Trabalho etic 1ano ga - luís cruz

11
Ética e Deontologia Licenciatura em Gestão Aeronáutica 1º ano L u í s M i g u e l C r u z 2010-2011 Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots

Transcript of Trabalho etic 1ano ga - luís cruz

Page 1: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Ética e Deontologia

Licenciatura em Gestão Aeronáutica 1º ano

L u í s M i g u e l C r u z

2010-2011

Símios, humanos, alienígenas,

vampiros e robots

Page 2: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

2

“No TEMPO em que fest ejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e nin-

guém est ava mort o.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, e a

alegria de t odos, e a minha, est ava cert a com uma religião qualquer.

No TEMPO em que fest ejavam o dia dos meus anos, eu t inha a grande

saúde de não perceber coisa nenhuma, de ser int eligente para entre a

família, e de não ter as esperanças que os out ros t inham por mim.

Quando vim a t er esperanças, já não sabia t er esperanças.”

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Reflexão sobre Colin McGinn

Considere-se uma criança nasci-

da de uma família de classe

média, que leve uma vida desa-

fogada (apesar da crise). Quando

somos crianças, tendemos a con-

siderar a nossa posição na vida

como garantida, quase como se

exist isse uma ordem natural das

coisas.

Talvez essa criança tenha nascido no seio de uma família de classe

média, leve uma vida desafogada, goze de boa saúde e efectivamen-

te não tenha qualquer preocupação específica. Com certeza benefi-

ciaria de direitos e privilégios, e normalmente estes seriam respeitados.

Não passaria fome, não estaria aprisionada ou escravizada. Passaria

férias agradáveis.

Em criança é apenas normal pressupor que todos vivem assim. Parece

natural que gostemos do t ipo de vida que a providência nos concedeu.

Não pensamos sobre ela.

Page 3: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

3

No entanto conforme vamos crescendo, começamos a reparar

que há outros menos afortunados. Vemos pessoas à nossa volta mais

pobres que nós, possivelmente sem-abrigo, ou que têm algo grave física

ou mentalmente de errado com eles. Começamos a ouvir falar de pes-

soas noutros países que estão a morrer à fome, ou a serem arrasadas

em guerras, ou a sofrer de doenças terríveis. Algumas crianças como

nós!

Estes factos inquietam-nos; e obrigaram-nos a fazer comparações

com a nossa própria vida. Depressa somos at ingidos por um pensamen-

to assustador: que é realmente apenas sort e não estarmos no lugar

delas. Calhou ter nascido numa certa classe, numa certa parte do

mundo, com certas estruturas sociais, num certo período da história. Mas

não há coisa alguma de necessário nisto — é apenas resultado do aca-

so. As coisas poderiam ter sido de diferentes maneiras que são insupor-

táveis de pensar. Perguntemo-nos como teria sido a nossa vida se t ives-

se-mos t ido azar e vivesse em condições menos felizes. Imaginemo-nos

nascidos numa região de fome, ou tendo surgido antes de a medicina

ter feito qualquer progresso com pragas, ou antes da canalização

moderna.

Isto leva-nos a uma espécie de

pensamento filosófico: que é ape-

nas cont ingente que as coisas sejam

como são, e que poderíamos estar

numa situação muito pior. Somos

apenas sortudos. Do mesmo modo,

percebemos que é apenas azar dos

outros que as suas vidas sejam difíceis.

Não há necessidade divina, ou lógica

intrínseca, relat ivamente a nada disto.

É basicamente um acidente moral. Assim estariamos se não fosse a sor-

te...

Page 4: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

4

E com este pensamento nasce a consciência social. Uma vez que

não existe forte necessidade no ordenamento do bem-estar entre as

pessoas, devemos tentar corrigir (evitáveis) desigualdades e desgraças.

A arbitrariedade deve ser excluída da distribuição do bem-estar. Deve-

mos descobrir as fontes de miséria e privação e tentar eliminá-las, den-

tro do possível. Certamente que não devemos contribuir voluntariamen-

te para a posição desfavorecida de outros. Não devemos abusar do

poder que, por pura sorte cósmica, gozamos. Assim, a moralidade

baseia-se na consciência da contingência do mundo, e é alimentada

pela capacidade de visualizar alternativas.

A imaginação é fundamental para o seu funcionamento. A pessoa

moralmente complacente é aquela que não consegue conceber

como as coisas poderiam ter sido diferentes; é incapaz de dar apreço

ao papel da sorte — em si, um conceito que depende de imaginar

alternativas. Não faz sent ido procurar mudar se este é o modo como as

coisas t êm de ser. A moralidade baseia-se então na modalidade: isto é,

no domínio dos conceitos de necessidade e possibilidade. Ser capaz de

pensar moralmente é ser capaz de pensar modalmente. Especificamen-

te, consiste em ver outras possibilidades — não tomando o actual como

necessário.

Para chegar à questão em causa, é razoável assumir que os adul-

tos humanos sobrest imam persistentemente o papel da sorte biológica

em assegurar o nosso domínio sobre o resto da natureza. Ainda somos

como crianças que tomam os factos contingentes como necessários, e

Page 5: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

5

por isso não conseguimos compreender a importância moral do que

realmente se passa. De facto, as pessoas acreditam profundamente

que há uma necessidade divina a subscrever o nosso poder sobre as

outras espécies, por isso não quest ionam este uso de poder. Na verda-

de, esta suposição está escrita explicitamente em muitas religiões. Em

todos os mundos possíveis estamos no topo da árvore biológica.

Enquanto crianças, considerámos ingenuamente a posição da nossa

família o lugar da necessidade cósmica; agora pressupomos que a

posição da nossa espécie está cosmicamente garantida.

Ou seja, pressupomos que a nossa relação com outras espécies é

essencialmente o modo como as coisas t inham de ser, não fazendo

então sentido quest ionar a ét ica de tal relação. Logo, a consciência

social acaba na fronteira da espécie humana. Não levamos a sério a

ideia de que é apenas sorte que a nossa espécie seja a número um na

hierarquia do poder biológico. Portanto, a nossa consciência acerca da

nossa conduta no mundo biológico não é ferida pela reflexão de

que nós poderíamos estar mais abaixo na escala de dominação das

espécies. Precisamos por conseguinte de alinhar as morais da nossa

espécie com os factos reais da possibilidade biológica.

Para ser específico, não conse-

guimos perceber que poderíamos

estar em relação a outra espécie no

t ipo de posição que os símios ocupam

agora em relação a nós; protegemo-

nos assim das questões morais que

surgem da nossa presente relação

com os símios. Ou então reconhece-

mos a contingência da nossa posição

biológica de formas ocasionais e cir-

cunscritas — como se o nosso incons-

ciente o reconhecesse demasiado

bem, mas nós o reprimíssemos no inte-

resse de escapar às suas consequências morais. Pois o nosso “especis-

Page 6: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

6

mo” inst int ivo oscila quando nos consideramos na extremidade recept o-

ra da dominação de outra espécie. Permit imo-nos fazer parte desta

contingência em certos contextos imaginativos especiais reservados —

não no mundo da rígida moral e realidade polít ica. Em grande medida,

estes contextos t ipicamente envolvem terror e medo e perda de contro-

lo. Sendo que a maior parte deles, hoje em dia, se passa no cinema.

Estou a pensar, claro, em ficção cient ífica e filmes de terror. Aqui, alter-

nativas à nossa supremacia biológica são imaginativamente explora-

das. Existem três t ipos de ficção nos quais nós, humanos, assumimos uma

posição de espécie subjugada — ou planeamos escapar a uma tal

posição contra vantagens significativas.

Em primeiro lugar, claro, temos os alienígenas invasores do espaço,

que vêm para destruir, parasitar ou escravizar a espécie humana — os

usurpadores de corpos, destruidores de estômagos e controladores de

mentes. A ideia aqui é que somente o espaço protege a nossa espécie

das depredações de seres mais poderosos, de modo que as viagens

espaciais são uma potencial via para a despromoção de espécies. A

pura distância é aqui a contingência salvadora. É apenas uma sorte

que tais alienígenas não vivam na Lua, pois então ainda agora seríamos

os seus brinquedos.

Depois temos as histórias de

vampiros, nas quais o tema de

usar a espécie humana para ali-

mento é preponderante. Uma

colónia de vampiros vive à custa

dos habitantes humanos de uma

certa área, bebendo-lhes o san-

gue, matando outros humanos

que se metam no seu caminho.

Os humanos são apenas um

rebanho para os vampiros. Os vampiros são normalmente representados

como extraordinariamente maus, admirando deleitosamente os pesco-

ços prestes-a-serem-perfurados das suas belas jovens vít imas, mas às

Page 7: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

7

vezes são retratados mais simpaticamente, fazendo apenas aquilo que

a natureza os projectou para fazer — escravos da sua própria biologia,

de certo modo. De qualquer forma, são vistos como uma ameaça terr í-

vel para os humanos, e no geral há uma boa dose de sorte envolvida

em evitá-los. Foi por pouco que toda a espécie humana não foi conde-

nada a ser alimento de vampiro para toda a eternidade. E é uma sorte

nós, os espectadores, não termos nascido na Transilvânia.

Uma terceira categoria de despromo-

ção humana introduz máquinas, as nossas

máquinas. (entrará porventura o monstro

de Frankenstein nesta categoria, uma vez

que foi construído por um humano, ainda

que a part ir de partes orgânicas); mas um

exemplo mais recente do género são os

filmes do Ext erminador, nos quais a rede de computadores internacio-

nal, que controla armas nucleares, um dia ganha aut oconsciência e,

temendo pela sua própria sobrevivência nas mãos humanas, começa

uma guerra contra os seus criadores humanos, com consequências mui-

to graves. Este computador constrói os seus próprios robots formidáveis

(“exterminadores”) cuja missão é simplesmente matar tantos seres

humanos quanto possível, e não irão parar. Este é então um caso no

qual os nossos artefactos se revoltam e exercem domínio sobre nós,

causando à nossa espécie miséria e assolação indescrit íveis. E aqui a

contingência é meramente o nível de avanço tecnológico das nossas

máquinas. Se não formos cuidadosos, reza a história, a nossa tecnologia

voltar-se-á contra nós, para nos oprimir; por isso é melhor não confiar-

mos na sorte para prevenir que isto aconteça no futuro. De facto, se for

possível viajar no tempo, devíamos estar a pensar sobre isto agora, uma

vez que o futuro pode conter as tais máquinas exterminadoras tornadas

possíveis através de extensões da nossa tecnologia actual. Pelo menos

assim sugerem os filmes.

Page 8: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

8

Bem, mas isto não passa de entretenimento, a questão que deverá

ficar frisada é que estes pesadelos imaginários representam, de forma

sublimada, a nossa sensação reprimida da contingência da nossa

supremacia biológica enquanto espécie. Dizem: “Vocês podiam estar

na posição que efectivamente outras espécies estão — na posição em

que vocês as puseram.” E, claro, espera-se que simpatizemos connosco

próprios nestes mundos possíveis imaginários: aplaudimos os combaten-

tes pela liberdade que procuram libertar-nos da dominação egoísta de

outros t ipos de seres. Com certeza que não pensamos que, nest as lutas

entre espécies, vale o poder da força. Temos de os combater precisa-

mente porque são moralmente cegos a respeito do que nos estão a

fazer, ou apenas completamente insensíveis.

O que deverá ser sugerido então é que levemos a sério a ideia de

que poderíamos estar, ou podemos estar, numa tal posição, e que nos

perguntemos que princípios morais iríamos querer ver observados se de

facto fossemos nós a espécie mais fraca. Isto é, precisamos de uma

moralidade das espécies informada pela ideia de sorte biológica. Do

mesmo modo, precisamos de nos perguntar que direitos têm de ser

garantidos às espécies que calham então a ser nossas subservientes —

no caso actual, os símios. Que aparência tem isto do ponto de vista

deles? Se os seres humanos nunca t ivessem evoluído, não teria havido

experimentação cient ífica usando símios, nem confinamento de símios

em jardins zoológicos e noutros lugares, nem morte sistemática de símios

por desporto.

Os símios estariam sem dúvida bem

melhor sem nós. Têm azar cósmico, tal

como nós teríamos se algum dos pesadelos

acima se tornasse realidade. E tal como no

nosso caso lutaríamos para ter os efeitos

nocivos de tal azar invert idos — usando

argumentação moral sólida como nossa

just ificação — assim também deveríamos

reconhecer que não deve passar desper-

cebido o azar dos símios em ter seres

Page 9: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

9

humanos com quem rivalizar. Numa palavra, devemos deixar de os

oprimir. Devemos garantir-lhes os direitos que a sua natureza intrínseca

exige, e não apenas aquiescer aos abusos de poder resultantes da nos-

sa casual supremacia biológica. Aqueles que estão nas jaulas ou nas

mesas de vivissecção poderíamos ter sido nós: e é uma certeza inaba-

lável que não iríamos ter gostado disso, nem um pouco. Em suma, a

moralidade não deve ser ditada pela sorte.

Acrescente-se uma ideia para um argumento cinematográfico.

Estamos a dois milhões de anos no futuro e o tempo não foi favorável

para a espécie humana. A inteligência humana atingiu um nível estável

no século XXI quando as limitações fisiológicas de dar à luz impediram

as cabeças das crianças de se tornarem maiores. Igualmente por infor-

túnio, as doenças do mundo moderno — físicas e psicológicas — não

foram vencidas, ficando os seres humanos em geral uma espécie débil

e neurót ica. A poluição, o sobreaquecimento, o crime e a pressão fize-

ram dos humanos uma espécie fraca e enervada. Porém, os símios

gozaram de um progresso constante. Os seus lóbulos frontais têm estado

sempre em expansão, estão aptos e robustos, e desde há muito que se

soltaram dos grilhões humanos. Têm todos os adereços da civilização.

De facto, agora o st atus quo foi invert ido: os humanos estão agora

vulneráveis aos seus caprichos. Sem olhar a meios, alguns dos gorilas

mais inescrupulosos — aqueles com casas vistosas e jactos privados —

iniciaram o negócio de venda de espécimes humanos para vários fins.

Alguns vão para experimentações médicas concebidas para beneficiar

os símios, outros para matadouros, os poucos que têm sorte tornam-se

animais de est imação, porém outros são vendidos para prost ituição

inter-espécies. Até então tudo isto é ilegal, feito no mercado negro, e é

oficialmente desaprovado pelo governo dos símios.

Mas, dado o estado vulnerável de tantos humanos, é fácil de per-

petrar. O grande problema para os empresários símios é conseguirem a

aceitação e legalização do comércio de seres humanos de forma a

não terem de operar fora da lei. Existe este incómodo grupo de pressão

Page 10: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

10

símio que desaprova a subjugação humana nestes modos e, claro, os

próprios seres humanos não estão entusiasmados com a situação. Os

duvidosos negociantes símios estão a tentar corromper alguns altos ofi-

ciais para que aceitem uma lei a autorizar o que agora é feito apenas

ilegalmente. Felizmente, a propaganda é muito fácil, dado o que todos

os símios sabem acerca do seu tratamento nas mãos dos seres humanos

durante tantos séculos — está aí nos livros de história. É bem feito, não

é?

Parece que vão conseguir inst itucionalizar a exploração de seres

humanos, a não ser que uma corajosa aliança entre bons símios e seres

humanos desesperados consiga impedi-los...

Muito bem, a questão é a seguinte. Suponha-se que esta história se

tornou realidade: não seria melhor poder dizer aos símios, que no geral

são uma espécie decente e amigável, que parámos volunt ariamente

de os explorar na últ ima década do XX? Nós entendemos a incorrec-

ção da nossa conduta; então, por que haveriam eles de repetir os nos-

sos erros anteriores? Não fomos simplesmente forçados, pela sua ascen-

dência biológica e pelo nosso declínio, a conceder-lhes direitos em,

digamos, meados do século mil após uma guerra sangrenta; fizemo-lo

simplesmente por uma questão de princípio moral, bem antes de ser-

mos obrigados a fazê-lo. Poderíamos assim apelar para o sent ido moral

deles citando o nosso próprio exemplo moral anterior. Teríamos uma

resposta para os símios mais cínicos que insist iam que foi apenas “azar”

nosso que eles tenham assumido agora a posição mais poderosa. Eu,

pelo menos, gostaria de pensar que, se o meu argumento cinematográ-

fico um dia vier a ocorrer, os nossos descendentes humanos

terão alguma defesa moral para contrariar a sua exploração cruel nas

mãos e mandíbulas de outras espécies. Se nós podemos fazê-lo, por

que não podem eles?

Page 11: Trabalho etic 1ano   ga - luís cruz

Símios, humanos, alienígenas, vampiros e robots 2010

11

Um trabalho de Luís Miguel Cruz para a cadeira de Ét ica e Deontologia

do 1º ano da Licenciatura em Gestão Aeronáutica

Referências

McGinn, Colin. 1993. The Great Ape project. Nova Iorque : s.n., 1993, pp. 146-151.