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31-08-2019 Gráfico 1 - Poupança e Investimento em Portugal % PIB 30 25 20 15 10 YiiSa íY' vc,8' €>•° UNS 2002 2 3 21 21 2 2007 2008 2009 2010 2011 2012 20,13 2244 2% 2017 2018 Poupança Nacional Privada Bruta Poupança Externa - formaçàci Bruta de Capital Economia Porque diz a economia convencional que o investimento depende da poupança? tii" teoria da poupança que não poupa o país Da proposta política aos textos jornalísticos, por toda a parte se depara com um discurso moralista sobre a poupança. Baseado numa teoria económica que ainda hegemoniza o espaço público, esse discurso distorce a realidade e estabelece relações causais falaciosas entre poupança e investimento. Na verdade, a poupança depende do investimento, e não ao contrário. Mas o discurso neoliberal, mil vezes repetido, serve para favorecer umas mudanças, como a da entrega da Segurança Social à predação financeira, e para bloquear outras, como a da consciência dos constrangimentos quase coloniais que criam estagnação e crises em países periféricos como Portugal. PAULO COIMBRA e JOÃO RODRIGUES * a recente apresentação do esboço do programa eleitoral do Partido Social-Democrata (PSD), Rui Rio defendeu a urgência de se promover, in- cluindo por via fiscal, «uma cultura da pou- pança» interna, em nome da necessária re- dução do endividamento externo do país e da promoção do investimento. Natural- mente, o programa do PSD reflecte a teoria económica convencionall11 . O economista Luís Aguiar-Contaria sinte- tizou num título da sua coluna regular esta teoria: «sem poupança não investimento e sem investimento não crescimento»121. Num estudo, em co-autoria, para a Asso- ciação Portuguesa de Seguros, este mesmo economista havia identificado a provisão pública da Segurança Social como uma das causas institucionais desta escassez de pou- pança131 . Por sua vez, o economista Vítor Bento também havia dramatizado a ques- tão, no fundo «cultural», numa entrevista: na ausência de hábitos de poupança por parte dos portugueses, a acumulação de capital continuará a ser baixa e dependente do es- trangeiro, sendo a «própria soberania nacio- nal que fica em causa», num país desta forma reduzido a um «estatuto quase colonial»141 . Com ilações mais ou menos dramatica- mente oportunistas do ponto de vista polí- tico, os exemplos deste tipo de diagnóstico e das suas causas não têm fim. É de hegemonia que estamos a falar. Uma das instituições inter- nacionais quase coloniais que a assegura é o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ainda recentemente, no seu relatório sobre econo- mia portuguesa, o FMI alertava para os efeitos perversos da baixa taxa de poupança em Por- tugal, nomeadamente ao nível da incapacidade de aumentar o investimento nacional sem criar desequilíbrios externos, apelando ao fomento da poupança por via da promoção de planos privados de pensões complementaresís l. A hegemonia merece ser contestada, até pelas suas implicações claramente regres- 17, 5 Ni 1585 19% 1997 1998 1999 2000 2001 -5 -10 Poupança Nacional Pública Bruta sivas: no fim de contas, os ricos teriam uma maior propensãoà virtuosa poupança, pelo que intensificar a redistribuição de baixo para cima na pirâmide.sodal, por via fiscal, laborai ou da privatização da Segurança So- cial favoreceria o aumento do investimento. É de contra-hegemonia que também é ne- cessário falar. Não nada mais prático do que a teoria económica, neste caso. Da contabilidade à causalidade A hegemonia serve para tomar as coi- sas aparentemente evidentes e a contabi- lidado nacional também: no fim de contas, sabemos que, em cada ano, o investimento tem de ser igual à poupança; esta última, por sua vez, tem de ser igual à soma da pou- pança dos que vivem por e da poupança dos que vivem para da fronteira; se, em cada ano, o país depender da poupança dos que vivem para da fronteira, tal sig- nifica que o país está a registar uni défice de balança corrente no mesmo montante, estando a aumentar o endividamento ex- terno; se, pelo contrário, o país registar um superávite de balança corrente, tal significa que está a canalizar poupança para o exte- rior, reduzindo a sua dívida. No entanto, estas evidências contabl- Iísticas nada nos dizem sobre a resposta à questão mais importante: qual é a relação de causalidade entre a poupança e o inves- timento, ou seja, o que é que determina o quê, em última instância? As questões de causalidade podem ser dilucidadas atra- vés de uma útil prática teórica. Para a teoria económica convencional, de matriz neoclássica, a resposta é óbvia, como vimos: a poupança, seja ela interna e/ou externa, precede, determina ex-ante, o in- vestimento que um país conseguirá realizar Basicamente, os agentes económicos nacio- nais e/ou estrangeiros decidem quanto con-

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31-08-2019

Gráfico 1 - Poupança e Investimento em Portugal

% PIB

30

25

20

15

10

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UNS

2002 2 3 21 21 2 2007 2008 2009 2010 2011 2012 20,13 2244 2% 2Ó 2017 2018

Poupança Nacional Privada Bruta Poupança Externa - formaçàci Bruta de Capital

Economia

Porque diz a economia convencional que o investimento depende da poupança?

tii" teoria da poupança que não poupa o país Da proposta política aos textos jornalísticos, por toda a parte se depara com um discurso moralista sobre a poupança. Baseado numa teoria económica que ainda hegemoniza o espaço público, esse discurso distorce a realidade e estabelece relações causais falaciosas entre poupança e investimento. Na verdade, a poupança depende do investimento, e não ao contrário. Mas o discurso neoliberal, mil vezes repetido, serve para favorecer umas mudanças, como a da entrega da Segurança Social à predação financeira, e para bloquear outras, como a da consciência dos constrangimentos quase coloniais que criam estagnação e crises em países periféricos como Portugal.

PAULO COIMBRA e JOÃO RODRIGUES *

a recente apresentação do esboço do programa eleitoral do Partido Social-Democrata (PSD), Rui Rio

defendeu a urgência de se promover, in-cluindo por via fiscal, «uma cultura da pou-pança» interna, em nome da necessária re-dução do endividamento externo do país e da promoção do investimento. Natural-mente, o programa do PSD reflecte a teoria económica convencionall11.

O economista Luís Aguiar-Contaria sinte-tizou num título da sua coluna regular esta teoria: «sem poupança não há investimento e sem investimento não há crescimento»121. Num estudo, em co-autoria, para a Asso-ciação Portuguesa de Seguros, este mesmo economista já havia identificado a provisão pública da Segurança Social como uma das causas institucionais desta escassez de pou-pança131. Por sua vez, o economista Vítor Bento também já havia dramatizado a ques-tão, no fundo «cultural», numa entrevista: na ausência de hábitos de poupança por parte dos portugueses, a acumulação de capital continuará a ser baixa e dependente do es-trangeiro, sendo a «própria soberania nacio-nal que fica em causa», num país desta forma reduzido a um «estatuto quase colonial»141.

Com ilações mais ou menos dramatica-mente oportunistas do ponto de vista polí-tico, os exemplos deste tipo de diagnóstico e das suas causas não têm fim. É de hegemonia que estamos a falar. Uma das instituições inter-nacionais quase coloniais que a assegura é o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ainda recentemente, no seu relatório sobre econo-mia portuguesa, o FMI alertava para os efeitos perversos da baixa taxa de poupança em Por-tugal, nomeadamente ao nível da incapacidade de aumentar o investimento nacional sem criar desequilíbrios externos, apelando ao fomento da poupança por via da promoção de planos privados de pensões complementaresísl.

A hegemonia merece ser contestada, até pelas suas implicações claramente regres-

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1585 19% 1997 1998 1999 2000 2001

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Poupança Nacional Pública Bruta

sivas: no fim de contas, os ricos teriam uma maior propensãoà virtuosa poupança, pelo que intensificar a redistribuição de baixo para cima na pirâmide.sodal, por via fiscal, laborai ou da privatização da Segurança So-cial favoreceria o aumento do investimento. É de contra-hegemonia que também é ne-cessário falar. Não há nada mais prático do que a teoria económica, neste caso.

Da contabilidade à causalidade

A hegemonia serve para tomar as coi-sas aparentemente evidentes e a contabi-

lidado nacional também: no fim de contas, sabemos que, em cada ano, o investimento tem de ser igual à poupança; esta última, por sua vez, tem de ser igual à soma da pou-pança dos que vivem por cá e da poupança dos que vivem para lá da fronteira; se, em cada ano, o país depender da poupança dos que vivem para lá da fronteira, tal sig-nifica que o país está a registar uni défice de balança corrente no mesmo montante, estando a aumentar o endividamento ex-terno; se, pelo contrário, o país registar um superávite de balança corrente, tal significa que está a canalizar poupança para o exte-rior, reduzindo a sua dívida.

No entanto, estas evidências contabl-Iísticas nada nos dizem sobre a resposta à

questão mais importante: qual é a relação

de causalidade entre a poupança e o inves-timento, ou seja, o que é que determina o

quê, em última instância? As questões de causalidade só podem ser dilucidadas atra- vés de uma útil prática teórica.

Para a teoria económica convencional, de matriz neoclássica, a resposta é óbvia, como

já vimos: a poupança, seja ela interna e/ou

externa, precede, determina ex-ante, o in-

vestimento que um país conseguirá realizar Basicamente, os agentes económicos nacio-nais e/ou estrangeiros decidem quanto con-

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Gráfico 2 - Saldos Financeiros Sectoriais em Portugal

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Fontes gráficos: Ameco; dados recolhidos a 29 Julho de 2019. Cálculos dos autores.

sumir e quanto poupar; o que é poupado é então canalizado pelos bancos nacionais ou estrangeiros para os que estão dispostos a investir e a criar riqueza por cá. Estamos pe-rante relações reais, onde a moeda nada é mais do que um véu, neutro e facilitador.

Como se pode constatar no Gráfico 1, se a chamada poupança nacional bruta, em per-centagem do Produto Interno Bruto (PIB), caiu em Portugal, entre final da década de noventa do século XX e o ano anterior ao resgate da Troika (2010), é compreensível que o investimento também tenha caído, em percentagem do PIB. E o investimento só não caiu mais porque o país teve acesso a poupança externa, com défices sucessivos de balança corrente ao longo destes anos, o que se traduziu em endividamento cres-cente ao exterior: em suma, o país teria vi-vido acima das suas possibilidades. Com a Troika, se é verdade que o investimento caiu e a poupança nacional bruta aumen-tou ligeiramente, também é verdade què foi esta conjugação que precisamente per-mitiu equilibrar a balança corrente: graças à Troika, teríamos aprendido a viver den-tro das nossas possibilidades. Se, antes da crise, o investimento financiado por pou-pança externa era visto como natural, dada a hipótese da eficiência dos mercados fi-nanceiros, há alguns anos que nos é dito que temos de travar uma luta para conti-nuar a aumentar a poupança nacional. Só assim o investimento pode crescer sem que se comprometa a trajectória de redução do endividamento externo.

Existe, no entanto, uma alternativa a esta teoria económica ,e à narrativa política que alimenta. Se a teoria convencional pode ser apodada de pré-keynesiana, a alterna-tiva pode ser designada como pós-keyne-siana, na medida em que desenvolve o me-lhor das pistas lançadas, entre outros, por John Maynard Keynes. Em traços muito ge-rais, segundo esta tradição, o capitalismo é uma economia monetária de produção em que tudo começa pelas decisões de investi-mento. A qualquer montante poupado cor-responde uma dívida de igual montante pecuniário. A poupança não financia a ac-tividade económica (ao contrário, neces-sita de ser financiada), estando, isso sim, dependente ex-post do rendimento gerado por aquela actividade económica. O investi-mento é posto em marcha pela moeda-cré-dito, criada endogenamente pelos bancos, onde se inclui o banco central, pináculo do sistema financeiro. Isto significa que nem os bancos são meros intermediários en-tre aforradores e investidores, nem a taxa de juro é o mecanismo equilibrador entre a procura e a oferta de crédito. Numa eco-nomia monetária de produção, dado que a sua procura tende a ser ilimitada, o crédito é racionado, o que significa que o mercado de crédito é determinado pela quantidade oferecida e não pelo preço e que, neste pro-cesso necessariamente discricionário de

alocação, decidindo quem obtém e não ob-tém crédito, os bancos desempenham um papel crucia1161.

Os investidores tomam decisões nesta área em função das suas expectativas de rendibilidade pecuniária e o mesmo se passa com os bancos. Quando estes últi-mos descobrem um investimento potencial que lhes parece viável, concedem crédito, ou seja, realizam um depósito na conta do agora credor, que tem como contrapartida um passivo: o investidor realiza então des-pesas monetárias com a aquiSição de bens de capital e com o pagamento de salários, pondo em marcha um processo produ-tivo, onde se gera o valos; que será eventu-almente realizado com a venda bem-suce-dida do produto.

A poupança depende do investimento e este depende das expectativas quanto ao fu-turo, mormente no que diz respeito às ven-das. Cada empresário, no fundo, sabe que o seu rendimento depende da despesa que outros fizerem. Em economia, a despesa de uns é o rendimento de outros. Esta perspec-

tiva, que parece bizarra à teoria convencio-nal, é defendida por influentes economistas do insuspeito Banco de Inglaterra:

«O empréstimo e o depósito criados levam a investimento adicional que doutro modo não teria ocorrido parque o investidor não teria tido acesso ao necessário poder de com-pra. [Empréstimo e depósito] têm de levar, por definição, a poupança adicional, tendo em conta a identidade da contabilidade na-cional entre poupança e investimento (numa economia fechada e a nível global), e não en-

quanto resultado de um equilíbrio entre pou-pança e investimento gerado por uma taxa de juro de equilíbrio. A direcção da causali-dade é, portanto, do financiamento para o investimento para a poupança. Por outras palavras, a poupança não financia investi-mento, é o financiamento que o faz»M.

Da causalidade à política

Um dos efeitos perversos da confusão, ge-rada pela teoria económica convencional, no nexo causal entre poupança e investimento é a promoção política de falácias da composi-ção, ou seja, de situações em que aquilo que é verdadeiro para wn agente económico in-dividualmente considerado, para a microe-conomia, pode ser falso para a sociedade no seu conjunto, para a macroeconomia. Uma dessas situações é o chamado paradoxo da poupança. Assim, lá porque um indivíduo pode aumentar a poupança reduzindo as suas despesas, tal não significa que isto seja macroeconomicamente verdadeiro. Como já se viu, «a poupança não é uma fonte de finan-ciamento ao nível agregado»181. Dado que a despesa de uns é o rendimento de outros,

se chegarmos ao ponto em que todos redu-zem as suas despesas de investimento e de consumo, os rendimentos diminuem e, logo, a poupança também diminui. Neste con-texto, aliás, pode ser muito mais dificil ser-vir a dívida previamente contraída, já que o seu fardo aumenta em termos reais, devido à quebra dos rendimentos e dos preços.

Entretanto, se usarmos a abordagem dos saldos•financeiros sectoriais, favorecida pela teoria pós-keynesiana, e dividirmos uma economia monetária de produção nacional em três sectores - público, privado e externo -, sabemos que a diferença entre os rendi-mentos e as despesas dos três sectores tem de ser conjuntamente igual a zero. É fala-cioso pretender que todos poupem em ter-mos líquidos ao mesmo tempo: se um sector melhorar o seu saldo financeiro, ou seja, se a diferença entre o seu rendimento e a sua despesa melhorar (se aumentar a chamada poupança líquida), então o saldo financeiro de pelo menos um dos outros sectores tem de se deteriorar no mesmo montante (tem de diminuir a sua poupança líquida). Portu-gal, como se pode observar no Gráfico 2, não escapa a esta lógica.

[1] Jornal de Negócios, 2 de Julho de 2019. [2] Público, 20 de Março de 2019. [3] Fernando Alexandre, Luis Aguiar-Conraria, Pedro Bação e Miguel Portela, Poupança e Financiamento da Economia Portuguesa, Imprensa Nacional e Associação Portuguesa de Seguros, Lisboa, 2017. [4] Jornal de Negócios, 6 de Janeiro de 2018. [5] Jornal de Negócios, 12 de Julho de 2019. [6] Richard A. Werner, New Paradigm in macroeconotnics - Solving the riddle of lapanese Macroeconomic Performance, Palgrave Macmillan, Nova Iorque, 2005, pp. 194-195. [7] Zoltan Jakab e Michael Kumhof, «Banks are noa intermediaries of loanable funds — and why this

matters», Staff Working Paper N.° 761, Banco de Inglaterra, Outubro de 2018, pp. 3-4. [8] William Mitchell, Randall Wray e Martin Watts, Macroeconomia, Red Glote Press, Londres, 2019, p. 557

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al Assumindo que o saldo do sector ex-terno é igual a zero, o que significa que a balança corrente está equilibrada, então oaumento da poupança líquida do sector privado implica necessariamente uma de-gradação da posição do sector público, e o inverso também é verdadeiro. Os secto-res público e privado só podem gerar pou-pança líquida em simultâneo, só podem ter saldos positivos se o país registar su-perávites de balança corrente (é como se o país, neste caso, financiasse o resto do mundo). Tal só pode acontecer, por defini-ção, se houver outros países com défices de balança corrente. Sendo que é impos-sível exportar para Marte, e que as expor-tações de uns são as importações de ou-tros, pretender que todos os países po-dem manter, simultaneamente, balanças correntes superavitárias é outra faceta da já referida falácia da composição. Adicio-nalmente, um país com superávites tam-bém fica macroeconomicamente exposto, já que a sua economia passa a depender demasiado de terceiros, contribuindo além disso para gerar desequilíbrios in-ternacionais.

Numa economia monetária de produ-ção, em funcionamento normal e com re-lativo equilíbrio do sector externo, o Es-tado tende a incorrer em défices crónicos e o sector privado em superávites cróni-cos. É esta situação, aliás, que cria susten-tabilidade no sector privado, dada a aten-ção que neste sector tem de se ter à gera-ção de rendimentos suficientes para asse-gurar a solvência, o que cria limites ao en-dividamento. Numa economia monetária de produção que esteja nesta situação, en-quadrada por um Estado monetariamente soberano, que se endivida na moeda por si controlada, o sector público é diferente do sector privado, não tendo problemas de insolvência, dado que pode sempre pa-gar as suas dívidas, em última instância através de emissão monetária. Neste con-texto, em que o Estado não depende dos mercados financeiros para o seu financia-mento, não há qualquer problema em as-sumir que o défice é uma variável endó-gena, dependente do comportamento do sector privado. O Estado deve estimulá-lo e controlá-lo, impedindo aí uma poupança líquida negativa que ponha em causa a sol-vabilidade das famílias e das empresas.

Contas certas não podem querer então dizer equilíbrio orçamental e muito menos superávite orçamental, o que implicaria sal-dos financeiros negativos no sector privado e um aumento da sua fragilidade financeira, mas antes um saldo do sector público nega-tivo, o suficiente para gerar procura ao nível do pleno emprego e solvabilidade no sector privado. Esse saldo negativo, o défice orça-mental, deve ser usado também para indu-zir uma transformação da estrutura produ-tiva, facilitadora de uni equilíbrio externo que não dependa da repressão da procura

interna, e para aumentar os activos úteis na economia, tornando-a socialmente mais justa, ambientalmente mais sustentável e tecnologicamente mais capaz, o que obvia-mente beneficiará as gerações futura& Se as-sim não for, ficamos confrontados com a si-tuação actual: por muito que politicamente as taxas de juro desçam e que o Banco Cen-tral Europeu (BCE) tente estimular moneta-riamente a economia, o sector privado não investe o suficiente, não por falta de crédito da parte dos bancos, mas sim por falta de projectos viáveis.[91 Isto é assim, dada a pe-riclitante evolução da procura agregada na ausência de uma política orçamental que oriente e estimule o sector privado através do consumo e do investimento públicos. A Zona Euro está desenhada para perpetuar a estagnação e o estatuto quase colonial dos países periféricos que dela fazem parte.

O único constrangimento que um Estado monetariamente soberano, como Portugal deve voltar a ser, enfrenta e que deve mere-cer toda a sua atenção é o constrangimento externo, cuidando de que não sejam cria-dos défices de balança corrente, gerando dívida externa Para tal objectivo, uma po-lítica cambial adequada e a existência de controlos de capitais, bem como uma po-lítica comercial selectivamente proteccio-nista são essenciais.

Tudo o resto, incluindo a conversa mo-ralista sobre a poupança, serve propósitos imorais. Para lá de disciplinar a força de tra-balho, um dos seus principais objectivos é o de transferir rendimentos para o casino da especulação, através da privatização da

Segurança Social, esquecendo que, qual-quer que seja o sistema, estamos sempre perante uma transferência de recursos en-tre trabalhadores no activo e trabalhado-res inactivos em cada momento do tempo. A diferença substantiva é que no sistema de Segurança Social por repartição essa trans-ferência é alvo de uma deliberação pública, enquanto que, no sistema de capitalização, essa transferência é alvo dos apetites pre-dadores e desestabilizadores dos mercados financeiros.

Também aqui a falaciosa teoria eco-nómica convencional não poupa o povo deste país. a

Economistas eco-autores do blogue Ladrões de

Bicicletas.

[91 Reza Moghadam, « The ECB must make negative interest rate policy effective», Financial Times, 24 de Julho de 2019.

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Electricidade: entre transição

sustentável e captura privada

JORGE COSTA

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diplomatique EDIÇÃO PORTUGUESA

MENSAL . II SÉRIE . N.' 154. AGOSTO 2019. 4,90 EUROS . DIRECTORA: SANDRA MONTEIRO

Uma teoria da poupança que não poupa o país PAULO COIMBRA JOÃO RODRIGUES

Os talibãs de São Francisco SERGE HALIMI

para «resistir» bem ao racismo americano será preciso destruir as pinturas murais de um artista comunista financiado pelo New Deall11? A questão pode parecer

ainda mais absurda porque o conjunto de treze obras de Victor Arnautoff intitulado Life of Washington, condenado por alguns «resistentes» californianos, exibe um conteúdo anti-racista, e revolucionário para a sua época. Com efeito, numa superfície total de cento e cinquenta metros quadrados, as pinturas atacam a hipocrisia das proclamações virtuosas dos Pais Fundadores da Constituição americana, entre os quais George Washington.

Apesar disso, a comissão escolar de São Francisco, na Califórnia, aprovou por unanimidade, a 25 de Junho último, o apagamento das treze pinturas de Arnautoff que decoram os muros da Escola Secundária George Washington desde a sua inauguração, em 1936. Longe de homenagear o primeiro presidente dos Estados Unidos, como sugere o nome do estabelecimento de ensino a que estas obras se destinavam, Arnautoff teve a insolência de representar Washington como proprietário de escravos e instigador das primeiras guerras de extermínio dos índios. Contudo, não foi Donald Trump que, através de tuítes racistas e irascíveis, reclamou a destruição da obra desmistificadora do romance americano concebida por um muralista comunista que terminou a vida na União Soviética; foram os seus adversários mais militantes que se encarregaram de o substituir no papel de inquisidores.

Um «grupo de reflexão e de acção» de treze elementos veio esclarecer a escolha da comissão escolar de São Francisco. Com um certo atrevimento, decidiu o destino a dar às pinturas de Arnautoff pretendendo que elas «glorificam a

escravatura, o genocídio, a colonização, o destino manifesto [a ideia de que os colonos protestantes tinham a missão divina de «civilizar» o continente americano), a supremacia branca, a opressão, etc.».

Esta interpretação é insustentável. Com efeito, a tradição realista socialista em que Arnautoff se inspirava não deixa qualquer lugar para equivocos de boa fé. Foi por isso preciso juntar à decisão um outro motivo, considerado mais aceitável, ainda que igualmente inquietante. Parece que as pinturas Life of Washington, que incluem a representação do cadáver de um índio morto por colonos, «traumatiza os estudantes e os membros da comunidade». Mas então, há que escolher: deve-se recordar a escravatura e o genocídio, ou esquecê-los? Como é que se pode garantir que um artista que evoca a história de um país nunca irá incomodar «membros da comunidade», os quais tèm, de qualquer forma, mil outras ocasiões para serem diariamente confrontados com cenas de brutalidade, reais ou figuradas? Obras como Guernica, de Pablo Picasso, ou Tres de mayo, de Francisco de Goya, não são igualmente violentas e traumatizantes?

Por agora, a controvérsia de São Francisco mobiliza sobretudo a parte da esquerda americana mais disposta à escalada sobre as questões identitárias (ler nesta edição o artigo de Rick Fantasia). Mas, tendo em conta que esta mesma vanguarda da virtude já exportou, com certo sucesso, algumas das suas mais estranhas teimosias, mais vale que todos estejam de sobreaviso...

VI] Ler Evelyne Pfeiller, «Quand le New Deal salariart les adistes», em

«Antistes, domestrqués ou revoltes?», Maniere de volt-, n.° 148, Agosto-

Setembro de 2016

SOCIEDADE O futuro é ganhar menos e trabalhar mais? JOÃO FRAGA DE OLIVEIRA

AMBIENTE O Plano Nacional de Energia e Clima 2030 LUÍS FAZENDEIRO

ESTADOS UNIDOS A esquerda canibal, uma síndrome universitária RICK FANTASIA

BALCÃS As fronteiras mudam, as lógicas étnicas permanecem JEAN-ARNAULT DÉRENS e LAURENT GESLIN

TECNOLOGIA Ainda podemos viver sem a Internet? JULIEN BRYGO

O fim do mundo não vai acontecer