade espao-temporal.
A represso e os mecanismos disciplinarizadores geram negatividades,
proibies, regras a serem seguidas, posturas que se estendem pela
sociedade, ultrapassando as instituies ligadas diretamente disciplina,
atingindo os indivduos, a produo das linguagens, o corpo social como um
todo. O continuum carcerrio (FOUCAULT, 1987, p. 246), formado pelas instituies educacionais, punitivas, administrativas, regulamentadoras, pela
malha urbana e seus mapas partidos, pelos exrcitos e fbricas, pelas
Jana
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agremiaes e associaes, se organiza e se distende, se espalha e se
capilariza pelo corpo social, influenciando a produo de seus agentes,
encerrados num cenrio claustrofbico.
2. construo de realidades: a concretude do ser da linguagem gera
positividades, bem como (re)construes identitrias.
O carter cerceador do arquiplago carcerrio, responsvel por gerar
excluses, supresses, negatividades, comporta igualmente efeitos de carter
prtico, como a diminuio das punies fsicas nos moldes executados pelos
sistemas monrquicos, a partir do final do sculo XVII e durante o sculo XIX
(FOUCAULT, 1987) ou a conformao, no decorrer do sculo XX, de um tipo
de ocupao urbana sustentada pela dicotomia entre lugares e no-lugares
(AUG, 2007 e BAUMAN, 2001). Da surgem mecanismos de ao, posturas,
maneiras de ser e de atuar. Em uma palavra: positividades.
A produo dos agentes sociais se pautar pelos limites inscritos na
economia das punies. Seja para submet-los, revert-los, contorn-los ou
corrobor-los, o referencial permanece. O processo de construo cultural
simultaneamente exerccio de poder e de criao de sentidos. Entendido como
uma estratgia, o poder no pertencer a sujeitos, no trocar de mos, no
um objeto no possa ser escondido ou acumulado, mas sempre negociado,
manipulado, remodelado, reconstrudo.
Foram utilizados os fundamentos do mtodo arqueolgico/genealgico
de Foucault, (FOUCAULT, 1979, p. 172) a partir da qual os saberes locais,
desqualificados, podero ser reativados.
Segundo o crtico Thierry Groensteen (2000), existem quatro limitaes
simblicas aos quadrinhos: o fato de ser uma arte hbrida, de ambies
narrativas limitadas, ligada infncia e s artes visuais ldicas, como a
caricatura. Essas limitaes contriburam para uma crtica condensao
esttica dos quadrinhos, que os distanciava do ideal de linguagem pura. Como
conseqncia, os quadrinhos foram durante longo tempo identificados como
um tipo menos srio de produo visual, o que torna possvel categoriz-los
como saberes desqualificados.
Essa forma de descrio no foi vista, entretanto, como a priori terico, nem como categoria fechada de reconhecimento do objeto, mas apenas como
um ponto de partida, a partir do qual questionamentos foram propostos. Faz-se
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necessria ainda a delimitao de dois conceitos bsicos que se entrecruzam
na anlise: identidade e cultura.
A cultura institui uma identidade individual e social. a unidade de
construo dos conhecimentos constituintes e constitudos por indivduos
cognitivamente autnomos, os agentes. um programa aberto, capaz de aprender. Depende da sociedade e seus modelos de realidade, bem como de
seus agentes, que aplicam os programas de cultura.
A agncia cultural pode ser preenchida por diversas construes
cognitivas, tais como: as artes plsticas, a arquitetura, a literatura, os cultos
religiosos, a culinria, as cincias em geral. A relevncia social dessas
aplicaes est ligada capacidade de se estabelecerem pela exposio, pela
transmisso, pelo compartilhamento.
A questo do posicionamento dos quadrinhos entre o puro
entretenimento e a tentativa de alcance de um estatuto diferenciado em meio a
outras manifestaes culturais, primeiramente ecoou como uma pergunta
subliminar. Porm, com o decorrer da pesquisa, ganhou corpo ao ponto de
estabelecer duas camadas de compreenso do problema das identidades: a primeira ligada ao tipo de identidade passvel de ser representada dentro do meio e a segunda em relao imagem que o prprio meio faz de si, ou seja, a construo da identidade da linguagem das histrias em quadrinhos.
Os conflitos referentes primeira camada podem se postos em
discusso por meio da apresentao e discusso das obras. J em relao
segunda camada, as consideraes se do no exterior do meio e se pautam
pela aproximao com os outros campos de produo do conhecimento, como
a Filosofia e a Antropologia.
O desenrolar da pesquisa apontou para a necessidade de se lanar um
olhar duplo em relao ao objeto, a partir das consideraes sobre o que nele
se representa e a representao que ele faz de si. Este movimento partido nos
faz retornar ao problema dos limites da representao (FOUCAULT, 1999),
pois o representado vem de fora, transforma-se em representao e aponta
para o que est alm dos limites do quadro. Ao mesmo tempo, aquilo que se
representa s existe (em sua condio de signo) na medida em que a
interferncia da realidade passa pelo trato da representao.
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Os quadrinhos, hbridos verbais e visuais, mesclam caractersticas
artesanais, referentes sua produo, com outras prprias das mercadorias.
So capazes de deslizar por entre as fissuras do tempo presente, realocando-
se em diversos discursos. Afirmam-se como parte de um aqui e agora, mas
assumem igualmente um distanciamento crtico que lhes permite lidar com este
presente. Embora os quadrinhos do sculo XIX j desfrutem do respeito
reservado aos objetos histricos, falta ainda aos quadrinhos atuais, de um
modo geral, um posicionamento no rol das artes visuais.
Ser o caso de se perguntar se os critrios de classificao precisam de
ajuste e se as limitaes simblicas apontadas por Groensteen no seriam
apenas um mecanismo de defesa em relao linguagem. A dificuldade
parece residir na aceitao de que a leitura de quadrinhos envolva no s
aspectos afetivos, mas tambm reflexivos, independente do contedo da
trama.
Apreciar quadrinhos significa lidar com eles com franqueza, a mesma
com que o meio nos trata, ao assumir seu aspecto de representao, pois
como lembra o terico Rocco Versaci, ao contrrio de iluso de movimento,
provocada pela passagem dos quadros no cinema, as histrias em quadrinhos
no nos deixam esquecer de que estamos segurando folhas de papel
(VERSACI, 2008, p. 14). No a proximidade com o real que importa, mas sim
a experincia de uma realidade barganhada.
O ttulo deste trabalho pretende despertar para a dupla reflexo
proposta: tratar da construo de identidades nos quadrinhos e da(s)
identidade(s) que a linguagem constri para si. O ser da linguagem no uma
substncia, um elemento acabado, mas sim algo historicamente construdo e
esta premissa conduziu todo o trabalho.
As linguagens, em sua prtica, refletem sobre o mundo dado e
interferem, ao longo do tempo, em curso. Ocorre que na modernidade lquida
(BAUMAN, 2001) a relao entre tempo e espao se d de maneira fluida. O
tempo, resultado do engenho humano, doma o espao e confere ao
contemporneo a caracterstica do movimento. As identidades, neste contexto,
s podem existir como projetos no-realizados, que se desenrolam no
continuum social. Acompanh-los estende as possibilidades futuras de agncia.
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Captulo 2: O Quadro Ululante
Figura 3: A narrativa segundo Will Eisner, 2005, p. 79
2.1. Sobre histrias em quadrinhos
Histrias em quadrinhos so imagens pictricas e outras justapostas em
seqncia deliberada destinadas a transmitir imagens informaes e/ou a
produzir uma resposta no espectador. A longa definio de Scott McCloud
(2005, p. 9) construda com tanto cuidado ao longo de sua investigao sobre a
linguagem com a qual trabalha, revela a dificuldade em se estabelecer um
marco zero, uma data a partir da qual se consiga estabelecer, acima de
qualquer dvida ou suspeita, a origem das histrias em quadrinhos.
Na opinio do autor austraco Nicolas Mahler (2007, p. 29), o
determinante de uma histria em quadrinhos, a capacidade de narrar por
quadros. Sem a narrativa, os quadrinhos perdem sua essncia, passam a ser
algo diferente, mais prximo de um transmissor de mensagens.
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Cartuns e charges seriam, a partir dessa definio, linguagens distintas,
apesar de prximas. Will Eisner nos relembra (figura 3) que, para narrar,
necessrio algo para contar. As histrias em quadrinhos no trabalham,
portanto, somente com conceitos puros. Por mais que a trama venha a ser
abstrata, a histria, em si, para que possa evoluir de quadro a quadro, precisa
ter como um pressuposto algum tipo de relao narrativa entre eles, a fim de
que o imaginrio do leitor possa preencher o corte espao-temporal, gerando
uma imagem virtual a partir de uma imagem real. Ao conferir movimento ao
todo, os quadrinhos se diferenciam de textos ilustrados, os quais se limitam a
comentar em imagens a narrativa verbal. (EISNER, 2005)
Para Rocco Versaci, as histrias em quadrinhos permitem a
contemplao do movimento por meio de figuras, aparentemente, estticas. A
percepo do que no est l s possvel por meio de uma construo social,
embora a recepo se d individualmente (VERSACI, 2008, p.52) e, portanto,
de maneira fragmentada.
Os primrdios das histrias em quadrinhos remontam s origens da
comunicao visual, baseada na semelhana entre representao e a coisa
representada. Retrocedendo s origens do cristianismo, percebe-se um resgate
de uma maneira de contar histrias, com a unio de imagens e palavras.
Painis da via sacra, vitrais, auto-relevos, retbulos decorados e toda uma
sorte de composies que se dedicavam a contar uma histria por meio de
requadros.
Na Europa do sculo XIV os filactrios, pequenas faixas com palavras
escritas, geralmente oraes, muito utilizados na Idade Mdia so introduzidos
nas narrativas seculares junto ao desenho, posicionando-se prximo boca
dos personagens, precursores dos bales indicadores da fala dos quadrinhos
modernos.
O exemplar mais antigo do uso deste tipo de recurso no mundo ocidental
a Tbua de Protat (figura 4), um pedao de madeira presumivelmente
gravado entre 1370-1380, no qual um centurio romano aponta para a cruz e
de sua boca (numa estrutura muito semelhante a do balo de fala) saem as
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palavras em latim: Vere filius Dei erat iste (Em verdade, este era o filho de Deus). (FALIU, 2009)
Figura 4: Detalhe de estampa feita a partir da Tbua de Protat
Entre o final do sculo XVIII e o incio do XIX destacam-se os nomes do
ingls Thomas Rowlandson, que em 1798, cria o personagem Dr. Sintaxe; do suo Rudolph Tpffer (Monsieur Vieux-Bois, em 1827), do alemo Wilhelm Busch, com Max und Moritz (criados em 1865 e rebatizados no Brasil de Juca e Chico), do italiano naturalizado brasileiro Angelo Agostini, autor de As Aventuras de Nh-Quim (1869) e As Aventuras de Z Caipora (1883).
Merece igualmente destaque o trabalho do francs Christophe, alis,
Georges Colomb e sua Famille Fenouillard, de 1889 (figura 5), precursora das family strips, transposta para as telas em 1960, com direo de Yves Robert.
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Figura 5: Costumes provincianos retratados na Famillie Fenouillard, de Christophe
Autores que contavam suas histrias por meio de quadros
acompanhados de legendas. Em 1895, o norte-americano Richard Outcault
publica The Yellow Kid (O Menino Amarelo, figura 6).
Figura 6: O Menino Amarelo, de Richard Outcault (1895)
O personagem inovava no uso de cores fortes, sobretudo o amarelo e na
incorporao das legendas ao desenho, concentrando a narrativa verbal
referente s falas do menino em dizeres dispostos em seu camisolo.
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Em 1897, outra novidade: as onomatopias e sinais grficos so
incorporados aos quadrinhos do alemo naturalizado norte-americano Rudolph
Dirks (Os Sobrinhos do Capito).
No incio do sculo XIX, o norte-americano Winsor McCay inova tanto no
uso da cor quanto na experimentao abstrata de seu Little Nemo in Slumberland (1905). Enquadramentos panormicos e diagramao ousada anunciam os desdobramentos estticos da linguagem.
Figura 7: experimentao narrativa nos Upside Downs, de Gustave Verbeck. O mesmo quadro ganhava significados diversos se lido de cabea para baixo
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As histrias em quadrinhos tiveram seu incio marcado por uma grande
liberdade de experimentao do ponto-de-vista esttico e narrativo, das quais
so exemplos os Upside Downs (1903), de Gustave Verbeck, Krazy Kat (1913), de George Herriman, dentre outros. Verbeck, por exemplo, desenvolvia duas
histrias distintas em cada quadro com resultados surpreendentes (figura 7).
Durante dois anos, semanalmente, os leitores podiam acompanhar duas
histrias independentes, um ano sentido convencional e a outra, que poderia
ser lida ao se virar o jornal de cabea para baixo. Uma inovao que no
encontrou seguidores. (MOYA, 1996, p. 26)
Os syndicates, empresas distribuidoras de material em quadrinhos, levaram a uma padronizao dos contedos e ao surgimento de gneros:
quadrinhos de famlia (family strips), histrias de temtica feminina (girl strips), tiras cujos protagonistas eram animais (funny animals) ou crianas, etc.
Embora focados em nichos de mercado, o tom predominante era o da
crnica de costumes, na qual se praticava uma crtica bem humorada e
bastante condescendente da famlia pequeno-burguesa. So exemplos as
sries Gasoline Alley (1919), de Frank King e Pafncio e Marocas (Bringing up father, 1913), de George McManus (figura 8), esta ltima baseada na pea teatral de William Gill - "The Rising Generation", de 1893.
Figura 8: Galera de personagens de Pafncio e Marocas (Bringing up Father). A srie se
destacou pelo trao apurado de McManus, em estilo que remete art-dco.
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A trama girava em torno de um casal de classe operria que enriquece
subitamente. Ou seja, o motivo do riso no ainda a identificao entre os
igualmente despossudos (com se veria mais tarde em Blondie), mas sim a vingana das classes tradicionais sobre a falta de elegncia dos novos-ricos.
A dcada de 1920 e o agravamento de problemas econmicos que
culminariam na crise de 1929, levaram a uma demanda por histrias mais
escapistas. O retrato da sociedade no era mais to agradvel de se olhar e a
necessidade do leitor apontava no sentido de uma sada para os problemas da
realidade. As tiras de aventura, suas locaes distantes, buscas a tesouros e
intrpidos viajantes preencheram esta lacuna.
Figura 9: Galeria de personagens originais de Thimble Theatre. Posteriormente Ham Gravy, o primeiro namorado de Olvia (Olive Oyl) perderia seu posto para Popeye, o
Marinheiro.
Embora ainda mescladas com elementos humorsticos, histrias como
Thimble Theatre (1919), de Elzie Crisler Segar (figura 9) e Wash Tubbs, conhecida com Brasil como Tubinho (1924), de Roy Crane (figura 10), cativaram o pblico leitor que passou a se interessar mais pelas aventuras dos
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heris e os incrveis percalos pelos quais passavam, do que pelo cotidiano
dos novos ricos (PATATI e BRAGA, 2006, p. 35).
Em 1929 ocorre uma mudana na produo de quadrinhos dos EUA, o
ento j consolidado centro produtor e difusor da mdia. O estilo caricatural
substitudo por um trao naturalista e as tramas passam a buscar uma
abordagem mais realista.
Figura 10: Wahs Tubbs. Originalmente pensada como uma tira do tipo a gag a day
(uma piada por dia), tornou-se uma das primeiras histrias em quadrinhos de aventura.
Destacam-se as histrias de Tarzan (1929), de Hal Foster, baseado no romance de Edgar Rice Borroughs e Buck Rogers (1929), de Richard Calkins e Phil Nolan, baseada na novela Armageddon 2419, publicada no ano anterior. A grande inspirao para o gnero foi a chamada literatura pulp, impressa em papel de baixa qualidade e de grande circulao.
Em 1931 Dick Tracy, de Chester Gould, inaugura a galeria dos heris automotivados, cuja insero no mundo do combate ao crime se d por
motivos pessoais vingana ou busca por justia. Histrias que incluam ainda
uma vasta galeria de viles, o uso freqente de armadilhas, das quais o
mocinho deveria se livrar e farta utilizao do recurso das mortes exemplares
impostas aos bandidos.
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A crise mundial deu novo flego ao produto de entretenimento
quadrinhos e por isso o perodo que vai de 1930 a 1945 considerado uma
poca do Ouro dessa mdia. Foi tambm a fase de sucesso de heronas
como Blondie (1930), de Chic Young, capazes de assumir a liderana da casa, sem perder a alegria, nem o respeito pela ordem e os bons costumes. O
pblico leitor no se identificava mais com as promessas de enriquecimento e
ascenso social. Ao invs disso, a famlia classe mdia na Depresso ri da
famlia classe mdia nos quadrinhos. (MOYA, 1987, p. 72)
A tira incorporou na personagem ttulo vrias mudanas de gnero
prprias do perodo. Em Blondie (figura 11) era possvel no s reconhecer a dona-de-casa, mas tambm a mulher batalhadora e independente, livre, mas
esposa (MOYA, 1996, p.76). O pblico se aproxima da tira por conseguir se
enxergar nela, que tem neste mesmo pblico seus olhos, seu canal de conexo
com os fatos que sero reproduzidos. Dos fatos que se apresentavam
diariamente nos jornais, repetidos e pessimistas, surge uma narrativa que faz
rir e, assim sendo, que vai alm do fato, completando-o. A narrativa informa
mais que o fato e vira, ela mesma, algo digno de nota.
Figura 11: a tpica famlia norte-america retratada em Blondie, de Chick Young
Em 1934 surge o primeiro heri com superpoderes, o Mandrake, de Lee Falk e Phil Davis. O ano marcou ainda uma alterao significativa no suporte: a
passagem da reunio das tiras dirias j publicadas para o formato de revistas.
Falk, em parceria com o desenhista Ray Moore foi tambm o roteirista de outro
tipo que se tornou emblemtico nos quadrinhos: o do heri mascarado.
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O Fantasma, de 1936, apresentava uma atmosfera noir, esteticamente comparvel linha desenvolvida em Dick Tracy. Neste mesmo ano aparecem as revistas compostas de material indito e um ano depois surge a primeira
revista de temtica nica, a Detective Comics. Essas publicaes peridicas, vendidas por um baixo preo, com generoso uso de cores primrias e focando
no pblico infantil, ficaram conhecidas como comic books ou comics, hoje um sinnimo de histrias em quadrinhos.
Em 1938, pouco antes da ecloso da Segunda Guerra Mundial, surge
um personagem que se tornou emblemtico nas histrias em quadrinhos: o
Super-Homem. Estava inaugurado um novo gnero, o primeiro surgido no interior da linguagem, em lugar das usuais adaptaes literrias e que iria
marcar definitivamente a linguagem: os super-heris. O Super- Homem tambm o primeiro registro de um personagem que d nome a uma revista,
dedicada apenas s suas aventuras.
Tambm em 1939, surge, por encomenda ao desenhista Bob Kane, o
Batman. Um ano depois, Robin d incio a uma nova galeria de personagens, os sidekicks, fiis ajudantes, em geral mais jovens que o protagonista. Em 1941, a Mulher- Maravilha, uma super-herona, entra em cena.
Com o fim da guerra, a volta dos soldados para casa e sua reinsero
na sociedade, a venda de revistas com histrias de super-heris sofre uma
dramtica queda. Os leitores no aceitaram bem a mudana de inimigo a ser
combatido, a substituio dos nazi-fascistas pelos criminosos comuns.
O perodo viu surgir tambm outros gneros, como as histrias de
faroeste, de terror, policiais, dentre as quais The Spirit (1940), de Will Eisner e suas tomadas, fuses, cortes, ngulos inslitos, uso do som e das sombras,
em linguagem revolucionria visualmente. (MOYA, 1987, p. 142)
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Figura 12: Detalhe de capa da revista Spider-Man com o selo de aprovao do Comics
Code (no alto, direita)
A crise para o mercado das histrias em quadrinhos assumiu contornos
mais fortes nos EUA, em decorrncia da forte censura exercida durante o
perodo macarthista (1950-54). Na Europa, com maior liberdade criativa, os
quadrinistas pouco a pouco recuperam a fora da linguagem. Exemplos de
personagens deste perodo de retomada so Lucky Luke (1946), dos belgas Maurice Bevre e Ren Goscinny, este tambm responsvel por Asterix (1959), desta vez em parceria com Albert Uderzo.
Em 1955 surge o Comics Code, aps a publicao do livro A Seduo dos Inocentes, de Fredric Wertham e sua viso absolutamente desfavorvel aos quadrinhos e de sua influncia na mente dos pequenos leitores. O cdigo,
uma iniciativa dos editores de quadrinhos, visava controlar diversos aspectos
das histrias, como cenas violentas, contedo de apelo sexual ou qualquer
ameaa s autoridades constitudas.
As publicaes aprovadas recebiam um selo que deveria vir impresso na
capa (figura 12). Uma das conseqncias deste movimento de autocensura foi
a pasteurizao das histrias. Na prtica, editores de sucesso viram seus
negcios fracassarem por conta de ttulo que continham as palavras, terror ou
horror, proibidas pelo Cdigo.
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Figura 13: Peanuts, de Charles Schulz
A reao norte-americana acontece somente no final da dcada de
1950, com o relanamento das histrias em quadrinhos de super-heris. Estas
reedies muitas vezes alteravam os contedos das histrias, adaptando-as
aos novos tempos. Era o incio da chamada Era de Prata dos quadrinhos.
Neste perodo, os Peanuts (figura 13), quadrinhos altamente intelectualizados de Charles Schulz (1950) conviveram com o deboche da revista satrica Mad (figura 14), de 1952.
Figura 14: Capa da primeira revista Mad publicada no Brasil, em julho de 1974
Stan Lee, criador do Quarteto Fantstico (1961), inaugura a fase dos
super-heris por acaso, seres cheios de fraquezas demasiadamente humanas,
com as quais os leitores imediatamente se identificaram. A galeria seria
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povoada por outras criaes de Stan Lee, como o Homem-Aranha (1962) e X-Men (1963).
Enquanto a Marvel Comics e a DC Comics, editoras norte-americanas
de histrias em quadrinhos se consolidam como as maiores do mercado, os
jornais cedem espao para as tiras de humor, adequadas ao formato reduzido
de dois quadros, ao invs dos usuais trs. O mote a gag a day lanou, alm
dos citados Peanuts, outros personagens hoje renomados, como o Recruta Zero e Calvin e Haroldo.
Na contramo das publicaes lanadas por grandes editoras, crescia a
presena dos fanzines, revistas produzidas pelos prprios fs e segmentadas
por rea de interesse. Surgidos entre 1930-1940 e bastante populares na
dcada de 1950, os fanzines enveredaram de focos de discusso sobre os
quadrinhos produzidos por outros, para veculo de difuso de histrias criadas
por fs. Tornaram-se uma rede informal de produo e distribuio a qual, at
a dcada de 1960, no se contraps de forma direta ao mainstream.
No entanto, a partir de 1966, outro tipo de produo comea a tomar
vulto. Os chamados quadrinhos underground. Robert Crumb e Gilbert Shelton (figura 15) so nomes de destaque do segmento e seus trabalhos se impem
como uma via alternativa, desafiando as diretrizes do Cdigo de tica.
Figura 15: As Aventuras do Gato de Fatt Freddy, de Gilbert Shelton, 1988
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O movimento underground manteve suas caractersticas at meados de 1970. Aps este perodo, absorvido pela indstria, perdendo muito de sua
fora. A verso brasileira do movimento, o udigrudi criticava o predomnio dos
quadrinhos norte-americanos no pas. Em outros pases da Amrica Latina, a
intensa agitao poltica do perodo se fez sentir em personagens como
Mafalda (1964) do argentino Quino.
Nos anos 70 houve a migrao de parte do pblico leitor de histrias em
quadrinhos para a tev. Como conseqncia, na dcada de 1980, foi
necessria uma reformulao da cadeia varejista e dos veculos distribuidores
de quadrinhos. As revistas deixaram de vendidas em regime de consignao,
no qual os vendedores recebem as revistas, e devolvem o material no-
vendido s editoras. Este sistema dava margem a uma grande quantidade de
encalhe, pois o nmero de exemplares produzidos era sempre maior que o de
vendas. As comic stores, lojas especializadas, passaram a aplicar o sistema de venda antecipada, pelo qual feito um levantamento prvio entre os clientes,
que permite uma tiragem mais de acordo com as vendas. Exemplares no
vendidos, no entanto, no podem ser devolvidos s editoras.
Com o tempo, o novo sistema de venda foi responsvel pela compra
exagerada de exemplares, visando a especulao, o que criou uma bolha
artificial de consumo, que no tardaria a explodir. Porm, nichos de pblico
contriburam para tipos de produo especficos que se mantiveram mais ou
menos a salvo das oscilaes, possibilitando a recuperao do meio. O efeito
indesejado da valorizao da autoria, termo caro aos consumidores de graphic novels (figura 16), viria nos anos seguintes: as comunidades de amantes de quadrinhos deram margem segregao de mercado.
Na prtica, o leitor eventual, comprador de exemplares avulsos nas
bancas, foi substitudo pelo freqentador de comic stores, o connaisseur, o apreciador bem informado. A mudana dificultou a renovao do pblico leitor,
trazendo novos abalos para o mercado. Embora esta crise ainda no tenha
sido de todo superada, as tentativas de recuperao apontam na direo de
uma maior diversificao na produo.
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Figura 16: Detalhe de pgina de Die Sache mit Sorge, graphic novel de Isabel Kreitz, 2008
Por um lado, autores apostam em reformulaes (haja vista os diversos
exemplos de envelhecimento de personagens consagrados, como as histrias
da Turma da Mnica Jovem, de Mauricio de Sousa, ou a proposta do roteirista Renato Fagundes em lanar a Luluzinha, criao da desenhista Marge Buell, de 1935, em verso adolescente), por outro, as editoras tentam abarcar
diversos tipos de compradores com edies variadas, desde os luxuosos
lbuns encadernados, at edies do tipo brochura.
Nesta poca, possvel se perceber uma transformao de
determinados contentos em formatos previamente testados pelo pblico, como
o inverso, isto : o consumidor de quadrinhos se acostuma a identificar os
formatos com tipos especficos de contedo.
Histrias que exigem mais do leitor em termos estilsticos grficos e
narrativos, por exemplo, costumam estar veiculadas com lbuns ou
publicaes de maior requinte visual, dirigidas a um pblico em especial,
disposto a pagar e a dedicar um tempo de leitura e um espao de
armazenamento (ou de exibio) dos exemplares.
Os postos de venda foram ampliados e um nmero cada vez maior de
livrarias abandona a classificao de subgnero literrio. E reserva espaos
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para as histrias em quadrinhos em suas prateleiras. A dcada de 1990 foi
tambm decisiva para os japoneses, que se consolidaram como o maior
mercado produtor e consumidor de histrias em quadrinhos.
Os mangs, como so denominados, remontam a outras manifestaes
da cultura japonesa, dentre elas o Teatro das Sombras ou Oricom Shohatsu, no qual a histria contada com o auxlio de fantoches. Estas narrativas eram
transcritas em rolos de papel e posteriormente ilustradas, de maneira muito
semelhante ao que acontece com as histrias em quadrinhos.
Dentre as caractersticas mais marcantes da linguagem, destacam-se a
orientao de leitura, de trs para frente (a ltima pgina da revista
corresponde primeira da histria, porm dentro de cada pgina a seqncia
de leitura segue o padro de cima para baixo, da esquerda para a direita), uso
reduzido das cores e o trao estilizado.
Figura 17: Betty Boop, de Max Fleischer. Influncia que Osamu Tezuca levaria para o mang. Betty Boop comeou como animao (1930) e posteriormente migrou para os quadrinhos (MOYA, 1996, p. 75). Seu visual de cantora de cabar e seus trejeitos desinibidos renderam-lhe uma repreenso pelo Cdigo de Hays (o equivalente na animao ao Cdigo de tica do quadrinhos), de 1934, responsvel pela adoo de um visual mais comportado. Em 1939 foi definitivamente banida das telas. (PATATI e BRAGA, 2006)
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O desenhista Osamu Tezuka um nome fundamental para o
entendimento da caracterizao moderna do mang, sobretudo em relao
sua esttica inconfundvel. Em seu trao possvel identificar a inspirao de
origens diversas e por vezes mesmo conflitantes em seus projetos estticos,
como o universo assptico de Disney e a sensualidade de Betty Boop (figura 17), de Max Fleischer (1934).
Figura 18: A Princesa Safiri e o anjo Ching. Personagens A Princesa e o Cavaleiro, de Osamu Tezuka. O mang deu origem a uma animao, exibida no Brasil, com grande
sucesso, nas dcadas de 1970-1980.
A contribuio de Tezuka est presente em elementos agora
consagrados, com destaque para os onipresentes olhos avantajados e
brilhantes, linhas quem enfatizam o movimento dentro do quadro, planos e
enquadramentos que remetem ao cinema (o qual, por sua vez, se volta com
cada vez mais freqncia para os roteiros e concepo visual dos mangs).
Esta opo esttica fora de maneira violenta os limites do tempo
extrnseco (CIRNE, 2000) da narrativa em quadrinhos, na medida em que, ao
se ler um mang, enquanto o desenho parece nos dar a impresso de rapidez,
esta s poder ser apreendida atravs de uma dedicao maior a cada quadro.
Jana
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Em relao ao tempo intrnseco, os personagens vivem suas aventuras
sujeitos a passagem do tempo e, conseqentemente, morte. O que em outros
formatos de quadrinhos significaria o fim de um universo narrativo, nos mangs
torna-se uma ferramenta estilstica, inserindo o vetor tempo nas narrativas que
podem durar semanas, meses ou anos.
O sucesso dos mangs se deve, em boa parte, a seu carter alternativo
em relao ao formato definido pelos comics norte-americanos e pelos lbuns europeus (LUYTEN, 2004). No entanto, atualmente pode-se falar num
movimento de desterritorializao do mang que, ao extrapolar as fronteiras
japonesas, precisa lidar com a influncia de outras culturas e repensar o novo
local de sua identidade, a partir dessa amalgamao.
2.2. Os quadrinhos brasileiros
2. 2.1. A relao com o humor
Especialmente sobre os quadrinhos brasileiros, pode-se afirmar que, em
sua gnese, esto fortemente ligados ao humor e stira. Os jornais
ilustrados, do final do sculo XIX, gozavam de grande apreo junto ao pblico
do pas. Contendo basicamente desenhos e caricaturas e, ao lado ou abaixo
destas, pequenos textos e legendas, tais publicaes costumavam alcanar
boas marcas. Resguardados pelo humorismo e gozando de liberdade maior
que a imprensa oficial da poca, os peridicos ilustrados tornavam-se veculos
de divulgao de idias vanguardistas, crticas ao governo e aos costumes da
sociedade da poca.
A alma destas revistas era seu ilustrador, o homem forte que acumulava
funes e definia a feio que a publicao adquiriria. Angelo Agostini,
ilustrador e proprietrio da Revista Ilustrada carioca, desponta como um dos primeiros nomes de uma galeria de desenhistas que flerta com o humor e que
se estende por nomes como Henfil, Ziraldo, Laerte.
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Pode-se pensar no humor como algo exterior, fora da zona de embate
das relaes sociais de gerao e reproduo de conhecimento. Em outras
palavras: tudo seria possvel dentro do humor, qualquer posicionamento,
qualquer crtica, qualquer opinio. Entretanto, pode-se encarar o humor
presente na produo brasileira como uma forma de agncia, de prtica de um
programa de cultura (SCHMIDT, 2000). Equivale a dizer que o humor
construdo socialmente e busca representar aspectos da realidade, mas
assumindo um ponto de vista crtico em relao aos que representado.
Sigmund Freud, valendo-se do exemplo dos chistes, relacionou o humor
ao inconsciente, estabelecendo ligaes entre o efeito cmico e diversos me-
canismos de produo de prazer. A partir da, o humor visto como uma prti-
ca de discurso indireto por definio, no qual nada do que se v deve ser to-
mado ao p-da-letra. Espao no qual a lgica no precisa ser respeitada, locus privilegiado do inesperado, distorce a relao entre falante e discurso enuncia-
do, verbal ou no, criando um distanciamento. O ouvinte forado a adotar
sempre dois pontos de vista simultaneamente (FREUD, 1905, p. 139).
O filsofo Richard Rorty (1989), crtico de Freud, persegue outro cami-
nho de anlise, mas citar as histrias em quadrinhos como uma das lingua-
gens capazes de ampliar as sensibilidades e a capacidade de conviver com
diferenas. O humor atua como um elemento da relao entre a ordem social e
a liberdade individual. Pode ser subvertedor ou reprodutor de valores estabele-
cidos pelo senso comum. As histrias em quadrinhos brasileiras fazem amplo
uso do recurso e o aplicam tanto para fins de entretenimento (incluindo a crtica
poltica), quanto em projetos educativos.
2. 2.2. Entre a pedagogia e o entretenimento
A Revista O Tico-Tico (1905-1962) marca o surgimento de um tipo de publicao com fortes caractersticas pedaggicas, visando a formao do lei-
tor do futuro, de grande aceitao (figura 19). A partir de 1934, no entanto, a
introduo dos suplementos em jornais, seguindo um modelo em voga nos
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EUA, importado pelo jornalista Adolfo Aizen (GONALO JR, 2004), para o jor-
nal A Nao, estreitou os laos entre quadrinhos e entretenimento.
Figura 19: reproduo de pgina dO Tico-Tico
Dez anos mais tarde, o Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos (Inep)
divulgou um estudo, segundo o qual a leitura de quadrinhos seria responsvel
pela preguia intelectual dos estudantes, alm de afast-los dos livros.1 Desvi-
os de comportamento de todo tipo poderiam advir da leitura sistemtica de his-
trias em quadrinhos, como a incapacidade de separar fico e realidade.
1 A este respeito ver artigo de Gonalo Jnior na Revista Pesquisa FAPESP, nmero 161, julho de 2009. Disponvel em: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3908ebd=1epg=1elg. Ultimo acesso em 01.11.2009.
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A pesquisa baseava-se na enquete feita com crianas das sries prim-
rias. Estas, ao serem indagadas sobre personalidades da histria brasileira,
citavam nomes de heris dos quadrinhos, como Flash Gordon e Brucutu, ao invs de heris de guerra ou mrtires. (GONALO JNIOR, 2004, p.212)
Em 1954, seguindo o exemplo norte-americano, foi criada uma comis-
so para promover a autocensura das histrias. Cada editor brasileiro deveria
adotar um cdigo de tica e segui-lo.
Adolfo Aizen, dando continuidade a seu projeto de valorizao do na-
cional, props que as histrias fossem situadas espacialmente, trocando luga-
res indeterminados por ambientes e paisagens brasileiras (a definio espacial
ainda hoje rende crticas aos quadrinistas) e adaptando roteiros e trajes que
pudessem ser considerados amorais.
Em 1961 foi a vez das grandes editoras criarem seus cdigos de moral
e bons costumes. Histrias de terror e de crimes, por exemplo, deveriam ser
abolidas. (GONALO JNIOR, 2004)
A censura oficial veio com a aprovao, na primeira semana de outu-
bro de 1964, da proposta do deputado federal carioca Eurico de Oliveira. Pelo
projeto, proibia-se a impresso de revistas cujo contedo fizesse aluso a se-
xo, violncia e terror. Quando fosse posta em prtica, a medida transportaria
para o poder pblico praticamente todos os dispositivos de controle e veto do
cdigo de tica dos quadrinhos adotados trs anos antes. (GONALO J-
NIOR, 2004, p.379)
A ditadura militar repousava seu brao pesado por sobre os heris de
tinta e papel, justamente no momento em que a recepo s histrias alcana-
va seu melhor momento. Foi a poca do Perer, de Ziraldo Alves Pinto, perso-nagem saudado com o exemplo de brasilidade, cujo ltimo nmero foi publica-
do em abril de 1964, pouco antes da assinatura da nova lei.
O novo momento poltico evidentemente alterou a feio do mercado
editorial brasileiro de quadrinhos, consolidando algumas propostas, em detri-
mento de outras, fechando algumas editoras, incrementando o negcio de ou-
tras e definindo nomes que at hoje figuram no panteo da produo nacional,
como foi o caso de Mauricio de Sousa, lanado em 1970 pela editora Abril.
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A bem-sucedida estria da Revista Turma da Mnica imps um mode-lo de produo empresarial extremamente bem-sucedido, baseado no desenho
de estdio, que envolve a perda da autoria em prol da assinatura, da grife.
Sousa continua sendo o responsvel por inovaes no mercado na-
cional, como o projeto intitulado Turma da Mnica Jovem, retratando os perso-nagens em sua adolescncia. A proposta quer atingir o leitor que j no mais
criana e que tende a abandonar as revistas infantis mensais. Ao mesmo tem-
po, o ttulo buscou se colocar como uma alternativa para a produo de quadri-
nhos japoneses.
Mauricio e sua equipe de criadores preparam um material com temti-
cas apropriadas ao pblico escolhido e elaboram um produto com caractersti-
cas semelhantes s dos quadrinhos procedentes do Oriente deciso editorial
amplamente divulgada nas capas das revistas e em matrias promocionais,
identificando os novos produtos como tendo sido elaborados em estilo man-
g. (VERGUEIRO e D`OLIVEIRA, 2009, p.11)
A Turma da Mnica Jovem busca negociar com uma tendncia atual de grande apelo junto ao pblico, representada pelos mangs, porm manten-
do ainda a ligao com caractersticas consolidadas nos personagens.
Um exemplo de como ocorre essa negociao na prtica ocorreu aps
a tentativa por parte da equipe de rebatizar o personagem Anjinho como Cu-boy. A rejeio por parte do pblico foi to pronunciada (VERGUEIRO e D`OLIVEIRA, 2009) que chegou a se transformar em roteiro de uma histria
(figura 20).
O nome do personagem em sua fase adolescente passa a ser ngelo, mais prximo do nome original. Boa parte do atrativo das histrias vem justa-
mente do jogo de correspondncias entre as peculiaridades infantis de cada
um (fora da Mnica, gula da Magali, sujeira do Casco) e suas novas identi-
dades adolescentes.
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Figura 20: Turma da Mnica Jovem
Mauricio de Sousa sintetiza aspectos da linguagem dos quadrinhos e
da relao entre pedagogia e entretenimento. Passando de modesto produtor e
distribuidor de seus prprios desenhos a empresrio ligado a programas edu-
cativos no Brasil e no exterior, Sousa ilustra a trajetria de um produtor em pe-
quena escala rumo ao papel de coordenador em uma fbrica de quadrinhos
em srie.
No entanto, se o incio de sua carreira o aproxima do artfice tratado
por Sennett (2009), do profissional especializado que d origem a um objeto
nico, sua preocupao maior, neste perodo, era justamente de fazer seu ma-
terial circular no maior nmero possvel de jornais (SOUSA, 2000).
H dez anos a repetio tanto em relao reproduo das histrias,
quanto homogeneizao do trao por parte dos artistas de sua equipe tornou-
se uma garantia. A partir da, quando a marca alcanou um estado de consoli-
dao, em detrimento da autoria, foi ampliado o espao para o uso dos produ-
tos com a chancela Mauricio de Sousa.
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A partir da, as histrias enveredaram por campanhas educativas, com
o objetivo de: levar a filosofia e a fora de comunicao da "Turma da Mnica"
para desenvolvimento de programas nas reas de sade, educao, meio am-
biente e cultura. 2
Pelo caso de Sousa, um projeto primeiramente voltado para o entrete-
nimento pode fornecer as condies necessrias para que uma estratgia de
ao voltada para a educao seja posta em prtica. Seria necessrio, portan-
to, primeiramente estabelecer uma filosofia, confirmar sua fora de comuni-
cao por meio de sua aceitao (ou no) no mercado e da aplic-la a fins
educativos.
No exerccio dos mais fceis aceitar que esta seja a frmula res-
ponsvel pelo sucesso empresarial do grupo, mas o fato dos termos filosofia e fora de comunicao aparecerem na mesma frase indicativo da fora da presena de ambas nas histrias em quadrinhos. A linguagem precisa negociar
com os caprichos do mercado e vice-versa.
preciso, contudo, estar atento aos resultados desta negociao. Nos
captulos a seguir, sero privilegiados dois vetores que atuam neste trnsito:
um que vem de fora e retrabalhado dentro da linguagem, via representao e
outro que vai no sentido oposto, da linguagem pra fora, ou seja, relacionado
maneira como os quadrinhos se entendem, ou seja, que tipo de identidade que-
rem construir pra si.
Parafraseando Erich Ohser (figura 21), pode-se afirmar que quando
lidamos com histrias em quadrinhos somos convidados a fazer caricaturas do
horizonte, ou seja, a perceber tais dicotomias e a condensar conceitos comple-
xos em sintticas imagens. A definio deste processo a uma reproduo do
real ou a categorias vagas como coisa de criana, alm de imprecisa soa bas-
tante redutora.
Como qualquer outra linguagem, as histrias em quadrinhos no se
direcionam somente a um pblico, nem adulto, nem infantil, embora comportem
gneros direcionados a parcelas especficas de leitores. Como diz o ttulo do
artigo assinado por Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro3: o bvio. Ululante.
2 Fonte: Site do Instituto Cultural Mauricio de Sousa. Disponvel em http://www.monica.com.br/institut/fwelcome.htm. ltimo acesso em 02.11.2009. 3 Publicado no jornal Folha de So Paulo, em 22 de maio de 2009.
Jana
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Figura 21: A mais difcil tarefa me foi proposta no meio do oceano.
Faa uma caricatura do horizonte, Sr Plauen (1941) ( OHSER, 2000, p.73)
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Fundamentao Terica
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Captulo 3: Fundamentao Terica
Tem o intrprete que sentir simpatia pelo smbolo que se prope a inter-pretar. A atitude cauta, a irnica, a deslocada - todas elas privam o intrprete
da primeira condio para poder interpretar. (Fernando Pessoa)
3.1. Enquadrando conceitos
A pesquisa sobre histrias em quadrinhos, apesar de no poder ser con-
siderada nova, ainda se encontra em vias de formao de seu arcabouo teri-
co. (MAGNUSSEN e CHRISTIANSEN, 2000) Como conseqncia, ocorre a i-
nevitvel comparao com outras reas, como o cinema ou a pintura, o que
tende a estabelecer limites a partir de negativas (histrias em quadrinhos no
so literatura ilustrada, nem uma verso de cinema sem projetor).
Entretanto, a fim de que anlises reducionistas sejam evitadas, deve-se
considerar a linguagem em sua complexidade. Isto significa que a crtica, ao
formular questes referentes construo do campo, precisa levar em conside-
rao no somente aquilo que ou no uma histria em quadrinhos, mas
tambm o que significam tais comparaes e que positividades (FOUCAULT,
1987) so geradas a partir das interfaces de contato com outras linguagens. O
resgate das teorias a seguir se d a partir desta perspectiva.
Na dcada de 1970, Ariel Dorfman e Armand Mattelart (2002) publicam
Para ler o Pato Donald, abordando o tema sob o ponto de vista da anlise crti-ca. A obra, produzida durante o perodo do governo de Salvador Allende, no
Chile, no disfara o tom panfletrio e, seguindo a prtica marxista, trata os
conceitos com rigidez, em especial os de super- e infra-estrutura. A partir das
histrias de Walt Disney traado um perfil da materialidade criada nas hist-
rias em quadrinhos. O foco recai na denncia de que personagens como Mickey Mouse ou Pato Donald, por meio de efeitos de naturalizao, tornam-se porta-
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Fundamentao Terica
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vozes do modo de vida norte-americano, encarado como um objetivo a ser al-
canado. O tom pouco sutil do texto de Dorfman e Mattelart e seu carter mes-
sinico remetem ao famoso livro do semitico italiano Umberto Eco, Apocalpti-cos e Integrados (2000). O ttulo faz referncia aos dois tipos de posicionamento mais freqentes diante da chamada cultura de massa, termo que o autor consi-
dera pouco preciso.
Eco define o integrado como aquele que defende a produo em massa
por sua capacidade de alargar fronteiras culturais, enquanto o apocalptico en-
tende a cultura de massa como a expresso de um nvel inferior de cultura, a
qual se torna produto, como qualquer outro, consumida e descartada em gran-
des quantidades (ECO, 2000, p. 9).
Para Eco, a civilizao de massa no excluiu valores como a mitificao.
Segundo o autor, a produo de histrias em quadrinhos um exemplo de
mescla de aspectos populares prprios das sociedades modernas com arquti-
pos antigos (ECO, 2000). O personagem dos quadrinhos pertence civilizao
do romance e a uma estrutura narrativa sustentada pela busca da novidade, do
que ainda no ocorreu, do futuro. Porm, em sua construo, so resgatados
aspectos de personagens mitolgicos.
A construo dos tipos, a maneira como so desenhados e sua indumen-
tria sero elementos constituintes de narrativas que, assim como relatos orais
ancestrais, esto calcadas na repetio. O leitor interage com a linguagem, lan-
ando mo de sua bagagem para decodificar estruturas narrativas clssicas. O
resultado aponta para formas contemporneas de produo cultural.
Raymond Williams reconstri o conceito de cultura a partir de uma abor-
dagem sociolgica e a define como um sistema de significados realizado
(2000, p. 206), que passa a ter um valor em si somente no sculo XVIII. A partir
daquilo que denomina de cultura comum, elabora um modelo de compreen-
so dos processos culturais contemporneos.
Para Williams, a dinmica cultural possui atualmente duas frentes: 1) te-
rica: cultura passa do mbito da reproduo para o campo dos processos
constitutivos, de transformaes do social e 2) metodolgica: tipologia das for-
maes culturais, subdivididas em trs estratos: arcaico, ligado ao passado
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Fundamentao Terica
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reconhecido socialmente; residual, proveniente deste passado, mas que se
encontra em atividade, dialoga com o presente e o emergente, estrato no qual
se encontram as ressignificaes de valores e prticas sociais.
A respeito da cultura popular, Williams chama nossa ateno para dois
nveis de compreenso: o primeiro permite entender a cultura popular como a
reunio de diversos elementos residuais, um hbrido composto por produes
tanto das camadas populares, quanto de agentes externos a elas. O segundo
nvel define a atual situao do conceito a partir de uma aparente inverso: a
cultura popular tornou-se o lado mais ativo da produo cultural burguesa e,
portanto, de elite.
Sobre a distino entre alta cultura e cultura popular (expresses
transformadas em conceitos), Williams afirma que os termos sofreram um des-
locamento semntico que agrega seus significados a um posicionamento tem-
poral. A alta cultura foi deslocada para o passado e congelada, incapaz de
sofrer alteraes. Ocupa o local das minorias numricas a serem preservadas
(a msica clssica um de seus exemplos mais veementes), como uma esp-
cie em extino. O presente lhe reserva ainda certo respeito, mas nenhuma
compaixo. Identificada com minorias diversas, a cultura popular se alinha
com grupos, cuja produo se determina pela classe a qual pertencem.
Esses grupos, apesar de suas diferenas, se inscrevem socialmente num
plano majoritrio que comporta um fluxo de informaes entre as diferentes
classes, permitindo que a cultura popular (prtica e no conceito) continue a se
mover (WILLIAMS, 2000, p. 227).
Ao aplicar o conceito de classe para gerenciar conflitos sociais, a anlise
de Williams desconsidera a circulao macia da produo cultural entre os a-
gentes sociais (no necessariamente de maneira uniforme, nem democrtica) e
no apenas dentro de uma classe. Nas artes, por exemplo, movimentos nasci-
dos margem dos setores economicamente privilegiados se espalham com par-
ticular rapidez, conquistando espao em ambientes diversos.
Na msica, campo no qual essas trocas acontecem de forma intensa,
possvel acompanhar esta dinmica ao longo do tempo. As perseguies aos
violeiros e s modinhas no Brasil, na primeira metade do sc. XIX (NAPOLITA-
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Fundamentao Terica
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NO, 2007; CNDIDO, 1970), fundamentos de um racismo brasileira, conju-
gam fatores de excluso social aos preconceitos relativos cor da pele. Para a
historiadora Marina de Carvalho (2006), a passagem da mo de obra negra e
escrava para a categoria de trabalhador livre (e pobre) foi vital para o xito do
capitalismo industrial no pas, criando um contingente de mo de obra necess-
rio s novas relaes de produo. Para controlar o excedente, a vadiagem
torna-se contraveno e aqueles que no se encaixam na tica de trabalho em
consolidao eram postos margem, excludos, encarcerados.
Uma das peculiaridades da Lei da Vadiagem diz respeito sua aplicao
antes que o delito sequer tenha sido cometido. Baseada apenas numa suposi-
o estabelece parmetros para uma conduta social aceitvel, ligada acumu-
lao de bens de consumo e outra condenvel, por representar uma ameaa a
estes valores, na medida em que representa a adoo, mais ou menos volunt-
ria, a um modo de vida contrrio aos interesses do assalariamento.
Criminalizar a vadiagem equivaleu a qualificar a pobreza e a marginalida-
de como defeitos, m-formao individual e no social (CARVALHO, 2006). Ser
pobre passou a ser crime e como a maioria da populao de baixa renda era
formada por negros e mestios, caractersticas fsicas continuaram a influenciar
nas relaes scio-econmicas republicanas e a diferenciar padres estticos e
comportamentais aceitos ou no em uma sociedade.
Processo equivalente ao lento reconhecimento do blues norte-americano, atrelado aos conflitos raciais no pas, nas primeiras dcadas do sculo XX (DA-
VIS, 1998) e a aceitao e incorporao no s da msica, mas de toda uma
esttica ligada ao funk (roupas, atitudes, dana), em sua verso brasileira me-tropolitana, por diversos estratos sociais.
A histria das histrias em quadrinhos marcada pelo confronto entre o-
pinies divergentes a respeito de sua legitimidade como produo cultural, sua
qualidade artstica e seus efeitos sobre os leitores, tomando como parmetros
formas de expresso j conhecidas. Dessas diferenas no surgiram somente
cerceamentos, mas igualmente adaptaes que apontaram novos caminhos
para a linguagem. A prpria formao de uma subjetividade referente ao leitor
foi moldada a partir dos sucessivos movimentos de reinveno da linguagem. A
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histria das socie