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Tese de dissertação

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  • 1

    Bruno Guimares Martins

    Tipografia popular Potncias do ilegvel na experincia do cotidiano

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Comunicao Social da Universidade Federal de Minas Gerais

    como requisito parcial obteno do ttulo de mestre.

    Linha de Pesquisa: Comunicao e sociabilidade contempornea

    rea de concentrao: Meios e produtos da comunicao

    Orientador: Prof. Doutor Paulo Bernardo Ferreira Vaz

    Belo Horizonte

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da ufmg

    2005

  • 2

    Gostaria de deixar aqui registrados os meus sinceros agradecimentos ao

    programa de ps-graduao em Comunicao Social da UFMG, representado

    por todos os seus professores e funcionrios, que acolheram to generosamente

    o pesquisador e seu objeto de pesquisa. Quero tambm agradecer especialmente

    ao meu orientador, Paulo Bernardo Vaz, que foi, desde o incio, um entusiasta do

    projeto, guiando e confundindo seu percurso com um perfeito equilbrio entre apoio,

    liberdade e crticas; ao professor Mike Hanke e professora Maria Beatriz Bretas,

    que, no parecer de aprovao do projeto junto ao colegiado, acrescentaram,

    cada um a seu modo, consideraes que foram incorporadas pesquisa; aos

    professores Bruno Souza Leal, Csar Guimares, Regina Mota e Vera Regina Frana,

    cujas aulas, acredito, podem ser ouvidas durante a leitura desta dissertao; ao

    professor Jalver Betnico, pelas observaes valiosas e pela insistncia na importncia

    do carter poltico do projeto; aos colegas da turma de ps-graduao, pela

    amizade, pela boemia e pelas imensurveis contribuies dentro e fora da sala de aula;

    aos colegas da lista Tipografia Tpica cujas discusses foram incorporadas de

    alguma forma ao texto da dissertao; a Andr Brasil, pelo interesse e pela indicao

    do texto de onde foi retirada a epgrafe inicial do trabalho; a Fernanda Goulart, pelas

    crticas ao mesmo tempo carinhosas e rigorosas; a Pedro Dolabela, pela leitura atenta

    de um iseriano; a Roberta Veiga, pelo entusiasmo e ateno dedicados pesquisa

    desde seu anteprojeto; a Rodrigo Tavares, pelas dicas de traduo e pela discusso de

    temas variados; a Ana Martins Marques, cujas contribuies ultrapassaram em muito

    a cuidadosa reviso, fazendo esta dissertao legvel aos seus futuros leitores; a

    Marclio Frana Castro, por todas as idias interessantes; ao meu pai, pelo afeto e

    pelas preocupaes metodolgicas; a minha me, pelos almoos de domingo; a todos

    os amigos que colaboraram com a elaborao desta dissertao, incentivando ou

    simplesmente silenciando suas crticas.

    Finalmente, dedico este texto a Renata, pelo apoio incondicional e pela

    pacincia necessria para ceder diante da perturbao.

  • 3

    Na extrema conseqncia do empirismo, o sentido est totalmente

    imerso no rudo, o espao da comunicao granular, o dilogo

    est condenado cacofonia: o transporte da comunicao

    transformao perene. Ento, o emprico estritamente o rudo

    essencial e acidental.

    Michel Serres

  • 4

    Sumrio

    1. introduo ............................................................................... 6

    2. um objeto multiforme

    2.1 Paisagens tipogrficas .......................................................... 10

    2.2 Ocupao e transio: um objeto da passagem ........................... 15

    2.3 Imagens tipogrficas ................................................... 16

    2.4 O recorte do ilegvel .................................................... 18

    2.5 Corpus de anlise ...................................................... 21

    3. tipografia e comunicao

    3.1 Por uma cincia do comum ............................................................................................................

    26

    3.2 A tipografia como ato comunicativo ........................................ 27

    3.3 Um breve histrico: da caverna ao computador........................... 31

    3.4 Tipografia clssica e experimental .......................................... 36

    3.5 A tipografia popular ................................................... 42

    4. potncias do ilegvel

    4.1 Leitura de caracteres excntricos ......................................... 49

    4.2 Uma ttica de fala ..................................................... 53

    4.3 O significado suspenso ................................................. 63

    4.4 Do esttico no pragmtico ......................................... 69

    4.5 Contexto, presenas e sentidos ...................................... 71

    4.6 A materialidade dos meios ............................................ 74

    5. s margens do legvel

    5.1 Perceber o ilegvel ............................................................ 78

    5.2 Maneiras de olhar, maneiras de dizer ..................................... 98

    6. referncias bibliogrficas .................................................... 102

  • 5

    resumo

    margem das mdias convencionais, a tipografia popular um ato comunicativo que

    aparece discretamente no espao cotidiano. Forma annima de comunicao, essa

    escrita do homem ordinrio capaz de estimular a atividade criadora do leitor de seus

    caracteres excntricos e irregulares. Quando os princpios definidores da legibilidade

    se fazem ausentes, a letra distancia-se da idia de um signo transparente e o ilegvel

    emerge como potencializador de sentidos. Esse processo de leitura incomum,

    proporcionado pelas singularidades formais e contextuais da tipografia popular,

    constitui o objeto desta dissertao. A partir de dez imagens da tipografia popular,

    selecionadas por seu carter de excentricidade em relao aos parmetros de

    legibilidade que norteiam a tipografia clssica, procura-se investigar o modo como, na

    recepo desses textos, a ateno do leitor conduzida, simultaneamente, para a

    materialidade dessas manifestaes e para a complexidade do espao cotidiano.

    palavras-chave

    comunicao, cotidiano, tipografia, ilegvel, leitura.

    Summary

    Besides traditional medias, popular typography is a discrete communicative act in

    everyday life space. These anonymous writing of ordinary people is capable to

    estimulate a criative activity on the reader of their eccentric and irregular characters.

    When the principles of legibility are not present, type emerge as an enpowerment of

    meaning, becaming far from the idea of a transparent sign. This unusual reading

    process made possible by formal and contextual singularities of popular typography

    is the main object of this dissertation. Since ten images of popular typography, chosen

    by their eccentricity from the rules of lebilility in classic typography, is made an

    investigation of how, during reading process, the reader attention is guided

    simultaneously for the materialities of these texts and for the complexity of everyday

    life space.

    Key words

    communication, everyday life, typography, illegible, reading.

  • 6

    1. introduo

    Nuvens de letras-gafanhotos, que j obscurecem o sol do

    suposto esprito aos habitantes das metrpoles, tornar-se-o

    cada vez mais espessas com a sucesso dos anos.

    Walter Benjamin

    Na cidade contempornea onde os muros invisveis e a velocidade das redes

    aprisionam e impem ritmos acelerados percepo, o caminhar desinteressado do

    flneur no parece mais ser possvel. Os espaos pblicos surgem como esvaziados,

    espaos limite que seguem, contudo, habitados. Em meio saturao e a

    homogeneizao do espao urbano, subsistem, no entanto, vestgios de vozes, formas

    de apropriao (e de reapropriao) desse espao que resistem s regras que os

    constituem.

    As cidades formam diferentes paisagens tipogrficas: aqui e ali, placas de

    sinalizao, fachadas comerciais, vitrines, outdoors, painis eletrnicos, empenas,

    faixas, bandeirolas, estandartes, panfletos, cartazes lambe-lambe revelam a

    onipresena da escrita. A sinalizao e a publicidade seguem no s um conjunto de

    leis mesmo que muitas vezes desrespeitado que determinam seu posicionamento

    no espao, mas tambm obedecem a regras de linguagem que preservam sua eficcia

    comunicativa. Como exemplo podemos citar a esttica da legibilidade universal das

    tipografias utilizadas nas placas de sinalizao e dos transportes urbanos, ou o

    conhecido limite de doze palavras que impe uma necessria rapidez leitura dos

    ttulos de outdoors. Se a fascinante rebeldia dos graffiti e das pichaes, com seus

    limites difusos, suscita discusses diversas e apaixonadas, propomos voltar o nosso

    olhar para outras manifestaes, que surgem discretamente no espao urbano, na

    maioria das vezes desvinculadas de contedos culturais ou identitrios declarados.

    Essas manifestaes, valendo-se de tticas sutis, se contrapem e se misturam s

    estratgias da publicidade e da rebeldia estetizada. Devido a uma de suas

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    caractersticas o carter democrtico de sua produo, pois potencialmente podem

    ser realizadas por qualquer um , vamos cham-las de tipografia1 popular.

    So inscries que invadem paredes, muros, edifcios, objetos, pessoas, chos;

    so letras produzidas manualmente que surgem em qualquer local onde exista uma

    demanda de comunicao: estabelecimentos comerciais, beira de estrada,

    encruzilhadas, entradas de residncias, praas, parques, mercados, banheiros

    pblicos No existem regras que determinem seu estilo ou sua posio no espao.

    Mas se sua localizao pode parecer aleatria, devemos lembrar que uma demanda de

    comunicao sempre est orientada para algum, para um outro. Diferentemente das

    hermticas pretenses de demarcao territorial presentes nos traos de assinatura

    dos chamados pichadores, essas inscries tm sua razo primeira de ser no prprio

    ato de comunicar, esto ali para serem lidas.

    Alm da intencionalidade comunicativa, a tipografia popular caracteriza-se por

    utilizar tcnicas de produo manuais, s vezes bastante precrias. O desenho de uma

    letra nunca ser idntico ao de outra, que se repete mais frente. Mesmo quando se

    percebe uma continuidade no estilo, ou uma maior habilidade tcnica, a familiaridade

    improvvel. Esses desenhos de letras e suas composies geralmente diferem

    daqueles aos quais um leitor experimentado se habituou, ou seja, configuram-se, em

    relao tipografia tradicional, como desenhos excntricos. Sabemos que o desenho

    das letras, a composio, o espaamento entre as letras e entre as linhas, alm de todas

    as variaes que compem a tipografia (tamanho, contraste, cor, etc.) so elementos

    determinantes para a produo de sentido. O significado de um determinado texto

    no dado apenas por seu contedo semntico, mas tambm por sua imagem, por

    seu desenho, por sua tipografia. Quando a imagem da letra explicitada em desenhos

    e composies singulares, o leitor obrigado a rearranjar constantemente seus

    parmetros e expectativas de leitura, promovendo uma atividade criadora durante o

    processamento do texto. O ilegvel presente na tipografia popular provoca uma

    oscilao entre a percepo e a significao de uma determinada placa ou inscrio,

    possibilitando, assim, a emergncia de outros sentidos.

    Circulam na rede e-mails cujos ttulos (por exemplo, Noa Lingua

    Portugueza) revelam a inteno de ressaltar os tropeos gramaticais e ortogrficos

    1 O termo tipografia utilizado aqui em um sentido amplo, direcionado no s criao do desenho das letras, mas tambm de sua composio no espao, assim como ser melhor desenvolvido

  • 8

    presentes nesses grafismos annimos. Sem dvida, o riso uma reao comum na

    recepo de muitas dessas manifestaes (FIG. 1). Porm, o que nos fascina a no so

    os desvios da lngua ou seu efeito cmico. Uma leitura superficial poderia apresentar

    esses grafismos como simples exemplos de curiosidades gramaticais ou transcries

    da linguagem oral; entretanto, essas constataes esto longe de revelar todas as suas

    potencialidades. Sabemos que nenhum texto diz apenas aquilo que desejava dizer,

    pois as intenes do enunciador (nem mesmo em um texto pragmtico!) no so

    capazes de aprisonar o leitor durante o ato da leitura. Se em geral no h, na

    tipografia popular, complexidade frasal, encontramos nesses textos uma grande

    complexidade espacial, material e temporal. Ao mesmo tempo que o leitor realiza um

    processo redutor, ao compreender o significado de uma determinada placa ou

    inscrio, impem-se a ele outras caractersticas contextuais e visuais singulares que o

    impelem para alm dos significados imediatos.

    Tomando emprestadas as idias de Bergson (1999), sabemos que o corpo

    necessita de um certo tempo para responder aos estmulos do mundo. Quanto mais

    curto o tempo para a devoluo desses estmulos, mais mecnicas sero as respostas.

    Por outro lado, quanto mais distendido o tempo, mais elaboradas sero essas

    respostas. A partir de elementos que bloqueiam a ao imediata, a percepo

    liberada e somos capazes de ultrapassar o objeto percebido e alcanar,

    progressivamente, outras camadas da realidade. Os fracassos de reconhecimento

    deslocam o sujeito para um estado de suspenso em que o prolongamento sensrio-

    motor momentaneamente interrompido, situando-o no campo das potencialidades,

    do possvel, do virtual. Ao desacelerar (ou, muitas vezes, bloquear) o acesso imediato

    ao contedo, a ilegibilidade da tipografia popular coloca o leitor em um estado de

    suspenso, possibilitando percepes outras, diversas da apreenso de contedos

    semnticos.

    O fazer tipogrfico, de acordo com o designer Bruce Mau (2000), est

    fundamentalmente relacionado com a idia de dar forma ao tempo (shaping time).

    No universo das letras, o que d forma nossa leitura (e ao nosso tempo de leitura)

    a tipografia. Se na atividade da leitura a concentrao de nossos esforos encontra-se

    na ateno cognitiva quando lemos nossa ateno se direciona principalmente para

    o contedo do que estamos lendo , temos, concomitantemente, uma outra ateno, a

    no tpico do terceiro captulo: A tipografia popular.

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    ateno associativa, que est ligada percepo dispersa nos cinco sentidos. Na

    tipografia clssica a arbitrariedade do signo lingstico nos faz buscar o significado de

    um determinado texto sem que nos atenhamos forma da letra; ora, justamente

    com a inverso desse movimento que o ilegvel institui uma nova temporalidade

    leitura. A tipografia popular subverte a hierarquia das atenes surgindo como um

    signo opaco, cujos significados se constituem a partir da prpria materialidade de

    suas formas. O potencial de sentido da tipografia popular catalizado no leitor pela

    frico entre suas referncias e o que lhe apresentado. A instabilidade formal retarda

    a passagem do significante para o significado, fazendo emergir mltiplos sentidos

    para textos simples como campainha, garagem ou cuidado com o co. Em

    contraposio seletividade de vozes dos meios de comunicao de massa

    encontramos nestas inscries polifnicas vestgios de presena nas paisagens

    esvaziadas.

    Figura 1 Fotografia realizada em banca de revistas no Rio de Janeiro, em que pode ser notado um

    tom cmico na inscrio.

    fonte camargo & soares, 2003. p. 13.

  • 10

    2. um objeto multiforme O olho percebe uma frase graficamente contorcida em forma de rosa:

    simultaneamente ele olha a flor e l a frase. A percepo do texto se

    desdobra () A leitura se enriquece com toda a profundeza do

    olhar.

    Paul Zumthor

    2.1 Paisagens tipogrficas

    Vivemos imersos no universo da linguagem. Estamos cercados de letras e

    smbolos por todos os lados. Nas comunidades urbanas, o capitalismo expe sua

    fora em painis luminosos gigantescos; crianas so capazes de identificar alguns

    smbolos e marcas antes mesmo de serem alfabetizadas. A escrita se faz onipresente,

    acenando no s com sua tradicional funo de domnio da informao e

    transmisso do saber, mas com imponncia visual. Nosso cotidiano revestido por

    uma profuso tipogrfica que vai da bula de remdio sinalizao do trnsito, dos

    painis eletrnicos interface das telas, dos livros aos graffiti. Em meio a essa grande

    diversidade de paisagens tipogrficas, a protagonista desta dissertao ser a

    tipografia que chamamos de popular. As manifestaes tipogrficas populares

    utilizam-se de tcnicas manuais e tm como caracterstica principal a apropriao do

    seu contexto de insero. Essas manifestaes tipogrficas surgem, inicialmente, em

    qualquer local onde exista uma demanda de comunicao. So avisos, placas,

    inscries, advertncias, recados, assinaturas, pensamentos, anncios de produtos ou

    servios que tm por objetivo sinalizar, anunciar, demarcar, avisar, ou seja: comunicar

    algo. Suas formas tm por destino o olhar do outro, desejam ser vistas, desejam ser

    lidas. Na maioria das vezes possuem proposies pragmticas que dependem da

    decodificao para que se realizem.

    A inteno de comunicar e o movimento de se apropriar de uma ocasio so,

    portanto, caractersticas definidoras da tipografia popular. No tarefa fcil

    encontrar especificidades nesse objeto multiforme que se configura distintamente em

    cada ocasio. Assim como so singulares a voz e a caligrafia, cada indivduo, cada

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    ocasio faz surgir, a partir de uma mesma matria-prima lingstica, desenhos e

    composies nicos. No entanto, possvel distingir, inicialmente, dois padres:

    a) placas produzidas por pintores-letristas profissionais, que so utilizadas

    em fachadas e interiores de estabelecimentos comerciais, como

    supermercados, mercearias, aougues, padarias, lanchonetes, sacoles,

    etc. (fig. 2 e 3);

    b) placas e inscries realizadas por no-profissionais, annimos,

    ambulantes, comerciantes, etc.

    Enquanto no desenho das letras produzidas pelos pintores-letristas percebe-se

    uma certa regularidade, devido habilidade do profissional, no segundo padro

    pode-se observar uma maior imprevisibilidade nos desenhos e composies, causada

    pela falta de domnio tcnico dos seus produtores. Mas apesar dessa distino, em

    ambos os casos as tcnicas de produo so manuais e, quase sempre, precrias.

    Sendo assim, tanto em um caso quanto em outro, a regularidade improvvel, ou

    seja, uma letra nunca ser idntica outra e, mesmo quando se percebe uma

    continuidade no estilo, ou um maior domnio de uma determinada tcnica, os

    desenhos distanciam-se das formas convencionais a que estamos habituados.

    Justamente por isso devemos estar atentos para as limitaes dessa diferenciao, pois

    o profissional que em muitos casos curiosamente grafa junto sua assinatura a

    palavra arte pode produzir uma tipografia carregada de interferncias em que

    ser difcil reconhecer com clareza a mensagem grafada; por seu lado, o no-

    profissional, eventualmente, pode-se investir de uma habilidade tal que sua

    composio ir se aproximar do trabalho dos pintores-letristas.

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    Figura 2 Placa produzida por pintor-letrista

    onde se pode ler a palavra arte integrada

    assinatura.

    fonte camargo & soares, 2003. p. 50.

    Figura 3 Inscrio feito por pintor letrista

    em que pode ser observada uma regularidade

    formal.

    fonte camargo & soares, 2003. p. 29.

    Uma vez que no existe uma sistematizao consensual e aprofundada sobre o

    tema, vamos comparar a tipografia popular com outras manifestaes das quais se

    aproxima. A escolha dessas manifestaes as mdias externas da publicidade, os

    graffiti e a caligrafia se baseia em pontos de aproximao e contraposio que iro

    contribuir para delimitar melhor o que chamamos de tipografia popular.

    A presena macia de publicidade nos espaos pblicos pode ser notada,

    muitas vezes inadvertidamente, em outdoors, empenas, cartazes, fachadas, vitrines,

    folhetos, painis eletrnicos, dirigveis, etc. Sabemos que os processos de criao e

    produo da publicidade so baseados, principalmente, em tecnologias digitais, o que

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    faz com que suas mensagens possam ser reproduzidas indefinidamente. A publicidade

    pode compartilhar o mesmo espao com a tipografia popular, mas devemos apontar

    aqui algumas diferenas entre as duas. Em primeiro lugar h uma diferena visvel em

    relao s tcnicas de produo, uma vez que a tipografia popular se utiliza de tcnicas

    manuais variadas, o que impossibilita, ao menos em princpio, sua reprodutibilidade.

    Curiosamente, ocorre na publicidade uma apropriao do carter irreprodutvel da

    tipografia popular, com a inteno de esquentar ou tornar mais real um

    determinado layout (fig. 4). Outra diferena relevante em relao publicidade diz

    respeito ocupao do espao. Enquanto a publicidade possui um espao

    institucionalizado, ou seja, existe uma regulamentao que determina onde e de que

    forma a publicidade ser veiculada nos espaos pblicos ( claro que estamos cientes

    das inmeras transgresses que ocorrem s determinaes legais, mas no cabe aqui

    entrar nessa discusso), a tipografia popular no possui um conjunto de normas que

    regulem sua posio no espao. Apesar do vazio regulador, a ocupao no

    aleatria; como observamos anteriormente, a tipografia popular ocupa o espao a

    partir da apropriao de uma determinada ocasio, sempre relacionada com a

    inteno de comunicar.

    Figura 4 Marca utilizada no lanamento do filme carandiru em que se pode notar claramente a

    inspirao na forma das letras escritas com ranhuras nas paredes das celas. Percebemos na palavra

    carandiru o uso de uma tcnica recorrente no desenvolvimento de famlias tipogrficas

    inspiradas em temas populares, com a realizao de dois desenhos de algumas das letras (no caso

    em questo, isso pode ser percebido no a e o r), como uma tentativa de reproduzir a

    irregularidade do desenho mo.

    fonte http://carandiru.globo.com/

    Como distingir a tipografia popular do graffiti? O graffiti constitui, sem

    sombra de dvidas, um objeto que possui um enorme potencial comunicativo e no

    s compartilha dos mesmos espaos, mas, em alguns casos, das mesmas tcnicas e

    suportes da tipografia popular. No entanto h algumas diferenas marcantes:

    enquanto o graffiti possui uma linguagem relativamente organizada e est

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    explicitamente ligado rebeldia, contestao, afirmao da identidade e, at

    mesmo, s artes plsticas, a tipografia popular pode ser realizada por qualquer um

    que tenha uma demanda de comunicao e no se baseia em uma atitude

    explicitamente contestatria. Sua inteno primeira o ato comunicativo. A tipografia

    popular no busca o desenvolvimento de uma linguagem prpria, sua expresso se d

    no movimento de reiterao da linguagem. Tambm no devemos confundir a

    tipografia popular com as inscries indecifrveis (a no ser para um grupo restrito)

    que interferem na paisagem das cidades. Ao contrrio da complexa codificao dos

    grafismos dos pichadores, que tm seus apelidos ou os nomes de seus grupos

    colocados nos locais mais improvveis, a tipografia popular , essencialmente, feita

    com o objetivo de ser lida, de ser decodificada, de ser compreendida, mesmo que sua

    posio nos parea muitas vezes discreta e seus caracteres, ilegveis.

    A caligrafia talvez seja a manifestao da escrita que mais se aproxima da

    tipografia popular. Ambas coincidem em seu aspecto gestual. No entanto, a caligrafia

    feita visando a um nmero muito restrito de leitores (como, por exemplo, no caso de

    um bilhete), ou mesmo ao prprio autor (no caso das anotaes pessoais), algumas

    vezes com intenes artsticas ou decorativas (poemas caligrficos, endereamento

    para convites). J a tipografia popular produzida para ser lida por um nmero

    ilimitado de leitores; ela tem um carter pblico, mesmo que, muitas vezes, sua

    insero no espao seja discreta. Enquanto a caligrafia se manifesta sempre no

    movimento de seus instrumentos (canetas, lpis, penas, pincis, etc.) sobre um suporte

    relativamente constante (papel), na tipografia popular no existe uma tcnica ou um

    suporte predominante, pois sua forma de produo se transforma de acordo com a

    insero no contexto. Apesar das visveis diferenas entre um bilhete pessoal e uma

    placa localizada na rua, necessrio observar que a tipografia popular se aproxima

    da letra caligrfica em sua expressividade, na espontaneidade da escrita que espelha o

    gesto.

  • 15

    2.2 Ocupao e transio: um objeto na passagem

    Entre as diferentes paisagens tipogrficas das cidades, a tipografia popular se

    estabelece como uma apropriao singular da linguagem, uma voz de resistncia que

    no se posiciona antagonicamente expresso institucionalizada, mas resiste a ela de

    forma silenciosa. importante notar a enorme amplitude espacial da tipografia

    popular, uma vez que uma demanda de comunicao pode surgir em qualquer lugar.

    Alm dos espaos pblicos da cidade, no podemos desprezar outros espaos mais

    restritos, como banheiros pblicos, o interior de estabelecimentos comerciais ou as

    placas localizadas nas margens das estradas.

    Afirmar que a tipografia popular situa-se na passagem significa incorporar ao

    objeto sua perspectiva comunicacional. A passagem nunca fixa, ela se configura

    sempre a partir do movimento, o espao constitudo como um entre, espaos de

    cruzamentos, de encontros, de caminhos, de atravessamentos, de intersees.

    necessrio ultrapassar a espacialidade delimitadora do objeto para apreend-lo nos

    momentos fugazes em que se constitui. Se compreendermos a tipografia popular

    como um meio que torna presente algo que estava ausente, devemos encar-la como

    uma trajetria no tempo, que s se realiza na interao com o leitor-passante. O

    produtor dessas inscries busca inscrever-se no espao, mas essa ocupao s se

    realiza nos momentos de transio, quando o leitor-passante lana seu olhar sobre

    elas, tentando decodific-las. A complexidade espacial de insero interfere na

    constituio do sentido, pois atravessa o leitor-passante independentemente de sua

    vontade. somente quando ele olha para as inscries da tipografia popular que seus

    sentidos podem ser percebidos. Nosso objeto se situa, dessa forma, na inter-relao

    entre as inscries e seus leitores, o que significa, em ltima instncia, que ele se situa

    no encontro entre o produtor-inventor e o leitor-passante promovido pela percepo

    das inscries.

  • 16

    2.3 Imagens tipogrficas

    H muito a tipografia j no entendida somente como desenhos que

    representam algo; suas formas se revelaram portadoras de uma grande diversidade de

    aspectos culturais, tcnicos e temporais. Observar a tipografia a partir de suas formas

    um movimento importante para o raciocnio proposto. Apresentamos, ao longo da

    dissertao, algumas imagens relacionadas com a histria da escrita e da tipografia, a

    fim de delimitar e contextualizar o recorte do objeto, alm de exemplificar alguns dos

    argumentos indicados. As imagens tm como funo no s ilustrar o texto, no

    sentido forte do termo, mas tambm dar ao leitor a possibilidade de experiment-las

    visualmente. Podemos separar as imagens em dois grandes grupos: exemplos da

    histria da escrita e demais imagens ilustrativas e imagens de tipografia popular.

    As imagens da histria da escrita tm como funo apresentar exemplos de

    algumas transformaes tcnicas e formais e relacion-las com a constituio de

    sentido em diferentes momentos. Esses exemplos, extrados de publicaes diversas,

    revelam de que maneiras a visualidade da tipografia se materializa para ns a partir de

    transformaes histricas. Como referncia ao recorte proposto para o objeto foram

    escolhidos alguns exemplos dentro do universo conhecido como tipografia clssica.

    a partir desses exemplos que se define o que aceito culturalmente como legvel. Por

    outro lado, para configurar um horizonte de contraposio, foram escolhidos

    exemplos de tipografia que no se encaixam no ideal clssico e que ressaltam aspectos

    imagticos da tipografia. Alm dessas imagens da histria da escrita e da tipografia,

    outras imagens ilustrativas auxiliam na delimitao do objeto e na compreenso de

    sua lgica de produo.

    A construo da tipografia popular como objeto para esta pesquisa se deu a

    partir da prpria experincia do pesquisador, que, caminhando pelas ruas, deparou

    com diversas das suas manifestaes e passou a se perguntar por que elas o

    fascinavam tanto. Parte dessa experincia foi registrada e, dentre dezenas de fotos

    feitas no espao urbano da cidade de Belo Horizonte nos ltimos cinco anos, dez

    foram escolhidas para constituir o corpus de anlise da pesquisa. O recorte espacial e

    temporal se justifica pela prpria experincia do pesquisador, uma vez que reside na

    cidade e coleta, h algum tempo, imagens de tipografia popular encontradas em seus

    trajetos. Algumas excurses exploratrias para registrar imagens foram realizadas

  • 17

    como forma de tornar os trajetos do pesquisador um pouco mais aleatrios, j que a

    definio de um lugar especfico (ou de um trajeto especfico) iria contrariar a prpria

    natureza ocasional do objeto. O desenvolvimento de um grande nmero de famlias

    tipogrficas digitais a partir de uma inspirao popular e o aparecimento recente de

    publicaes como O Brasil das placas (fig 5) e a revista Tupigrafia apontam a

    relevncia do tema na atualidade.

    Figura 5 A publicao recente do livro O Brasil das Placas pela editora Abril veio confirmar o

    crescente interesse nas manifestaes tipogrficas populares. O jornalista e editor especial do Guia 4

    Rodas Jos Eduardo Camargo realizou, por todo o Brasil, registros fotogrficos de vrias placas,

    faixas, inscries, fachadas, etc. Neste exemplo, uma placa encontrada em Tabatinga, sp.

    fonte camargo & soares, 2003. p. 69.

  • 18

    2.4 O recorte do ilegvel

    Dentre as imagens registradas no espao urbano de Belo Horizonte, dez foram

    escolhidas para compor o corpus desta dissertao, e sero alvo de uma anlise mais

    aprofundada no captulo 5. A seleo das imagens foi realizada tendo como

    parmetro as caractersticas de excentricidade em relao tipografia clssica. Assim,

    o objeto desta dissertao se constitui inicialmente a partir de suas diferenas em

    relao idia convencional de que a tipografia funcionaria como uma ponte de livre

    acesso para o significado. Esse recorte se justifica pelo fato de compreendermos que a

    fora da tipografia popular est justamente nos elementos que a tornam formalmente

    singular. Na tipografia popular a excentricidade visual que desvia o leitor do

    significado imediato dos enunciados, colocando-o diante de uma multiplicidade de

    sentidos a serem percebidos no momento da leitura. Quando a inscrio no

    imediatamente compreendida pelo leitor, ou seja, quando de uma forma ou de outra

    ela se torna ilegvel, seus sentidos possveis so potencializados.

    Ao tratar aqui de manifestaes tipogrficas que nascem mais de uma pulso

    do que de um planejamento de escrita, nas quais procuramos a potencialidade do

    ilegvel, temos como contraponto as preocupaes com a legibilidade tipogrfica

    pertinentes ao meio editorial. Muitos especialistas europeus e americanos j se

    dedicaram a estudos sobre a legibilidade, dentre os quais Franois Richaudeau (1979,

    111-122) que desenvolveu um manual que aponta algumas regras que otimizam a

    legibilidade da tipografia para livros didticos, a saber:

    a) a dimenso dos caracteres (ou corpo da letra),

    b) o desenho dos caracteres (ou esqueleto: minsculas, maisculas, itlicas),

    c) o estilo dos caracteres (ou detalhes da execuo: famlias tipogrficas),

    d) o espao entre as letras e o espao entre as palavras,

    d) o alinhamento das palavras,

    e) o comprimento das linhas,

    f) o espao entre as linhas,

    g) tintas e papis (ou o contraste do texto impresso sobre o suporte).

    Para cada um desses tpicos existem regras que, se seguidas em seu conjunto,

    produzem composies de textos com um alto grau de legibilidade. Sabemos que esses

  • 19

    princpios funcionam para o texto impresso, pois foram formulados para serem

    aplicados em livros didticos. Entretanto, pretendemos utiliz-los como um

    contraponto para identificar o ilegvel na tipografia popular. Dentro do universo da

    tipografia popular, existem alguns exemplos que se aproximam das caractersticas de

    legibilidade, como nos casos de composies realizadas por alguns pintores-letristas

    que, devido a um bom domnio tcnico, realizam composies legveis. Sendo assim, a

    tipografia popular produzida por profissionais e que se aproxima de um estilo

    reconhecvel ou dos conceitos de legibilidade da tipografia clssica foi desconsiderada

    para anlise. A opo pela tipografia excntrica se justifica porque acreditamos que

    justamente na singularidade de suas formas que a tipografia popular encontra sua

    maior potencialidade. Partimos, portanto, da idia da ilegibilidade como

    potencializadora de sentidos. As dez imagens escolhidas, assim, no nos revelam

    situaes tpicas, mas a grande diversidade de configuraes do objeto.

    Como vimos, as manifestaes aqui estudadas so produzidas para serem

    lidas, mas o que acontece quando seus leitores deparam com inscries ilegveis?

    importante observar que buscamos no ilegvel um ponto de partida para as anlises

    que visam, em ltima instncia, a apontar quais so as experincias de construo de

    sentido possveis ao leitor da tipografia popular. A tipografia popular se constitui

    como um ato comunicativo revestido de rudos, e justamente da dificuldade de

    leitura imposta aos seus leitores que surge sua fora. Considerando intangvel o saber

    tcnico e cultural de seus annimos produtores, procuramos identificar na

    materialidade do objeto os fatores que determinam a ilegibilidade dos textos. Na

    maioria dos casos notamos claramente a inteno de comunicar (por exemplo pelo

    tamanho exagerado de uma inscrio), mas, mesmo assim, sua aparncia surge como

    excntrica, como ilegvel. Ou seja, o ilegvel no surge como inteno, mas como

    conseqncia de fatores extrnsecos e intrnsecos habilidade do produtor. Assim

    como os erros de grafia, acidentes no ato de escrever e nas tcnicas utilizadas para

    as inscries podem fazer com que a tipografia popular torne-se ilegvel: uma rasura

    aparente, interferncias de terceiros, sobreposies, ao do tempo, a

    imprevisibilidade de reao do suporte tcnica de inscrio, etc. No entanto, isto no

    deve ser tomado como uma regra determinante, pois, em alguns casos, podemos

    identificar o ilegvel como proposio, j que existem inscries secretas ou

    codificadas, como uma gravao das iniciais dos enamorados sobre o caule de uma

  • 20

    rvore. Tambm devemos lembrar que no s os desenhos das letras, mas tambm o

    contexto de insero no espao, podem determinar o grau de dificuldade ou de

    facilidade da leitura: o excesso tipogrfico em um quadro de anncios de empregos,

    onde dezenas de letras diferentes disputam um espao reduzido, dificulta a fixao do

    olhar do leitor, atrapalhando o acesso informao desejada. Temos ento que o

    ilegvel determinado menos pela inteno, e mais pela materialidade e pelo contexto

    de insero espacial da inscrio.

    Para organizar nosso corpus de anlise vamos organizar as imagens a partir

    dos seguintes itens descritivos, que tm por objetivo apresentar o contexto de insero

    e as tcnicas utilizadas para produzir as inscries escolhidas:

    data e local do registro fotogrfico;

    insero no espao breve descrio do contexto e da insero espacial da

    inscrio:

    interno: banheiros, interior de estabelecimentos comerciais, etc.;

    externo: espao pblico (ruas, avenidas, estradas, etc.) com circulao de carros e pedestres;

    mvel: quando a inscrio no est presa a um local fixo e circula pelos espaos;

    tcnica e suporte: descrio das tcnicas e dos suportes utilizados pelas a

    inscries;

    tamanho: tamanho aproximado das placas e das inscries um dado

    importante, uma vez que o tamanho dos caracteres pode vir a definir sua

    legibilidade;

    transcrio do texto: transcrio dos textos identificados nas mensagens.

  • 21

    2.5 Corpus de anlise

    Figura 6

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Agosto de 2002, av. do Contorno,

    Belo Horizonte.

    Insero no espao

    Tapume na entrada de uma obra de

    construo civil localizado em uma

    avenida com grande circulao de

    pedestres.

    Tcnica e suporte

    Giz e cermica sobre tapume de

    compensado.

    Tamanho

    200 x 40 cm.

    Transcrio do texto

    ca(n)mpain(m)ha.

    Figura 7

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Novembro de 2002, av. Bias Fortes,

    Belo Horizonte.

    Insero no espao

    Estabelecimento comercial onde o

    motoqueiro deixou seu capacete sobre

    o balco.

    Tcnica e suporte

    Ranhuras e pintura sobre capacete.

    Tamanho

    40 x 40 x 40 cm.

    Transcrio do texto

    sou de jesus no sou nada.

  • 22

    Figura 8

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Outubro de 2001, av. do Contorno,

    Belo Horizonte.

    Insero no espao

    Banca de camel colocada sobre a

    calada de uma avenida

    com grande circulao de pedestres.

    Tcnica e suporte

    Caneta esferogrfica e caneta hidrocor

    sobre papelo.

    Tamanho

    40 x 25 cm.

    Transcrio do texto

    porang(9)aba.

    Figura 9

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Outubro de 2002, av. Antnio Carlos,

    Belo Horizonte.

    Insero no espao

    Porto de residncia em avenida de

    grande circulao.

    Tcnica e suporte

    Durex colorido sobre placa de metal.

    Tamanho

    45 x 15 cm.

    Transcrio do texto

    lava-se roupas.

  • 23

    Figura 10

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Julho de 2001, Rua Almandina, Belo

    Horizonte.

    Insero no espao

    Porto de metal localizado em rua de

    bairro

    com pouca circulao de carros e

    pedestres.

    Tcnica e suporte

    Spray sobre metal.

    Tamanho

    500 x 300 cm.

    Transcrio do texto

    No (no) estacione (estacione)

    em(em) uso(uso) 24hs (24hs)

    danger.

    Figura 11

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Janeiro de 2002, cruzamento da Rua

    Esprito Santo com av. Bias Fortes.

    Insero no espao

    Pedinte circulando entre os carros em

    cruzamento de grande movimento.

    Tcnica e suporte

    Caneta hidrocor sobre cartolina

    colorida.

    Tamanho

    65 x 45 cm.

    Transcrio do contedo

    triste . rotina . meajuda estou.

    com. aids [voce . tem . corao,]

    meajuda.preciso sobrevive.

    obrigado que.deus.te.abeoa

    aceito vale....

  • 24

    Figura 12

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Janeiro de 2002, sem local

    determinado, Belo Horizonte.

    Insero no espao

    Nota recebida de troco em

    supermercado.

    Tcnica e suporte

    Caneta esferogrfica sobre papel-

    moeda.

    Tamanho

    14 x 6,5 cm.

    Transcrio do texto

    todas as pessoas que pe(r)gar est

    nota de 1 real vai ter sorte,

    assi(:) eudes de ribeiro pires.

    Figura 13

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Janeiro de 2002, cruzamento de Rua

    Cristina com Rua Viosa, Belo

    Horizonte.

    Insero no espao

    Placa afixada no caule de uma rvore.

    Tcnica e suporte

    Tinta sobre placa de metal.

    Tamanho

    60 x 110 cm.

    Transcrio do texto

    lavador de carros, lavar

    r$5,00, aspirar r$1,50, passo

    produto encerar r$10,00, com

    a cera do fregus, contato:

    rubens rua cristina 968o

    fundos so pedro tel: 2214880,

    volte sempre!.

  • 25

    Figura 14

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Janeiro de 2002, av. Afonso Pena, Belo

    Horizonte.

    Insero no espao

    Caixa de engraxate localizada em

    avenida de grande circulao

    no centro comercial da cidade.

    Tcnica e suporte

    Pintura sobre caixa de madeira.

    Tamanho

    50 x 30 cm.

    Transcrio do texto

    pedra bruta.

    Figura 15

    fonte Arquivo do pesquisador

    Data e local do registro fotogrfico

    Novembro de 2004, Praa Cairo, Belo

    Horizonte.

    Insero no espao

    Fragmentos encontrados sobre o

    passeio de uma rua residencial

    de pouca circulao de pedestres.

    Tcnica e suporte

    Caneta hidrocor sobre papel.

    Tamanho

    21 x 15 cm.

    Transcrio do texto

    [...] de-se [...] a gs falar com

    caitano.

  • 26

    3. tipografia e comunicao A forma no pode ser compreendida independentemente do

    contedo, mas ela no tampouco independente da natureza do

    material e dos procedimentos que este condiciona. A forma depende,

    de um lado, do contedo e, do outro, das particularidades do

    material e da elaborao que este implica.

    Mikhail Bakhtin

    3.1 Por uma cincia do comum

    O progressivo distanciamento do discurso cientifco em relao ao discurso do

    senso comum foi cristalizado, de acordo com Boaventura de Souza Santos (1989), a

    partir do sculo xvii. A partir da a cincia tornou-se um campo autnomo, estranho

    at mesmo ao prprio cientista, incapaz de vislumbrar a totalidade diante da crescente

    especializao e do surgimento de novos campos de conhecimento. As contradies

    encontradas pelas cincias sociais, criadora e objeto de seu prprio discurso, no so

    resolvidas por meio das mesmas proposies lgicas das cincias naturais e

    matemticas. Originado na burguesia do sculo xviii como senso mdio e universal e

    transformado pela mesma burguesia ascendida ao poder em um conceito ilusrio

    e superficial, o senso comum, com sua ambivalncia, deve ser encarado pelas cincias

    sociais com ateno, uma vez que sua relao com o discurso da cincia marcada por

    ambigidades. Apesar de seu vis muitas vezes conservador, interessa-nos aqui olhar

    para o senso comum em seu carter de permeabilidade e resistncia.

    ... se certo que o senso comum o modo como os grupos ou classes subordinados

    vivem a sua subordinao, no menos verdade que, como indicam os estudos sobre as

    subculturas, essa vivncia, longe de ser meramente acomodatcia, contm sentidos de

    resistncia que, dadas as condies podem desenvolver-se e transformar-se em armas de

    luta. (santos, 1989: 37)

    Se a cincia moderna constri suas bases ao se distanciar do senso comum,

    privilegiando a relao epistemolgica eu/objeto, Santos prope uma nova forma de

  • 27

    se pensar a epistemologia a partir de uma dinmica relacional intersubjetiva e da

    hermenutica. Essa desconstruo operada a partir de uma dupla ruptura

    epistemolgica. Num primeiro momento ocorre um rompimento, um

    distanciamento do senso comum, necessrio constituio de um discurso cientfico,

    mas num segundo momento h uma negao dessa primeira ruptura, visando

    contemplao de fenmenos que, principalmente para as cincias sociais, no se

    encaixam no conceito de verdade cientfica. Uma desconstruo que no ingnua

    nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipao e a criatividade da

    existncia individual e social, valores que s a cincia pode realizar, mas que no pode

    realizar enquanto cincia (santos, 1989: 42). Tudo que incerto, aleatrio ou

    regido por regras pouco lgicas, como as atividades criadoras e a esttica, podem

    finalmente ser inseridas dentro do discurso cientfico. Curiosamente, a cincia ps-

    moderna uma cincia reencantada. dentro desse contexto que desejamos voltar o

    nosso olhar para um objeto do universo do comum, um objeto que inicialmente

    no apresentaria cincia elementos relevantes para anlise. Ressaltar a importncia

    da tipografia popular como um objeto para os estudos da comunicao significa

    olhar para um lugar desconhecido e desprezado, no qual, contudo, podemos

    vislumbrar a existncia de uma polifonia de vozes excludas que, se no ousam gritar,

    murmuram uma existncia vigorosa.

    3.2 A tipografia como ato comunicativo

    Cada cultura transfere sua maneira marcas para a forma de sua escrita, como

    poderamos apontar em inmeros exemplos: os caracteres cuneiformes dos sumrios,

    os hierglifos egpcios, os ideogramas chineses, a caligrafia rabe, as lpides romanas,

    a escrita gtica ou uma das fontes-padro do Windows. Desde os primeiros

    pictogramas inscritos nas paredes das cavernas at os alfabetos digitais, miramos um

    enorme abismo de transformaes tcnicas e culturais. Mas o que existe de comum

    entre o homem pr-histrico que grava suas mos nas paredes da caverna e o homem

    contemporneo que envia e-mails? Poderamos dizer, sem nos aprofundar nas

    questes especficas da arte rupestre ou da web, que os dois esto inseridos em uma

    situao de comunicao. Ambos se utilizam do ato de inscrever/escrever para

  • 28

    comunicar. Se o primeiro faz a sua marca com as prprias mos, sem a utilizao de

    um sistema de signos organizado, o segundo se utiliza no s de um sistema de signos

    complexo, mas de tecnologias informticas sofisticadas que conjugam eletrnica e

    matemtica.

    Vamos tomar a linguagem como ponto de partida para pensar as interaes

    sociais. Lembrando os fundamentos da sociologia do conhecimento, exposta no

    livro A construo social da realidade, de Luckmann e Berger, podemos certamente

    repetir que vivemos "em um mundo de sinais e smbolos todos os dias" (2002: 61). A

    vida cotidiana , para ns, o espao em que experimentamos a realidade. Sabemos que

    a expressividade humana capaz de objetivaes ao se utilizar da linguagem. O

    cotidiano se baseia sobretudo na linguagem e por meio dela que compartilhamos o

    mundo com nossos semelhantes. Ao apreender a linguagem, apreendemos no s um

    contedo enunciado, mas a prpria realidade da vida cotidiana. O abismo que se faz

    entre a nossa compreenso subjetiva e a realidade somente pode ser transposto pela

    linguagem. A compreenso do outro que torna o existir possvel. Ao ultrapassar a

    expresso direta do aqui e agora, efetivada na conversa face a face, a linguagem

    possibilita ao homem acumular e transmitir significados atravs das geraes. O

    inatingvel linguagem descritiva encontra alento no simblico, podendo nos levar a

    regies distantes da nossa experincia cotidiana. Ao vivificar constantemente sinais e

    smbolos construmos e apreendemos uma realidade subjetiva e compartilhada. O

    movimento de experimentar o mundo est, dessa forma, mediado pela linguagem a

    partir de um processo dialtico contnuo de interiorizao (de uma realidade objetiva)

    e exteriorizao (de uma realidade subjetiva). No se trata de compreender a

    linguagem como esttica e representativa, mas como capaz de expressar subjetividades

    e tecer relaes. A realidade construda a partir da linguagem e se realiza na

    linguagem, e so as inter-relaes entre sujeito, sociedade e linguagem que constituem

    um estar no mundo, que instituem uma diversidade de discursos estimulados pela

    experincia. O desaparecimento da dicotomia indivduo e sociedade ressalta a idia de

    que o sentido no dado, mas construdo: o sentido deve ser visto como

    construo, em vez de processo de revelao de verdades institudas (borba, 2003:

    26).

    Diante da complexa textura mvel de relaes que configuram o indivduo e

    seus vnculos sociais, no podemos caracterizar a relao eu/mundo e a vertiginosa

  • 29

    importncia dada linguagem de forma superficial. Para compreender o papel da

    linguagem que constitui, e ao mesmo tempo, constituda pelo tecido social em que

    est inserida, vamos compreender a palavra em seu carter dialgico, como apontado

    por Bakhtin:

    Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato

    de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela

    constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda

    palavra serve de expresso a um em relao ao outro. Atravs da palavra, defino-

    me em relao ao outro, isto , em ltima anlise em relao coletividade.

    (bakhtin, 1992: 113)

    O que percebemos aqui a dinmica da interlocuo. A palavra no definida

    exclusivamente por seu locutor, no se diz apenas aquilo que se deseja, o prprio

    desejo de dizer leva o outro em considerao. Vamos apontar aqui para uma possvel

    transposio do raciocnio dialgico de Bakhtin para a tipografia. Sabe-se que o

    objetivo primeiro da tipografia a leitura. Para que uma composio tipogrfica se

    efetive como ato comunicativo o leitor deve ser considerado. Cada grupo de leitores

    possui particularidades especficas. Vejamos o caso de crianas que ainda no

    consolidaram a alfabetizao. A tipografia que pretende ser lida por essas crianas

    deve levar em conta alguns aspectos, como o fato de elas no diferenciarem bem as

    direes, podendo espelhar a leitura das letras (como o b, o d, o p e o q).

    Pode-se afirmar, a partir dessa constatao, que uma tipografia para crianas deve ser

    criada com desenhos de letras muito diferentes entre si, ou seja, no adequado que o

    desenho do d seja simplesmente o b espelhado. Existem ainda muitos outros

    aspectos que podem definir o desenho ideal de letras para crianas, mas nesse

    momento, interessa-nos ressaltar como a considerao de um determinado grupo de

    leitores interfere na forma final da tipografia.

    No caso da tipografia popular, como vimos anteriormente, podemos sempre

    perceber a existncia de uma inteno comunicativa, mesmo que essa inteno no se

    efetive com o sucesso pretendido. O conjunto de leitores para o qual ela se direciona

    flutuante, uma vez que seu posicionamento no espao faz com que seja acessvel,

    aleatoriamente, a uma diversidade indefinvel de indivduos. Temos ento uma curiosa

    dinmica comunicativa entre texto e leitor. A relao entre produtores e leitores no se

  • 30

    d na forma de um projeto, um conflito criativo que define seus atos de linguagem.

    Nesse jogo agonstico, os produtores no podem ser classificados como

    manipuladores ou simplesmente como propositores de dilogo. Pressionados em

    parte pela escassez, os produtores incorporam em seus textos mesmo que de forma

    inconsciente elementos que ultrapassam o que pretendiam transmitir. importante

    lembrar tambm que nem sempre h uma informao a ser transmitida, pois

    algumas das inscries tm contedos pouco objetivos como pensamentos, devaneios,

    poemas, etc. Quando as realidades subjetivas dos produtores se realizam em intenes

    comunicativas, novas formas de vivificar a linguagem surgem nos lances de um jogo

    interativo com leitores indeterminados e com os inmeros contextos de produo e

    insero.

    ... falar combater, no sentido de jogar, e [...] os atos de linguagem provm de

    uma agonstica geral. Isto no significa que se joga para ganhar. Pode-se realizar

    um lance pelo prazer de invent-lo: no este o caso do trabalho de estmulo da

    lngua provocado pela fala popular e pela literatura? (lyotard, 1993: 17)

    A constituio do campo da comunicao, para usar os termos de Braga

    (2001), enfrenta as dificuldades geradas pela pouca idade das reflexes, pelo seu

    carter de interdisciplinaridade singular, por sua aparente falta de especificidade em

    relao a outras disciplinas das cincias sociais e, principalmente, pela falta de

    delimitao de seu objeto. Sem negar a importncia das contribuies trazidas pelos

    estudos realizados a partir da crescente importncia dos meios de comunicao de

    massa, no podemos nos deixar seduzir por sua aparente onipresena, pois a

    comunicao nos diz menos de um objeto especfico e mais da mediao, de como a

    sociedade conversa, das interaes travadas entre os indivduos. Dessa forma, a

    pesquisa em comunicao deve se configurar como uma perspectiva, como um olhar

    comunicacional sobre os fatos sociais. Se compreendemos a tipografia como uma

    configurao possvel da linguagem, olhar para a tipografia popular a partir de uma

    perspectiva comunicacional significa ento, olhar para as interaes que, mediadas

    pela tipografia, processam trocas simblicas e prticas entre os indivduos. O ato da

    escrita constituindo-se como um delineamento de mapas identitrios. a importncia

    do prprio ato, permeado por escolhas de um sujeito, independentemente de sua

  • 31

    projeo ou de seu contedo, que marca a diferena entre o comunicar e o identificar-

    se. Vejamos a distino descrita por Braga entre a cultura e a comunicao:

    O gesto de cultura [...], em situao de auto-explicitao, j no apenas

    movimento de participao e de identificao do indivduo na comunidade.

    tambm expresso consciente desse identificar-se comunicao (aos iguais e aos

    diferentes) da opo feita. Corresponde a uma seleo entre diversos jogos e

    atuao consciente sobre suas regras, via interao social. (braga, 2001: 35-36)

    justamente no ato de auto-explicitao que encontramos os elementos

    constitutivos da comunicao. Desvinculada de territrios identitrios tradicionais a

    tipografia popular um ato comunicativo no qual escolhas so feitas, identidades so

    explicitadas. Compreendemos ento a tipografia popular como um ato comunicativo

    que se direciona a um leitor indeterminado, e justamente neste ato que podemos

    observar uma comunicao ruidosa. Poderamos dizer que o desejo de se adequar a

    um leitor indefinido uma das razes pelas quais a tipografia popular nos aparece

    multiforme; a imprevisibilidade dos seus traos parece acompanhar a indeterminao

    de seu pblico.

    3.3 Um breve histrico: da caverna ao computador

    O desenvolvimento da escrita e do alfabeto possibilitou o surgimento e o

    avano da cincia, inaugurando novas maneiras de compreender e representar o

    mundo. As configuraes da escrita no cessam de se transformar criando novas

    formas e novos usos para esse notvel sistema de smbolos. O que a tipografia seno

    a prpria materializao da escrita? no desenho de suas formas e em sua

    configurao sobre o suporte que a escrita se realiza. A grande diversidade de tcnicas

    da escrita nos mostra, em seu desenvolvimento, particularidades e caractersticas que

    so conformadas culturalmente e historicamente. A pulso de escrever do homem se

    realiza a partir de tcnicas (incises, o pincel, o clamo, o osso, o buril, o lpis, a pena,

    os tipos mveis, a mquina de escrever, o computador) que do forma a signos

    grficos sobre uma grande diversidade de suportes (a parede das caverna, a pedra, as

    placas de argila, a cermica, o couro de animais, o pergaminho, o metal, a madeira, o

  • 32

    papel, as telas luminosas, etc.). As intrincadas relaes da forma com a tcnica e o

    suporte nos apontam caminhos para compreender a importncia da materialidade da

    escrita, pois aqui no parece haver uma relao simples de causa e efeito, ou seja, a

    forma no determinada puramente por uma transformao tcnica. Em momentos

    de transio uma forma anterior se reproduz e interfere na forma nova at que ela

    adquira uma relativa autonomia, o que comprova que as formas esto em constante

    movimento. Para citar apenas um exemplo, podemos nos lembrar da escrita egpcia

    captulo importante na passagem de uma escrita pictogrfica para uma escrita

    fontica. A rapidez demandada dos escribas para a realizao dos desenhos

    complexos dos hierglifos (fig. 16) fez com que surgisse uma nova forma de

    anotao a escrita cursiva hiertica (fig. 17), que adquiriu, com o passar do tempo,

    caractersticas formais muito diferentes.

    Figura 16 Os hierglifos egpcios mesclavam

    trs espcies de smbolos: pictogramas (desenhos

    estilizados), fonogramas (desenhos que

    representavam sons) e determinativos (que

    classificavam coisas e seres em categorias). Nesta

    imagem, o calendrio de Elefantina gravado em

    pedra por volta do ano de 1450 a.c.

    fonte jean, 2003. p. 30.

    Figura 17 Escrita cursiva hiertica e

    instrumentos utilizados pelos escribas. A

    escrita era, inicialmente, uma verso cursiva

    dos hierglifos, at se distanciar

    completamente de suas formas originais.

    fonte jean, 2003. p. 39.

    Algumas transformaes tcnicas e histricas importantes indicam as diversas

    possibilidades de configurao da escrita, que se relacionam no s com invenes

    tcnicas, mas com as mentalidades de cada perodo, de cada cultura. Para comear,

  • 33

    no podemos negar a importncia do aparecimento da escrita, que promoveu um

    movimento de ruptura nas sociedades tradicionais, ao deslocar o lugar do

    conhecimento da oralidade para a escritura, criando as bases para o pensamento

    moderno. Inicialmente pictogrfica, pode-se dizer que a escrita ocidental surgiu da

    necessidade de controle do tempo, das relaes comerciais e administrativas de uma

    sociedade que se tornava cada vez mais complexa e mais numerosa. Quando o

    homem se fixou no encontro dos rios Eufrates e Tigre, fez-se necessrio criar um

    registro das estaes climticas para planejar a sazonalidade das colheitas e o

    nascimento dos rebanhos; as trocas comerciais e questes relacionadas propriedade

    tambm foram determinantes para a aurora da escrita. Alguns milnios depois das

    tabuletas de cermica (fig. 18), a escrita comea a se democratizar, ampliando seu

    alcance para alm das elites religiosas e aristocrticas. Isso se deu no ocidente, de

    forma mais expressiva, aps a inveno dos tipos mveis de metal no sculo xv (fig.

    19), quando Gutenberg inaugurou um captulo decisivo na histria do impresso.

    Apesar de, sintomaticamente, a primeira publicao ter sido a famosa bblia de 42

    linhas (fig. 20), poucas dcadas aps o surgimento das prensas tipogrficas elas j se

    haviam espalhado por toda a Europa, propiciando uma grande difuso de livros

    cientficos e clssicos da literatura, dentre outros. O aparecimento da litografia no

    sculo xix libertou o desenho das letras das formas rgidas impostas pelos tipos de

    metal (fig. 21) e abriu caminho para a inveno do sistema de impresso off-set em

    meados do sculo xx. A revoluo industrial e a inveno da fotografia expandiram,

    ainda no sculo xix, as possibilidades de representao no impresso e aumentaram

    seu alcance para uma sociedade de massas.

    O resgate da caligrafia pelo movimento arts&crafts, no final do sculo xix, se

    contrape s experincias tipogrficas das vanguardas europias, sem, contudo,

    deixar de apontar para um horizonte comum em que se percebe uma liberdade formal

    da letra, quer seja por uma presena corporal ou mecnica. Ainda na Idade Mdia,

    anteriormente inveno das prensas, as iluminuras e o desenvolvimento de alguns

    alfabetos j apontavam claramente para uma dimenso visual da letra, partindo da

    fuso do desenho ilustrativo com a escrita (fig. 22). Ao pensar nos dias de hoje, no

    podemos deixar de citar o surgimento da informtica e do desktop publishing, que,

    em conjunto com outras tecnologias, abriu possibilidades antes inimaginveis para o

    design grfico e a tipografia. O digital inaugura um captulo de grande liberdade, no

  • 34

    qual percebemos no s uma revisitao dos mais diversos estilos, como o surgimento

    de novas direes: sobre a superfcie das telas o pixel substitui a tinta, fazendo as

    letras surgirem efmeras, letras-luz em constante movimento.

    Figura 18 Fragmentos de um livro de contas

    em cermica pertencente ao templo de Uruk na

    antiga Sumria, datado do quarto milnio

    a.c.

    fonte jean, 2003. p. 13.

    Figura 19 Tipos mveis e espaos

    tipogrficos utilizados para a composio da

    Encyclopdie de Diderot.

    fonte jean, 2003. p. 105.

    Figura 20 A conhecida Bblia de 42 linhas

    de Gutenberg, por volta de 1450.

    fonte friedl & ott & stein, 1998. p 263.

    Figura 21 Cartaz impresso em litografia,

    criado por Toulouse-Lautrec em 1892.

    fonte barnicoat, 1972. p. 14.

  • 35

    Figura 22 Alfabeto desenvolvido por Franco em 1596.

    fonte friedl & ott & stein, 1998. p 64.

    Esse breve resumo de mais de 6.000 anos de histria importante no s

    como contextualizao, mas tambm para ressaltar dois aspectos. Primeiramente

    devemos compreender a importncia da inveno da escrita, que se funde com o

    prprio surgimento do pensamento ocidental. Num segundo momento pretendemos

    indicar como as transformaes tcnicas determinam, em conjunto com outros

    fatores histrico-culturais, a forma de uma tipografia. Vrios exemplos podem ser

    citados para reafirmar as relaes entre tcnica e forma na histria da tipografia. O

    tipo de pena utilizado pelos monges copistas, que caligrafavam variando os ngulos

    em relao ao papel, produziu a relao singular entre as espessuras do desenho da

    letra gtica. O aparecimento de detalhes no desenho da letra, como a serifa, tem

    tambm algumas explicaes interessantes, apesar de alguns atriburem sua funo

    unicamente a uma melhor legibilidade em grandes manchas de texto. A funo

    atribuda serifa a de conduzir o olhar do leitor, no entanto, de acordo com alguns

    pesquisadores, a serifa teria se originado da necessidade de que as letras esculpidas

    no acumulassem poeira e gelo em suas incises. Sabemos que as questes tcnicas

    ultrapassam o trao final do desenho da letra e envolvem outros aspectos do processo

    de produo, como a mecnica das prensas, a qumica da tinta e do papel, a fundio

    do tipo, etc. O prprio Gutenberg, utilizando suas habilidades de ourives,

    desenvolveu uma liga de metal que permitiu que os tipos mveis resistissem s batidas

    da prensa. Podemos tambm lembrar o desenvolvimento de papis e tintas de

    qualidade superior para que, na segunda metade do sculo xviii, o famoso tipgrafo

  • 36

    e editor Giambattista Bodoni pudesse imprimir com preciso os contrastes de sua

    elegante famlia tipogrfica.

    Tambm no caso da tipografia popular a questo tcnica interfere

    decisivamente na forma. No entanto, como vimos anteriormente, no possvel

    identificar tcnicas predominantes. A escolha da tcnica est ligada ao seu contexto de

    insero, e em cada nova ocasio surge uma nova tcnica. , portanto, o prprio

    contexto que define, provisoriamente, a escolha de uma determinada tcnica de

    produo. As formas com as quais o leitor depara no foram desenhadas para ele; a

    ocasio que determina sua aparncia.

    3.4 Tipografia clssica e experimental

    Mesmo no tendo a pretenso de realizar um registro detalhado das

    transformaes por que passou a tipografia ao longo da histria, vamos identificar

    duas faces distintas que conformam, de uma forma ou de outra, grande parte da

    histria mais recente da escrita ocidental: a tipografia clssica e a tipografia

    experimental. Enquanto a chamada tipografia clssica segue a tradicional funo de

    legibilidade, na tipografia experimental pode-se observar um deslocamento da letra de

    sua funo primordial para a proposio de um signo autnomo a letra passa a ser

    percebida como imagem.

    Compreendemos aqui a tipografia clssica como aquela que no percebida,

    que est integrada visceralmente ao contedo e, portanto, no deveria chamar a

    ateno para si (rocha, 2002: 52). importante notar que essa transparncia

    desaparece ao olhar atento, capaz de perceber que a tipografia incorpora em sua

    prpria forma a mentalidade de uma poca, ou seja, a tipografia tem sua forma

    definida a partir de conformaes tcnicas, histricas e culturais. No decorrer da

    histria os diversos estilos caractersticos de cada poca se transferem para os

    desenhos das letras, como se v na ampla classificao proposta por Bringhurst

    (1999: 12-15) (fig. 23, 24, 25 e 26). No entanto, ainda possvel perceber claramente

    na tipografia clssica a inteno de transformar a letra em um signo transparente. A

    forma subjugada pelo contedo. O que est em jogo aqui a inteno de tornar a

    tipografia um caminho confortvel e imperceptvel para o contedo do texto. O

  • 37

    surgimento do sujeito moderno trouxe consigo um ideal de representao da

    realidade, onde o racionalismo surge com fora dissipando as vises msticas ou

    supersticiosas, o corpo se desliga da conscincia propondo uma razo pragmtica e

    funcionalista que se mostra na clareza da composio tipogrfica na pgina.

    Com a noo da totalidade orgnica, em que as partes definem-se por

    participarem do todo, tambm a forma de apresentao deveria acompanhar esses

    princpios. A neutralidade da tipografia, sua suposta transparncia, sua

    ordenao, sua clareza no seriam arbitrrias, mas espelho de uma necessidade

    inerente da expresso em que a palavra era adequada para representar o real. De

    acordo com essa convico, no poderia ser a letra impressa uma barreira entre o

    pensamento e a compreenso do leitor, mas apenas uma ponte de livre acesso.

    (gruszynsky, 2000: 38)

  • 38

    Figuras 23, 24, 25 e 26 Sinopse histrica das transformaes dos alfabetos clssicos da

    Renascena aos dias de hoje. interessante notar que, ao relacionar as fomas com os estilos de cada

    poca, palavras como humanista e racional tornam-se adjetivos para classificar os desenhos.

    fonte bringhurst, 1999. p. 12, 13, 14 e 15.

    Seguindo outras direes, a tipografia experimental caracteriza-se pela

    renovao da linguagem ou a busca da ruptura esttica (rocha, 2002: 53). O

    experimentalismo tipogrfico explicita a forma da letra, questionando a legibilidade e

    distanciando os desenhos e composies da idia de transparncia. A imagem da

    tipografia colocada em relevo, em detrimento de sua funo de mera interface para o

    contedo semntico. A tipografia experimental nos aparece como um signo opaco,

    cujos significados no esto apenas em sua ligao com um contedo, mas

    constituem-se em sua prpria materialidade: a forma o contedo.

    Podemos fazer aqui uma aproximao da tipografia com a pintura,

    compreendendo que determinadas tendncias modernas ao abstracionismo

  • 39

    distanciaram a linguagem pictrica de uma representao orgnica da realidade.

    Pensamos aqui especificamente em alguns movimentos pr-modernos e modernos

    que, diante do advento da fotografia, apontaram novas solues formais para a

    pintura, buscando para isso recursos nas possibilidades do prprio suporte. Assim

    como na pintura, percebemos na tipografia experimentaes em uma direo auto-

    reflexiva, ou seja, o desenvolvimento de uma linguagem formal relativamente

    autnoma. A palavra no tem apenas a funo de representar algo, em sua aparncia

    ela j . O significante entendido aqui como as formas das letras e sua composio

    no espao surge, assim como na poesia moderna de vanguarda, como imagem

    autnoma, cujo sentido no est apenas em sua ligao com o contedo, mas emana

    de sua prpria materialidade. A letra se aproxima do estatuto do imagtico, como no

    exemplo dos caligramas (fig. 27): a letra-imagem que avana sobre a letra-

    representao. Nas vanguardas do incio do sculo xx, a comear pelo futurismo (fig.

    28), passando pelo dadasmo (fig. 29), pelo construtivismo, pelo suprematismo, pelo

    de Stijl, dentre outros, mudanas sensveis foram propostas na tipografia,

    deslocando-a da funo de representar a voz de um autor. Surgem ento novas

    relaes entre a letra e sua imagem a forma passa a ser compreendida como um

    elemento intensificador, constituidor do texto.

  • 40

    Figura 27 Caligrama do poeta Guillaume

    Apollinaire realizado em 1918.

    fonte blackwell, 1998. p. 28.

    Figura 28 Capa e pgina interna do

    romance Zang Tumb Tumb do futurista

    Filippo Marinetti, produzido em 1914.

    fonte blackwell, 1998. p. 25.

    Figura 29 Cartaz Small Dada Evening

    realizado por Theo Van Doesburg e Kurt

    Schwitters em 1922.

    fonte blackwell, 1998. p. 42.

    Figura 30 Cartaz do designer David Carson

    para exposio de seu trabalho realizada em

    1996 no Brasil. Carson se tornou

    emblemtico para o design da dcada de 90

    ao propor lay outs caticos com misturas e

    fragmentaes tipogrficas nos quais os

    paradigmas da legibilidade eram

    desrespeitados.

    fonte blackwell & carson. 1998. p. 156.

  • 41

    Depois das vanguardas, nossa condio ps-moderna, para usar o termo

    cunhado por Lyotard, colocou em xeque a vocao humanstica da tipografia. Os

    computadores pessoais e a tecnologia digital (com destaque para o post script, o

    desktop publishing e os softwares para criao de fontes digitais) transformaram

    radicalmente o design grfico e a tipografia ao acelerar vertiginosamente suas

    possibilidades formais. A fragmentao advinda dos experimentos tipogrficos

    obriga o leitor a interagir com verdadeiros quebra-cabeas visuais criados a partir de

    referncias individuais, impe-se ao leitor uma grande variedade de representaes

    subjetivas do mundo. Os princpios formais de equilbrio e simetria, definidores da

    legibilidade, so subvertidos. As convenes so desrespeitadas, a tipografia

    ultrapassa sua funo de passagem para um contedo proposto reafirmando sua

    potencialidade visual (fig. 30). No basta transmitir uma informao, mas impor

    uma experincia, tensionar a interao com o leitor. Existem vazios, fissuras,

    porosidades. A participao do leitor no se limita decodificao dos signos visuais,

    mas se coloca como um processo de mediao intersubjetiva em que rudos se

    entrecruzam e repertrios individuais se inter-relacionam. Numa das faces da

    tipografia contempornea, que alguns chamam de ps-moderna, as possibilidades

    visuais so levadas ao extremo. Em detrimento linguagem verbal do texto, as

    composies visuais como propunham os movimentos de vanguarda no incio do

    sculo xx alcanam autonomia.

    Podemos dizer que a tipografia comporta duas faces, uma que se relaciona ao

    seu carter verbal e outra ao seu carter visual. a conjugao do duplo movimento

    de olhar e ler, durante o processo de leitura, que articula uma linguagem formal com

    uma linguagem que no pode ser formalizada.

    ... a atividade de criar tipos e organiz-lo com arte no espao alia-se tanto

    articulao de uma linguagem formal como ao manejo de foras culturais e

    estticas. O primeiro aspecto revela seu lado mais conservador, vinculado

    existncia de um sistema simblico de signos verbais regido por uma srie de

    convenes sociais e culturas genricas. O ponto de vista icnico/indicial, por

    outro lado, mostra sua face mais malevel e passvel de ser trabalhada segundo

    preferncias subjetivas e levando em conta adaptaes ao contexto. Na tipografia

    h, ento, a sobreposio entre signos verbais e visuais. (gruszynsky, 2000: 16)

  • 42

    Sabemos que a palavra escrita nunca est descolada de sua imagem. A leitura

    s se realiza em conjunto com uma experincia visual que envolve o conhecimento

    prvio do leitor e a aparncia do texto. Se a leitura se d a partir dessa relao, as

    caractersticas formais peculiares da tipografia popular so um fator relevante para

    compreender as relaes que o leitor estabelece com ela. O que tanto nos fascina na

    tipografia, seno essa sua face malevel, em que a forma escapa de uma funo

    puramente cognitiva para surgir como um anteparo imagtico? Conscientes das

    complexas discusses filosficas que acompanham as vanguardas, no desejamos

    aqui analisar as manifestaes da tipografia popular a partir de suas teorias, mas

    devemos tom-las como uma referncia valiosa no que diz respeito compreenso da

    potencialidade formal da tipografia. Se na tipografia popular no pressentimos um

    saber terico ou conceitual elaborado, percebemos indcios de um saber que se afasta

    da autonomia e clama sempre pela presena de um outro cuja ateno se debrua

    sobre as apropriaes singulares da linguagem, a sobreposio inconsciente das

    tradies, os rastros do corpo visveis em suas formas.

    3.5 A tipografia popular

    No podemos nos esquivar aqui de uma discusso um pouco mais

    aprofundada sobre o termo tipografia popular, pois, apesar do crescente interesse de

    tipogrfos em digitalizar caracteres a partir de manifestaes populares, sabemos que

    essas manifestaes, que gostaramos de classificar como tipogrficas, no so criadas

    para serem reproduzidas mecanicamente umas das caractersticas que alguns

    autores apontam como pr-condio para determinar o que tipografia. Faz-se,

    assim, necessrio explicitar a acepo atual do termo tipografia, uma vez que esta

    ainda alvo de confuso, mesmo entre especialistas. O que chamamos aqui de

    tipografia no est relacionado tcnicas de impresso mecnicas ou digitais, ou ao

    local onde se guardam ou executam impresses com tipos mveis, mas sim a um

    conceito amplo de desenho e composio.

    Confundida muitas vezes com a tipologia, a tipografia , dentro das muitas

    disciplinas do design, uma rea de estudos voltada para o desenho e a composio de

    caracteres no espao. Pode-se dizer que, por uma lacuna terminolgica, o termo

  • 43

    tipografia agrega na lngua portuguesa trs termos da lngua inglesa writing,

    lettering e typography. Writing se aproxima do que conhecemos como caligrafia ou

    qualquer ato de escrever manual que se utiliza de instrumentos que vo do lpis ao

    pincel para desenhar letras de apenas uma linha (stroke). Por sua vez lettering o ato

    de desenhar letras, tambm com a utilizao de tcnicas manuais, mas sem a restrio

    de que sejam desenhadas com apenas uma linha, podendo, por exemplo, ser

    preenchidas ou hachuradas. Finalmente, entende-se por typography a criao de

    desenhos e composies predeterminados por meio de tcnicas mecnicas ou digitais

    que independem do movimento da mo. Apesar dessas diferenciaes possveis,

    vamos compreender tipografia a partir de um conceito amplo, que se relaciona tanto

    com o ato de escrever quanto com a composio dos elementos no espao. Vamos

    ento nos apropriar de trs definies possveis fornecidas por autores de origens

    distintas:

    Definiremos [...] tipografia como o conjunto de prticas subjacentes criao e

    utilizao de smbolos visveis relacionados aos caracteres ortogrficos (letras) e

    para-ortogrficos (tais como nmeros e sinais de pontuao) para fins de

    reproduo, independentemente do modo como foram criados (a mo livre, por

    meios mecnicos) ou reproduzidos. (farias, 1998: 11-12)

    Percebemos, na definio da tipgrafa brasileira Priscila Farias, um

    direcionamento para a criao e utilizao da tipografia dentro de um ambiente

    profissional. Nela pode-se observar uma predominncia da idia de tipografia como

    ofcio; o tipgrafo aquele que vai tratar tanto da produo do desenho das letras,

    quanto da sua utilizao. Apesar da nfase profissional, o fazer tipogrfico

    compreendido como livre, uma vez que sua criao e reproduo no se encontram

    tecnicamente definidas.

    Numa segunda conceituao, o tipgrafo alemo Wolfgan Weingart constata a

    importncia da composio dos elementos no espao como fator determinante para a

    constituio do sentido e aponta para questes que ultrapassam a funo inicial de

    legibilidade.

  • 44

    Tipografia transformar um espao vazio num espao que no seja mais vazio.

    Isto , se voc tem uma determinada informao ou um texto manuscrito e precisa

    dar-lhe um formato impresso com uma mensagem clara que possa ser lida sem

    problema, isso tipografia. Mas essa definio tem o defeito de ser muito curta.

    Tipografia tambm pode ser algo que no precisa ser lido. Se voc gosta de

    transformar partes desta informao em algo mais interessante, pode fazer algo

    ilegvel, para que o leitor descubra a resposta. Isso tambm possvel, e isso

    tambm tipografia. Tipografia a arte de escolher o tamanho correto, o

    comprimento certo da linha, de escolher as diferentes espessuras das informaes

    do texto. Ela pode incluir cor, que d outro significado palavra. Se voc

    imprimir algumas partes em vermelho, elas se transformam numa outra

    informao. (weingart, 2000: 72)

    Weingart chama a ateno para o fato de que o desenho das letras, a

    composio, o espaamento, as entrelinhas, alm de todas as variaes que compem

    a tipografia (tamanho, contraste, cor, etc.), so elementos determinantes para a

    construo do sentido. Pode-se concluir que o significado de um determinado texto

    dado no s por seu contedo lingstico, mas por sua imagem, por seu desenho, por

    sua composio, por sua tipografia.

    O objetivo inicial da tipografia era substituir os escribas, reproduzindo os

    textos indefinidamente. De acordo com o tipgrafo canadense Robert Bringhurst, se

    no mundo da reprodutibilidade digital a caligrafia pode ser reproduzida com a mesma

    facilidade com que se reproduz uma composio tipogrfica, pouco haveria mudado

    na funo da tipografia: criar a iluso de preciso e velocidade da mo que escreve.

    Tipografia simplesmente isto: a escrita idealizada. Hoje so raros os escritores

    que mantm a habilidade caligrfica dos antigos escribas, mas eles evocam

    inmeras verses de uma escrita ideal em uma variedade de vozes e estilos

    literrios. A essas vises encobertas e freqentemente invisveis, o tipogrfo deve

    responder em termos visveis.2 (Traduo do autor. bringhurst, 1999: 19)

    2 Typography is just that: idealized writing. Writers themselves now rarely have the calligraphic skill of earlier scribes, but they evoke countless versions of ideal script by their varying voices and literary styles. To these blind and often invisible visions, the typographer must respond in visible terms. (bringhurst, 1999: 19)

  • 45

    Se so as diferentes vozes de autores e estilos literrios que se fazem visveis na

    diversidade de desenhos tipogrficos produzidos profissionalmente, haveria uma

    correspondncia entre essa escrita idealizada com a tipografia popular? Na

    tipografia popular que no se utiliza de um projeto para tornar suas mensagens

    visveis, a preciso e a velocidade da mo que caligrafa so substitudas pelo iluso do

    fazer. Afastando-se das determinaes impostas pelo processo do projeto, a tipografia

    popular no possui uma intencionalidade pr-determinada sua singularidade

    produzida no processo de materializao do que foi idealizado. A escrita ,

    portanto, idealizada e o prprio fazer que se torna visvel em suas formas. Uma

    grande mutiplicidade de vozes invisveis surgem no cotidiano e se fazem ouvir nos

    detalhes precrios dos desenhos da tipografia popular.

    Devemos agora nos perguntar por que chamar esta tipografia de popular?

    Alguns crticos da indstria cultural apontam, com alguma razo, para a manipulao

    e o controle que seus produtos pretendem exercer sobre as massas. No estamos aqui

    nos referindo ao popular que medido pelo grau de avidez de consumo das massas,

    ou s categorizaes hierarquizadas da cultura. O popular deve ser compreendido

    aqui como algo que ultrapassa a idia daquilo que feito pelo povo. O popular se

    constitui como um movimento que no se delimita simplesmente pela fora das

    tradies, ele instaura um lugar hbrido, em se pode observar um acmulo de

    impurezas, de contaminaes mtuas, de transformaes. Dessa forma, concordamos

    com Canclini quando ele diz que o popular no se define por uma essncia a priori,

    mas pelas estratgias instveis, diversas, com que os prprios setores subalternos

    constroem suas posies (1997: 23). O popular, portanto, est em tenso contnua

    com as manifestaes no-populares, ou seja, com aquelas que esto legitimadas por

    instituies, e se constitui como um processo conflituoso, em que ocorre um duplo

    movimento de conter e resistir, de manter a tradio e subvert-la. Esse duplo

    movimento pode ser observado claramente em alguns exemplos da tipografia

    popular. Ao observar as placas produzidas pelo pintor-letrista pernambucano Seu

    Juca, Priscila Farias identificou a fuso de desenhos de letras pertencentes a tradies

    distintas com a criatividade de um saber-fazer popular. (fig. 31)

  • 46

    Embora Juca afirme no copiar modelos, este tipo de letra bastante comum em

    cartazes e manuais de estilo vitoriano. uma espcie de forma hbrida que

    mistura a estrutura formal das maisculas romanas com os terminais tpicos da

    fratura (uma variao da letra gtica) germnica, resultando em um tipo de

    serifa conhecida como toscana. A quebra das hastes na altura mdia das

    letras, tambm presente em algumas letras de fantasia do sculo xix, tem

    precedentes em modelos de letra romanescos dos sculos 2 e 3. (farias, 2000: 20)

    Figura 31 Tipo de letra identificado por Priscila Farias como o mais utilizado pelo pintor-letrista

    pernambucano Seu Juca e a comparao feita pela autora a partir de uma fuso da estrutura formal

    de letras romanas com uma das variaes das letras gticas germnicas.

    fonte tupigrafia, v. 1, 2000. p. 20.

    Seu Juca provavelmente no teve contato direto com as tradies citadas por

    Farias, mas seus desenhos se apropriam delas distorcendo-as, transformando-as.

    Para o popular a tradio um elemento vital, mas no imutvel. a partir da

    associao e articulao de elementos da tradio num determinado momento

    histrico e das suas constantes mudanas de posio que o popular pode adquirir

    significado e relevncia. O popular se relaciona com grupos de excludos que jogam

    sutilmente com a ordem estabelecida, utilizado-se de uma astcia que subverte sem

    deixar de concordar suas acrobacias de baseiam maneiras de fazer e desfazer. Como

    escreveu Certeau, muito mais do que a repetio ou a manuteno de uma tradio, o

    popular um processo de apropriao constante, no qual o saber e o agir so

    indissociveis:

    a cultura popular [] se formula essencialmente em artes de fazer isto ou

    aquilo, isto , em consumos combinatrios e utilitrios. Essas prticas colocam

    em jogo uma ratio popular, maneira de pensar investida numa maneira de

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    agir, uma arte de combinar indissocivel de uma arte de utilizar. (certeau, 1994:

    42)

    A (re)criao digital de algumas fontes feita por tipgrafos brasileiros

    inspirados nas mais variadas manifestaes populares e artsticas nacionais to

    diversas como a prtica de marcar o gado com ferro quente (fig. 32), o graffiti

    urbano ou os bordados de Arthur Bispo do Rosrio so exemplos de apropriaes

    do saber popular. Paradoxalmente, numa era dominada pelas lgicas industriais e

    informticas, o olhar se volta para o popular, para o espontneo, para as prticas

    cotidianas: a racionalidade tcnica se mistura com o saber intuitivo. Podemos

    observar esse deslocamento nas apropriaes que o design industrial faz do

    artesanato, manifestao que sabemos inserida no centro de uma extensa discusso

    sobre o popular. O que vemos hoje no s um artesanato extico, mas sim o

    artesanato incorporado lgica da indstria. Assim as tradies so deslocadas de

    seu lugar de origem para serem resignificadas em um novo sistema. Sua relao

    singular com o contexto, a criatividade na utilizao dos materiais, o desenvolvimento

    de tcnicas viveis, a apropriao de materiais industrializados, dentre outras

    caractersticas, fazem do artesanato uma fonte vigorosa de solues no s para o

    desenvolvimento sustentado ou para a reciclagem, mas para o design produzido de

    forma industrial3. Ao conhecimento funcional e ergonmico que visa eficincia e

    produtividade se contrape uma lgica que possui caractersticas singulares e

    contextuais, levando-nos a repensar nossas relaes com o popular. So formas de se

    apropriar desse saber-fazer do arteso, no-cientfico, que no se expressa e no se

    transmite a partir de um discurso sistematizado.

    3 Podemos destacar o reconhecido trabalho dos irmos Campana, que utilizam bonecas de pano feitas por uma cooperativa de artess para formar uma poltrona (fig. 33) ou ralos plsticos de banheiro que colados uns aos outros, transformam-se em uma mesa.

  • 48

    Figura 32 Famlia tipogrfica intitulada

    Alfabeto Sertanejo, desenvolvida

    digitalmente por Virglio Maia a partir de

    marcas de ferrar gado do serto

    pernambucano.

    fonte tupigrafia 3, 2003. p. 42.

    Figura 33 Poltrona Multido, projetada

    pelos irmos Campana. O estofado

    composto de bonecas de pano produzidas por

    uma cooperativa de costureiras.

    fonte arc design, 2004, no 38. p. 23.

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    4. potncias do ilegvel embaixo[], a partir dos limiares onde cessa a visibili