Tradução 1. O trabalho recente sobre a controvérsia internismo-externismo.pdf

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Investigação Filosófica, v. 5, n. 2, 2014. (ISSN: 2179-6742) Traduções/Translations http://periodicoinvestigacaofilosofica.blogspot.com.br IF 54 O TRABALHO RECENTE SOBRE A CONTROVÉRSIA INTERNISMO- EXTERNISMO * Laurence BonJour Tradução de Luiz Helvécio Marques Segundo Embora o debate internismo-externismo tenha permanecido o principal foco da discussão epistemológica durante a última dúzia de anos ou mais, não é nada claro que algum progresso real rumo a uma solução tenha sido feito. Embora novos argumentos tenham sido aduzidos (a maioria em grande parte por Alvin Goldman: veja abaixo), tanto a definição das principais posições quanto a importância última da disputa parecem agora, se é que parecem, menos claros do que anteriormente pareciam. Como é aterradoramente frequente na filosofia, uma questão que inicialmente parecia clara e bem definida parece às vezes simplesmente se dissolver sob minucioso escrutínio. Focar-me-ei, no espaço limitado que aqui tenho, em três tópicos centrais sob pena de nada dizer sobre muitas outras questões interessantes. 1 Começarei (§1) com uma discussão da principal distinção entre o internismo e o externismo. Depois (§2), discutirei alguns dos argumentos relevantes, focando-me principalmente na alegação recente de Goldman de ter demolido o internismo. Passo então (§3) à discussão da importância mais ampla da questão, tentando determinar em que medida as duas perspectivas são genuinamente rivais, e que escolha tem de ser feita. §1. O que é o internismo? Suporei aqui que o internismo é a perspectiva que principalmente precisa de clarificação, sendo o externismo definido simplesmente como a negação do internismo. A primeira pergunta que precisa ser respondida diz respeito à principal aplicação desse termo: parece claro que é aplicado a abordagens de algum conceito epistêmico, mas a qual primariamente? Aqui, as principais alternativas, aparentemente, são o próprio conceito de conhecimento, o conceito de garantia, e o conceito de justificação epistêmica. * “Recent Work on the Internalism-Externalism Controversy”, in A Companion to Epistemology, eds. Jonathan Dancy, Ernest Sosa e Mathias Steup. Blackwell, 2010, pp. 33-43. 1 Devo mencionar em particular a defesa naturalisticamente orientada do externismo de Hilary Kornblith em seu 2002. Para uma discussão crítica, veja Bonjour 2006.

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    O TRABALHO RECENTE SOBRE A CONTROVRSIA INTERNISMO-EXTERNISMO* Laurence BonJour

    Traduo de Luiz Helvcio Marques Segundo

    Embora o debate internismo-externismo tenha permanecido o principal foco da discusso epistemolgica durante a ltima dzia de anos ou mais, no nada claro que algum progresso real rumo a uma soluo tenha sido feito. Embora novos argumentos tenham sido aduzidos (a maioria em grande parte por Alvin Goldman: veja abaixo), tanto a definio das principais posies quanto a importncia ltima da disputa parecem agora, se que parecem, menos claros do que anteriormente pareciam. Como aterradoramente frequente na filosofia, uma questo que inicialmente parecia clara e bem definida parece s vezes simplesmente se dissolver sob minucioso escrutnio.

    Focar-me-ei, no espao limitado que aqui tenho, em trs tpicos centrais sob pena de nada dizer sobre muitas outras questes interessantes.1 Comearei (1) com uma discusso da principal distino entre o internismo e o externismo. Depois (2), discutirei alguns dos argumentos relevantes, focando-me principalmente na alegao recente de Goldman de ter demolido o internismo. Passo ento (3) discusso da importncia mais ampla da questo, tentando determinar em que medida as duas perspectivas so genuinamente rivais, e que escolha tem de ser feita.

    1. O que o internismo?

    Suporei aqui que o internismo a perspectiva que principalmente precisa de clarificao, sendo o externismo definido simplesmente como a negao do internismo. A primeira pergunta que precisa ser respondida diz respeito principal aplicao desse termo: parece claro que aplicado a abordagens de algum conceito epistmico, mas a qual primariamente? Aqui, as principais alternativas, aparentemente, so o prprio conceito de conhecimento, o conceito de garantia, e o conceito de justificao epistmica.

    * Recent Work on the Internalism-Externalism Controversy, in A Companion to Epistemology, eds. Jonathan

    Dancy, Ernest Sosa e Mathias Steup. Blackwell, 2010, pp. 33-43. 1 Devo mencionar em particular a defesa naturalisticamente orientada do externismo de Hilary Kornblith em seu

    2002. Para uma discusso crtica, veja Bonjour 2006.

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    No h dvida de que o rtulo internismo (ou o rtulo contrastante externismo) pode ser aplicado a abordagens ao conhecimento; mas parece claro que, se vamos us-los para marcar uma distino interessante aqui, isso tem de ser em virtude deles se ligarem a algum elemento ou ingrediente mais restrito do conhecimento, presumivelmente ou garantia ou justificao sendo que os outros ingredientes plausveis do conhecimento, nomeadamente a crena, a verdade e alguma condio anti-Gettier parecem cada um deles se enquadrar claramente ou no internismo (a crena) ou no externismo (os outros dois). Michael Bergman sugeriu que a noo de internismo deveria ser considerada como pertencendo primariamente garantia, entendida (no sentido tcnico introduzido por Plantinga2) como seja o que for que se adicione crena verdadeira para produzir conhecimento;3 mas alm dessa incluso da condio anti-Gettier obviamente externa, essa noo de garantia me parece altamente artificial, correspondendo a nada no pensamento comum, e tornando os principais argumentos intuitivos difceis ou impossveis de se avaliar. Por essas razes, seguirei inicialmente a maior parte da bibliografia tomando a noo de internismo e da distino resultante como se aplicando primariamente s abordagens da justificao epistmica, aceita por enquanto com uma das exigncias para o conhecimento (junto com a crena, a verdade, e a condio anti-Gettier) embora eu v (no 3) discutir algumas razes para se duvidar do quo satisfatria de fato essa concepo.

    O que significa, ento, dizer que uma abordagem da justificao internista em carter? O que exatamente supomos como interno ao qu? Num respeitado manual introdutrio, Mathias Steup oferece a seguinte caracterizao:

    O que torna uma abordagem da justificao internista que ela impe certa condio queles fatores que determinam se uma crena justificada. [...] A condio requer [que tais fatores] sejam internos mente do sujeito ou, pondo de outro modo, acessvel reflexo.4

    Temos aqui aquelas que claramente so as duas principais alternativas nas discusses recentes sobre uma abordagem ao internismo,5 alternativas que parecem de fato distintas.6 De acordo

    2 Veja Plantinga, 1993, p. 3.

    3 Bergmann, 1997.

    4 Steup, 1996, p. 84.

    5 Abordagens prximas aparecem, e.g., em Fumerton, 1995, pp. 60-66 (embora Fumerton tambm mencione

    duas outras verses de internismo); e em Conee e Feldman, 2004, p. 55. 6 Steup tenta reconcili-las dizendo que a expresso acessvel reflexo pode ser tomada como uma

    elaborao de como a expresso interno mente tem de ser entendida (Steup, 1996, p. 85), mas isso parece claramente insatisfatrio por razes que emergiro mais tarde em minha discusso.

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    com a primeira, qual Conee e Feldman (talvez seus principias proponentes) adotaram o rtulo mentalismo, uma abordagem internista apenas no caso em que recorre apenas a coisas que so internas vida mental da pessoa, a estados, eventos e condies mentais ocorrentes e disposicionais.7 De acordo com a segunda, que mais comumente referida com internismo acessibilista, uma abordagem internista aquela de acordo com a qual os fatores justificativos todos eles, de acordo com a maioria das verses comuns tm de ser acessveis pessoa, num sentido em que preciso pelo menos alguma clarificao. Vale a pena notar que a base para a concepo mentalista do internismo parece ser, surpreendentemente, metafsica em carter; ao passo que, em contraste, a base para a concepo internista acessibilista reconhecidamente epistemolgica.8

    Qual dessas duas perspectivas melhor capta a ideia intuitiva central do internismo? Ao pensar sobre essa questo ser til ter em mos uma amostra da perspectiva externista da justificao epistmica para servir como ponto dialtico, pois certamente um bom teste para uma abordagem internista que ela possa dar um tratamento claro daquilo que supostamente falta s perspectivas externistas. A escolha bvia para esse propsito, e de fato a nica perspectiva externista especfica que ser discutida, o fiabilismo: a perspectiva de que uma crena epistemicamente justificada se resulta de um processo cognitivo que (suficientemente) fivel em produzir crenas verdadeiras.9 Argumentarei que o mentalismo faz um trabalho insatisfatrio em captar o contraste pretendido com tal perspectiva externista e, que, por essa razo, o internismo acessibilista prefervel.10

    H dois aspectos dessa razo. A primeira que h exemplos possveis de estados e processos

    mentais que no parecem produzir o tipo de justificao internista que seria contrastado da maneira correta com o fiabilismo. Considere, por exemplo, a ideia bastante aceita de estados mentais inconscientes, estados que presumivelmente poderiam ser combinados com processos 7 Conee e Feldman, Internalism Defended, em Conee e Feldman, 2004, pp. 55-56. Na formulao preferida

    deles, a tese internista a de que a justificao epistmica sobrevm a itens desse tipo. 8 Embora me foque quase que inteiramente nessas duas concepes de internismo, elas no so as nicas a serem

    encontradas na bibliografia. razoavelmente claro, porm, que so as mais proeminentes e geralmente aceitas. 9 O criador e principal proponente do fiabilismo , certamente, Alvin Goldman. Veja inter alia Goldman, 1986.

    10 A razo inicial de Conee e Feldman para adotar o mentalismo como abordagem ao internismo que ele se

    aproxima bastante das distines [entre internismo e externismo] na sua contraparte na filosofia da mente e na tica (Conee e Feldman, 2004, p. 57): as posies internistas nessas outras reas so teses da sobreveincia, e a formulao preferida de Conee e Feldman do mentalismo, como notado acima, sustenta que o estatuto justificacional sobreveniente aos estados mentais. Mas essa razo obviamente no tem uma tendncia real de mostrar que a mentalismo assim entendido o melhor modo de capturar a distino epistemolgica que nos interessa: que h um paralelo significativo entre a epistemologia e essas outras reas no obviamente algo que possa ser aceito antes que uma abordagem epistemologicamente adequada seja oferecida.

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    mentais inconscientes. No h razo aparente pela qual esses estados ou processo mentais no poderiam de algum modo tornar provvel a verdade de uma crena particular, e nem pela qual eles poderiam no contribuir causalmente para se sustentar tal crena. Esse seria um tipo de processo cognitivo fivel, um processo que difere daqueles (tais como os processos perceptuais mais comumente citados pelos fiabilistas) apenas por serem inteiramente internos mente. Mas por que esse fato metafsico deveria ter qualquer importncia epistemolgica, dado que em ambos os casos a razo a favor da crena que est disponvel na situao no uma razo cuja pessoa em questo normalmente estar ciente? Essa uma queixa internista comum ao fiabilismo, mas parece tambm se aplicar justificao internista (de acordo com o mentalismo) anteriormente descrita. Um tipo diferente de exemplo, que trata do mesmo ponto, uma justificao que apela a algum tipo de propriedade do estado mental de uma pessoa talvez a coerncia de todo o seu sistema de crenas que seja demasiado complexa e multifacetada para a pessoa ser sempre capaz de apreender refletivamente que foi obtida. Novamente, embora uma crena que resulte da presena de tal propriedade pudesse ser fiavelmente causada, difcil ver por que uma justificao que apela a esse tipo de situao inteiramente mental deveria contar como internista de modo que as justificaes fiabilistas comuns no: uma vez mais, h uma diferena metafsica, mas uma diferena que parece no ter importncia epistemolgica bvia.

    O outro lado da moeda a possibilidade de elementos externos mente mas que so, no obstante, capazes de serem diretamente apreendidos de uma maneira que lhes permita desempenhar um papel justificativo, um papel que contraste com uma justificao fiabilista tpica naquilo que intuitivamente parece ser o modo correto. As teorias da percepo realistas diretas sustentam que os objetos materiais so capazes de serem apreendidos diretamente de uma maneira que permite que a sua presena na percepo justifique as crenas correspondentes. E muitas abordagens racionalistas da justificao a priori sustentam que entidades como universais, entidades matemticas e conexes lgicas podem ser direta ou intuitivamente apreendidas e, por isso, desempenham um papel na justificao das afirmaes a priori. Em ambos os casos h entidades mentais envolvidas, mas a suposta justificao parece envolver essencialmente a relao de tais estados com essas entidades no-mentais, de modo que as entidades no-mentais desempenham um papel indispensvel.11 Certamente que ambas as perspectivas foram seriamente criticadas, e meu prprio ponto de vista que a 11

    Estou em dbito aqui com uma valorosa discusso em Fumerton, 1995, pp. 60-62.

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    primeira est errada. Mas na verdade nenhuma delas est to obviamente errada a ponto de ser completamente ignorada de maneira razovel. O ponto ento que em cada caso a justificao, embora recorra a entidades no-mentais, parece contrastar com a justificao fiabilista exatamente na maneira correta epistemologicamente significante: a base para a justificao aquela em que a pessoa capaz de (i) apreender refletidamente e (ii) avaliar criticamente, e so essas as caracterstica, concedo, que tornam plausvel classific-la como internista em carter.12

    Sugiro, ento, que a abordagem correta do internismo no fim das contas o internismo acessibilista: o que principalmente importa no o estatuto metafsico de um elemento ou fator justificativo, mas ao invs a sua disponibilidade pessoa como uma razo (ou a base pra uma razo) para se aceitar uma crena particular, uma razo que ela esteja ento em posio de avaliar criticamente pois a falta dessas caractersticas que fazem uma justificao fiabilista tpica parecerem insatisfatrias de acordo com as intuies reconhecidamente internistas. Isso dizer que o tipo relevante de internalidade ser interno perspectiva cognitiva de primeira pessoa de algum, no qual ser interno sua mente num sentido metafsico claramente no suficiente e defensavelmente no necessrio.

    Esse modo de entender o internismo tem dois corolrios. Um, que, com efeito, temos pressuposto at agora, mas que s vezes rejeitado,13 que apenas uma perspectiva de acordo com a qual todos os elementos exigidos para se fornecer uma razo cogente para a crena em questo so apropriadamente acessveis pode satisfazer a intuio internista fundamental. Somente se for assim que a pessoa genuinamente tem uma razo, como oposta a meramente

    parte de uma razo, para a crena, uma razo que pudesse parecer justificar refletidamente a crena e que estivesse disponvel para a avaliao crtica. E uma perspectiva externista ser, ento, aquela que permite que algum elemento que seja essencial cogncia de uma razo justificativa esteja fora da, externo a, perspectiva cognitiva da pessoa. o fato de que isso claramente possvel para o fiabilismo que o torna uma perspectiva externista.

    12

    Outro exemplo seria a posio de G. E. Moore de que os dados dos sentidos, embora objetos da experincia direta e, por isso, aparentemente capazes de contribuir para a justificao, so eles prprios no-mentais em carter uma tese que surpreendentemente plausvel em pelo menos algumas concepes dos dados dos sentidos e daquilo que conta com mental. Veja Moore, 1922, pp. 1-30. 13

    E.g. por Bergmann, 1997.

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    O outro corolrio, que foi ainda mais desafiado, que a acessibilidade dos fatores ou elementos justificativos tm de ser entendidos de maneira bastante forte. Parte desse desafio j fora feito na insistncia de Steup e outros sobre a acessibilidade reflexiva: ter acesso referncia til ou a uma situao perceptvel que pudesse fornecer uma razo no torna essas razes internamente acessveis da maneira correta, uma vez que at que eu faa aquilo que exigido para us-las, no tenho efetivamente a razo em questo. Mas do mesmo modo (e eis outro problema com o mentalismo) o fato de que uma base para uma razo de algum modo escondida em minha experincia perceptiva, ou no sistema de crenas, ou em outros contedos mentais de um modo inteiramente desapercebido tambm no parece me fornecer uma razo apropriadamente internista para a crena correspondente (novamente, a coerncia irreconhecida do meu sistema de crenas completo um bom exemplo): at que eu faa aquilo que necessrio para isolar os ingredientes de tal razo e junt-los de maneira apropriada, novamente no tenho efetivamente a razo em questo e, obviamente, no estou em posio de avali-la criticamente. No quero aqui insistir que tudo isso tem de ser feito de maneira explcita e completamente manifesta, embora de um ponto de vista estritamente epistemolgico isso seja obviamente ideal. Mas algum tipo de conscincia tcita ou implcita daquilo que est envolvido exigida se tenho que ter uma razo efetiva ao invs de uma razo meramente potencial. E uma razo meramente potencial no difere de uma justificao fiabilista na maneira correta: qualquer justificao fiabilista individual uma justificao que as pessoas pelo menos em princpio poderiam se tornar explicitamente cientes dela, e o mero fato de que tal conscincia mais fcil de alcanar num caso do que no outro no parece em si fazer uma diferena epistemolgica na justificao da crena na situao em que tal conscincia ainda no foi alcanada.

    2. Argumentos recentes

    Passando aos argumentos a favor e contra essa concepo de internismo e a concepo correlata de externismo, quero primeiro considerar alguns argumentos que se tornaram padro em cada lado (focando-me novamente inteiramente nas verses fiabilistas do externismo), mas que pouco precisa ser dito num exame dos desenvolvimentos recentes. Do lado internista temos: (1) o apelo a casos do gnio maligno cartesiano e similares a fim de mostrar que a fiabilidade no necessria para a justificao; (2) o apelo a exemplos de clarividncia e similares a fim de mostrar que a fiabilidade no suficiente para a justificao; e (3) a

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    objeo ao fiabilismo que deriva do problema de se escolher a especificao geral relevante para determinar a fiabilidade de um processo cognitivo especfico (o problema da generalidade). Do lado externista temos: (1) o argumento de que sujeitos epistmicos no sofisticados tm crenas justificadas e conhecimento, muito embora eles no satisfaam as exigncias de qualquer abordagem internista plausvel; e (2) o argumento de que o internismo conduz inevitavelmente ao ceticismo.14 Fora os argumentos mais especficos de Goldman, considerados abaixo, alguns dos quais equivalem a elaboraes mais especficas do argumento externista (2), tem havido relativamente pouca coisa nova na discusso desses argumentos no perodo aqui examinado. Um ponto que merece ser mencionado, porm, que continua a no haver sequer uma aproximao soluo do problema da generalidade, o que fortemente me faz pensar que simplesmente no h soluo a ser encontrada e, por conseguinte, que a principal perspectiva externista, no fim da contas, no pode sequer ser formulada claramente.15

    Focar-me-ei aqui quase que inteiramente naquela que certamente a contribuio mais substancial ao panorama argumentativo nessa rea no perodo relevante, a saber, a extensa e, na opinio do autor, completamente devastadora crtica de Goldman ao internismo em seu artigo Internalism Exposed.16 Nesse artigo, Goldman argumenta que tanto o internismo quanto os principais argumentos a seu favor, quando cuidadosamente examinados, esto cheios de problemas. Ele conclui: No vejo esperanas para o internismo; ele no sobrevive ribalta (p. 293).

    Na verdade, h muitos aspectos da discusso de Goldman que so seriamente problemticos.

    Embora ele comece com o que parece ser uma formulao do internismo acessibilista, a sua discusso, contudo, frequentemente parece pressupor o mentalismo, aparentemente sem se aperceber das diferenas entre essas perspectivas. A sua concepo da razo bsica a favor do internismo em termos daquilo que ele chama de concepo de orientao deontolgica da justificao, embora inegavelmente reflita algo que alguns internistas tenham dito, parece-me no captar a intuio internista central. E as verses especficas do internismo que ele 14

    Para uma discusso mais detalhada desses argumentos, veja BonJour, 2002. 15

    Para uma excelente discusso desse problema, veja Conee e Feldman, The Generality Problem for Reliabilism, em Conee e Feldman, 2004, pp. 135-165. A tentativa recente melhor desenvolvida e mais extensa de resolver o problema de longe a de William Alston, no captulo 6 de seu 2005. Contrrio a alegao de Alston, no estou convencido de que ele tenha sido bem sucedido em resolver o problema, mas h pouca dvida de que a sua discusso o ponto de partida para qualquer tentativa futura nessa direo. 16

    Goldman 1999. As referncias entre parnteses nesta seo sero das pginas desse artigo.

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    formula ao longo do artigo no correspondem muito bem a algumas das idias que os internistas reais sempre defenderam. Parece-me que tudo isso d um carter de certo modo espantalhesco a uma boa parte de sua discusso.17 Na presente discusso, porm, tratarei primariamente de alguns dos problemas mais especficos que Goldman levanta para o internismo. No penso que quaisquer desses argumentos apiem a concluso de Goldman de que o internismo fundamentalmente insustentvel. Mas levantam problemas que uma perspectiva internista precisa tratar, problemas que podem de fato contribuir de maneira importante para refinar e clarificar a posio internista.

    Considere primeiro aquilo que Goldman de o problema das crenas estocadas: [...] Num dado momento a vasta maioria das crenas de uma pessoa esto estocadas na memria ao invs de serem ocorrentes ou estarem ativas [...] Ademais, para quase todas essas crenas o estado consciente dessa pessoa nesse momento nada inclui que as justifique. Nenhuma experincia perceptiva, nenhum evento de memria consciente, e nenhumas premissas conscientemente levadas em conta no momento selecionado sero justificacionalmente suficientes para tal crena. De acordo com o internismo forte, ento, nenhumas dessas crenas est justificada naquele momento. (p. 278) (Internismo forte aqui a perspectiva de que apenas fatos sobre os estados conscientes de um agente num momento particular podem justificar suas crenas naquele momento.)

    De fato, o principal problema com o qual Goldman parece estar preocupado aqui, na verdade, no se limita como tal s crenas estocadas, mas tem a ver ao invs com o problema de se num dado momento pode haver conscientemente uma base adequada na mente que justifique praticamente qualquer crena que se possa escolher, esteja estocada ou no. Mas, embora alguns internistas tenham talvez aceitado tolamente a limitao ao que est disponvel no momento (por mais extensa que seja!), no h, sugiro, qualquer coisa acerca da base internista que requeira de algum modo tal perspectiva quixotesca. O que est diretamente disponvel a partir da perspectiva epistmica em primeira pessoa no deixa de estar disponvel ou se torna de algum modo externo em carter s porque tem de ser reunido, revisto e examinado a todo momento. Na verdade, uma razo justificativa ou argumento cujos elementos foram reunidos ao longo do tempo tm ainda de ser apreendidos de algum modo como um todo unificado 17

    Para alguma elaborao desses pontos, veja BonJour 2001. Esse artigo tambm contm uma discusso mais completa dos argumentos de Goldman do que possvel aqui, e dele que tirei algum do material da presente discusso. (Para outras considerao internistas dos argumentos de Goldman bastante diferente, veja Earl Conee e Richard Feldman, Internalism Defended, em Conee e Feldman 2004, pp. 53-82).

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    com a ajuda da memria e talvez de registros escritos. Mas no h razo pela qual essa apreenso tenha de ser momentnea. Assim, a primeira objeo no forte o bastante contra formas razoveis de internismo.18

    A segunda objeo que pretendo discutir aquela a que Goldman chama o problema dos indcios esquecidos. Ela diz respeito aos casos em que a pessoa em questo simplesmente esqueceu-se da base indiciria sobre a qual uma crena foi originalmente aceita, mas ainda mantm tal crena. Assim, em seu exemplo, Sally leu, na seo de cincia do New York Times (que podemos aceitar como sendo uma fonte altamente fivel), um artigo sobre os benefcios sade de se comer brcolis e formou a crena correspondente. Ele ainda tem a crena, porm esqueceu-se como a adquiriu. Assim, ela parece no ter disponvel uma justificao apropriadamente internista, embora, de acordo com Goldman, a sua crena ainda seja justificada (p. 280).19

    Na verdade, se Sally tem uma razo internista a favor de sua crena, e o quo forte ela , depender de outros detalhes do caso, alguns deles bastante sutis. Uma questo se Sally tem boas razes para pensar que ela geralmente cuidadosa com as fontes pelas quais ela aceita suas crenas ou talvez apenas as crenas sustentadas com o grau de segurana com o qual ela sustente essa crena. Outra questo se Sally acredita que adquire a crena de uma fonte fivel, ainda que no possa se lembrar qual , e se tem razes para pensar que tanto seus juzos sobre a fiabilidade das fontes quanto as suas memrias so fiveis. Uma terceira questo se Sally pode se lembrar de vrios tipos de detalhes que ampliam e reforam a crena em questo: os detalhes sobre os modos especficos em que o brcolis leva a uma boa

    sade e sobre como ele produz esses efeitos, ainda que as memrias desses detalhes sejam tambm crenas cujas bases justificativas originais ela no se lembra. Sally poderia muito bem ter boas razes internistas para pensar que as crenas pelas quais ela pode se lembrar dos detalhes desses tipos muito provavelmente foram derivadas de uma fonte fivel e talvez 18

    Para ser sincero, h um problema prximo para algumas posies intenistas. Reflete-se naquilo que Goldman chama o problema da recuperao simultnea, que , como ele sugere, particularmente um problema para as razes ou argumentos justificativos caractersticos do coerentismo holista: duvidoso que uma razo que dependa da coerncia de todo o sistema de crenas de algum ou mesmo de um subsistema muito amplo seja capaz de ser reunida e compreendida adequadamente com a ajuda da memria e registros escritos. 19

    E, se verdadeiro, esse caso constitui uma instncia de conhecimento. No vejo razo para um internista negar que haja um sentido ou uso de conhecimento no qual a crena de Sally conte como conhecimento (muito provavelmente, junto de outros sentidos em que no conta, e ainda outros nos quais o resultado , de longe, incerto). s vezes os epistemlogos parecem falar do conhecimeto como se fosse uma bandeira que se esteja permitido balanar, ou mesmo um emblema que se possa vestir, e no tenho objees a Sally balanar a bandeira do conhecimento, se ele assim o quiser (ou a algum mais que queira).

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    tambm muito provavelmente acuradamente lembradas. Com base em algumas, ou todas essas respostas, Sally poderia ter os recursos para uma razo internista a favor de uma crena principal, cuja fora obviamente variaria com os detalhes. Admitidamente, essas justificaes provavelmente no so to fortes quando as que ela teria no momento em que lia o artigo original, mas esse parece exatamente o resultado correto e de modo algum implausvel.

    Uma alegada terceira objeo surge do problema do intervalo da deciso doxstica. Goldman argumenta que as supostas variedades de internismo que permitem o apelo apenas a estados mentais conscientes (sejam ocorrentes ou estocados na memria) tm de ser expandidas a fim de permitir o acesso s relaes lgicas ou probabilsticas, e prope que isso seja feito permitindo-se que algumas das propriedades formais dos estados mentais, isto , as propriedades formais e matemticas de seus contedos contem como parte da base para as justificaes ou razes internistas, embora insista que deveriam se restringir quelas razes que so conhecveis pelo agente no momento da deciso doxstica atravs do emprego de uma gama de relaes computacionais ou algortimos (pp. 282-3). O problema ento quanto tempo deveria ser permito a tais computaes, um problema que agravado, de acordo com Goldman, pela preocupao de que os estados mentais de um agente poderiam mudar durante o intervalo permitido de tal modo que afeta a justificao da proposio em questo (pp. 283-4).

    Mas esse modo de formular o suposto problema me parece errado de diversos modos. Como j vimos, nada h sobre a base a favor do internismo que limite os fatores ou elementos justificativos relevantes aos estados mentais. Se as propriedades ou relaes lgicas so diretamente acessveis via raciocnio a priori, ento podem tambm desempenhar um papel justificativo internista. Alm do mais, embora essa seja uma questo mais discutvel, no vejo qualquer razo para se limitar as propriedades e relaes em questo quelas que so formais num sentido interessante ou, menos ainda, quelas que so conhecidas via procedimentos computacionais ou algoritmos.20

    Mais importante, a ideia de um intervalo de deciso fixo dentro do qual as propriedades lgicas e probabilsticas elegveis tm de ser determinadas, embora ainda exclua a

    20

    As pessoas de fato raramente fazem uso de procedimentos desse tipo para decidir questes lgicas como opostas a questes matemticas. Certamente a imagem que Goldman evoca a certa altura de um aspirante a coerentista tentando estabelecer a consistncia de seu conjunto de crenas usando uma tabela de verdade muito longa no uma perspectiva plausvel das operaes cognitivas reais de algum.

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    possibilidade de uma mudana mental significante, artificial ao extremo. Obviamente que mudanas de vrios tipos nos estados mentais de algum podem afetar questes de justificao internista, mas isso, tanto quanto posso ver, no tem qualquer conexo essencial com a questo sobre as propriedades e relaes conhecveis a priori a que podemos recorrer. O comportamento de tais mudanas mentais na justificao simplesmente uma questo independente, e no vejo razo pela qual as duas tm de ser tratadas conjuntamente da maneira que Goldman sugere.21

    Um quarto problema, e de certo modo relacionado, o problema da disponibilidade. Embora Goldman apresente a questo em relao ao suposto conjunto de operaes computacionais cujos resultados so elegveis pela incluso de justificaes ou razes internistas (p. 285), penso que, por razes j suficientemente indicadas, melhor apresent-la simplesmente como o problema de quais propriedades ou relaes discernveis a priori so assim elegveis. O que supostamente cria o problema so as grandes disparidades que existem entre as pessoas no que diz respeito sua capacidade, como um resultado de treinamento e habilidade intelectual bsica, de alcanar tais insights a priori. E o problema ento que insights so internisticamente admissveis.

    A minha resposta a esse suposto problema simplesmente que no consigo ver por que h algum problema aqui afinal. Parece bvio que a resposta deveria ser que um insight particular a priori pode desempenhar um papel nas justificaes ou razes internistas de uma dada pessoa apenas no caso em que essa pessoa capaz de compreend-lo ou apreend-lo. As relaes lgicas que so demasiado complicadas ou sutis para eu aprender no podem

    contribuir para a minha justificao de minhas crenas, mas caso voc possa apreend-las, elas podem desempenhar perfeitamente bem um papel em sua justificao. Como diz Goldman, isso significa que duas pessoas precisamente no mesmo estado indicirio (em termos de situao perceptiva, crenas de fundo, e assim por diante) poderiam ter permisses epistmicas diferentes (p. 286), isto , poderiam diferir naquelas crenas que so justificadas 21

    Poderia, contudo, parecer haver uma questo de quanto tempo uma pessoa levaria para alcanar insights a priori de vrios tipos ou mesmo argumentos justificativos resultantes, mas difcil ver a importncia disso. O ineternista diria simplesmente que a justificao pode resultar apenas daquelas conexes lgicas ou probabilsticas que foram efetivamente reconhecidas embora tenhamos de adicionar que tal reconhecimento possa ser mais ou menos preciso e explcito, podendo a fora da razo resultante variar de acordo com isso. Se algum demora mais e, com isso, alcana uma cogente, embora complicada, ento, na medida em que essa razo adequadamente apreendida por fim, no h razo aparente pela qual um internista devesse exclu-la com base no tempo que levou.

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    para eles. Mas difcil ver por que algum deveria achar isso surpreendente ou objetvel de todo.

    A quinta e ltima das questes que pretendo considerar aqui tem a ver com a acessibilidade aos princpios epistmicos que subjazem s supostas razes internistas a agentes epistmicos ingnuos ou comuns. Goldman argumenta, embora no exatamente desse modo, que tais princpios deveriam ser vistos como partes essenciais das razes em questo, de modo que eles teriam de ser acessveis, presumivelmente em bases a priori, a partir da perspectiva epistmica em primeira pessoa se tais razes tm de ser internisticamente aceitveis. Inclino-me a concordar. E o seu argumento adicional de acordo com essa base que a maioria ou todos os agentes epistmicos, e de fato, pelo menos alguns epistemlogos, no so capazes de formular e reconhecer tais princpios. Do modo como ele formula a tese bsica internista, isso significa que tais princpios no so elegveis como componentes de razes ou justificaes internistas a qualquer um, conduzindo assim ao completo ceticismo (pp. 287-8).

    Esse o mais srio dos problemas que Goldman levanta e o mais difcil de tratar num curto espao. Mas podemos ver imediatamente que algo est errado com a sua formulao da questo se perguntarmos por que um princpio epistmico que seja genuinamente auto-evidente de um ponto de vista a priori para um agente epistmico deveria ser considerado inelegvel para contribuir para a razo ou justificao da crena do agente s porque acontece dele ser demasiado complicado ou sutil de ser discernvel por outros agentes epistmicos menos sofisticados. Certamente que a coisa certa a se dizer aqui que os princpios epistmicos que contribuem para as razes ou justificaes de um agente tm de estar disponveis a qualquer momento necessrio quele agente. Isso certamente significar que a acessibilidade de tais razes variar de um agente a outro, embora eu no consiga ver que haja algo de implausvel sobre tal resultado.

    A segunda coisa a dizer sobre esse problema que a disponibilidade pode ser uma questo de grau, no exigindo a capacidade de formulao explcita de todos os graus de disponibilidade. Aqui a situao bastante paralela situao dos princpios lgicos. Os agentes ingnuos comuns provavelmente no conseguem formular explicitamente um princpio como o modus ponens, mas podem no obstante ser capazes, aps sua formulao e explicao, de reconhec-lo como o princpio que estavam seguindo. E algo anlogo pode muito bem acontecer com vrios princpios epistmicos, embora o grau ao qual um princpio ser

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    plausvel variar amplamente de caso para caso. Tanto esse ponto quanto o anterior significaro que o grau ao qual vrias crenas so justificadas de um ponto de vista internista provavelmente variar de pessoa a pessoa, mas uma vez que a questo de quem balana a bandeira do conhecimento posta de lado como desinteressante, como acredito que deva ser, difcil ver que h algo de alarmante ou mesmo particularmente surpreendente em tal resultado.

    A ltima coisa que quero dizer nessa ocasio sobre essa ltima questo que, embora seja relevante para a avaliao das perspectivas internistas particulares, ela no constitui qualquer objeo real ao internismo. Se um internista chega a uma abordagem de outra forma plausvel da justificao de um tipo particular de crena, mas que depende de um princpio que no seja plausivelmente um princpio que as pessoas comuns sequer estejam cientes, ento essa abordagem da justificao no ter qualquer relevncia ao problema de se a crena ou crenas em questo so justificadas a eles embora pudesse ainda ser de grande interesse enquanto abordagem de como a crena ou crenas em questo poderiam estar justificadas para aqueles que venham a reconhecer o princpio em questo. No penso que Goldman esteja correto de que todas as abordagens internistas da justificao dos principais tipos de crenas que o senso comum considera como justificadas ou razoveis tero de rejeitar esse estatuto; mas, caso o faam, esse seria simplesmente uma resultado filosfico a ser respeitado como qualquer outro. Se tal resultado parece implausvel, como acredito que seja, porque, concedo, todos ns acreditamos que temos boas razes para as nossas crenas sobre o mundo, e no porque acreditamos que estejam justificadas de uma maneira no especfica que no precise envolver a possesso de tais razes.

    3- H uma controvrsia genuna?

    Tendo dito tudo isso em explanao da posio internista e em sua defesa contra as objees de Goldman, darei um pequeno passo atrs e perguntarei se a disputa entre internismo e externismo de fato to claramente definida quanto ainda muito comumente se considera. Uma razo para se duvidar se isso assim o carter aparentemente intratvel da disputa, pouco comum at para uma questo filosfica, na qual as partes opostas no apenas no

    conseguem chegar a um acordo mas frequentemente tem bastante dificuldade em concordar at sobre aquilo que conta como uma boa razo para um lado ou para o outro.

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    Outra razo a maneira pela qual a controvrsia comumente formulada: como uma disputa sobre a abordagem ou anlise correta da suposta propriedade da justificao epistmica. Mas que propriedade exatamente essa? O termo obviamente um termo tcnico, no claramente presente no senso comum, e vale a pena perguntar se h algum modo de se especificar o seu suposto significado que seja neutro o bastante aos dois lados opostos para fornecer um alvo claro para a disputa. A resposta mais comum aqui aquela brevemente j aludida anteriormente. A justificao epistmica supostamente uma das exigncias para o conhecimento: a que precisa ser adicionada crena, verdade, e satisfao de uma condio anti-Gettier.

    Mas esse modo de se especificar o conceito alvo funcionar apenas se houver um conceito claro e inequvoco do prprio conhecimento, algo que me parece cada vez mais duvidoso. Alguns epistemlogos tm de fato sugerido que h pelo menos dois conceitos bastantes diferentes de conhecimento, um pelo menos predominantemente externista em carter e um predominantemente internista em carter,22 uma sugesto que me parece plausvel, mas ainda bastante restrita. E se algo assim o caso, ento um apelo ao conceito de conhecimento obviamente no servir para apanhar o conceito nico de justificao epistmica sobre o qual internistas e externistas supostamente esto em desacordo.

    De fato, dado o carter intelectual do termo justificao epistmica, no poderia ser o caso de simplesmente haver conceitos diferentes e incomensurveis de justificao epistmica, um (ou mais?) deles internista e um (ou mais?) deles externista deixando pouco claro em que sentido eles competem numa escolha? Mesmo um internista de carteirinha com eu pode reconhecer que h questes importantes e claramente epistemolgicas para as quais uma abordagem predominantemente externista parea completamente apropriada e talvez mesmo prefervel. A maioria dessas questes enquadra-se naquilo que Philip Kitcher rotulou apropriadamente o projeto epistemolgico aperfeioador,23 isto , o projeto geral de avaliao e aperfeioamento da fiabilidade dos esforos cognitivos humanos num sentido amplamente emprico.24 Nem me parece que qualquer externista razovel devesse se indispor 22

    Para verses de tal perspectiva, veja Mackie 1976, pp. 217-220, e Sosa 1991, p. 240 (e alhures no mesmo volume). 23

    Em Kitcher 1992, pp. 64-65. 24

    Goldman, no artigo discutido acima, descreve em algum detalhe uma investigao desse tipo geral: uma investigao psicolgica das diferenas fenomenolgicas (embora ele no use esse termo) entre memrias aparentes de percepes que genuinamente refletem percepes prvias e aquelas que so meramente produtos da imaginao, sendo a primeira obviamente mais fivel no que diz respeito verdade das afirmaes resultantes

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    a reconhecer o valor e a importncia dos tipos de consideraes epistmicas pelas quais se interessa o internista.

    A verso mais explcita e desenvolvida do tipo geral de perspectiva que estou sugerindo aqui a defendida por Alston em seu livro recente Beyond Justification.25 Embora Alston certamente no negue que os epistemlogos pudessem estipular vrios sentidos para o termo justificao, criando com isso conceitos de justificao que pudessem talvez ser teis a vrios propsitos, ele nega completamente que (fora tais estipulaes) haja qualquer estatuto ou propriedade objetivos das crenas apanhados por justificado. (p. 27). E a implicao, uma vez que internistas e externistas claramente no esto disputando o contedo de conceitos de justificao meramente estipulados, que no h na verdade qualquer questo genuna em disputa entre eles. A alternativa de Alston ao que ele chama de abordagem dos desiderata epistmicos epistemologia, na qual h muitas qualidades epistmicas diferentes que uma crena pode ter, incluindo aproximadamente pelo menos aquelas refletidas em ambas as perspectivas, internista e externista. Todos esses desiderata so epistemicamente valiosos; e, embora haja conexes interessantes entre eles, no h um objetivo real ao se argumentar a favor de um foco exclusivo ou mesmo primrio de alguns deles como opostos aos outros. Se Alston estiver correto, a disputa internismo-externismo, em nome da qual muita tinta tem sido desperdiada, evapora-se completamente.

    Embora no haja espao aqui para considerar os detalhes de seu argumento, a minha prpria opnio que Alston est de fato correto em grande parte: primeiro, em sua alegao de que simplesmente no h uma concepo unvoca, no estipulativa, de justificao epistmica que seja objeto de disputa; segundo, em sua sugesto de que h muitos valores epistmicos diferentes dentre os quais no h necessidade de escolher. Em particular, h muitos tipos diferentes de questes epistemolgicas, incluindo muitas que naturalmente so abordadas a

    sobre as coisas que alegadamente foram percebidas. As memrias genunas de percepo prvia mostram-se, como foi reportado, mais ricas em informao sobre as propriedades percebidas como cor e som, mais ricas em informao contextual sobre o instante e o lugar em questo, e mais detalhadas, ao passo que as memrias esprias que resultam da imaginao tendem a ser mais empobrecidas nesses aspectos, embora contenham muito mais informao sobre as operaes cognitivas da pessoa em questo (pp. 290-291). Temos aqui uma investigao de uma perspectiva externa, em terceira pessoa, que produz resultados que poderiam claramente ser valorosos, por exemplo, na avaliao da fiabilidade do testemunho em vrios contextos e que uma pessoa que tivesse familiaridade com eles poderia tambm aplicar na avaliao de suas prprias memrias aparentes. E poderia talvez se til, embora dificilmente essencial, na formulao desses resultados dizendo que as crenas mnemnicas que satisfazem os critrios para serem genunas so justificadas num sentido externista, ou mais especificamente, fiabilista. 25

    Alston 2005. As referncias entre parntesis nesta seo so das pginas desse livro.

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    partir de um ponto de vista da terceira pessoa, externista, junto com algumas que so mais naturalmente vistas como questes internistas. O que mais infeliz dessa perspectiva a tendncia de cada lado da disputa internista-externista de reivindicar a possesso exclusiva do campo da epistemologia.26 Repetindo Alston (e, certamente, o Presidente Mao), por que no deixar as flores epistemolgicas desabrocharem?

    Tendo sido reconciliador nesse ponto, quero, porm, insistir que h um sentido claro no qual uma abordagem internista, alm de ser intelectualmente legtima por si prpria, tem um tipo fundamental de prioridade para a epistemologia como um todo. ( por isso que disse apenas que Alston estava em grande parte correto). No importa quanto trabalho possa ser feito no delineamento das concepes externistas do conhecimento, da justificao ou da fiabilidade e na investigao de como eles se aplicam a vrios tipos de crenas ou reas de investigao, h um sentido no qual todos esses resultados so meramente hipotticos e inseguros na medida em que no podem ser alcanados a partir de recursos disponveis de uma perspectiva epistmica em primeira pessoa. Se, por exemplo, um epistemlogo afirma que certa crena ou

    conjunto de crenas, sejam suas ou de algum mais, foi alcanado de maneira fivel, mas o diz com base em seus prprios processos cognitivos cuja fiabilidade para ele meramente um fato externo ao qual ele no tem acesso em primeira pessoa, ento a sua concluso apropriada meramente a de que a crena ou crenas originalmente em questo so alcanadas de maneira fivel (e talvez por isso so justificadas ou constituem conhecimento nos sentidos externista) se os prprios processos cognitivos do epistemlogo so fiveis no sentido de que ele acreditam que so. A nica maneira aparente de alcanar um resultado que no seja em ltima instncia hipottico nesse sentido a fiabilidade de pelo menos alguns processos poderem ser estabelecidos com base naquilo que o epistemlogo pode saber direta ou imediatamente de sua perspectiva epistmica em primeira pessoa. (O problema do regresso epistmico nos espreita aqui).

    E por isso que o internismo indispensvel epistemologia como um todo, ainda que no seja a melhor maneira de se abordar todos os problemas epistemolgicos. Embora haja muitos outros problemas e questes legtimos, apenas uma abordagem internista funcionar em ltima instncia quando, parafraseando agora o Bispo Butler, Eu descansar num perodo de frescor e indagar se em ltima instncia tenho quaisquer boas razes para pensar que minhas 26

    Uma tendncia que me parece (embora talvez eu esteja sendo tendencioso) ter sido manifestada mais fortemente por aqueles de persuaso externista (junto daqueles de persuaso naturalista).

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    crenas so verdadeiras ou se de fato tenho quaisquer boas razes para pensar que so obtidas de maneira fivel.

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