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Todo instrumento é um instrumento (mágico) de poder
Resenha da obRa de Thiago honóRio
documenTs (2012)
Edilamar Galvão*
* É graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Uni-versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP (1993). Defendeu o mestrado “Poesia (em) Tradução” (1999), sobre a influência da tradução na criação na poesia de Nelson Ascher, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com a orientação da Arthur Nestrovski, e o doutorado na mesma instituição com a tese “A insufi-ciência da linguagem: fundamentos para uma estética da arte tecnológico-digital” (2006), sob orientação de Sérgio Bairon. Na área da educação, concluiu o mes-trado-profissionalizante em Tecnologia Educacional pela Fundação Armando Álvares Penteado FAAP (2004). É coorde-nadora do curso de pós-graduação em Jornalismo Cultural na FAAP.
Arte tem a ver com uma produção de falta
Thiago Honório
Documents, obra de
2012, do artista
Thiago Honório,
traz 45 instru-
mentos de corte
dispostos – justapostos – em uma
prancha de 6,3 metros de compri-
mento por 0,82 de largura apoiada
sobre cavaletes. A montagem dá ao
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conjunto a impressão de uma catalogação de objetos em
exposição para olhar científico.
À diferença do que seria uma mostragem assim, aqui
os objetos estão literalmente expostos. Não há redoma
de vidro para os proteger – ou a nós.
As facas estão ao alcance das mãos.
O contato visual com a obra é arrebatador. É estético
– há uma beleza formal própria de cada um desses instru-
mentos de corte e também na sua cuidadosa disposição.
É bonito de ver. É ameaçador.
São serrotes, adagas, facas, foices, cutelos etc., com-
prados em Paris no primeiro semestre de 2012 durante o
período de residência na Cité Internationale des Arts, parte
do Programa de Residência Artística da FAAP. A obra foi
apresentada pela primeira vez na 44a Anual de Artes da
FAAP em novembro do mesmo ano, onde ficou exposta
até fevereiro do ano seguinte. Após, Documents foi adqui-
rida pela colecionadora Roberta Matarazzo e doada ao
MAC USP em fevereiro de 2014. No museu, a instalação
participa da exposição O Agora, o Antes: uma síntese do
acervo do MAC USP, até dezembro.
“Há tempos queria fazer um trabalho que questionasse
– em toda a sua dimensão processual e performática – as
camadas da ideia de ‘trabalho’ e a expressão ‘trabalho de
arte”, Thiago Honório afirmou em entrevista à Revista Isto É1.
O procedimento de apropriação e de montagem é ca-
racterístico do trabalho de Thiago Honório, mas vou me
deter especificamente em Documents – porque me parece
que ela também contém a síntese do universo que inte-
ressa ao artista. Há nele sempre uma espécie de procura
por uma arqueologia dos materiais, dos procedimentos e
dos significados da arte.
O nome Documents é também bastante sugestivo. Em
sua fala na programação “MAC encontra os artistas”, em
maio do ano passado, Thiago pergunta: no que consiste
o trabalho de produção do artista, senão na produção
de uma falta? E cita Jasper Johns: “um objeto que revela
perda, destruição, desaparecimento de objetos não fala
de si mesmo, fala de outros”.2
Que outros objetos poderiam nos fazer buscar, esses,
os que estão expostos por Thiago Honório? Somos ten-
tados a “completar” a sequência. É uma sequência de ob-
jetos de corte. O que estaria mais atrás ou mais adiante?
Sua disposição não é cronológica, haveria outros “cortes”
1 Revista Isto É, edição 2273, 07.Jun.13. Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/304995_DA+ILHA+DE+EDICAO+A+MESA+DE+DISSECACAO+UM+-CORTE+TRANSVERSAL+NA+OBRA+DE+THIAGO+HONORIO
2 O vídeo com a conferência pode ser visto aqui, no site do MAC http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/cursoseventos/mac_encontra/2013_1/thiagohonorio_vd.asp
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temporais, espaciais, formais além deste? Outros cortes
de catalogação?
“O autor é autor da sua obra”, diz Borges, “e o leitor da
sua leitura”, continua.
Documents me levou subitamente a um texto fundamen-
tal da Estética e da Sociologia da Arte: A Necessidade da Arte,
de Ernst Fischer. Especialmente ao seu segundo capítulo
“As Origens da Arte”. Aqui faço meu corte, a partir do corte
proposto por Thiago.
Fischer faz uma leitura ao mesmo tempo marxista e,
digamos, darwinista, da necessidade da Arte. Sua questão
é: Porque “precisamos” da arte? Pois, se a criamos, o fize-
mos em resposta a uma necessidade. Assim, a pergunta
contém uma premissa axiomática: a necessidade move a
criação. E essa é uma premissa marxista/darwinista.
Como, então, descobrir a necessidade da arte? Procuran-
do descobrir a que necessidade ela respondia no momento
mesmo de ser inventada. Mas isso leva a indagar mais
além o lugar da arte na sucessão de invenções. Fischer
refaz assim uma possível cadeia dos instrumentos. Tudo
nasce como instrumento.
Consideremos, segundo o raciocínio de Fischer, que
o primeiro instrumento tenha sido uma simples vara.
Uma vara qualquer encontrada ao acaso. Que o “animal
pré-humano”, como ele chama, a tenha utilizado, “instin-
tivamente” – paradoxalmente o instinto da razão –, para
alcançar um fruto. Esta vara ele guardaria e, no próprio ato
de guardá-la, ele já a teria transformado num instrumen-
to – um “instrumento ocasional”, nas palavras de Fischer.
Como veremos, esse primeiro instrumento contém to-
dos os outros – também a “magia” de inventá-los.
A proposição do autor lembra a antológica cena de 2001
– Uma Odisseia no Espaço em que um grupo de primatas es-
tranha o aparecimento de um monólito na cavidade onde
protegiam o seu descanso. Após, durante o dia, o grupo,
talvez o mesmo, “caminha” sobre ossadas secas de animais.
Um deles manipula os ossos. Na conhecidíssima cena, a
música tema introduz e assinala a importância do evento.
O primata é investido de ira e força: bate vigorosamente o
osso contra o chão. Num corte rápido, quase subliminar,
um animal tomba morto; num movimento mais longo o
primata joga o osso para cima, filmado agora em close
contra o céu, e, em outro corte magnífico, a cena passa
para o espaço e encontra uma nave alongada. Como o
osso. Como o monólito. Como a nave espacial.
Em sua fala no MAM, Thiago Honório também se refere
ao “corte” como procedimento fundamental da montagem
no cinema tal como a formulou Eisenstein: a justaposição
que produz novos significados.
Documents parece “documentar” mesmo essa procura
pelas “camadas de trabalho” envolvidas no processo artís-
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tico. E é incrível que sua escolha tenha recaído sobre os
objetos de corte e sua pluralidade semântica.
Aqui consigo reunir minhas referências: Todo instru-
mento é um instrumento de poder. No seu sentido polis-
sêmico. Os objetos cortantes de Documents explicitam esse
poder. Explicitam a polissemia desse poder.
A vara, o osso, ou a pedra lascada, quem quer que te-
nha começado a odisseia dos instrumentos, já guardava
em si o poder e o “desejo de poder infinito” que ela iria
despertar no homem.
Pois, para Fischer, o instrumento, se não precede a
razão, a faz despertar. Despertar movido, primeiro, pela
“mera” necessidade de sobrevivência. Esses primeiros ins-
trumentos encontrados casualmente serão usados, serão
manipulados. Seu uso despertará no homem um conheci-
mento novo sobre a natureza e as próprias possibilidades
do instrumento recém-achado/inventado.
Em seu manuseio, o homem descobrirá poder tanto
imitar quanto aperfeiçoar os objetos encontrados na na-
tureza. De aprender a aperfeiçoá-los pelo uso, passará a
projetá-los, criará um mundo de instrumentos. A própria
linguagem será decorrência disso. Uma vez criados os
instrumentos, o homem produzirá o trabalho e o trabalho
exigirá dele o desenvolvimento da comunicação. Assim,
como todos os instrumentos, também a linguagem sur-
ge “ocasional”: são os próprios sons da natureza que o
homem imita para depois também aperfeiçoá-los como
código.
Devemos dar a Fischer o mesmo que pediu Darwin ao
explicar sua teoria da evolução: é preciso imaginar essa
sucessão acontecendo em uma enorme escala de tempo,
ainda que a de Fischer seja bem menor do que a exigida
por Darwin.
Nesse “big-bang” da cultura gerado pelo primeiro instru-
mento, tudo estava virtualmente contido: o instrumento
ocasional, a produção do instrumento por imitação, o
trabalho e a linguagem, nascida também como instru-
mento. Na frase-síntese de Fischer: “o homem inventa os
instrumentos, mas os instrumentos também inventam o
homem.”
Essa experiência original, segundo Fischer, inspira no
homem uma “sensação de poder” e, ao mesmo tempo,
um desejo de “poder infinito”. Aqui estaria a semente da
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separação do homem em relação à natureza, essa que
ainda não se vê sentir nos primeiros grupos humanos.
Aqui também está talvez o ponto mais difícil, mais abs-
trato, de Fischer: a sensação de poder equivale à magia,
ao sentimento mágico, ao desejo de produzir “instrumen-
tos” imitando a natureza numa escala superior, para, por
assim dizer, ultrapassar a sobrevivência imediata. O mito
é esse instrumento. Marcell Mauss e seu “Ensaio sobre a
Dádiva” devem ser lembrados para ajudar a compreender
o mecanismo de produção e funcionamento do mito no
modo como o vê Fischer. Ainda “A Eficácia Simbólica”, de
Levi Strauss.
O surgimento do Mito é, pois, resposta a uma neces-
sidade da sobrevivência do grupo, é uma forma, mágica,
de trabalho.
Mas esse “trabalho” tem sua especificidade: Além de
atuar na “garantia” do sucesso da caça ou das trocas sim-
bólicas, ele é produtor de unidade social e de sentido.
Pois a luta pela sobrevivência mais imediata, aquela que
é feita com os instrumentos mais “concretos”, produzirá
a fragmentação da comunidade primitiva na muito mais
tardia sociedade de classes.
Por isso a Arte só poderia ter no Mito seu antecessor
mais imediato. E o artista, no feiticeiro. A resposta de Fis-
cher sobre qual necessidade a arte respondia:
A tarefa do artista era ex-
por ao seu público a sig-
nificação profunda dos
acontecimentos, fazendo-o
compreender claramente a
necessidade e as relações
essenciais entre o homem
e a natureza e entre o ho-
mem e a sociedade, des-
vendando-lhe o enigma
dessas relações; (...) cabia-
lhe conduzir a vida indivi-
dual de volta à existência
coletiva, unir o pessoal ao
universal; cabia-lhe restau-
rar a unidade humana perdida.
3 (grifo do autor)
3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág. 52.
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Páginas depois finaliza: “numa sociedade em decadên-
cia, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir também a
decadência”. Fischer vai mais longe. Acredita ainda que,
para exercer sua função social, a arte deveria, inclusive,
ajudar a mudar o mundo. Não é o caso de entrar nesse
argumento agora – interessa aqui a associação feita por
Fischer entre instrumento, magia e arte. E à função que a
todos liga. A natureza do homem passa a ser inventar sua
“supra-natureza”.
No clássico “A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica”, Walter Benjamin também refletiu sobre a técnica
como uma “segunda natureza”. No caso de Benjamin, essa
segunda natureza se dá apenas com a “técnica emancipa-
da” da reprodutibilidade técnica. De todo modo, mesmo
ela é uma decorrência da natureza técnica já contida no
primeiro instrumento. E também para Walter Benjamin a
arte é chamada a cumprir seu papel. No caso, é o cinema
quem nos reconecta com essa segunda natureza criada.
Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou
mas há muito não controla, somos obrigados a aprender,
como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte
põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica em
primeira instância ao cinema. O filme serve para exercitar
o homem nas novas percepções e reações exigidas por
um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em
sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico
do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é
essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu
verdadeiro sentido4.
Documents, de Thiago Honório, é uma epifania. Traz à
cena, por esses instrumentos de corte e sua aparência
arqueológica, o testemunho de todos os outros instrumen-
tos ausentes, desaparecidos, perdidos. Nos leva de volta a
uma cena inaugural carregada de todas as ambivalências
arquetípicas: a imitação, a invenção, o poder, a magia e um
universo de sentidos a se construir.
4 Walter Benjamin, Obras Escolhidas – Magia e Técnica. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984, pág. 176.