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Transtornos globais do desenvolvimento O fato de a nova LDB reservar um capítulo exclusivo para a educação especial parece relevante para uma área tão pouco contemplada, historicamente, no conjunto das políticas públicas brasileiras. O relativo destaque recebido reafirma o direito à educação, pública e gratuita, das pessoas com deficiência, condutas típicas e altas habilidades. É certo que o registro legal, por si, não assegura direitos, especialmente numa realidade em que a educação especial tem reduzida expressão política no contexto da educação geral, reproduzindo talvez a pequena importância que se concede às pessoas com necessidades especiais - ao menos aquelas denominadas deficientes - em nossas políticas sociais. Mas pode-se considerar um avanço importante em nosso país, onde o acesso à educação das pessoas com deficiência é escasso e revestido do caráter da concessão e do assistencialismo. Neste contexto os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) são distúrbios nas interações sociais recíprocas que costumam manifestar-se nos primeiros cinco anos de vida. Caracterizam-se pelos padrões de comunicação estereotipados e repetitivos, assim como pelo estreitamento nos interesses e nas atividades. Os TGD englobam os diferentes transtornos do espectro autista, as psicoses infantis, a Síndrome de Asperger, a Síndrome de Kanner e a Síndrome de Rett. Com relação à interação social, crianças com TGD apresentam dificuldades em iniciar e manter uma conversa. Algumas evitam o contato visual e demonstram aversão ao toque do outro, mantendo-se isoladas. Podem estabelecer contato por meio de comportamentos não-verbais e, ao brincar, preferem ater-se a objetos no lugar de movimentar-se junto das demais crianças. Ações repetitivas são bastante comuns. Os Transtornos Globais do

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Transtornos globais do desenvolvimento

O fato de a nova LDB reservar um capítulo exclusivo para a educação especial parece relevante para uma área tão pouco contemplada, historicamente, no conjunto das políticas públicas brasileiras. O relativo destaque recebido reafirma o direito à educação, pública e gratuita, das pessoas com deficiência, condutas típicas e altas habilidades. É certo que o registro legal, por si, não assegura direitos, especialmente numa realidade em que a educação especial tem reduzida expressão política no contexto da educação geral, reproduzindo talvez a pequena importância que se concede às pessoas com necessidades especiais - ao menos aquelas denominadas deficientes - em nossas políticas sociais. Mas pode-se considerar um avanço importante em nosso país, onde o acesso à educação das pessoas com deficiência é escasso e revestido do caráter da concessão e do assistencialismo.

Neste contexto os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) são distúrbios nas interações sociais recíprocas que costumam manifestar-se nos primeiros cinco anos de vida. Caracterizam-se pelos padrões de comunicação estereotipados e repetitivos, assim como pelo estreitamento nos interesses e nas atividades. Os TGD englobam os diferentes transtornos do espectro autista, as psicoses infantis, a Síndrome de Asperger, a Síndrome de Kanner e a Síndrome de Rett. Com relação à interação social, crianças com TGD apresentam dificuldades em iniciar e manter uma conversa. Algumas evitam o contato visual e demonstram aversão ao toque do outro, mantendo-se isoladas.

Podem estabelecer contato por meio de comportamentos não-verbais e, ao brincar, preferem ater-se a objetos no lugar de movimentar-se junto das demais crianças. Ações repetitivas são bastante comuns. Os Transtornos Globais do Desenvolvimento também causam variações na atenção, na concentração e, eventualmente, na coordenação motora. Mudanças de humor sem causa aparente e acessos de agressividade são comuns em alguns casos. As crianças apresentam seus interesses de maneira diferenciada e podem fixar sua atenção em uma só atividade, como observar determinados objetos, por exemplo. Com relação à comunicação verbal, essas crianças podem repetir as falas dos outros - fenômeno conhecido como ecolalia - ou, ainda, comunicar-se por meio de gestos ou com uma entonação mecânica, fazendo uso de jargões.

A linguagem para Lacan (apud SIBEMBERG, 1998, p. 64) O inconsciente é estruturado como uma linguagem. A linguagem é o eixo central da constituição do sujeito psíquico. Quando os bebes nascem não têm um saber instintivo que possa garantir sua sobrevivência assim como os animais. O universo da criança se organiza em torno das significações produzidas pela

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linguagem e é por meio desta que o outro transmite à criança o saber sobre o mundo que a rodeia. É na relação com o outro, representante dos significantes e da articulação de significações sociais de uma dada cultura, que vai se organizando um saber sobre si, o objeto e o outro. O primeiro Outro é a mãe, que através do olhar, do toque e da palavra coloca a criança em um circuito desejante, conferindo-lhe as significações que ela irá atribuir ao mundo das coisas e das relações intersubjetivas.

É assim, através da linguagem, na relação com o outro, que a criança vai construindo seus referenciais imaginários e simbólicos. Se há uma falha precoce na apresentação dos referentes imaginários e simbólicos, a criança pode ficar excluída do campo das trocas simbólicas da linguagem, reduzida ao real do corpo perceptivo não subjetivado. Quando ocorre essa falha é a criança que não se interessa pela presença do outro e nem apresenta significação alguma no olhar, pois não recorre à linguagem para perceber as coisas do mundo, passando a produzir sintomas que aparecem nas estereotipias. É através da constituição de um sujeito psíquico que a aprendizagem aparece como consequência de sua inclusão subjetiva no campo significante.

Jerusalinsky (apud SILBEMBERG, 1998, p. 65), aponta quatro momentos fundamentais para a constituição na criança de sua posição social de sujeito desejante no campo da linguagem: o conceito de Outro, escrito com letra maiúscula, em psicanálise lacaniana, designa um lugar simbólico, o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, que determinam o sujeito, às vezes de maneira externa a ele, outra de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo.

Com o sintoma autista (estereotipias, negativa do olhar do outro, ausências, formações fóbicas e obsessivas) considerando-o como único recurso de organização mental que a criança dispõe. Acesso à ordem especular. Aparecimento da demanda na criança, dirigida ao outro. Introdução da função simbólica, aparecimento da palavra. A psicanálise ajuda quando o foco é a linguagem da criança, mas é preciso uma escuta “diferente”, torna-se necessário operacionalizar esta escuta que pode ser conseguida pela atenção ao discurso da criança, seja ele o discurso corporal, ou um discurso plástico, ou mesmo um discurso verbal.

Segundo Laznik-Penot (1997, p.10), “as produções sonoras de uma criança autista podem ser escutadas, mesmo que não tenham a função de comunicação, mesmo que não exista ainda a intersubjetividade”, mas, na escola, muitas vezes, essas produções passam despercebidas ou são até ignoradas. É comum os professores não apostarem nessa comunicação e por consequência não a escutarem, ou, se escutadas, tais produções são tomadas por gritos sem sentido, mera fala ecolalia e se tenta “corrigi-las”. Considera-se mais pedagógico ocupar as crianças com atividades repetitivas para que

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fiquem em silencio, do que valorizar e incentivar suas produções sonoras e tentativas de comunicação. Para Lacan (apud LAZNIK-PENOT, 1997, p.11), “uma fala é uma fala, porque alguém acredita nela”. E Lazni-Penot complementa escrevendo que, cabe a alguém fazer a criança perceber que o que ela diz pode ser mensagem para algum destinatário. A partir daí, a criança opera toda uma série de processos psíquicos capazes de suprir o que falha em seu funcionamento mental.

Se uma fala é escutada como uma fala que tem significação, a criança pode produzir outras deixando desdobrar redes de sentido entre as frases. Nos estudos iniciais em relação à criança autista, acreditava-se que a linguagem autística não serviria para comunicar, só repetiam enunciados e que não eram capazes de usar os pronomes se não os invertendo. Essa ideia trouxe sérias consequências, e é discutível sob a perspectiva do referencial psicanalítico. Até hoje, as pessoas se interessam pelos laços afetivos que a criança pode ou não tecer com o meio, mas negligencia-se a atenção que deve ser dada aos enunciados da criança. A escuta desses enunciados é rica e pode nos dar referencias sobre o que deve vir do Outro para que uma criança autista possa se assumir como sujeito de seu próprio enunciado.

As repetições ou mesmo as trocas pronominais se ligam a elementos significantes para a criança e, se for dado mais atenção a este tipo de linguagem pode-se reconhecer representações possíveis tanto no plano imaginário como no simbólico, ou seja, é possível encontrar algumas representações inconscientes capazes de constituir um sujeito. Se, ao emitir um enunciado, a criança encontra a escuta do Outro, em vez de rejeitá-lo como não pertencendo ao código, passa a reconhecê-lo.

Lacan acrescenta (apud LAZNIK-PENOT, 1997, p. 142) “aceitar ratificar como mensagem o que acaba de ser proferido, mesmo que a significação deva permanecer temporariamente em suspenso, indica para a criança que ela pode ser ouvida para além do se dizer”. Mesmo que inicialmente um enunciado tenha atravessado a criança e depois tenha saído dela sem que ela possa destiná-lo a alguém, nem modulá-lo numa demanda qualquer, quando lhe é devolvido como tendo uma significação, como fazendo mensagem, algo se inscreve para ela. Pode ser que, mais tarde, a criança possa se identificar com a fonte deste prazer experimentado pelo Outro.

O professor pode considerar as produções da criança, sejam elas gestuais, linguageiras, ou qualquer outra forma de produção, como significante, e portadoras do que, nessas produções, se esboça como formação do inconsciente. Mas, para que isto ocorra, é preciso que uma pessoa se tome por destinatário destas produções, mesmo que não lhe tenham sido endereçadas pela criança, ou seja, é preciso encarnar o lugar do Outro real. Então, apostar que ela possa não apenas sustentar um discurso que se endereça a um outro,

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mas, também utilize a linguagem para trabalhar os impossíveis aos quais a criança se encontra confrontada. Aceitar como mensagem o que foi proferido pelo aluno, mesmo que a significação deva permanecer temporariamente em suspenso, indica para a criança que ela pode ser ouvida para além do seu dizer.

Segundo Sibemberg (1998, p. 70) “Os três eixos sintomáticos do autismo, ou seja, a falta de linguagem comunicativa, a falta de interação social e a ausência de brincar imaginativo e simbólico, nos revelam o quanto à linguagem é constitutiva do sujeito humano”. Considerar esses três eixos pode colocar a criança na direção de constituí-la num corpo subjetivado e o professor pode contribuir para tanto compreendendo a função da linguagem e promovendo o espaço da escuta. É o momento em que se reconhece a importância da valorização da linguagem verbal ou não verbal e se vislumbra a possibilidade de o professor contribuir na inserção do aluno no campo simbólico promovendo a escuta e propondo sua expressão, seja ela pela linguagem corporal, verbal ou escrita.

A escrita o grande desafio para os professores de alunos com Transtornos Globais do Desenvolvimento na fase da alfabetização. O desafio é o de fornecer instrumentos como a leitura e a escrita, dentro das possibilidades subjetivas e para além das possibilidades cognitivas da criança, e a aposta é que esses instrumentos serão importantes para o reordenamento simbólico do aluno. Segundo Kupfer(1997), a maneira como a criança desenvolve seu processo de construção da escrita testemunha a presença de um sujeito em trabalho de construção do significante. O exercício de construção da escrita possibilita a entrada do Outro, que pode fazer emergir o sujeito. É por isso que a escrita ou tentativas de escrita das crianças autistas muitas vezes se apresentam como um código carregado de significações. “A aprendizagem da escrita pode produzir efeitos subjetivantes que não são necessariamente os mesmos da linguagem falada. É por isso que pode haver aí um sujeito da escrita antes de se instaurar um sujeito da palavra” (KUPFER, 2000, p.110).

A escrita produz representações diferentes da linguagem oral, ou, quando se escreve, produz-se um texto que não está ali quando se fala. É necessário compreender como se dá a articulação entre os processos mentais e a posição ou presença de um sujeito inconsciente. A criança, desde os seus primeiros anos de vida, receberá inscrições psíquicas que são marcas operadas pelos primeiros agentes de humanização, ou seja, os pais. Essas inscrições se desdobram em inúmeras outras inscrições, sempre em conexão com a primeira, que é uma marca inicial e que estará presente em todas as suas escolhas futuras. A aprendizagem, em relação à qual não há nenhuma demarcação prévia no sujeito, regerá os deslocamentos a partir dessa inscrição primordial.

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Para dirigir esses deslocamentos, a criança precisa desenvolver estruturas mentais em que estarão presentes as marcas primordiais, bem como também estarão presentes na aprendizagem, nas suas dificuldades em aprender e no seu estilo próprio de aprender e de escrever. Serão as marcas que evidenciam a presença de um sujeito. As inscrições não predeterminam nada da aprendizagem de uma criança, são como se fossem as sombras das formas nas quais o sujeito vai encaixando os objetos que a experiência da vida lhe oferece. Se não houver transformações simbólicas, não há espaço para indagar que posição esse objeto tem na cadeia simbólica do Outro. Não há conhecimento se o enunciado que o sustenta não tem uma posição simbólica e está se referindo a um real.

Então, vêm os efeitos avassaladores da psicose, e o que a escola pode oferecer? Kupfer (2000, p.109) indaga “se não puderem subjetivar-se pelo ingresso no campo simbólico, o que se faz usualmente pela mão do Outro falante - os pais -, não seria possível tentar novamente pela mão de um outro, digamos, escrevente?”. Quando aprendem a escrever, as crianças ganham certa organização libidinal e podemos perceber uma diminuição da agitação motora; surgem formas que testemunham a presença de um sujeito em trabalho de construção do significante. É uma subjetivação por sua condição de linguagem ou mesmo uma entrada na palavra, quando a escrita surge para elas. O trabalho de alfabetização consiste em apresentar o universo escrito à criança autista ou psicótica, fazendo o apelo a um sujeito que parece tender para esse universo, na busca de se dizer.

A escrita não é uma simples representação da linguagem falada. Escrever não é só reproduzir o que se fala, é algo mais, e, como exemplo, existem casos de crianças autistas que escrevem, mas não falam. A maioria dos métodos de alfabetização usados nas escolas insiste em estabelecer uma relação entre a aprendizagem e os objetos em si. Mas se afirmamos que na escrita não há correspondência entre palavra e coisa, o que vemos na escrita não tem relação direta com o que se percebe num entorno social. O que é escrito é o traço, e não a percepção é o efeito do trabalho da letra, que se revela pela instalação da operação significante. Pode-se dizer que a linguagem da escrita pode produzir efeitos subjetivantes que não são necessariamente os mesmos da linguagem falada. Lacan (apud JERUSALINSKY, 1997) diz que “o inconsciente é uma escritura, escritura de letra e não de sentido”. A escritura é uma sucessão de marcas, resultando na instalação ou constituição do sujeito do inconsciente. O traço que se revela na escrita já não é mais o traço inscrito primordialmente, mas é um feixe de relações.