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ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO Cristina Gavina* Teresa Pinho** O enfarte agudo do miocárdio, mais vulgarmente conhecido por “ataque cardíaco” resulta geralmente da lesão do músculo cardíaco subsequente à obstrução de uma artéria coronária. É actualmente uma das principais causas de morte nos países desenvolvidos e a sua incidência poderá ser significativamente diminuída se forem implementadas medidas preventivas, nomeadamente na mudança de estilos de vida. I. O CORAÇÃO E AS ARTÉRIAS CORONÁRIAS Para melhor compreender este processo, o seu tratamento e a sua prevenção temos que conhecer como funciona o coração. De uma forma resumida podemos descrever o coração como um órgão composto maioritariamente por tecido muscular, com quatro cavidades no seu interior, duas aurículas que funcionam como reservatórios, recebendo sangue que entra no coração, e dois ventrículos que funcionam como bombas propulsoras, enviando o sangue do coração para outros órgãos. Legenda: O coração e grandes vasos

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ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO Cristina Gavina* Teresa Pinho**

O enfarte agudo do miocárdio, mais vulgarmente conhecido por “ataque cardíaco” resulta geralmente da lesão do músculo cardíaco subsequente à obstrução de uma artéria coronária. É actualmente uma das principais causas de morte nos países desenvolvidos e a sua incidência poderá ser significativamente diminuída se forem implementadas medidas preventivas, nomeadamente na mudança de estilos de vida. I. O CORAÇÃO E AS ARTÉRIAS CORONÁRIAS Para melhor compreender este processo, o seu tratamento e a sua prevenção temos que conhecer como funciona o coração. De uma forma resumida podemos descrever o coração como um órgão composto maioritariamente por tecido muscular, com quatro cavidades no seu interior, duas aurículas que funcionam como reservatórios, recebendo sangue que entra no coração, e dois ventrículos que funcionam como bombas propulsoras, enviando o sangue do coração para outros órgãos.

Legenda: O coração e grandes vasos

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O par aurícula/ventrículo constitui uma unidade funcional que recebe e bombeia sangue. Quando o coração relaxa enche-se de sangue e quando se contrai esvazia-se. À direita, a aurícula e o ventrículo recebem sangue de todo o corpo e enviam-no para os pulmões para ser oxigenado. À esquerda, o mesmo par recebe o sangue já oxigenado dos pulmões e envia-o para todo o corpo. O sangue circula sempre na mesma direcção porque existe um sistema de 4 válvulas que asseguram que o sangue, depois de passar num sentido, não volte para trás.

Legenda: Circulação pulmonar e circulação sistémica. AD- aurícula direita; VD- ventrículo direito; AE- aurícula esquerda; VE- ventrículo esquerdo O músculo cardíaco, também chamado miocárdio, tal como as células do resto do nosso organismo, necessita de oxigénio e nutrientes para exercer as suas funções. Embora as câmaras do coração se encontrem cheias de sangue, o músculo cardíaco não consegue extrair daí o oxigénio, possuindo para tal, um sistema próprio de vasos sanguíneos designados como artérias coronárias. Estas artérias distribuem-se como os ramos de uma árvore na superfície do coração, sendo os seus troncos principais o tronco comum ou artéria coronária esquerda que se divide em dois ramos importantes (as artérias descendente anterior e circunflexa) e a artéria coronária direita.

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Estes, por sua vez, ramificam-se em artérias cada vez mais finas e mais profundas no músculo cardíaco.

Legenda: Coração e artérias coronárias II. FACTORES DE RISCO CARDIOVASCULAR E ESPECTRO DA DOENÇA CORONÁRIA As artérias coronárias sem doença têm paredes finas e extensíveis e características que facilitam o fluxo sanguíneo. Com o passar dos anos a parede destas artérias torna-se mais espessa por deposição de colesterol (um dos tipos de gordura presente no sangue) e outros componentes, formando as chamadas placas de ateroma num processo designado por aterosclerose.

Legenda: Progressão da placa de ateroma A doença aterosclerótica é um processo generalizado e não se limita às artérias coronárias. Outros territórios frequentemente afectados são os das artérias da circulação cerebral e dos membros inferiores, sendo a sua manifestação clínica, respectivamente, o acidente vascular cerebral (AVC) e a claudicação intermitente (dor na barriga das pernas que ocorre com a marcha e se deve a insuficiente irrigação dos músculos).

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Legenda: Doença aterosclerótica- manifestações clínicas segundo o território arterial afectado Existem vários factores que contribuem para que este processo se dê de forma mais acelerada e que são, portanto, considerados como factores de risco. Alguns destes são constitucionais e não podem ser modificados como o sexo masculino, a idade (o risco aumenta em homens com mais de 45 anos e mulheres com mais de 55 anos ou após a menopausa) e a história familiar (o risco aumenta se há história de uma manifestação de doença coronária no pai ou um irmão antes dos 55 anos ou na mãe ou uma irmã antes dos 65 anos). Outros são modificáveis e podem sofrer intervenção, quer por mudança de estilos de vida quer por intervenção farmacológica, com uso de medicações específicas. Os exemplos mais conhecidos dos factores de risco cardiovascular modificáveis são o tabagismo, a hipertensão arterial, a diabetes, o colesterol elevado, a obesidade, o sedentarismo e o stress.

Legendas: Factores de risco cardiovascular

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Quando estas placas se formam nas artérias coronárias dizemos estar na presença de doença coronária. Podem ocorrer dois tipos de evolução: as placas de ateroma podem continuar a crescer ou podem tornar-se instáveis e romper. Quando as placas crescem, o espaço existente dentro da artéria para a circulação de sangue (lúmen) começa a diminuir. Quando a obstrução do lúmen ultrapassa 70% do diâmetro da artéria, o fluxo de sangue para o coração reduz-se de forma significativa, particularmente quando ao coração é exigido mais oxigénio como acontece durante o exercício e as emoções. Nessas alturas o músculo cardíaco entra em sofrimento ou isquemia, sendo o sinal de alerta o aparecimento de dor no peito designada por angina, o qual geralmente desaparece com o repouso. Muitas vezes estas placas, embora possam até não provocar grande obstrução no lúmen da artéria, tornam-se instáveis e rompem expondo o seu conteúdo aos componentes circulantes do sangue. Tal como acontece numa ferida na pele, as células sanguíneas, nomeadamente as plaquetas, e os factores da coagulação tentam cobrir a zona “ferida” da placa formando coágulos que interrompem o fluxo sanguíneo e provocam sinais de alarme de sofrimento miocárdico. Se a oclusão da artéria durar pouco tempo o músculo cardíaco poderá ainda recuperar, sendo esta situação correspondente a uma angina instável. Caso dure mais de 30 minutos a lesão cardíaca torna-se irreversível e surge o enfarte miocárdico ou “ataque cardíaco”.

Legenda: Artéria coronária com obstrução ao fluxo de sangue por ruptura da placa de gordura e formação de coágulo

Legenda: Artéria coronária com placa de gordura que diminui o espaço livre para a circulação do sangue

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III. SINAIS DE ALERTA Alguns enfartes agudos do miocárdio (EAM) são súbitos e acompanhados de dor intensa no peito mas noutros os sintomas surgem de forma progressiva e a dor ou desconforto não são muito intensas, levando o doente a desvalorizar as suas queixas. Os sinais que devem levantar a suspeita de se tratar de um EAM são: - desconforto ou dor torácica: geralmente surge no meio do peito, sobre a zona do esterno, e pode ser sentido como aperto, pressão, ardência ou peso, geralmente durando mais de 30 minutos; - desconforto noutras áreas do tronco como um ou ambos os braços, pescoço, mandíbula, entre as omoplatas ou imediatamente abaixo do esterno (zona do estômago); - falta de ar, que geralmente também se associa a mal-estar torácico; - outros sinais e sintomas como hipersudorese (“suores frios”), náuseas e vómitos, que geralmente surgem em associação aos anteriores, mas que podem surgir isoladamente, principalmente nos doentes idosos ou nos diabéticos.

Legenda: localização da dor da angina de peito e enfarte do miocárdio NA PRESENÇA DESTES SINTOMAS DE ALERTA DEVE CONTACTAR O INSTITUTO NACIONAL DE EMERGÊNCIA MÉDICA (INEM) pelo número de telefone 112 para que profissionais de saúde treinados possam determinar a probabilidade de se tratar realmente de um enfarte miocárdico e lhe prestem os cuidados necessários. NÃO DEVE CONDUZIR ATÉ AO HOSPITAL OU UTILIZAR VIATURAS NÃO MEDICALIZADAS. O tempo que julga poupar ao recorrer por meios próprios ao hospital pode custar-lhe a vida. Na assistência ao enfarte o INEM disponibiliza VIAS VERDES que permitem atempada assistência e orientação destes casos para os hospitais mais diferenciados no tratamento deste tipo de doença. Podem ainda surgir arritmias que conduzem a paragem cardíaca que só as equipas médicas e paramédicas estão aptas a resolver. Estas arritmias são na verdade a principal causa de morte dos doentes com EAM antes de chegarem ao hospital. Quando há uma paragem cardiorespiratória é crucial o

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início de manobras de suporte básico de vida (respiração boca a boca e massagem cardíaca) e o uso de cardiodesfibrilhadores que administram choques capazes de reverter as arritmias. Actualmente existem já em alguns locais públicos desfibrilhadores automáticos externos (AEDs) para uso por pessoas sem formação médica, já que estes aparelhos são capazes de, sozinhos, identificar o ritmo cardíaco e decidir se é adequado chocar. Julga-se que a rápida implementação destas medidas e a formação das populações possam contribuir para a redução da mortalidade pré-hospitalar do enfarte do miocárdio.

Legenda: Manobras de suporte básico de vida na paragem cardiorespiratória O diagnóstico de EAM é feito com base nos sinais de alerta já referidos e em exames complementares como o electrocardiograma (ECG) e análises sanguíneas para determinar os marcadores de necrose miocárdica (MNM), isto é, componentes do músculo cardíaco que são libertados para a circulação quando há lesão das células cardíacas. Estes exames ajudam a determinar se se trata efectivamente de um EAM e, caso este diagnóstico seja confirmado, qual o tipo de abordagem mais adequado. Outro exame importante para a doença coronária é o cateterismo cardíaco. Este é um exame invasivo que usa os raios X para avaliar o coração e as artérias coronárias, podendo no caso do EAM ajudar a determinar a localização da obstrução. O exame, também designado angiografia coronária, consiste na passagem de um tubo fino e flexível (catéter) através de uma artéria do braço ou da virilha, com o doente acordado e usando apenas anestesia local. Este cateter vai progredir ao longo da artéria picada até ao local das artérias coronárias as quais, após a injecção de um produto de contraste para os raios X, são visualizadas podendo analisar-se a localização e a gravidade das obstruções.

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Legenda: Localização do cateter usado no cateterismo cardíaco quando a abordagem é feita através da virilha (artéria femoral). Quando estas obstruções são significativas existe a possibilidade de se efectuar um procedimento de dilatação da artéria com um balão de forma a restaurar o fluxo sanguíneo. Este processo designa-se por angioplastia. Na maioria das vezes a angioplastia é complementada pela colocação de uma malha metálica, o stent, que previne que o vaso volte a obstruir.

Legenda: Artéria coronária obstruída

Legenda: Angioplastia com balão

Legenda: Angioplastia com stent (continua)

*Coordenadora da Unidade de Cuidados Intensivos Cardiologia, Hospital de São João, Porto Assistente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto **Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia Hospital de São João, Porto