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Título: O ensino de História na Escola Fundamental: Cadê a História daqui? ENGRACIA ALVES CARDOSO [email protected] Professora PDE - Área de História Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a possibilidade de utilizar o cinema e a história local no ensino de História, refletindo sobre as experiências de trabalho decorrente da Proposta de Implementação do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, desenvolvido na Escola Estadual Dona Macária – Ensino Fundamental, localizada no município de Conselheiro Mairinck, Estado do Paraná. Este artigo apresenta dois momento distintos da implementação da proposta: o resultado do trabalho como o filme Narradores de Javé e a oficina Cadê a história daqui? Palavras-chave: História local. ensino de História. cinema. Este texto apresenta reflexões sobre a possibilidade da utilização do filme e a história local no ensino de História, relatando experiências decorrentes de um projeto de capacitação do Governo do Estado do Paraná. Cabe salientar que os resultados aqui apresentados foram elaborados a partir de depoimentos, relatos, coleta de fontes históricas em arquivos familiares, escolares, públicos e particulares, além de fundamentação teórica. A opção pelo tema proposto justifica-se inicialmente pela possibilidade de produzir subsídios para reflexões acerca da história do município de Conselheiro Mairinck, apresentando elementos que além das evidências documentais, facilitem o acesso a versões produzidas por pessoas que vivenciaram fatos marcantes, mas na maioria das vezes passaram despercebidos pela história oficial. 1

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Título: O ensino de História na Escola Fundamental:

Cadê a História daqui?

ENGRACIA ALVES CARDOSO

[email protected]

Professora PDE - Área de História

Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a

possibilidade de utilizar o cinema e a história local no ensino de História,

refletindo sobre as experiências de trabalho decorrente da Proposta de

Implementação do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE,

desenvolvido na Escola Estadual Dona Macária – Ensino Fundamental,

localizada no município de Conselheiro Mairinck, Estado do Paraná. Este

artigo apresenta dois momento distintos da implementação da proposta: o

resultado do trabalho como o filme Narradores de Javé e a oficina Cadê a

história daqui?

Palavras-chave: História local. ensino de História. cinema.

Este texto apresenta reflexões sobre a possibilidade da utilização

do filme e a história local no ensino de História, relatando experiências

decorrentes de um projeto de capacitação do Governo do Estado do

Paraná.

Cabe salientar que os resultados aqui apresentados foram

elaborados a partir de depoimentos, relatos, coleta de fontes históricas em

arquivos familiares, escolares, públicos e particulares, além de

fundamentação teórica.

A opção pelo tema proposto justifica-se inicialmente pela

possibilidade de produzir subsídios para reflexões acerca da história do

município de Conselheiro Mairinck, apresentando elementos que além das

evidências documentais, facilitem o acesso a versões produzidas por

pessoas que vivenciaram fatos marcantes, mas na maioria das vezes

passaram despercebidos pela história oficial.

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Nesse sentido, procura-se dar voz às pessoas anônimas que

escondem em sua memória a essência de um passado recente.

Nossa preocupação maior foi oferecer aos alunos oportunidades

de entender a história da cidade através dos personagens vivos e ativos

da comunidade, sem enfatizar dados factuais presentes nos ditos

históricos do município.

Nessa perspectiva, importa salientar que aprendendo a partir do

que está mais próximo, utilizando linguagens diferenciadas, o processo

ensino-aprendizagem torna-se interativo, atrativo, dinâmico e prazeroso

para os alunos.

Este trabalho que foi desenvolvido, tendo em vista uma

abordagem teórico-prática, teve como principal propósito motivar

discussões sobre a história das cidades e o papel do historiador,

despertando no aluno um interesse sobre a história de sua própria cidade.

Percebi que o filme poderia constituir-se num recurso muito

válido, como chamamento dos alunos para o tema em questão. No

entanto, fiquei em dúvida quanto ao filme a ser utilizado. Minha

orientadora sugeriu Narradores de Javé1. Não poderia haver melhor

sugestão, pois esse filme desencadeou uma série de reflexões históricas

muito significativas, tornando-se assim, o fio condutor de todo meu

projeto, o qual culminou com a oficina “Cadê a História daqui?”.

É interessante observar que ao utilizar o filme no ensino de

História, não pude deixar de levar em conta a observação de Bittencourt:

Os filmes não são registros de uma história tal qual aconteceu ou vai acontecer, mas representações que merecem ser entendidas e percebidas não como diversão apenas, mas como um produto cultural capaz de comunicar emoções e sentimentos e transmitir informações. (BITTENCOURT, 2004, p.253).

1 Narradores de Javé (2003). Direção: Eliane Caffé. Elenco: José Dumont, Matheus Nachtergaele, Gero Camilo, Nelson Dantas, Rui Resende, Nelson Xavier, Luci Pereira, Jorge Humberto e Santos. Ao saberem que a cidade onde vivem (Javé), seria inundada para construção de uma usina hidrelétrica os moradores decidem preparar um documento que conte os fatos históricos do local, como tentativa de salvar a cidade da destruição.

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Não se pode deixar de concordar com a autora, tendo em vista

que o filme “Narradores de Javé” despertou nos alunos uma infinidade de

sentimentos, valores e emoções relacionadas ao contexto histórico

vivenciado.

A respeito do filme como fonte documental, Marc Ferro (1988),

um dos historiadores pioneiros mo emprego do filme como fonte histórica

afirma: “o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção,

intriga autêntica ou pura invenção, é História”.

Na visão de Ferro, o filme deve ser abordado não apenas como

uma obra de arte, mas também como um produto, uma imagem-objeto,

cujo significado estaria naquilo que testemunhou.

A esse respeito Le Goff alerta: o documento não é qualquer coisa

que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou

segundo as relações de forças que ai detinha o poder. E é o próprio Le

Goff (1987) que inspirado na noção de documento/monumento de Michel

Foulcalt, afirma: o documento é monumento. Resulta do esforço das

sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou

involuntariamente determinada imagem de si próprias.

A partir desses pressupostos, nossa proposta leva em conta o

fato do cinema apresentar valores culturais, políticos, sociais e morais,

revelando sentimentos e emoções, além de se constituir em ferramenta

de apoio fundamental.

É Napolitano (2003) que afirma: trabalhar com o cinema em sala

de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo

cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a

ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma

obra de arte.

Diante de tais considerações, cabe ressaltar que o primeiro

trabalho de que se tem notícia relativa ao valor do filme como documento

histórico data de 1898; foi escrito pelo câmera polonês Boleslas

Matuszewski e se intitula: “Um nouvelle source de l’histore: création d’un

depôt de cinematographie historique“. Ele defendia o valor da imagem

cinematográfica, que era por ele entendida como testemunho ocular

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verídico e infalível, capaz de controlar a tradução oral. Matuszewski (1983)

julgava que o evento filmado era mais verdadeiro que a fotografia, na

medida em que esta última admitia retoques.

A sétima arte, como também é conhecida o cinema nasceu na

França em 1875 com os irmãos Lumiére, que num café parisiense

reproduziram, numa grande tela para uma pequena platéia que observava

maravilhosa as imagens em movimento. Foram apenas dois pequenos

filmes, que retratavam a saída dos operários da fábrica Lumiére e a

chegada de um trem à estação, mas esse episódio mudaria pra sempre o

uso das imagens.

Sabe-se que no Brasil a história do cinema começou em 19 de

junho de 1896, com o cinegrafista italiano Alfonso Segreto que, ao voltar

da Europa a bordo do navio Brésil, filma a entrada na baía de Guanabara.

Depois, ele passa a realizar documentário juntamente com sue irmão

Paschoal Segreto, e ambos se tornam praticamente os únicos produtores

de cinema até 1903.

Por outro lado, a primeira referência sobre o cinema como fonte

para a história, a chegar ao Brasil foi o artigo de Marc Ferro intitulado “O

filme, uma contra análise da sociedade”, publicado na coletânea História:

novos objetos, cuja primeira edição é de 1976.

Um outro aspecto importante nos trabalhos de Ferro é sua

afirmação de que o filme é um agente da história, e não só um produto.

Ferro ressalta ainda que o cinema pode ser também um agente de

conscientização.

Essa afirmação de Ferro reforça o que tenho observado em sala

de aula, que a partir do trabalho com a história local e o uso do cinema

nas aulas de História, o ensino-aprendizagem adquire um novo significado,

despertando nos alunos o interesse e a reflexão crítica.

De acordo com Guerra e Diniz (2007), “os filmes podem ser

utilizados tanto para introduzir um conteúdo quanto para finalizar as

discussões acerca do mesmo. [...] é importante reservar um espaço para

que os alunos tenham a oportunidade de comentar [...] suas impressões

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diante das imagens apresentadas. [...] através do filme, pode ocorrer um

aproximação maior com fatos/momentos passados”.

No espaço aberto para discussões, argumentações e

questionamentos sobre o filme “Narradores de Javé”, os alunos

destacaram algumas frases e cenas provocativas que geraram

importantes reflexões: - “Qual é a história certa? É a que foi e não a que

conta?” – “Uma terra vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda

pelo que esconde?” – “Quando a gente mais precisa de tempo, ele voa”.

Numa turma de 7ª série, a cena do filme em que o personagem

Antonio Biá entrevista um líder de um grupo de quilombolas, facilitou meu

trabalho sobre a África e sua influência na cultura brasileira, paranaense e

mairinquense, no que tange a linguagem, costumes, danças e música. Um

grupo de alunos adeptos da capoeira solicitou que o filme fosse revisto,

pois queria aprender a música, a dança e “pegar” o ritmo dos tambores.

Outra constatação que chamou a atenção dos alunos foi o fato de

que todos queriam fazer parte da história de Javé e que cada entrevistado

apresentava uma versão diferente para o mesmo fato histórico. O trabalho

com o filme em sala de aula, demonstrou a importância que o cinema

exerce no ensino de História. No entanto, sabe-se que a introdução de

filmes nas salas de aula data dos anos oitenta e que ainda hoje, é uma

atividade utilizada na maioria das vezes, apenas como recurso ilustrativo,

sem nenhuma preparação prévia.

Diante dessa constatação, Fonseca (2004) faz um importante

alerta: [...] Com relação à operacionalização do trabalho em sala de aula,

acreditamos ser de extrema importância a preparação prévia do professor,

ou seja, ele deve ter domínio em relação ao filme e clareza total da

inserção do filme no curso, bem como dos objetivos e do trabalho a ser

realizado após a projeção.

A esse respeito Napolitano completa:

Fomentar o interesse e uma postura crítica nos alunos são premissas para o professor de História [...] sempre haverá uma análise a ser feita, e por traz desta, um objetivo a ser alcançado pelo professor, que deve ter [...] sempre em mente um conjunto de objetivos e metas a serem atingidos. (NAPOLITANO, 2003, p. 79)

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Nesta perspectiva, não se trata de exigir do professor que se

torne um crítico profissional, mas que adquira algumas informações

básicas que tornarão seu trabalho em sala de aula muito mais produtivo.

Fica evidente a partir do exposto, que cabe ao professor,

enquanto pesquisador, buscar subsídios que amplie sua visão e

proporcione ao aluno a compreensão de sua realidade e do contexto

histórico em que ela se acha inserida.

Assim, torna-se relevante atentar para a seguinte observação: “É

necessário que o professor tenha objetivos pedagógicos bem definidos

quando resolve usar o vídeo. É importante que [...] escolha um vídeo

adequado à matéria estudada.” (LEITE,1997, p. 74).

Considerando tal afirmação, pode se dizer que, quando decidi

trabalhar a história local, procurei seguir recomendações metodológicas

acerca do uso da linguagem fílmica em sala de aula, tomei a iniciativa de

utilizar o filme na íntegra, dividindo-o em duas partes para não se tornar

cansativo.

Tendo em vista a clareza quanto ao objetivo proposto, elaborei

um roteiro procurando enfatizar os elementos essenciais que seriam

focados antes, durante e após a exibição do filme.

Com o intuito de não dispersar a atenção, recomendei que num

primeiro momento não fossem realizadas anotações, assegurando-lhes

que no momento oportuno o filme poderia ser revisto e se faria as

anotações consideradas necessárias.

Atendendo solicitações de alguns alunos, antes de iniciar a

sessão, passei algumas informações gerais sobre o filme. Durante a

exibição fiz algumas pausas rápidas pra observações, comentários e

esclarecimentos. Também houve pedidos para algumas cenas e falas

consideradas duvidosas.

No final de cada parte do filme, após reflexão, questionamentos e

comentários, os alunos reuniram-se em pequenos grupos para trocar

idéias, discussão de questões referentes ao filme: as idéias percebidas nos

diálogos, o que representam os personagens, os valores que merecem

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destaque, as semelhanças e diferenças entre a cidade de Javé e a cidade

de Conselheiro Mairinck.

Na intenção de aproximar o aluno da realidade vivenciada pelos

personagens ofereci oportunidade para simulações, comparações, através

de indagações:

- Como você sentiria/agiria se soubesse que sua cidade seria

inundada para a construção de uma usina hidrelétrica?

Na seqüência propus um tempo para que pudessem discutir

comentar, argumentar e anotar as impressões e sentimentos diante das

imagens e fatos apresentados. Em decorrência desse trabalho realizado,

percebi uma infinidade de possibilidades pedagógicas propiciadas pela

utilização de filmes no ensino de História.

A análise desse filme, cuja trama vivenciada pelos moradores de

Javé gira em torno do resgate da história da cidade, a qual para salvar-se

de uma eminente inundação, precisa de um documento histórico,

despertou nos alunos a preocupação quanto a deficiência de fontes -

históricas referente a cidade de Conselheiro Mairinck.

Considerando que a utilização de filme no ensino de História traz

resultados satisfatórios, é bom lembrar da afirmação de Monterde (1986):

O cinema se converteu, por méritos próprios, num arquivo vivo das formas

de passado ou, por sua função social, em um agudo testemunho de seu

tempo e como tal, em um material imprescindível para o historiador que

assim queria olhá-lo e utilizá-lo.

A afirmação de Monterde nos impele a apresentar pequenos

trechos das anotações feitas pelos alunos após a sessão do filme

Narradores de Javé.

− [...] Para ser salvo da inundação o vilarejo de Javé precisava de uma

história escrita. Biá não conseguiu escrever absolutamente nada! Mas

escrever o que? Eram tantas e distintas histórias. Além do mais cada

pessoa entrevistada apresentava uma versão diferente sobre a origem

de Javé; todos se colocavam como personagem principal da história [...]

mas que fique bem claro: Javé não tinha uma história concreta, mas

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todos os que um dia foram seus habitantes tinham construído, cada

um, uma história de Javé. (Géssica Souza da Silva, 8ª A)

− [...] Javé seria inundada para a construção de uma hidrelétrica, a

menos que tivesse um documento científico, comprovando sua origem.

[...] O povo era analfabeto, coube a Biá o dever de escrever a história.

Ele ficou confuso, pois cada entrevistado contava uma história

diferente sobre o fundador de Javé, Indalécio. [...] Algumas pessoas

foram embora; outras insistiram em ficar e salvar a cidade onde seus

mortos estavam enterrados. [...] Se acaso acontecesse isso com minha

cidade que eu amo de paixão, sinceramente não sei o que faria; acho

que morreria de tristeza. ( Thais Mikaela, 8ª A).

− [...] A história de Javé estava apenas na cabeça das pessoas. Então

chamaram Biá para passar pro livro. Nas entrevistas foi a maior

confusão, alguns queriam aparecer mais que o outro no livro [...] Até

que a cidade foi inundada. Sobrou só o sino que fazia parte da história,

porque anunciava todos os acontecimentos da cidade. Conclusão: eu

achei que o filme mexe muito com a cabeça da gente, porque se fosse

minha cidade, minha reação seria desesperadora e triste, mas um dia

quem sabe eu ia me conformar, pois essa é a realidade de várias

cidades hoje em dia, destruídas não só pela água do progresso, mas

por terremotos, guerras e muito mais [...] Graças a Deus que isso não

acontece aqui. (Mariane, 8ª A)

Sem dúvida, os trechos acima citados reforçam o que aqui já foi

dito a respeito da diversidade de estratégias decorrentes da exibição de

um filme.

Nesse aspecto, na execução deste projeto procurou-se levar em

conta o comentário do historiador francês Marc Ferro: [...] considerar as

imagens tais como são com a possibilidade de apelar pra outros saberes

para melhor compreendê-los. (1997, p.203)

Partindo de tais constatações, percebeu-se que na exibição do

filme houve uma identificação muito forte dos alunos com os moradores

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de Javé, no que diz respeito aos costumes, modo de vida, paisagens,

sentimentos. Em suma, a história de Javé despertou nos alunos o interesse

por outras histórias, por sua própria história, tanto que numa das

discussões sobre o filme, uma frase chamou a atenção da turma: “Como

juntar as histórias que estão “espaiadas” na cabeça do povo?“ Um dos

alunos sugeriu que saíssemos pela comunidade “caçando histórias”.

“Então não pensei duas vezes e concordei: é isso mesmo que vamos fazer,

vamos juntar as histórias ‘ espaiadas” na cabeça do povo mairinquense e

passar para o papel!

Eis aí o segundo foco do nosso projeto: organizar uma oficina

onde pudéssemos realizar um levantamento da história de

Conselheiro Mairinck.

Considerando que a sala de aula é um dos espaços onde os

saberes são construídos, a oficina: Cadê a história daqui?” surgiu como

ferramenta capaz de entre outras possibilidades, exercitar a pesquisa, a

análise, a investigação, a reflexão, a argumentação e a vivência do povo

mairinquense.

Inicialmente nossa intenção era trabalhar com alunos de 6ª série,

conforme o estabelecido no projeto de implementação, mas, em virtude

do interesse demonstrado por alunos de outras séries, inscrevi na oficina

alunos de 5ª a 8ª séries, do período da manhã, da Escola Estadual Dona

Macária – EF.

A oficina teve duração de dezesseis horas, assim distribuídas:

1º momento – em grupo os alunos analisaram fotos da cidade, do

ano de 1968. Cada grupo escolheu seis fotos consideradas interessantes.

Com a ajuda do mapa da cidade e de pontos de referência, identificaram o

lugar fotografado. Na visita in loco, foram tiradas fotografias procurando

focalizar o mesmo ângulo da foto antiga. Após montagem de painel com

fotografias antigas e atuais os alunos foram instigados a refletir e discutir

sobre as mudanças e permanências e as alterações do espaço que

influenciaram a história da cidade.

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2º momento – realização de levantamento de dados da história

local em arquivos familiares, religiosos, escolares, prefeitura municipal,

câmara municipal, cartório.

3º momento – coleta de depoimentos, relatos, causos, objetos e

fotografias antigas. Alguns depoimentos e entrevistas foram colhidos na

sala de aula, outros na residência do depoente ou no local de trabalho.

Houve casos em que o depoente quis falar no banco da praça e até em

frente ao bar mais antigo da cidade.

4º momento – organização de uma exposição de fotografias,

documentos, depoimentos, objetos antigos e representação teatral dos

causos, manifestações populares, uso e costumes da comunidade

mairinquense, na década de 60. Essa atividade foi aberta para toda escola

e comunidade.

Os momentos retratados nos fizeram refletir que, entender a

história da cidade através dos personagens vivos e ativos da comunidade,

faz com que as transformações sociais, sejam apreendidas com mais

profundidade. É nesse sentido que as autoras e Schmidt e Cainelli fazem

uma afirmação muito apropriada:

O trabalho com documentos históricos podem ser ponto de partida para a prática de ensino da História, [...] os documentos não serão tratados como fim em si mesmo, mas deverão responder às indagações e às problematizações de alunos e professores com o objetivo de estabelecer um diálogo como o passado e o presente, tendo como referência o conteúdo histórico a ser ensinado.( SCHMIDT e CAINELLI, 2004, p.95)

A afirmação das autoras é reforçada a partir da seguinte fala: A

diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o

homem diz ou escreve, tudo o que constrói, tudo o que toca, pode e deve

fornecer informações sobre eles.

Observa-se dessa forma que quando o aluno de maneira

consciente e crítica compreende a história que o construiu, tem a

tendência de ampliar seus horizontes de pesquisa e com maior

intensidade reconstrói a sua identidade, passando da oralidade para os

registros documentais.

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Portanto, a partir do momento que o educando torna-se partícipe

do processo ensino-aprendizagem, o resgate da identidade de sua

comunidade, começa a aprofundar-se, como bem nos esclarece Mendes,

2004:

[...] trazendo à tona acontecimentos, atores e lugares comuns ao estudante faz com que este se aproxime da disciplina, percebendo a relação dialética entre o passado desconhecido e o presente tão próximo. Pode-se a partir desse ponto, estabelecer uma problematização que estimule o aluno a sair da curiosidade ingênua, conduzindo-o a um conhecimento crítico da realidade. (MENDES, 2004, p. 17)

No que diz respeito ao exposto, é interessante observar que

nossa preocupação no decorrer deste projeto, foi privilegiar a memória

escrita ou recuperada pela oralidade, tomando o devido cuidado de não

reproduzir a história oficial. Direcionamos nossa pesquisa, como já foi

visto, aos arquivos familiares, públicos, religiosos, escolares e particulares,

investigando o perfil da memória histórica ali construída, questionando

dados e fatos, apontando novas fontes, possibilitando que pessoas

comuns passem a serem vistas como sujeitos históricos.

Durante a realização da oficina Cadê a história daqui?, os alunos

demonstraram grande interesse a respeito dos personagens da história

local, queriam saber por exemplo: quem foi Conselheiro Mairinck e Maria

Souza? A que se deve a mudança do nome do patrimônio de Maria Souza

para Conselheiro Mairinck?

Tais questionamentos são muito comuns são só entre os alunos,

mas também na comunidade mairinquense.

Na seqüência, apresento um trecho do histórico da cidade de

Conselheiro Mairinck considerado como fonte histórica oficial, coletado na

prefeitura municipal:

“Conselheiro Mairinck teve sua origem por volta da década de 20,

tendo como primeira moradora uma anciã viúva por nome de Maria Souza,

a qual ignoramos de onde, supõe, porém que veio do estado de São Paulo

ou Minas Gerais, residia numa choupana construída de ripões e coberta de

taboinhas de piso de chão batido. Originando-se o nome do pequeno

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povoado de Patrimônio da Maria Souza, em homenagem a primeira pessoa

a residir na região, cujo nome ficou muito conhecido na região, até hoje

muitos ainda a conhecem por “Souza”.

O nome de Patrimônio de Maria Souza somente desapareceu

quando pela Lei 790, de 14 de novembro de 1951, foi elevado à categoria

de Distrito Judiciário, tomando o nome de Conselheiro Mairinck, originado

pela grande posse de terra na região, pertencente à família de Francisco

de Paula Mairinck, residente no Rio de Janeiro. “Posteriormente, sua filha

D. Maria José Paranhos Mairinck, doava uma quadra a Cúria Diocesana,

onde foi construída uma tosca igreja de madeira coberta de telhas”.

Os dados acima (transcritos na íntegra) foram coletados na

Prefeitura Municipal de Conselheiro Mairinck e se constitui na única fonte

oficial da história do município.

Após análise desse documento surgiram muitos

questionamentos: quem elaborou o histórico? Em que contexto? Qual

finalidade? Quais as fontes utilizadas? Porque as informações a respeito de

Maria Souza são tão vagas? Afinal, consta no histórico que ela era muito

conhecida até na região. E quando o autor do texto fala sobre a região

passa a impressão de que há um equívoco do que venha a ser essa região.

Seria uma referência ao município ou seria mais abrangente?

Outro personagem muito polêmico é o Conselheiro Francisco de

Paula Mairinck: quem foi afinal? A grande posse de terra na região justifica

tal homenagem? Em quais outros municípios da região e até do Brasil ele

teria latifúndios? Parece ser uma figura importante no meio político do Rio

de Janeiro, mas onde buscar tal informação?

Torna-se evidente, a partir de tais questionamentos que nossa

função como professor de história é rever tais documentos com um olhar

investigativo, instigando o aluno a “ler nas entrelinhas”, desconstruindo,

construindo, reconstruindo um novo saber histórico.

Entre os documentos levantados na prefeitura municipal e nas

pesquisas do professor Otto Leão E. Paasche, primeiro diretor da Escola

Estadual Dona Macária, encontrou-se na capa de uma revista, além do

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retrato, a biografia do Conselheiro Francisco de Paula Mairinck a qual

passa a ser transcrita na íntegra:

“O Conselheiro Mairinck, nasceu na praia do Saco do Alferes,

cidade Nova, a 08 de dezembro de 1839, foi elevado à pia de batismo a 2

de janeiro de 1840, na capela do Menino Deus, na Matriz de Santa Rita.

Filho do vereador José Carlos Mairinck e Dona Maria Emília Bernardes, era

irmão do Visconde de Mayrinck (João Carlos) e de Dona Clara Margarida

Mayrinck Rebello. Sobrinho da marquesa de Itamaraty e da baronesa de

Alegrete. Estudou na escola Militar de Porto Alegre, já aos 14 anos, e na

Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foi diretor do Banco comercial do Rio

de Janeiro, presidente da Estrada de Ferro Sorocabana. Faleceu a 31 de

dezembro de 1906 na cidade do Rio de Janeiro e foi sepultado a 01 de

janeiro de 1907 no cemitério de São Francisco Xavier”, no Rio de Janeiro.

Como já afirmamos a análise do histórico do município foi alvo de

vários e importantes questionamentos, estimulando novas pesquisas junto

a moradores antigos, lideranças políticas da época, cartórios (Conselheiro

Mairinck, Jaboti e Tomazina), livro tombo da Paróquia Sagrado Coração de

Jesus de Conselheiro Mairinck, Mitra Diocesana de Jacarezinho.

Nessa busca muito pouco foi encontrado. O livro tombo da

Paróquia faz algumas referências à família do Conselheiro Mairinck e

apresenta a mesma informação, contida no histórico municipal, sobre

Maria Souza. No entanto, nas discussões provocativas da oficina, ficou

muito evidente que embora a história oficial não tenha registros sobre

Maria Souza, ela era na realidade muito popular. Alguns depoentes

afirmam que ela era benzedeira, outros que era parteira, como é o caso de

dona Amélia, que afirma que dona Maria Souza teria realizado o parto do

qual ela nasceu.

Outro fato que chamou atenção durante a pesquisa, foi a

constatação pelo grupo de que ainda hoje, principalmente na zona rural

do município, um número elevado de pessoas referem-se a cidade de

Conselheiro Mairinck, pelo antigo nome “Souza”. Isso acontece com tanta

naturalidade que as pessoas nem se dão conta do fato.

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Em função das constatações descritas, tornam-se conveniente

salientar a afirmação de Ecléa Bosi (1994): A memória não é oprimida

apenas porque lhe foram roubadas suportes materiais [...], porque outra

ação mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial

celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição

dos vencidos [...]

Tal ponto de vista pode ser completado por Jacques Le Goff

(1992), o qual afirma que a verdadeira função dos historiadores deve ser

“trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não

para a servidão dos homens”.

Por conseguinte, cabe a nós professores/pesquisadores, utilizar

de diversas metodologias, fonte e linguagens, visando a produção do

conhecimento histórico. Segundo Schmidt e Cainelli (2004), “ensinar

história é construir um diálogo entre o presente e o passado, e não

reproduzir conhecimentos neutros e acabados sobre fatos que ocorreram

em outras sociedades e outras épocas”.

Para tanto, o ensino da história local, que trata das

especificações das localidades, tem uma grande importância, pois ele

pode de diferentes formas produzir junto aos alunos uma história que

parta de um acontecimento ou de um cotidiano que eles conhecem,

sempre relacionado aos fatos e acontecimentos nacionais e universais.

A esse respeito constatei nas discussões da oficina, que os alunos

relacionavam com tamanha facilidade fatos colhidos na comunidade, com

os acontecimentos mais amplos. Um grupo de alunos, analisando fotos de

jovens mairinquenses na praça da cidade e, num desfile cívico, no ano de

1968, percebeu no corte do cabelo, nas roupas e nas atitudes, a influência

do movimento jovem guarda, do Regime Militar e do capitalismo

americano.

Cabe aqui salientar a afirmação de Hofling (2008): a reconstrução

da história de um local é trabalho amplo, desencadeia um conjunto de

forças no imaginário individual e coletivo de todos.

Outro autor que enfatiza a afirmação acima é Jungblut:

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[...] A História local propicia ao pesquisador uma idéia muito mais imediata do passado, permitindo que a memória nacional possa ser encontrada ou re-encontrada, ouvida, lida nas esquinas, nas ruas, nos bairros. Fazer História local é estabelecer relações entre a micro e a macro história; é privilegiar o particular, sem desprezar o geral, numa complementação entre ambas. (JUNGBLUT, 2008, p.44):

O mesmo autor ainda ressalta que: [...] A História local deve

enfatizar a existência de uma multiplicidade de tempos históricos que

convivem concomitantemente na realidade de um mesmo país – ou de

uma região. (JUNGBLUT, 2008, p.42)

Considerando tais pressupostos, torna-se evidente que a história

local deve abordar muito mais do que simplesmente os acontecimentos

históricos oficiais, levando em conta outras fontes, como relatos orais,

depoimentos, acervo fotográfico, revistas, entre outras.

Essas fontes ajudam o aluno a repensar o presente, valorizar o

passado e questionar seu papel no contexto histórico em que vive.

Na minha opinião, uma das maiores “descobertas” dos alunos

envolvidos na oficina foi o resgate da história do “Cine Santa Catarina”.

Além de depoimentos, trouxeram para a exposição cadeiras do cinema,

auto-falante, fitas. Foi realmente emocionante ouvir a história do cinema

local, sendo contada por um aluno, normalmente muito tímido, mas muito

à vontade para imitar a voz usada na “chamada”, que era feita pelo

Senhor Ogg, proprietário do cinema: “Essa é a voz do Cine Santa Catarina,

anunciando para hoje mais uma grande atração cinematográfica: “O Jeca

e a freira”, com Mazzaropi”.

O depoente que na época era auxiliar do Senhor Ogg, forneceu o

material necessário e orientou o grupo de alunos sobre a maneira como

tudo funcionava.

Um outro depoimento que chamou muito a atenção dos alunos,

foi do Senhor Silvio de Oliveira Manata. Ele é filho de portugueses. Sua

família veio pra Conselheiro Mairinck no ano de 1957, para trabalhar na

lavoura, denominada “safra”. Explicou como funcionava esse sistema que

segundo se percebe nos depoimentos, foi a base da economia do

“patrimônio Maria Souza”.

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Afirmou que é aposentado, mas que tem muito orgulho de sua

profissão de sapateiro. Ele levou para a sala instrumentos que utilizava na

fabricação de calçados, demonstrando na prática como era seu trabalho.

Num trecho do depoimento ele afirma [...]. Deixei de ser sapateiro porque

o povo do sítio foi embora para a cidade e o movimento acabou [...] eu

fazia bota, botina de roça, sapato de passeio.

Após a entrevista levei os alunos a refletirem sobre como as

mudanças ocorridas no Brasil, no mundo e no estado podem interferir no

cotidiano das pessoas. Esse movimento migratório citado pelo depoente, é

confirmado pelo Censo Demográfico do Paraná 1970 (IBGE), sendo que a

população mairinquense nesse ano era constituída por 6552 habitantes

caiu para 3554 habitantes, no ano de 2007.

Nesse contexto, as autoras Schmidt e Cainelli nos chamam a

atenção para importância da história local: “O estudo com a história local

ajuda a gerar atitudes investigativas, criadas com base no cotidiano do

aluno, além de ajudá-lo a refletir acerca do sentido da realidade social“.

(SCHMIDT E CAINELLI, 2004, p.113)

Ainda sobre essa questão, as autoras afirmam: ”O trabalho com a

história local pode ser instrumento idôneo para a construção de uma

história mais plural, menos homogênea, que não silencie a multiplicidade

de vozes dos diferentes sujeitos da história”. (SCHMIDT E CAINELLI, 2004,

p.113)

Minha preocupação com a história local não é recente, sendo que

nesses trinta anos de docência, sempre instiguei tal pesquisa,

especialmente sobre conselheiro Mairinck, onde resido desde março de

1963. Meu avô paterno decidiu vir para cá na ânsia de possuir mais

terras,pois ele sempre afirmava:” ouvi falar de uma região do Paraná onde

há muita terra fértil e barata”. “Assim, fiz parte de uma das “leva” de

paulistas que veio para o norte Pioneiro atraídos pela propaganda, que

segundo Schmidt, foi feita, até boca a boca”. (SCHMIDT, 1996, p. 73)

No ano de 2004, atendendo solicitação do NRE de Ibaiti, eu, em

parceria com a professora de Geografia, fiz uma pesquisa sobre a história

da Educação do município de Conselheiro Mairinck. “Esse trabalho

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privilegiou em grande parte a história oral, de maneira que na oficina’”

Cadê a história daqui?”, utilizei dois depoimentos considerados relevantes

na história local. Vejamos:

1. No depoimento do primeiro cartorário da cidade, Senhor Dario

do Nascimento, percebe-se a riqueza do passado, que ficou tão vivo em

sua memória.

“Em 15 de outubro de 1946, data em que cheguei nesta cidade, o

patrimônio se denominava Maria Souza; tinha umas quinze ou vinte casas

de madeira, uma igreja pequena [...]. A fundadora foi Dona Maria Souza.

[...] O nome de Conselheiro Mairinck originou-se do Conselheiro Francisco

de Paula Mairinck [...] parte das terras passou a pertencer ao espólio de

Maria José Paranhos Mairinck, sendo inventariada passou aos herdeiros

Celina Mairinck e Guiomar Mairinck Lessa. Algumas terras foram vendidas

ao Dr.Marins Alves de Camargo e este por meio de procuração loteou os

terrenos em pequenas áreas que foram plantadas as lavouras de milho,

feijão, arroz, café. Em virtude da família Mairinck, foi dado o nome às ruas:

Dr. Marins de Camargo, Dona Celina,Dr. Rui de Camargo, Dr, Natel de

Camargo, estes residentes em Curitiba.

Os pioneiros que desbravaram a região foram: Antonio Valério,

Estevão Bueno, Inácio Lírio da Cruz (Inácio Paulista), Pedro Sebastião de

Oliveira e outros. ( transcrito na íntegra) Depoente Dario Mauricio do

Nascimento – 75 anos falecido em agosto de 2005).

Este depoimento esclareceu muitas dúvidas, principalmente

sobre os nomes das ruas, que a população mairnquense desconhecia.

2. [...] O povoado hoje denominado Conselheiro Mairinck, iniciou-

se com um aglomerado de uns poucos ranchos, onde num desses ranchos

morava uma anciã de idade avançada que se chamava Maria Souza. [...]

os ranchos existentes era de safristas, isto é, de pessoas que faziam roças

pra engorda de porcos.[...] as terras da região pertencia à família

Paranhos Mairinck, cujas terras somava muitos alqueires. [...] tendo como

ponto atrativo o Rio das Cinzas, e a fertilidade da terra foi atraindo muita

gente para o local. [...] as primeiras famílias que vieram alojar nestas

paradas foram: o velho Estevão, Antonio Valério, Joaquim Jardim, Decílio

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Domingues, Pedro Sebastião, Francisco Rodrigues e Dona Macária,

Lourenço Nunes. Mais tarde vieram as famílias Ferreira, Vitorino Daniel e

outros. [...] foi eleito por sufrágio de votos o senhor José Feliciano Santana

[...] o município de Conselheiro Mairinck pertenceu à comarca de

Tomazina, mais tarde passou a pertencer à comarca de Ribeirão do Pinhal,

atualmente pertence à comarca de Ibaiti. Há de se notar que nas décadas

de 1962/64 o município era estimado em 7000 habitantes, constava mais

ou menos 400 propriedades rurais. Com a entrada dos grandes

fazendeiros, os pequenos sitiantes sentiram-se oprimidos e foram

vendendo suas propriedades, e os fazendeiros foram se alastrando. Hoje

em dia não tem nem 200 propriedades e o povo reduziu para menos de

4000 habitantes. Portanto, o município está nas mãos de uma dúzia de

fazendeiros. (Clarindo Rodrigues de Souza, funcionário público municipal

aposentado – 83 anos – falecido em fevereiro de 2008).

É interessante observar nos depoimentos, que apesar de haver

divergências sobre determinados fatos, referentes à origem e fundação da

cidade, existem outros que se identificam e se assemelham.

Nota-se que existem divergências quanto à fundadora Maria

Souza, no que diz respeito à origem da mesma, seria mineira ou paulista?

Há também muitas versões sobre o local do rancho de Maria Souza, e,

quanto aos filhos que teve.

Quanto aos primeiros moradores há unanimidade entre os

depoentes, os quais ofereceram valiosas fontes que farão parte de nosso

acervo histórico.

A respeito das fontes, Peter Burke nos lembra:

a evidência oral, a fotografia, as imagens em geral estão quase atingindo a sofisticação da crítica do documento escrito. O importante é ressaltar o valor, especialidades e limitações das fontes, cabendo aos historiador/professor de história, mediante o seu tema e sua problemática, selecioná-las e interpretá-las adequadamente. Elas se completam, e dependendo da pesquisa, certas fontes podem ser mais “preciosas” do que outras. O problema está em como trabalhá-las, independentemente de serem escritas, orais ou visuais (BURKE, 1992, p. 23).

Dentro dessa perspectiva de Burke, nosso projeto trará um novo

olhar sobre a História da cidade de Conselheiro Mairinck. A qual passa a

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partir de agora ter um novo significado, podendo ser analisada a partir de

vários pontos de vista.

Levando em conta que nosso município está prestes a completar

47 anos de emancipação política, no trabalho com a oficina, selecionamos

depoentes a partir de 60 anos de idade. Tínhamos perguntas previamente

preparadas, mas procuramos deixar o depoente à vontade para trazer à

tona suas lembranças.

Muitas vezes as respostas do depoente, estimulavam os alunos a

questionarem fatos não previstos em nosso planejamento, tornando o

depoimento muito mais proveitoso e interessante.

Os alunos demonstraram curiosidade a respeito dos causos,

costumes, lazer e festas. Selecionamos alguns trechos de causos,

considerados engraçados, que foram representados pelos alunos:

− [...] quando morria alguém às vezes era levado em rede. Batia o sino

da capela e todos se perguntavam: 'toque de morte, quem morreu? E

todos iam pra igrejinha pra ver o defunto. Certo dia o caixão estava

colocado em cima do banco e todos se acotovelavam em volta do

caixão. Eu convidei a todos pra rezar o terço. De repente um homem

desmaiou em cima do caixão, o defunto revirou do caixão e algumas

pessoas assustadas gritaram: “o falecido viveu”. Foi tamanha correria,

os que estavam dentro da capela queriam sair, os que estavam fora

queiram entrar para ver o que estava acontecendo, Na correria um

homem de bota pisou no meu pé, arrancou a minha unha...[..] foi um

susto danado e muita dor . (Maria Calila – professora - 61 anos).

[...] Certa vez um time veio de longe jogar bola aqui. Eles andaram

umas doze léguas a cavalo. Tudo ai bem, até que um senhor que

estava perto do gol começou a picar fumo com um canivete pontudo.

Um jogador chutou a bola com força, ela bateu na ponta do canivete e

estourou. O jogo acabou pois não tinha outra bola (Geni Marques –

dona de casa – 74 anos).

[...] Antigamente os casamentos eram realizados no cartório de Jaboti,

e, na Igreja era feito na época das festas, que era quando, os padres

capuchinhos vinham de Tomazina [...] certa vez ia ter um casamento,

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prepararam aquela festança. No dia do casamento, choveu pra daná e

o rio encheu que dava medo. Ai a coisa ficou feia, os noivos não

queriam mudar a data do casamento, pois estava tudo pronto, passar

no rio daquele jeito era perigoso. Tinha um sujeito muito corajoso, e

bom cavaleiro que falou: vamo dá um jeito nisso, eu passo o rio a nado

com meu cavalo, trago o juiz de paz até a beira do rio, e vocês esperam

na beira do rio do lado de cá. Assim foi feito: o juiz de paz gritava do

lado de lá do rio: o senhor fulano de tal, aceita a senhora fulana de tal

como sua esposa? O noivo todo animado gritava: aceito. Depois fez a

mesma pergunta pra noiva, que gritou apressadinha: aceito, sim

senhor. Então declaro casados e quando a enchente passar vão lá em

Jaboti assinar o livro.[...] foi uma festança daquelas.

(José Ferreira (Juquinha))

[...] naquele tempo a família Marins de Camargo tinha mais de 5 mil

alqueires de terra por aqui. Era uma fazenda de arrendo. O falecido

Pedro Sebastião, é que cuidou de tudo durante muitos anos. Depois a

fazenda foi loteada e as pessoas faziam safra de porco. Quando alguém

ia atrás de um lote, eles falavam: “acha uma água onde você possa

fazer o rancho, põe as marcas e aí pode derrubar a mata e fazer safra”.

Essas terras que hoje são do Nei Minardi, José Henrique, Vicente Café,

era tudo da família Mairinck. Existia muito safristas, mas só me lembro

do Pedroso e da família do Dédi que eram grandes safristas [...] Era

tanto porco que às vezes tinha que ser colocado marca. [...] Mais ou

menos até lá por 1954, a safra de porco dominava.[...] mas depois

começou a safra de feijão e algodão, aí já foi mais os paulistas e os

mineiros. É, mas também veio muito nordestino trabalhar aqui nas

lavouras e serrarias. Vocês mesmo conheceu o Dario, o cartorário, era

nordestino e o José Batista, que chegou a ser o 1º prefeito daqui de

Conselheiro, era nordestino também [...] Da Maria Souza sei pouca

coisa, não sei se veio de Jaboti ou de Siqueira Campos, lá pelos anos de

1944. O rancho dela era onde hoje mora seu Abílio. O comércio era

fraco e vendia a prazo, com o pagamento no fim da safra. (José

Rodrigues dos Santos -Zé Rita – sitiante 76 anos).

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[...] Eu me chamo Messias de Siqueira, tenho 73 anos, nasci em Jundiaí

do Sul – Paraná. Vim para Conselheiro Mairinck com dois anos de idade.

Meus pais vieram em 1913, da cidade de Natércia, Sul de Minas Gerais

para a cidade de Jaboti. A viagem durava 30 dias e o meio de

transporte usado era o cargueiro, puxado por animal. Em 1914 minha

família mudou para a cidade de Jundiaí do Sul, onde permaneceu até

1932, quando vieram definitivamente para Conselheiro Mairinck, bairro

dona Macária. Meu pai se chamava Francisco Aniceti de Siqueira e

minha mãe Macária Custódio da Silva (patrona da Escola Estadual dona

Macária). Aqui em Conselheiro, antiga Souza, só existia uma venda do

Senhor Valério. A igreja era de madeira. O padre na época vinha da

cidade de Tomazina duas vezes no ano, no mês de janeiro na festa de

São Sebastião e em junho na festa de Nossa Senhora de Santa Ana. Os

casamentos eram realizados na igreja com essas vidas do padre, e no

civil era feito em Jaboti. Não havia cadeia, quando brigavam eram

amarrados nos coqueiros até o dia seguinte. Quando ainda não existia

escola pública, lá pelo anos de 1940, havia um professor itinerante

conhecido por José Rosa, que lecionava pra os filhos dos fazendeiros e

de alguns agregados. (Messias de Siqueira- sitiante – 74 anos).

Alguns fatos importantes assinalados nos depoimentos transcritos:

Muitos depoentes vieram de Minas Gerais para Siqueira Campos, Jaboti

e depois Conselheiro Mairicnk.

Vários depoentes citam o professor itinerante José Rosa, que pelo que

consta era uma espécie de professor particular, que percorria as

fazendas à cavalo, alfabetizando os filhos dos que podiam pagar e dos

empregados das fazendas. Ficava de dois a três meses em cada local.

A referência ao sistema de safra é apontada na maioria dos

depoimentos sendo segundo Ruy C. Wachowcz: [...] no início do século

XX a suinocultura passou a ser atividade dominante [...] a grande

produção de suínos no Norte Pioneiro atraiu a atenção dos grandes

frigoríficos brasileiros [...] o sistema empregado na criação de porcos

era o da safra (WACHOWCZ, 1987, p.96-98).

21

Êxodo rural e queda do número de habitantes.

Número elevado de fazendas, em detrimento de pequenas

propriedades.

Analisando os depoimentos e relatos até o momento descritos,

vislumbra-se, que o Projeto de Implementação do Programa de

Desenvolvimento Educacional – PDE comprovou que é possível construir a

consciência histórica dos alunos e da comunidade envolvida nessa

experiência com a história local.

Galzerani (1998), ao justificar a importância da história local, se

reporta ao filósofo Walter Benjamim:

[...] no momento atual, em que se aceleram os processos culturais globalizantes, as tradições locais tendem a desaparecer. [...] Os homens têm perdido a sua dimensão temporal e cultural, para assumir um comportamento homogeneizador, que afeta as suas sensibilidades, os seus gostos, os seus traços culturais. (GALZERANI, 1998, P 37)

A memória, a tradição e as experiências vividas estão presentes

em cada etapa dessa pesquisa. Alguns trechos de depoimentos de alunos

que participaram do projeto, falam por si mesmo:

- [...] no mês de maio eu e meus colegas participamos da oficina: Cadê a

história daqui?”Fizemos uma pesquisa muito interessante sobre o passado

de Conselheiro Mairinck [...] descobrimos que antigamente onde hoje é o

Bar do OGG funcionava um cinema, chamado “Cine Santa Catarina”,[...]

fizemos uma exposição de fotos e objetos antigos. Comparamos o ontem e

o hoje. Foi muito interessante, legal mesmo, pois as fotos, os objetos e

recordações antigas que antes não tinha valor, hoje são considerados

como “símbolos” do passado de nossa cidade.[..] passamos um pouco do

que aprendemos, um pouco do nosso conhecimento, para outras pessoas

que ainda não tinham essas informações . Adorei participar dessa oficina,

porque descobri coisas que eu nem imaginava sobre minha cidade. (Thais

Mikaela - 8ª)

- [...] eu quis participar dessa oficina como intuito de aprender mais sobre

Conselheiro Mairinck, Nós da 8ª série já fizemos esse trabalho com a

professora Engracia, a oficina foi uma continuação do trabalho. [...] com a

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oficina redescobrimos a história daqui, aprendemos a valorizar nossa

cidade. Por mais pequena que ela seja, é rica em histórias importantes e

engraçadas. [...] durante a oficina saímos para entrevistar pessoas, tirar

fotografias para comparar com as antigas que a professora tinha [...]

vimos que nos anos que passaram a cidade teve várias mudanças.[...] a

exposição foi muito legal mesmo e muito visitada.[...] na minha opinião

essa oficina deveria ter mais vezes, para que mais pessoas conheça a

verdadeira história de Conselheiro Mairinck, contada por pessoas antigas

[...] hoje posso dizer que agora sei a nossa história e tenho certeza que

todos que participaram da oficina se encantou com tudo que aprendeu

(Andreia Maria dos Santos 8ª A).

Este trabalho baseado em dados e recursos conseguidos com

depoimentos, coleta de informações da população, fotografias e objetos

antigos, arquivos familiares, escolares, religiosos e populares,

proporcionou uma valorização do próprio sujeito que redescobriu sua

história e sua cultura.

A partir do Projeto de Implementação do PDE, o qual focalizou a

História Local e o uso do cinema nas aulas de História, foi possível

descobrir as continuidades e as rupturas, constatando-se que o tempo

passado permanece vivo e está bem próximo de nós, nas falas, nos

costumes e causos, nos sentimentos, nas lembranças que se imaginava

esquecida.

Concluindo, podemos reafirmar que o filme nas aulas de História,

constitui-se numa ferramenta muito eficaz provocando no aluno uma

postura crítica, frente à sua realidade.

No caso específico deste projeto, o filme Narradores de Javé,

além de fornecer subsídios que desencadearam uma série de estratégias

educativas, despertou nos alunos sentimentos, emoções e um grande

interesse em investigar a história da sua cidade.

A oficina “Cadê a História daqui?”, foi o espaço pedagógico criado

a partir desse filme. Essa oficina, possibilitou uma interação entre a Escola

e a comunidade, abrindo caminho para uma nova abordagem no ensino

de História.

23

Espera-se, portanto, que não só os alunos, mas também a

comunidade como um todo, uma vez inteirada de sua própria história,

queiram buscar sempre mais e passe a olhar o passado como algo, sujeito

ao dinamismo do presente.

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