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O Jeitinho Brasileiro – A arte de ser mais igual

do que os outros. (Texto 03)

Lívia Barbosa – Resumo e comentários de

Marcelo Loyola Fraga

O que é o jeitinho

O jeitinho é sempre uma forma especial de se

resolver algum problema ou situação difícil ou

proibida; ou uma solução criativa para alguma

urgência, seja sob a forma de burla a alguma regra

ou norma preestabelecida, seja sob a forma de

conciliação, esperteza ou habilidade. O jeitinho

demais pode levar à corrupção. O que caracteriza a

passagem de uma categoria para outra é muito

mais o contexto em que a situação ocorre e o tipo

de relação existente entre as pessoas envolvidas

do que, propriamente, uma natureza peculiar a

cada uma. Por exemplo, o favor é uma situação

que, para a maioria das pessoas, implica

reciprocidade direta. Quem recebe um favor fica

“devedor de que o fez” e se sente “obrigado” a

retribuí-lo na primeira oportunidade. Essa noção de

reciprocidade é tão forte que, muitas vezes, a

pessoa que faz o favor procura evitar quem o

recebeu para que não se julgue “obrigada” ou

“constrangida”. Os argumentos a favor da prática

do jeitinho são normalmente “todo mundo faz, não

vou ficar de fora”, “uso o jeitinho forçado pelas

circunstâncias” etc.

Os idiomas do jeitinho

O jeito é um elemento “universalmente” conhecido

na sociedade brasileira. Além disso, em termos de

representação simbólica, é “utilizado”

indistintamente por todos os segmentos sociais e

depende, portanto, para concessão e sucesso, de

fatores que não fazem parte da identidade social de

cada um. Um dos fatores que mais mobilizam as

pessoas para darem um jeitinho para alguém é ser

simpático. Outro aspecto que pode ser mencionado

é status, a maneira de se vestir e dinheiro. Embora

todas as pessoas reconheçam que esses fatores

influem, nunca chegam a ser apontados como

elementos decisivos. São importantes sim, mas até

certo ponto, e podem ser utilizados contras as

pessoas, caso elas manipulem essas categorias de

forma autoritária. Afirmações do tipo “só porque

tem dinheiro, pensa que é melhor, está enganado”

ou “quis bancar a grã-fina e quebrou a cara” são

bastante utilizadas para exemplificar pessoas que

tentaram lançar mão desse atributo social para

obterem um jeitinho ou qualquer outra coisa. Por

outro lado, se as pessoas souberem canalizar esses

atributos sociais de uma forma que enfatize

justamente a sua “não-importância”, serão alvos

de comentários justamente opostos. Por exemplo,

“ele é tão simples” ou “nem parece rica, é tão

simpática”, “você não dá nada por ele, mas é

milionário”. É de bom tom para o rico, no Brasil,

proceder como a sua situação social nem contasse

como fato relevante, apesar de ser uma situação a

que todos almejam. Ou seja, essa situação social

nunca pode ser bem explicitada ou admitida por

quem a possui. Um rico que se comporta de acordo

com a sua condição de riqueza é caracterizado

negativamente, embora seja visto de forma

positiva caso se comporte como se “não fosse rico”.

Admitir o sucesso de forma clara, seja de que tipo

for, não é bem-visto. Isso contrasta com os países

anglo-saxões que passaram por uma reforma

protestante. Por exemplo, nos EUA os bens

materiais não são vistos como culpa, mas como

recompensa pelo trabalho duro e bom desempenho

da pessoa. Não é motivo de justificativas. No Brasil

o sucesso material tem implicações de ordem

moral bastante negativas e intimamente ligadas à

religião católica, que atribui características

perversas a situações de sucesso material. O rico

foi bem-sucedido do ponto de vista material,

portanto, não deve sê-lo moral e espiritualmente.

Isso permite que as pessoas se compensem,

acionando diferentes sistemas de valores.

Um exemplo interessante de como isso funciona é

o caso do motorista de táxi que, ao deixar uma

passageira em frente a um prédio de luxo, afirmou

que quem morava ali não poderia tê-lo conseguido

pelo trabalho, mas só roubando. Implicitamente

dizia que ele era pobre, mas honesto, e o outro

rico, mas ladrão. E não é só isso. A carência

material das pessoas tem um significado bastante

distinto aqui no Brasil e, por exemplo, nos EUA. A

miséria, a pobreza do cidadão no Brasil, o exime de

qualquer responsabilidade individual na alteração

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da situação em que se encontra. Diante de

mendigos dormindo nas ruas, a reação normal é de

pena pelo indivíduo e indignação pelo governo, que

não toma providências e não faz nada para alterar

esse quadro. Para um norte-americano a reação

seria de forma inversa: essa tarefa é de alçada

pessoal e que não deve ser compartilhada com

terceiros. Por outro lado, o jeitinho não está ligado

à esfera da identidade social como dinheiro, status,

nome da família, religião, cor etc. Um indivíduo que

não ocupe posição social privilegiada, está

igualmente habilitado a pedir um jeitinho, desde

que saiba pedir, tenha um bom “papo”, seja

simpático ou charmoso. Por outro lado, um general

poderá ficar sem o “seu jeitinho” se tentar valer-se

de sua patente de forma autoritária. Para sair da

situação, terá de recorrer fatalmente ao “Você sabe

com quem está falando?”, que poderá ser, tanto ou

mais eficaz que o jeito, mas que depende de você

ser “alguém” dentro do universo social brasileiro.

Portanto, tanto o “João-ninguém” como o

deputado, desde que tenham as condições

individuais, estão qualificados para utilizar o jeito.

Dizer não no Brasil é aventura no terreno

desconhecido. A esse respeito, a revista Veja

(07/11/1984), na seção “Ponto de Vista”, publicou

ensaio intitulado “É preciso dizer não”, de Fernando

de Oliveira”, no qual o autor, baseado na sua

experiência como administrador de recursos

públicos, afirmava que o Brasil precisava ter um

governante um brasileiro com vocação para não

autorizar certos gastos e perder amigos. E mais, tal

indivíduo deveria recusar convites para simpósios,

jantares, inaugurações e outros eventos sociais...

“se tiver cara de poucos amigos tanto melhor”. O

que o articulista queria dizer é, para se cumprir a

lei, seria preciso dizer não aos amigos e depois

evitar ou cortar todos os laços com a sociedade.

Essa postura está alicerçada numa visão de mundo

em que a ênfase na sociedade é colocada nas

relações que se estabelecem entre as pessoas,

mais do que qualquer outra. Isso torna o Brasil um

país em que todos querem ser pessoas e não

indivíduos. Qualquer vantagem ou desvantagem

social que a pessoa tenha pode ser utilizada para

promovê-la a tal categoria. Confirmando ainda

mais essa situação, temos o próprio sistema

burocrático brasileiro, extremamente rígido,

ineficiente e intransigente, não dando espaço à

prática do que se costuma chamar de “bom senso”.

Isso permite que os próprios executores desse

sistema, na ausência de alguma regulamentação

específica, regulem, não tendo como base o bom

senso ou os chamados direitos do cidadão ou o

espírito que instrui esta ou aquela regulamentação,

mas a própria vontade pessoal. Isso nos permite

mergulhar num verdadeiro emaranhado de

decretos autoritários e personalistas que diluem

quase que completamente qualquer possibilidade

de funcionamento do sistema com um espírito

universalizante.

Fazendo um paralelo entre o “Você sabe com quem

está falando?” enfatizado por Roberto DaMatta e o

“jeitinho”, pode-se afirmar que enquanto o

primeiro é um ritual de separação, radical e

autoritário, de duas posições sociais bem distintas,

o segundo “o jeitinho” identifica-se com a

cordialidade e a simpatia, sendo visto como um

ritual de aglutinação. Ele procura justamente

juntar, e não separar, os participantes da situação.

E mais, em vez de marcar as diferenças existentes

entre as pessoas, que podem ou não existir do

ponto de vista social, ele procura justamente

anulá-las, invocando a igualdade entre todos e da

própria condição humana – “afinal somos todos

irmãos”, “filhos de Deus” ou “hoje sou eu, amanhã

pode ser ele” etc. O próprio vocabulário utilizado

em situações de jeitinho enfatiza o seu aspecto

aglutinador e igualitário: “meu irmão”, “meu

amigo”, “companheiro”, “gente boa”, “minha tia”

etc. O jeitinho, também, pode estar associado

simultaneamente ao nosso lado cordial, simpático,

malandro e também país que não é sério,

incompetente, subdesenvolvido que prefere o papo

à briga, a conciliação à disputa. Outro traço

importante do jeitinho é que qualquer pessoa pode

lançar mão dele, independente de sua identidade

social, rico ou pobre, esposa de deputado ou

diarista, patrão ou operário. O anonimato das

pessoas envolvidas gera uma situação de igualdade

entre indivíduos que, em outras circunstâncias,

poderiam estar em situações desiguais e/ou

complementares. É verdade e é importante

perceber que de “jeitinho” a situação pode partir

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para o “Você sabe com quem está falando?”, toda

vez que o coronel, tendo seu pedido rejeitado,

declara a sua identidade exercendo pressão sobre o

caixa, estabelecendo-se assim o confronto.

Provavelmente, este mandará chamar o gerente,

que apaziguará a situação, providenciando para

que o cheque do cliente seja descontado, sem o

custo de o mesmo entrar na fila, mas, ao mesmo

tempo, sem obrigar o caixa a descontá-lo.

Em resumo:

“Você sabe com quem está falando”

1. Faz uso da autoridade e do poder.

2. Parte do pressuposto que as desigualdades

sociais têm valor.

3. Não é acessível a todos da sociedade em

todas as situações.

4. Baseia-se, para a sua eficácia, na identidade

social.

5. A identidade social dos participantes sempre

termina desvendada.

6. É um rito de separação.

7. A reação ao uso da expressão é sempre

enfática e negativa.

8. Estabelece sempre uma relação negativa.

“Jeitinho”

1. Faz uso da barganha e da argumentação.

2. Parte do pressuposto igualitário.

3. É acessível a todos da sociedade.

4. Não depende, exclusivamente, de laços

mais profundos com a sociedade. Depende

basicamente de atributos individuais, da

personalidade.

5. Pode começar e terminar anonimamente.

6. É um rito aglutinador.

7. A reação ao uso da expressão é

predominantemente positiva; a negativa é

sempre expressa de forma branda.

8. Estabelece sempre uma relação positiva.

A ideologia da igualdade radical

Pode-se exemplificar este item, por meio do

sistema universitário público brasileiro. Nele

observa-se, cada vez mais, o estabelecimento de

idéias que negam e condenam a existência de

qualquer tipo de proposta de diferenciação. Por

exemplo, dois professores que iniciaram a carreira

em 1980, chegarão juntos em 1990 ao mesmo

nível funcional, a despeito do fato de que um tenha

publicado livros, artigos, participado de congressos,

reuniões científicas e realizado pesquisas, e o outro

tenha se limitado apenas a escrever algumas linhas

no quadro-negro. Ambos receberão o mesmo

salário, terão os mesmos direitos e obrigações. Em

relação aos alunos, a situação não é diferente. Um

bom desempenho acadêmico não abrirá para o

aluno qualquer porta no que diz respeito a bolsas

de estudo, oportunidade de iniciação profissional,

associações culturais e de pesquisa. O mesmo se

aplica aos funcionários em relação às promoções

por mérito. Com relação aos corpos sociais que

compõem a comunidade acadêmica – professores,

alunos e funcionários -, a ideologia igualitária se

coloca como a moldura básica pela qual se

orientam todas as relações. A todos são atribuídos

o mesmo status e a mesma importância, de modo

que, do ponto de vista da representação e também

da prática social, nenhum grupo tenha mais

direitos do que os outros. Isso fica evidente no

processo eleitoral que se disseminou após 1985,

para escolher desde chefes de departamento até o

reitor, no qual alunos, funcionários e professores

são chamados a votar, mesmo sendo pessoas com

as mais diferentes responsabilidades, como

professores, a quem cabem a responsabilidade do

ensino e da pesquisa e cujo desempenho dá

prestígio à instituição; os alunos, membros

transitórios numa instituição permanente e os

funcionários que são elementos não especializados

chamados a opinar num foro de debate

especializado. Outro exemplo vem de uma

universidade renomada, onde o Departamento de

Antropologia propôs que a partir de uma

determinada data, todos os trabalhos acadêmicos

individuais fossem assinados em conjunto.

Propunha-se que um trabalho feito individualmente

fosse publicado como de autoria coletiva – de todos

os membros do departamento. Um outro caso cita

uma matéria do Jornal do Brasil, em novembro de

1985, em que os servidores das universidades

federais entrariam em greve se a gratificação de

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nível superior não fosse estendida para servidores

de ensino médio. Ora, sabemos que a gratificação

de nível universitário é uma das únicas formas de

se premiar, de forma capenga, o desempenho da

melhor qualificação pessoal. É uma verdadeira

síndrome da isonomia, o que pode ser chamada de

igualdade radical.

Um outro aspecto que ilustra a ênfase no ideal

igualitário é a negação da universidade como uma

instituição de elite. Em todos os países do mundo,

independentemente do sistema político vigente, o

ensino universitário é o mais caro e de mais difícil

acesso. Entretanto, no Brasil, afirmar que este não

deve ser um ensino de massa, mesmo

resguardando a possibilidade de livre acesso a

todos, é quase sinônimo de suicídio profissional

para quem é do ramo. Admitir a existência de

diferenciações internas, de hierarquias, em

formações sociais fascinadas com o igualitarismo

do ponto de vista simbólico, é associar-se aos

piores tipos de representações políticas e sociais. É

arriscar-se a ser visto, no mínimo, como “Fascista”.

E ainda, no Brasil, exigir que os alunos se dirijam

aos professores pelos seus respectivos títulos ou

outro termo que não seja o seu próprio nome soa

extremamente antipático, desagradável e

autoritário, quando não tem conotações jocosas.

Essa forma só é alterada pela idade do professor

ou professora. Se esta for mais idosa, poderá ser

contemplada com um “Professora” ou sra.; caso

contrário será chamada pelo seu próprio nome.

O atributo da igualdade e da liberdade nos

EUA

O self-reliance é o princípio de que cada indivíduo é

o seu próprio mestre, tem controle absoluto de seu

próprio destino e, portanto, absolutamente livre.

Os avanços e os recuos na vida de cada pessoa

estão condicionados aos seus próprios méritos. O

self-reliance nega a importância de outros

indivíduos na vida de cada um e acredita que a

capacidade de se valer de si mesmo é fundamental.

Qualquer traço ou indício de dependência, em que

domínio for, econômico, emocional etc. é

considerado altamente humilhante. A pessoa

possuidora de um caráter dependente não só é

socialmente malvista, como considerada

necessitada de algum tipo de assistência

psiquiátrica. Dentro da família, a busca de

independência é estimulada desde cedo pelos pais.

A criança é induzida a desempenhar pequenas

tarefas que lhe forneçam algum tipo de ganho

pecuniário. A permanência na casa dos pais depois

de uma determinada idade não é estimulada nem

desejada. Basta verificarmos as estatísticas

universitárias para constar que, a maioria dos

jovens não estudam em lugares próximos a sua

casa e sim em lugares bem distantes.

Igualdade moral e igualdade legal

A igualdade nos EUA é percebida como um direito e

não como um fato. Consequentemente funciona

como uma moldura para o desenrolar de todos os

dramas sociais. Na sociedade norte-americana,

igualamos para diferenciar. Um melhor

desempenho por parte dos indivíduos ou de um

grupo os intitula a uma posição diferenciada em

relação aos demais. Assim, na sociedade norte-

americana, a partir de sua idéia de igualdade –

concebida como um direito consubstanciado na

existência de uma lei universalizante que, em

determinado nível e momento, iguala todos -, os

indivíduos diferenciam-se uns dos outros. Por outro

lado, a igualdade no Brasil se apresenta sob outras

formas. Principalmente na igualdade biológica do

gênero humano, quando dizemos “quando morrer,

vai todo mundo para o mesmo lugar”, “meu sangue

é tão vermelho quanto o dele”, “gente é tudo igual”

etc. expressam a idéia de que a existência de uma

constituição física comum a todos os seres

humanos e um destino final idêntico e inexorável

para todos conferem-lhes uma humanidade no

sentido de valor. Ao contrário da concepção da

igualdade norte-americana, a brasileira se coloca

como um fato, como algo dotado de substância, e

não apenas e exclusivamente como um direito.

Implicações de igualdade moral para a

sociedade brasileira

A noção de igualdade – entendida no Brasil como

um fato, e não como um direito, imprime a essa

categoria um caráter radical e absoluto que não

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permite gradações e hierarquias com base em

valores calcados no desempenho individual. Isso

tem como conseqüência lógica a anulação do

indivíduo enquanto caráter uno e irrepetível,

permitindo a formação de totalidades mais amplas,

da quais o melhor exemplo seria a nossa idéia de

Estado. A nação-estado, em vez de ser concebida

como uma coleção de indivíduos, como no caso

francês, ao qual se acrescenta o exemplo norte-

americano, é aprendida como um superindivíduo,

ou melhor, como um indivíduo coletivo, com

superdireitos e deveres, hierarquicamente superior

ao nosso indivíduo-cidadão, podendo dispor em

todas as suas dimensões.

A segunda conseqüência da nossa ênfase igualitária

no plano simbólico é que, almejamos não o

reconhecimento dos aspectos individuais de cada

um e sim o estabelecimento de um estado

igualitário, em que o que é concedido a um deve

ser estendido a todos, independentemente do

desempenho individual, pois, caso contrário,

estaríamos estabelecendo desigualdades,

gradações, em suma hierarquias, que vão de

encontro ao próprio objetivo do sistema. O único

valor a estabelecer graduações é o da antiguidade

ou senioridade. Isso quer dizer que, se permitimos

que o princípio da antiguidade seja o único a

diferenciar os indivíduos, temos a certeza que o

ideal da igualdade será mantido, pois este critério é

algo que está ao alcance de todos e pode ser

estendido a todas as categorias. Já o desempenho

(mérito) depende dos indivíduos e suas

especificidades.

Jeitinho e identidade nacional

Identidade social é o conceito utilizado para se

pensar teoricamente, o processo de formação de

um grupo e a auto-atribuição de uma imagem,

maneira de ser ou característica que serve de

moldura para a compreensão do mundo e de

outros grupos sociais. O conceito de identidade

social é um rótulo geral para designar diversas

modalidades dessa dinâmica. Isto é, diferentes

formas de percepção que se constroem no interior

das sociedades e norteiam as relações entre grupos

e das pessoas enquanto membros do grupo.

Nenhum grupo possui uma identidade acabada. As

identidades sociais são, portanto, construções

culturais. São categorias que funcionam como

sistema codificador de uma vasta teia de relações.

É um sistema de classificação que separa e ordena

uma população numa série de categorias que se

opõem e se complementam. Os mecanismos de

poder e dominação são aspectos fundamentais na

construção de identidades sociais, pois hierarquias

econômicas, políticas e simbólicas são constitutivas

dessas respectivas atribuições e construções. A

identidade social, segundo Roberto Cardoso de

Oliveira, pode ser comparada à consciência

coletiva, por meio da manipulação de uma série de

símbolos sociais que a formam, portanto, e

tornam-se a sua identidade. Neste estudo, Lívia

Barbosa está mais interessada num tipo particular

de identidade social – a identidade nacional. A

identidade nacional abarca uma série de

identidades menores e é por meio dela que nos

definimos e ao país em que vivemos. É o tipo de

identidade que vemos emergir na época dos jogos

de futebol da Copa do Mundo. Nesse momento toda

a diversidade interna da sociedade brasileira é

dissolvida e anulada em face da nossa identificação

com 11 jogadores, que durante 90 minutos,

sintetizam milhões de brasileiros e uma unidade

geográfica de mais de 8,5 milhões de Km2. Nesse

momento, as outras identidades construídas tendo

como base a etnia, o gênero ou a classe são

englobadas pela identidade construída tendo como

base a nação, isto é, o Brasil. Isso quer dizer que,

num jogo entre Brasil e Argentina as diferenças

entre patrão e empregado dão lugar às diferenças

entre argentinos e brasileiros. Por outro lado, o

movimento englobador da identidade nacional não

significa que ela promova sempre uma

homogeneização positiva, como no caso do futebol,

mas, ao contrário, ela pode emergir em situações

de identificação negativa quando reprovamos ou

nos envergonhamos de ser parte deste país:

“decididamente, este país não tem jeito”, “não

adianta, isso aqui não vai pra frente”, “com esse

povo só matando”, “êta povinho ruim”. Neste caso,

diante de um acontecimento negativo, toda a

sociedade brasileira é homogeneizada a partir de

um ângulo negativo. Um aspecto importante da

identidade nacional é que, para os seus membros,

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ela caracteriza o que o indivíduo é, ao invés do que

ele faz, como acontece com identidade de

coletividade de funções específicas, como por

exemplo de uma classe trabalhadora. É justamente

nesse contexto que se insere o jeitinho enquanto

elemento definidor de nossa “brasilidade”. Quando

qualificamos determinado tipo de ação e

comportamento como jeitinho brasileiro, estamos

anulando toda a diversidade interna da nossa

sociedade, e adotando uma classificação

homogeneizante, a partir da qual definimos

milhões de pessoas.

Ao jeitinho brasileiro contraponho a falta de jogo

de cintura do anglo-saxão, a rigidez do alemão, a

sovinice do francês etc. Ao mesmo tempo, por

meio dessas categorias, que funcionam como

símbolo, expresso valores a respeito das demais a

partir do contexto que utilizo, produzindo um

discurso coerente e “ideológico” sobre um

determinado conjunto de relações que considero

como representativas daquilo que julgo ser

brasileiro. Quando nos referimos como jeitinho

brasileiro como um elemento de identidade social,

não significa dizer que acreditamos que ele

simbolize a totalidade da sociedade brasileira e

nem que seja uma exclusividade nossa. Significa

apenas, que em determinados contextos ele

sintetiza um conjunto de relações e procedimentos

que os brasileiros percebem como sendo deles. E

essa totalidade expressa na categoria brasileiro só

se mantém intacta, a uma certa distância de um

determinado ponto específico.

A Identidade social brasileira positiva

O jeitinho encarna o nosso espírito cordial, alegre,

simpático, caloroso, humano etc. de um país

tropical, bonito, sensual, jovem e cheio de

possibilidades. Justamente os aspectos que são

contrastados com os países anglo-saxões e que nos

fornecem uma leitura deles como frios, rígidos,

quadrados etc. Nesse contexto, nossa identidade

histórica é manipulada de forma bastante positiva,

pois a nossa mistura racial, o nosso clima, a

maneira de o português lidar com as outras etnias

são cotados como uma das causas possíveis desse

nosso modo de ser. Nesse sentido, o jeitinho

brasileiro promove uma homogeneização positiva,

anulando toda a nossa diversidade interna a partir

da enfatização de determinadas “qualidades” do

povo.

A Identidade social brasileira negativa

Em contraste com a frase atribuída ao presidente

De Gaulle “Esse não é um país sério”. Por que não

somos sérios? Não somos sérios porque permitimos

que a amizade tenha mais valor do que o

cumprimento da lei; porque relações pessoais, uma

vez estabelecidas, tomam precedência sobre

qualquer outro critério; porque o cidadão brasileiro

tem vários parentes próximos que não o deixam

reinar sozinho em nosso ambiente social. Em

suma, não somos sérios porque todos os

parâmetros da ideologia individualista,

consubstanciados num tratamento igualitário de

todos perante a lei, são permanentemente vazados

na prática social de vários domínios da sociedade

brasileira pela nossa perspectiva relacional, que

transforma o público em privado e, assim, torna

legítimo o que seria espúrio sob aquela

perspectiva. Somos originários de um país que

sempre foi incompetente e inepto na condução de

seus próprios negócios e na nossa colonização.

Sintetizando, utilizamos o jeitinho como símbolo da

nossa desordem institucional, incompetência,

ineficiência e da pouca presença do cidadão no

nosso universo social, reafirmando nosso eterno

casamento com uma visão de mundo relacional.

Exercício: Segundo Lívia Barbosa “As identidades sociais são, portanto construções culturais. São categorias que funcionam como sistema codificador de uma vasta teia de relações”. De acordo com a ampla discussão em sala de aula sobre a identidade social brasileira, trace os principais aspectos que melhor representam a cultura do brasileiro, e como o conhecimento dessas características pode contribuir como estratégia eficaz de um Gestor nas empresas.