Tomado de Assalto

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16 IGOR LOCROIX REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 2, N. 1 P. 16 - 32, JAN./JUN. 2012. ARTE COMO ESQUEMATIZAÇÃO DO MUNDO Igor Locroix [email protected] NIETZSCHE, HEIDEGGER, NIETZSCHE Heidegger desvela, em Vontade de Poder como Arte, primeira parte da obra Nietzsche - I, e sistematiza as prinicipais definições que estão presentes nos fragmentos que originariam o trabalho central de Nietzsche, que não chegou a ser concluída, a saber, Vontade de Poder. Heidegger gira em torno de duas ideias que são interligadas: ente e ser, o ente estante e o ser- estar, que pode ser entendido como a realidade ontológica temporal, impermanente. Ser-estar e apresentado como aquilo que os homens, e todos os outros entes, verdadeiramente são, o que não é confundindo com deus ou com qualquer outra realidade metafísica. Ainda, ao pensar os termos usados por Nietzsche, Heidegger define a vontade de poder como “a designação do que perfaz o caráter fundamental de todo ente” ( HEIDEGGER, 2010, p. 06), o que nas palavras de Nietzsche se apresenta o fato derradeiro ao qual podemos aceder. O objetivo de Heidegger é tornar distinta a posição fundamental de Nietzsche quando ele responde à questão diretriz da filosofia metafísica: o que é o ente? E ele cumpre com esse objetivo na medida em que confronta a filosofia de Nietzsche, uma vez que acredita que a confrontação “é a maneira suprema e única de apreciar verdadeiramente um pensador” ( Idem, p. 08). A confrontação estabelecida em Vontade de Poder como Arte é vista a partir da citação: “O pensamento abstrato é, para muitos, uma fadiga - para mim, em dias bons, ele é uma festa e uma inebriez” (Idem, p. 08). Heidegger entende Nietzsche não como um pensador rigoroso, mas um filósofo poeta, um filósofo da vida, e tratará sobre esse conceito de inebriez em sua relação à criação artística de maneira mais ampla quando o relacionar ao processo de criação em geral. Para a pergunta „o que é o ente?‟, existe a procura pelo ser do ente. Todo ser é um devir para Nietzsche. Todavia, esse devir tem o caráter da ação e da atividade do querer enquanto que em sua essência, a vontade é vontade de poder. Na medida em que levanta a questão a respeito do ente, Heidegger, portanto, introduz a pergunta fundamental da filosofia: o que é o ser? Durante este caminho, faz o apontamento das três posições fundamentais que entende a partir da filosofia nietzscheana: 1 - filosofia do eterno retorno: uma tentativa de reavaliação de todos os valores, “a doutrina do eterno retorno como martelo na mão dos

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Pelo orvalho semestral, o tom abusa da cor esdrúxula tomada de assalto enquanto parada.

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    IGOR LOCROIX

    REVISTA DE ESTTICA E SEMIOTICA, BRASLIA, V. 2, N. 1 P. 16 - 32, JAN./JUN. 2012.

    ARTE COMO ESQUEMATIZAO DO MUNDO

    Igor Locroix [email protected]

    NIETZSCHE, HEIDEGGER, NIETZSCHE

    Heidegger desvela, em Vontade de Poder como Arte, primeira parte da obra Nietzsche

    - I, e sistematiza as prinicipais definies que esto presentes nos fragmentos que originariam

    o trabalho central de Nietzsche, que no chegou a ser concluda, a saber, Vontade de Poder.

    Heidegger gira em torno de duas ideias que so interligadas: ente e ser, o ente estante e o ser-

    estar, que pode ser entendido como a realidade ontolgica temporal, impermanente. Ser-estar

    e apresentado como aquilo que os homens, e todos os outros entes, verdadeiramente so, o

    que no confundindo com deus ou com qualquer outra realidade metafsica.

    Ainda, ao pensar os termos usados por Nietzsche, Heidegger define a vontade de

    poder como a designao do que perfaz o carter fundamental de todo ente (HEIDEGGER,

    2010, p. 06), o que nas palavras de Nietzsche se apresenta o fato derradeiro ao qual podemos

    aceder. O objetivo de Heidegger tornar distinta a posio fundamental de Nietzsche quando

    ele responde questo diretriz da filosofia metafsica: o que o ente? E ele cumpre com esse

    objetivo na medida em que confronta a filosofia de Nietzsche, uma vez que acredita que a

    confrontao a maneira suprema e nica de apreciar verdadeiramente um pensador (Idem,

    p. 08). A confrontao estabelecida em Vontade de Poder como Arte vista a partir da

    citao: O pensamento abstrato , para muitos, uma fadiga - para mim, em dias bons, ele

    uma festa e uma inebriez (Idem, p. 08). Heidegger entende Nietzsche no como um pensador

    rigoroso, mas um filsofo poeta, um filsofo da vida, e tratar sobre esse conceito de inebriez

    em sua relao criao artstica de maneira mais ampla quando o relacionar ao processo de

    criao em geral.

    Para a pergunta o que o ente?, existe a procura pelo ser do ente. Todo ser um

    devir para Nietzsche. Todavia, esse devir tem o carter da ao e da atividade do querer

    enquanto que em sua essncia, a vontade vontade de poder. Na medida em que levanta a

    questo a respeito do ente, Heidegger, portanto, introduz a pergunta fundamental da filosofia:

    o que o ser? Durante este caminho, faz o apontamento das trs posies fundamentais que

    entende a partir da filosofia nietzscheana: 1 - filosofia do eterno retorno: uma tentativa de

    reavaliao de todos os valores, a doutrina do eterno retorno como martelo na mo dos

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    homens mais poderosos (Idem, p. 18); 2 - vontade de poder: tentativa de reavaliao de todos

    os valores; 3 - reavaliao de todos os valores.

    Heidegger estabelece uma espcie de princpio lgico com uma tese: eterno retorno

    (ser), uma anttese: vontade de poder (ente) e uma sntese: reavaliao de todos os valores.

    Neste sentido a conjugao do eterno retorno vontade de poder ao longo do tempo o que

    define o ser-estar. O que e como a prpria vontade de poder? Resposta: o eterno retorno

    do igual (Idem, p. 19). Heidegger afirma que para Nietzsche no possvel haver disjuno

    entre o eterno retorno e a vontade de poder, pois a prpria definio do ser a conjugao

    dessas duas doutrinas ao longo da histria.

    O que est em questo de forma mais acentuada em Nietzsche a instaurao de

    valores que determinem como o ente deve ser. Entra a a questo do niilismo que significa:

    os valores supremos se desvalorizam (Idem, p. 26). O niilismo, dentro do pensamento

    nietzscheano, no representa uma espcie de revoluo salvadora, representante do bem, , na

    verdade, algo que sempre existiu, desde antes de Cristo, e continuar a existir a partir do

    presente. Heidegger, e o prprio Nietzsche, estabelece nesse ponto a inverso como principal

    estrutura do modo de pensar nietzscheano. Uma caracterstica do processo de inverso

    aparece em comparao a Schopenhauer que:

    Interpretou a essncia da arte como um quietivo da vida enquanto tal, o que aquieta a vida em sua miserabilidade e em seu sofrimento, o

    que suspende a vontade cujo mpeto provoca justamente a misria da

    existncia. Nietzsche inverte Schopenhauer e diz: a arte o

    estimulante da vida, algo que incita e eleva a vida (Idem, p. 29).

    Outro exemplo do processo de inverso se encontra presente na citao de Nietzsche:

    A verdade um tipo de erro, sem o qual uma determinada espcie de ser vivo no poderia

    viver (Idem, p. 29). Essa citao s pode ser compreendida de forma aprofundada, uma vez

    que se parte da perspectiva do platonismo, no entanto, esse procedimento de inverso dos

    valores presente em diversas ocasies do pensamento de Nietzsche. Heidegger coloca a

    questo da vida, o que para Nietzsche o mesmo que vontade de poder: ela mesma o

    fundamento, o princpio da instaurao de valores. Ento no um dever que determina o ser,

    mas o ser que determina um dever (Idem, p. 31). Portanto, antes de afirmar uma possvel

    instaurao de novos valores, preciso omprovar a vontade de poder como carter

    fundamental do ente atravs de todos os seus mbitos e esferas.

    Para demonstrar que o questionamento a respeito do ser-estar do ente estante no

    gratuito, que na verdade ele advm de um contexto filosfico mais amplo, Heidegger

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    apresenta as definies presentes em diversos pensadores alemes como: Schopenhauer,

    Schelling, Hegel, Leibniz. No entanto, com essa apresentao ele no quer dizer que h uma

    dependncia do pensamento de Nietzsche, mas que todos os grandes pensadores pensam

    sempre o mesmo numa espcie de encadeamento de um conceito que nunca se exaure.

    Heidegger prope que Nietzsche no faz distino entre vontade e vontade de poder, pois no

    fundo dentro dessa expresso, poder no quer dizer um complemento da vontade, mas

    significa uma elucidao da essncia da prpria vontade (Idem, p. 40). Heidegger explica que

    para Nietzsche a vontade, que usualmente associada alma e, portanto, quilo que

    psquico, tambm associada ao corpreo e ao espiritual. Explica tambm que a vontade

    considerada como um tipo de causa (p. 36), uma espcie de faculdade causante (Idem, p.

    36) produtora de efeitos, ou seja, a vontade associada ao fazer, ao agir. A vontade de poder

    pode ser entendida como uma direo consciente, uma deciso, que ruma ao poder, que

    entendido como um poder-fazer, poder-executar, poder-entificar.

    O argumento que se fundamenta a partir dessas proposies que para Nietzsche a

    vontade um afeto, uma paixo, um sentimento. A vontade est associada percepo do

    nosso corpo e esprito, que so entendidos em conjunto como uma estrutura que filtra nossa

    vontade. O corpo e o esprito so como parmetros que influenciam nossa apreenso do

    mundo, mas que tambm nos induzem ao estabelecimento daquilo que queremos em nossas

    vidas. O querer entendido aqui como um direcionar-se a algo, diferente do desejar

    compreendido como um simples querer-ter, um aspirar algo ordinrio. A vontade de poder

    entendida como um afeto, as consequencias da vontade de poder como aquilo que nos afeta. Heidegger levanta a ideia de que Nietzsche faz uma espcie de filosofia fisiolgica, uma vez que retira sua compreenso de afeto antes da fisiologia e biologia do que propriamente da psicologia, mas tambm sem perder sua

    conscincia, no representando um estado de superposio do corpo sobre a mente. Neste

    sentido, os sentimentos nos alam para alm de ns mesmos (Idem, p. 43), a vontade ,

    portanto, o sentimento dos seres em estado de excitao, lanados para alm deles mesmos.

    No podemos nos decidir a ter uma vontade, no sentido de que poderamos nos arrogar uma

    vontade; pois toda a deciso se mostra como o querer mesmo (Idem, p. 44). Nesse sentido h

    uma contraposio do conceito nietzscheano emocional de vontade ao conceito idealista. A

    ideia entendida por Heidegger como representao se relaciona aspirao, e a aspirao no

    sabe o quer, porque ela no quer absolutamente, aspira a uma representao da coisa. A

    aspirao em contraposio vontade que um comando em direo coisa em si.

    Heidegger expressa que a viso idealista observa a vontade antes como uma aspirao,

    ou seja, como uma representao da coisa em questo. J Nietzsche prope que isso uma

    viso limitada, que antes de mais nada existe um sentimento que nos coloca em direo a

    alguma coisa, antes mesmo da aspirao representao da coisa. Heidegger reune em uma

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    nica definio as determinaes da vontade de maneira a criar uma espcia de gradao de

    valores por nvel de excitao do ente:

    Vontade como assenhoreamento sobre... que se estende para alm de

    si, vontade como afeto (o acometimento excitante), vontade como

    paixo (o arrebatamento expansivo em direo amplitude do ente),

    vontade como sentimento (disposio para ater-se-a-si-mesmo) e

    vontade como comando (Idem, p. 54).

    O problema que a compreenso da vontade vazia em si mesma e, para Nietzsche,

    ela se confunde com a definio de poder, pois a vontade em essncia sempre aparece como

    querer-ser-mais (Idem, p. 55). O exemplo disso vem de um dos fragmentos prprio

    Nietzsche:

    Tomemos o exemplo mais simples, o exemplo da alimentao

    primitiva: o protoplasma estende seus pseudpodes para procurar por

    algo que se lhe contraponha - no por fome, mas por vontade de poder. Ento, ele tenta super-lo, apropriar-se dele, incorpor-lo: - O

    que se denomina alimentao meramente um fenmeno secundrio, uma aplicao prtica daquela vontade originria de se

    tornar mais forte. (Idem, p. 56).

    Heidegger, portanto, com a citao acima, fecha um ciclo de sua compreenso acerca

    do pensamento do filsofo de Rcken. A partir desse ponto ele inicia um discurso voltado

    compreenso da arte, mas de certa forma se apropriando da obra de Nietzsche para construir

    um argumento prprio sobre a arte.

    DISCURSO SOBRE A ARTE

    O objetivo principal considerar a arte com um valor a mais do que a verdade,

    entendida como fruto do platonismo, que o discurso que at os dias atuais tem uma

    popularidade a mais, ou seja, prepondera sobre a maioria dos discursos alternativos, mas que

    no fim das contas est errado. O fenmeno artista ainda o mais facilmente transparente...

    isto , o maximamente acessvel para ns mesmos, o fenmeno artista - o ser artista (Idem,

    p. 63). Heidegger. diz: Ser artista uma forma de vida (Idem, p. 64). Ainda, Heidegger

    citando Nietzsche denomina a vida a forma mais conhecida do ser. Ser-estar mesmo s

    vlido para ele como universalizao do conceito de vida (respirar), ser animado, querer,

    atuar, devir... (Idem, p. 64). No caso, essa postura de Heidegger, tambm enquadra o

    pensamento de Nietzsche dentro do processo de inverso, uma vez que a verdade o que at

    hoje tem valor a mais do que a arte. A iniciativa artstica est, para a maioria dos artistas, na

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    maioria das vezes, em contradio com a sua prpria realidade, talvez, porque o discurso

    artstico seja mais frgil em termos de poder. Portanto, Heidegger no deixa de ser

    minimamente romntico, no sentido de estabelecer um discurso em contradio ao discurso

    mais poderoso, assim como Nietzsche o fez em seu tempo.

    No fica de lado a prpria relao, estabelecida por Heidegger, de cinco sentenas

    sobre a arte. A primeira delas diz: a arte a figura mais transparente e conhecida da vontade

    de poder (Idem, p. 65). A segunda sentena, a arte precisa ser concebida a partir do artista

    (Idem, p. 65), estabelece a inverso da esttica feminina, at os dias de hoje regente de termos

    de poder de discurso, para uma esttica masculina, ou seja, prope a inverso de uma esttica

    de quem recebe a arte; quem critica a arte, para uma esttica de quem a produz. Nietzsche

    quem prope essa inverso, colocando o artista acima do sujeito que recebe a arte. A terceira

    sentena poderia ser compreendida como uma desambiguao do conceito de arte, que no

    caso no meramente entendido como belas-artes, mas compreendido a partir da etimologia

    grega onde no havia distino entre o conceito de arte e conhecimento. De acordo com o

    conceito ampliado de artista, a arte o acontecimento fundamental de todo ente; o ente , na

    medida em que , algo que se cria, algo criado (Idem, p. 66). Conhecimento enquanto criao

    equivalente criao artstica, mas que segundo o discurso dos dois pensadores em questo

    tem mais valor do que a verdade.

    Nietzsche levanta a questo do filsofo-artista que exerce na filosofia uma vontade de

    aparncia, de iluso, de engano, de devir e de mudana, que mais profunda do que a

    vontade de verdade, entendida a partir da concepo de mundo supra-sensvel estabelecida

    pelo platonismo. Nesse sentido, o filsofo-artista um filsofo do contramovimento

    tradio metafsica, pois prope que o mundo sensvel que tem mais valor para o homem. A

    partir desta questo levantada Heidegger coloca a quarta sentena sobre a arte: a arte o

    contramovimento insigne contra o niilismo (Idem, p. 68). A quinta e ltima sentena de

    Heidegger sobre a arte diz o seguinte: a arte tem mais valor do que a verdade (Idem, p. 70).

    Dentro da interpretao sobre Vontade de poder como arte, a quinta sentena a concluso

    mxima que Heidegger levanta em seu discurso sobre a arte, o restante daquilo que ir propor

    da por diante, justifica e embasa essa sua proposio.

    No entanto, antes de considerer a proposio sobre a arte como esquematizao do

    mundo, se faz necessrio abordar duas ideias centrais do pensamento nietzscheano a respeito

    da arte. A primeira delas a ideia de inebriez como estado esttico e como fora

    conformadora da realidade, e a segunda a ideia do estilo elevado da arte onde Heidegger

    explora a contradio entre clssico e romntico que o prprio Nietzsche vai contrapor em

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    seus fragmentos. de fundamental importncia a abordagem dessas duas ideias, uma vez que

    a compreenso acerca do processo de esquematizao que ocorre por meio da arte deve

    necessariamente passar por ambas. Heidegger compreende esttica como a considerao do

    estado sentimental do homem em sua relao com o belo, considerao do belo na medida

    em que ele se encontra em ligao com o estado sentimental do homem (Idem, p. 72).

    Esttica uma maneira do homem perceber o mundo, portanto ela tem influncia no

    seu modo de pensar, e alm disso est ligada histria da arte. Neste ponto de compreenso

    histrica, introduzido seis fatos fundamentais da esttica. O primeiro deles explora a ideia

    de que a grande arte grega permanece sem uma meditao conceitual pensante que

    corresponda a ela, o que no significa dizer que tal meditao teria de se confundir com uma

    esttica. O que os gregos tinham era um saber claro, to originariamente desenvolvido, e uma

    tal paixo pelo saber, no careciam de nenhuma esttica em meio a essa claridade. O segundo

    fato traz a concepo de que no mundo grego, a grande arte e a grande filosofia corriam, a

    princpio, paralelamente. A esttica s comeou a, por sua vez, no instante em que a grande

    arte, assim como a grande filosofia chegaram ao seu fim. O ente aquilo que irrompe e vem

    tona, neste context, crescendo a partir de si mesmo e sem ser impelido a nada, o que retorna a

    si e passa: a vigncia que irrompe e retorna a si. O terceiro fato fundamental para a histria do

    conhecimento sobre a arte aponta para o comeo da modernidade. O homem e o seu livre

    saber em torno de si mesmo e de sua posio no interior do ente torna-se, agora, o lugar da

    deciso quanto ao modo como o ente precisa ser experimentado, determinado, configurado.

    Paralelamente formao do domnio da esttica e da relao esttica com a arte, d-se a

    decadncia da grande arte no sentido mencionado. O quarto fato desenvolve a ideia de que no

    instante histrico em que a esttica conquista o seu pice, a sua maior amplitude e o seu maior

    rigor possveis, a grande arte chega ao fim. A consumao da esttica adquire sua grandeza do

    fato de conhecer e expressar esse fim da grande arte com tal. A esttica derradeira e

    maximamente grandiosa do Ocidente a esttica de Hegel. Em vista do declnio da arte ante

    sua essncia, o sculo XIX ainda se arrisca uma vez mais e busca realizar a obra de arte

    integral. Esse esforo est ligado ao nome de Richard Wagner. Nietzsche captura da ao de

    Wagner o arrebatamento que impelia para o todo a partir da embriaguez, o que ele designou o

    dionisaco. O esforo em busca pela obra de arte integral entendido por como o quinto fato

    fundamental a partir da histria da esttica.

    O que Hegel expressou sobre a arte - o fato de ela ter perdido o poder como

    configurao e preservao normativa do absoluto - foi reconhecido por Nietzsche em relao

    aos valores supremos e considerado por Heidegger como o sexto e ltimo fato histrico da

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    esttica. A posio fundamental de Nietzsche em relao arte como realidade histrica

    determinada de maneira mais prxima, e, juntamente com isso, o modo de seu conhecimento

    e de seu querer conhecer a arte: a esttica como fisiologia aplicada. A compreenso da

    inebriez como estado esttico deve necessariamente passar por esta apreenso histrica, mas

    principalmente pela maneira como Heidegger interliga os fatos de maneira a estabelecer no

    final a esttica como fisiologia, como percepo corporal e espiritual, a partir das

    determinaes nietzcheanas acerca da arte. O prprio Nietzsche quem melhor descreve o

    estado esttico da inebriez:

    Para que haja a arte, para que haja um fazer e uma visualizao

    esttica, incontornvel uma precondio fisiolgica: a inebriez. A

    inebriez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de toda a

    mquina: seno no se chega arte. Todos os modos mais

    diversamente condicionados da inebriez ainda possuem a fora para

    isso: antes de tudo, a inebriez da excitao sexual, a mais antiga e

    originria forma de inebriez. Do mesmo modo, a inebriez que nasce

    como consequncia de todo grande empenho do desejo, de toda e

    qualquer afeco forte; a inebriez da festa, do combate, dos atos de

    bravura, da vitria, de todo e qualquer movimento extremo; a inebriez

    da crueldade; a inebriez na destruio; a inebriez sob certas condies metereolgicas, por exemplo, a inebriez primaveril; ou sob a

    influncia de narcticos; por fim, a inebriez da vontade, a inebriez de

    uma vontade acumulada e dilatada (Idem, p. 89).

    Inebriez no meramente estar bbado, ou sob a influncia de drogas, antes de tudo

    um estado fsico e mental, onde h a concentrao de sentimentos e sensaes acerca do

    mundo. uma elevao consciente, uma predisposio frente percepo daquilo que nos

    afeta. Inebriez uma mudana de carter frente realidade que possibilita a elevao dos

    sentimentos rumo a novas perspectivas de vida. Neste ponto Heidegger aborda dois conceitos

    fundamentais para a obra de Nietzsche que esto presentes desde sua primeira publicao:

    apolneo e dionsiaco, o onrico e o encantamento, as duas foras artsticas da natureza. A

    convergncia dos dois na unidade de uma figura o nascimento da suprema obra de arte

    grega: a tragdia (Idem, p. 95). A inebriez aparece, portanto, em contraposio ao deleite

    desinteressado kantiano, ela aparece como excitao, estimulao.

    A partir deste estado inebriado o artista capaz de, por meio da forma, corporificar a

    beleza e, desta maneira, transferir esse estado esttico ao observador da obra de arte. O artista

    inebriado capaz de estabelecer um percurso perceptivo para a elevao da vida. Inebriez

    significa a conquista mais clara e distinta possvel da forma, nesse sentido a forma

    esquematizao inebriada em direo beleza. Uma multiplicidade de caractersticas esto

    associadas a ideia de inebriez, sendo que a mais antiga e originria a inebriez sexual (Idem,

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    p. 105), que est presente tanto no estado apolneo quanto no dionsico. A obra de arte

    sempre nesse sentido sexual, com vontade de parir, de gerar novos entes, ou transformar os

    existentes. Para Nietzsche a inebriez uma espcie de rotina que possibilita a criao.

    interessante perceber o movimento que a filosofia do pensador faz quando vai de conceitos

    abstratos para conceitos mais cotidianos, mais ligados a uma vida mundana. Talvez, tenha

    sido da percepo desse tipo de movimento que Heidegger possa t-lo entendido como um

    filsofo da vida.

    Heidegger, de certa maneira, diz que Nietzsche percebe um todo esttico, da realidade

    artstica quando interpreta, por exemplo, a multiplicidade do contexto de criao artstica. A

    multiplicidade enquanto uma espcie de universo que no pode ser compreendido em uma

    totalidade absoluta, mas que justamente pelo fato de existir em mltiplas instncias,

    possibilita a compreenso de um todo em coexistncia, mesmo que em conflito, ou

    contradio. A partir desse universo, a partir das massas como o prprio Nietzsche define,

    possvel emergir a distino, por meio de uma lgica, que estabelece uma beleza. A conjuno

    desses trs pontos possibilita a compreenso do estilo elevado da arte, do conhecimento, da

    criao. Estilo elevado a manifestao mais apurada, melhor objetivada, aquela que mais se

    aproxima de um ideal de criao. inebriez por excelncia, o gozo. a plenitude da

    concepo, talvez, o presente onde o criador e o receptor da obra de arte estejam mais

    prximos, ou quem sabe, confundidos em um s.

    Mais uma vez Heidegger explora sua percepo histrica ao relacionar clssico e

    romntico como caminhos possveis para a produo artstica. Ideais que no so opostos, ou

    no se constrem necessariamente em contradio, mas em uma forma de equivalncia e que

    no fim so apenas parmetros de apreenso da prpria arte. O objetivo de Nietzsche abarcar

    o que a obra de arte integral sem necessariamente explorar as possveis contradies entre

    clssico e romntico. A compreenso de clssico no tende a um classicismo, mesmo que o

    estilo elevado esteja ligado tragdia grega ou as suas interpretaes posteriores, como a

    pera de Wagner. Estilo elevado tende essncia do trgico, catarse, esquematizao

    plena, e no a uma qualificao do que clssico ou romntico.

    Depois de abordar a questo do estilo elevado, Heidegger parte para uma nova etapa de

    seu discurso que servir para, alm de justificar teoricamente o argumento que ir desenvolver

    a partir da, relanar sua abordagem em confronto ao posicionamento nietzcheano frente

    tradio metafsica. Constri uma srie de apontamentos sobre a obra de Plato, utilizando a

    Repblica, O Fedro, explorando a relao entre verdade e arte, ideia e mimese, e tambm a

    inverso do platonismo estabelecida pela filosofia de Nietzsche. Estabelece tambm uma

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    gradao dos principais pontos histricos onde houve uma reflexo sobre a ideia de mundo

    verdadeiro, no sentido do platonismo. A escala se inicia com Plato, passa por Kant, pelo

    Idealismo Alemo, por Nietzsche, at chegar ao depois de Nietzsche, que no fim seria a

    prpria posio de Heidegger em meio tradio metafsica. Sendo o objetivo principal

    desvelar a ideia de que o sensvel no mais o aparente, no mais o obscurecido, ele o

    nico real, portanto, o verdadeiro (Idem, p. 189).

    No ltimo trecho de Vontade de Poder como Arte, Heidegger explora, como concluso

    para seu discurso sobre a arte, a ideia de que todo o ente sensvel. Ideia que seria resultante

    de uma conjuno de conceitos basicamente orientados pela perspectiva da inverso do

    platonismo, onde o mundo supra-sensorial tem mais valor que o mundo sensvel, ou seja,

    mais verdadeiro. O filsofo de Mekirch prope que o ente, o real ou a realidade, deve ser

    determinado de maneira nova, a partir da compreenso da filosofia de Nietzsche. O exemplo

    utilizado do orgnico e do inorgnico como dois mbitos pertencentes realidade, vida,

    sem uma hierarquia entre um e outro. Orgnico no sentido de uma pluralidade perspectivstica

    interna que ela mesma um acontecimento (Idem, p. 188). O inorgnico no colocado como

    o oposto, mas como tudo o que no possvel qualificar, muito devido enorme quantidade.

    Leis mecanicistas so estabelecidas por finalidade clculo que possibilita fundamentar teorias

    cientficas por exemplo.

    Neste sentido, A arte como transfigurao mais elevadora da vida do que a verdade

    como fixao de uma apario (Idem, p. 192). Em outros termos, se pode dizer que a criao

    inebriada em direo beleza catrtica tem mais valor do que a verdade que esconde a real

    ignorncia sobre a compreenso a respeito do mundo, o velamento a respeito da totalidade do

    todo.

    ARTE E CONHECIMENTO

    Na terceira parte de Nietzsche - Volume I, Heidegger faz uma reflexo sobre a vontade

    de poder como conhecimento, a compreenso que se tem de que no h uma diferenciao

    de fato entre arte e conhecimento, sendo a principal maneira de justificar isso por meio da

    prpria raiz etimolgica grega . Em contraposio est a palavra que

    significa natureza, e entendida pelos gregos como o ente mesmo na totalidade. a

    sobre a o prprio saber diante do mundo, a esquematizao do caos.

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    Ainda, Nietzsche fala em biologia da razo, a razo e lgica condicionadas

    biologicamente no animal homem, por isso podemos afirmar a filosofia fisiolgica, pois ela

    racional mas oriunda da prpria biologia humana, no de um mundo supra-sensorial separado

    do corpo no todo. Esse todo que no abarcvel em sua totalidade compreendido a partir do

    ponto de vista do caos, a desorganizao passvel de ser organizada de acordo como leis e

    normas. Alm disso, a prpria organizao pode tambm ser reorganizada de acordo com a

    realidade em constante transformao. A constante transformao, as coisas do mundo em

    permanente mudana - pois os entes instantes em relao de interao se alteram tambm

    devido a prpria ao de interagir em multiplicidade - faz carecer de um arcabouo que nos

    auxilie frente pratica da vida.

    Sem querer distanciar muito do mbito heideggeriano, mas com relao a este ultimo

    ponto se pode comparar a ideia de carecimento prtico com a ideia de prxis presente em

    Marx. Tambm, atua nesta comparao o procedimento de inverso proposto por Heidegger

    sobre Nietzsche. Enquanto Marx v a prtica durante a prpria produo de um processo

    industrial vigente em diversas partes do mundo, Nietzsche v a prtica enquanto aquilo que

    carece e possibilita a criao pela construo de esquemas perspectivsticos frente ao que no

    se controla, ao desconhecido, ao que nos e est velado. Ambas as vises ocorrem acerca de

    uma realidade equivalente, talvez a primeira social e a outra individual, ou subjetiva, mas

    ambas fundamentadas em uma realidade especfica.

    Na medida em que se observa o horizonte de pensamento, se percebe a carncia de

    esquemas que conformem uma perspectiva frente ao mundo em transformao. A partir desse

    carecimento se forma clculos e acordos, se faz poesia e comandos que ajudam a lidar com a

    realidade. Ainda, se faz a arte a partir da, poetizamos por meio da razo.

    Ao concluir a parte A vontade de Poder como Conhecimento, Heidegger estabelece a

    ideia de que o pensamento construtivo, e desenvolve uma imagem onde compara o

    pensamento prpria construo do espao.

    O pensamento construtivo , ao mesmo tempo, excludente. [] A construo como erigir precisa ao mesmo tempo decidir

    constantemente sobre medidas e alturas, e, por conseguinte, excluir e formar para si mesma pela primeira vez o campo do jogo, no qual ela

    erige suas medidas e alturas e abre suas visadas. A construo

    atravessa decises (Idem, p.30).

    Assim, a arte tambm se conforma, destruindo, violentando aquilo que natural para

    transform-lo de acordo com uma conscincia elevada. Construir... tem em vista o erigir e o

    levantar, ir em direo altura... (Idem, p. 31), ao inebriada na medida em que busca a

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    elevao. O autor fixa essa comparao afirmando que este um caminho frente ao que nos

    est velado. Ainda, a arte tambm na medida do conhecimento uma construo rumo ao

    desconhecido.

    BIBLIOGRAFIA

    HEIDEGGER, Martin. Nietzsche - Volume I. Traduo Marco Antnio Casanova. Editora

    Forense Universitria, Rio de Janeiro, 2010 A.

    REFERNCIAS

    ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da Arquitetura. Cosac & Naify Edies, So Paulo, 1999.

    BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica

    - Volume I. Traduo Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mnaco, Joo Ferreira, Lus Guerreiro

    Pinto Cacais e Renzo Dini. Editora Universidade de Braslia, Braslia, 1998.

    HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferncias. Traduo Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan

    Fogel e Marcia S Cavalcante Schuback. Editora Vozes, Petrpolis, 2001 A.

    HEIDEGGER, Martin. Nietzsche - Volume II. Traduo Marco Antnio Casanova. Editora

    Forense Universitria, Rio de Janeiro, 2010 B.

    KOTHE, Flvio Ren. Ensaios de Semitica da Cultura. Editora Universidade de Braslia,

    Braslia, 2011.

    MARX, Karl. O Capital: crtica da economia poltica. Livro I. Traduo Reginaldo

    SantAnna. Editora Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1968.

    NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Alm do bem e do mal - Preldio de uma filosofia do

    futuro. Traduo Armando Amado Jnior. Editora WVC, So Paulo, 2001.

    ___________________________. Fragmentos Pstumos. Traduo Flvio Ren Kothe.

    Editora Universidade de Braslia, Braslia, 2002.

    ___________________________.Gaia Cincia. Traduo Paulo Csar de Souza.

    Companhia das Letras, So Paulo, 2001 B.

    ___________________________.A origem da tragdia. Traduo Joaquim Jos de Faria.

    Editora Centauro, So Paulo, 2008.

    PLATO. Greater Hippias. Traduo Walter Rangeley Maitland Lamb. Harvard University

    Press, Cambridge, 1925.

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    ANEXO

    Esta parte do presente trabalho uma breve reflexo em forma de fichamento de ideias,

    conceitos que definitivamente foi feita a partir da interpretao de partes da obra em questo.

    O intuito registrar apontamentos acerca do todo e da relao entre o fragmento e o

    pensamento. A escrita desta parte segue o exemplo de Nietzsche, que se permite registrar em

    fragmentos sem grande sistematizao, o substrato de um pensamento que muitas vezes surge

    da intuio ou da percepo de determinados acontecimentos.

    FRAGMENTOS

    01. A obra de arte como aquilo que sua beleza, lgica, esquematiza o caos e permite ao

    ente estante um momento de desvelamento diante do mundo. Precisamos tomar cuidado com

    as palavras e a maneira como ordenamos as coisas, pois a partir disso o desvelamento diante

    do devir definido, de um lado o bem de outro lado o mal. A filosofia nietzscheana prope ir

    alm disso.

    02. A tragdia, portanto, acontece sem nos darmos conta, a proposio aqui de que a

    tragdia acontece quando o caos, ou a falta de perspectiva, se apropria do prprio

    desvelamento, destruindo-o, acabando com o que se desvela. O caos nesse sentido iminente

    e permanente. A perspectiva que temporria e suscetvel, frgil. A aparncia prpria

    ruptura/destruio, na medida em que ela rompe o prprio caos. A perspectiva utiliza o caos

    como matria-prima, nesse sentido o prprio caos.

    03. De maneira semelhante ocorre a filosofia de Nietzsche com relao sua inverso

    do platonismo, da chamada tradio metafsica. Na medida em que inverte a noo do

    platonismo, no quer dizer que ela escape da metafsica. Conforme Heidegger, Nietzsche o

    filsofo do acabamento da metafsica, acabamento no como fim da metafsica, mas como

    aprimoramento, como algo que transporta a metafsica a uma etapa superior, capaz de

    reavaliar o que at ento foi produzido e propiciar um novo caminho para a metafsica.

    04. A viso da obra de arte metafsica, uma vez que a percepo, ou mais

    especificamente a perspectiva que o indivduo tem da obra faz parte de uma esquematizao

    que metafsica. No entanto, uma metafsica invertida, no sentido de no mais advir de um

    mundo supra-sensorial, chamado vulgarmente mundo das ideias, mas de um mundo sensvel,

    das percepes.

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    05. A obra de arte elevada surge da inebriez dos sentidos, inebriez que no caso no

    mera bebedeira, mas a concentrao dos sentidos de maneira quase racional, organizada. A

    obra constitutiva de afeto, sentimentos e paixo, uma gradao de sentimentos que definem

    a obra de arte em estgios de apreenso - cada um de acordo com nveis de inebriez - at o

    que Nietzsche define como estilo elevado, que seria onde a obra de arte mais marcante.

    06. A obra de arte do estilo elevado aquela que possui determinadas qualidades tais

    como lgica, beleza e distino. Organizada de maneira a expor de maneira mais explcita os

    sentimentos do prprio artista que produz a obra e capaz de expressar de maneira mais

    contundente os prprios sentimentos para o indivduo que percebe e interpreta a obra.

    07. Nesse ponto a forma fundamental para a apreenso da obra de arte. A forma a

    expresso da inebriez, a forma como a esquematizao que possibilita a percepo do

    indivduo. A obra de arte veculo dos sentimentos por meio da forma. A arte, enquanto

    configurao da vontade de poder, entendida na obra de Nietzsche a partir do ponto de vista

    do artista. Nietzsche prope uma esttica masculina, de quem produz a obra em contraposio

    esttica feminina que at ento imperou por meio daqueles que recebiam a obra de arte.

    08. Nietzsche prope a ideia do filsofo-artista como sendo aquele que no somente

    continua a tradio, ou, de certa forma, apenas d prosseguimento a tudo aquilo que j foi dito

    por outros filsofos anteriores, mas como aquele que capaz de dar forma a sensaes por

    meio de sua filosofia. O filsofo-artista cria da mesma maneira como o pintor ou o poeta,

    organizando o mundo sensvel por meio da racionalizao dos pensamentos, ideias e

    conceitos de sua filosofia.

    09. Conhecimento e arte no se diferenciam a partir desse ponto de vista, ambos so

    equivalentes, fazem parte da mesma configurao da vontade de poder que a principal

    caracterstica do ente estante. Nesse sentido ambos fazem parte do conceito de equivalncia

    que define o conhecimento. Equivalncia entendida como um processo de correo da

    verdade.

    10. Isso basicamente a ideia que Heidegger coloca quando fala sobre o outro caminho

    que a filosofia de Nietzsche indica, entra a a perspectiva alm do bem e do mal. Interessante

    notar que Heidegger articula isso sem uma concluso definitiva. A obra inacabada de

    Nietzsche, em verdade uma obra fragmentria, produzida em paralelo obra publicada do

    filsofo, articulada de maneira em que Heidegger prope sua prpria filosofia por meio da

    voz de Nietzsche.

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    11. De forma comparativa poderamos adotar a obra de Plato, Hpias Maior, onde

    Scrates cria um personagem fictcio para poder dar voz aos prprios conceitos sobre a beleza

    e, desta maneira, poder convencer melhor a mente de Hpias.

    12. Nessa obra de Plato, Scrates no chega a uma concluso sobre a definio de

    beleza, no fim diz apenas que as coisas belas so difceis. A verdade sobre a beleza

    permanece em aberto. A lio maior sobre a prpria desconstruo de conceitos que muitas

    vezes permanecem estagnados como verdades absolutas.

    13. A prpria relao entre verdade e arte no texto de Heidegger explorada quando

    Heidegger lana mo de um dos fragmentos de Nietzsche que deixa explcito o horror de

    Nietzsche com relao a dicotomia que levantada quando relacionamos os dois. A arte

    enquanto construo e a verdade enquanto fixao no poderiam confluir ou se correlacionar.

    A contradio entre ambas ontolgica no sentido do prprio devir do ente estante em

    direo ao ser-estar.

    14. Para exemplificar Heidegger explora a ideia de conhecimento enquanto a construo

    dos espaos. O conhecimento ergue seus conceitos se apropriando e fechando os vazios da

    mesma maneira como construimos as paredes sobre o terreno. Ao mesmo tempo que

    construimos, destruimos o espao precedente e erguemos nossa perspectiva diante do

    horizonte. O conhecimento tambm enquanto elevao do olhar, da percepo sobre o mundo.

    15. A proposio de que a obra de arte o meio pelo qual possvel dominar as

    contradies, por meio da percepo sensvel que faz parte do biologismo que Nietzsche

    prope. Isso no mero pressuposto corporal, ou sobreposio do corpo sobre a mente, o

    biologismo entendido no sentido da esquematizao sobre o caos, da construo sobre o

    vazio, o crebro parte constituinte do corpo, a razo, assim como o instinto para o animal,

    entendida como aquilo que demarca todo ente estante humano. A razo humana instintiva,

    constituinte.

    16. A contradio seria dominada na obra de arte na medida em que estabelecida uma

    perspectiva, um olhar sobre o horizonte elevado diante do caos. A obra de arte constitui

    nesse ponto o prazer para quem a usufrui, algo que capaz de ascender o devir do ente.

    17. A ideia de desvelamento que Heidegger prope, talvez se relacione concepo de

    Solger de domnio das contradies que a obra de arte estabelece. O desvelamento como um

    momento em que possvel lanar uma perspectiva sobre o mundo e dessa forma estabelecer

    uma relao como aquilo que nos velado, um momento de iluminao, equivalente ao

    momento de prazer.

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    18. O pintor quando representa uma determinada perspectiva, uma mesa, ou no exemplo

    clssico da cama, ou mesmo um rosto, ele representa apenas um dos lados do objeto. No

    capaz de abarcar o todo da perspectiva, no capaz de mostrar o outro lado, nesse sentido a

    pintura um fragmento da perspectiva, o todo s poderia ser apreendido de forma

    imaginativa, por meio de pressuposies, de uma lgica daquilo que existe enquanto uma

    ideia preexistente. A pintura nesse sentido seria o prprio reflexo do platonismo, platonismo

    enquanto mero fragmento do todo da filosofia de Plato.

    19. O todo que constitudo por uma famlia, onde diferentes membros representam

    diferentes vozes, pode ser entendido tambm como um todo constitudo de fragmentos. A

    valorao estabelecida dentro de uma famlia ocorre na medida em que as diferentes vozes

    negociam seus limites. O problema de rompimento dos fragmentos, neste caso a runa do

    todo, acontece na medida em que no possvel negociar, onde no possvel, ou no

    permitido, exercer sua prpria voz, sua autonomia, onde h de certa forma um totalitarismo.

    20. A separao de uma famlia seria no caso a fragmentao do todo que existia com a

    unio dos fragmentos. A questo que durante a unio, a valorao do fragmento se altera

    conforme o todo e no momento da separao o fragmento carrega consigo mesmo valores do

    todo. O fragmento que j fez parte de um todo leva em considerao os valores que foram

    construdos durante a existncia desse determinado todo.

    21. O cristianismo seria no caso a fragmentao de um todo filosfico que por censura

    foi separado. O totalitarismo cristo fragmentou um todo onde a polifonia de perspectivas

    podia existir sem conflito. O sentido dos fragmentos, no entanto, no se perde, apenas a

    possibilidade de dilogo. Apenas um novo olhar, uma nova interpretao estabelecida, que

    no caso do cristianismo dogmtica e com tendncia absolutista.

    22. Heidegger quando explora a obra fragmentria de Nietzsche parte da construo de

    um todo por meio do dilogo de diferentes fragmentos. A comparao com a famlia seria

    neste caso no em relao separao, mas com a constituio de uma famlia. A unio de

    fragmentos com o intuito de constituir um discurso prprio, com determinado fim. A unio de

    uma famlia tambm a constituio de um discurso que se posiciona em meio ao caos. A

    constituio de uma famlia tambm , nesse sentido, um processo semelhante

    esquematizao frente ao desconhecido.

    23. Enquanto existe um grupo familiar, h uma organizao, quando h o rompimento

    desse grupo, a morte ou a separao, essa organizao desestruturada, em muitos casos

    surge a necessidade de estabelecimento de uma nova organizao. A ruptura precede a

    reorganizao tambm no mbito artstico, a ruptura com o passado estabelecida por

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    determinados movimentos artsticos, apenas como justificativa para novas organizaes que,

    na maioria dos casos, no so inditas, mas meras reorganizaes de partes que j existiam.

    24. A fragmentao da obra de Plato ocorre nesse sentido de maneira a se atingir

    determinados objetivos pela apropriao de conceitos de uma obra filosfica que no caso

    atuou como parmetro para o todo da metafsica. Nietzsche, de acordo com Heidegger, lana

    uma nova possibilidade para a metafsica oriunda do platonismo. E, nesse sentido ela rompe

    diversas ideologias, fragmentariza as ideologias, por meio do fragmento. O prprio estilo j

    indica a inteno da filosofia nietzscheana. A viso, portanto, de que o fragmento enquanto

    sistema no ingnuo, desprovido de inteno. H no uso do fragmento por parte de

    Nietzsche um desvelamento a respeito da prpria vontade do filsofo em romper com os

    valores dominantes. A fragmentao, a desestruturao da ideologias, seria imprescindvel

    para a revalorao e a possibilidade de existncia do supra-homem.

    25. Heidegger o filsofo que capaz de sistematizar a obra fragmentria de Nietzsche

    em torno de famlias de fragmentos sobre temas semelhantes. Nietzsche, nesse sentido, como

    o criador de um universo que possibilita a organizao aberta segundo determinada inteno.

    A obra de arte totalizante entra nesse mbito tambm no sentido de possibilitar o dilogo entre

    partes separadas dentro de um resultado comum.

    26. A percepo como estabelecimento de valor de um sujeito diante do objeto. Por a a

    percepo do sujeito tambm fragmentria. Percebemos segundo os valores que

    priorizamos. O sujeito no capaz de perceber a totalidade do todo, filtra a apreenso do

    mundo de acordo com os valores que lhe so intrnsecos. A revalorao atuaria no sentido de

    possibilitar ao indivduo novas percepes, uma maior abertura para a apreenso do mundo.

    27. O todo de obras de um artista tambm poderia ser compreendido como o conjunto

    de fragmentos que juntos formam a histria do desenvolvimento artstico, conceitual, formal,

    de um artista. At mesmo dentro desse todo possvel valorar a qualidade das fases de um

    artista. Desde a perspectiva do todo, uma parte individual poderia ser compreendida como

    fragmento, assim como os estilhaos de um objeto quebrado. Uma vez reunidos os estilhaos

    temos o todo novamente, mesmo que no em sua totalidade original plena.

    28. A multiplicidade que tende ao nada, no necessariamente vazia, mas faz parte de

    um nada construtivo, passvel de ser configurado. Do nada, ou caos, surge a construo da

    perspectiva. A multiplicidade frtil. A falta de sistematizao til, pois ela abre espao para

    a construo.

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    29. Ser o fragmento uma ruptura com o todo? O pensamento em fragmentos ser

    indcio de loucura? A percepo por fragmentos, ser ela capaz de construir a ideia de todo?

    Ser que o sujeito que percebe est sempre em fragmentos diante do mundo, dos objetos?

    30. Pensar o fragmento, ou pensar em fragmentos pode revelar um modo de vida que

    admite a destruio como parte imprescindvel da prpria construo do pensamento. Ento o

    caminho do alm do bem e do mal no significa colocar-se afastado do bem e do mal, mas

    admitir essa coexistncia e colocar-se em uma situao onde no haja limitaes morais

    quanto a essa dicotomia.

    31. O problema a definio de tal postura enquanto ao que normal, ou seja, sobre a

    possibilidade de qualificar tal modo de vida alm do bem e do mal enquanto normal. A

    questo ento recai no posicionamento diante dos frutos da filosofia de Plato, em especial da

    religio crist.

    32. As prprias religies, nesse sentido, so na medida em que se posicionam contra o

    fragmento, na medida em que constrem um todo por meio da cosmogonia e da moral. A

    desconstruo do todo combatida no sentido de fazer permanecer o valor construdo, nesse

    sentido, impossibilitando a vontade de poder do sujeito, impossibilitando a revalorao.