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Tradução Ryta Vinagre

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Parte Um

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Capítulo Um

– Herrrrrf – Chester Rawls gemeu baixinho. A boca es-tava tão seca que precisou de alguns minutos para

poder falar. – Ai, mãe, me deixa, vai – ele enfim conseguiu dizer, mas não estava aborrecido.

Algo fazia cócegas em seu tornozelo, exatamente como sua mãe costumava fazer quando ele não reagia ao toque do desper-tador e não saía da cama. E Chester sabia que não haveria trégua nas cócegas se não jogasse o cobertor de lado e começasse a se arrumar para a escola.

– Por favor, mãe, só mais cinco minutos – pediu, de olhos ainda bem fechados.

Estava tão confortável que só queria ficar deitado ali pelo tempo que fosse possível, saboreando cada segundo. Na realida-de, costumava fingir que não ouvira o despertador porque sabia que a mãe acabaria aparecendo para ver se estava acordado.

Valorizava os momentos em que abria os olhos e ela estava sentada ali, empoleirada na ponta da cama. Ele adorava sua vi-vacidade e seu sorriso luminoso como o sol. E ela era assim toda

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manhã, por mais cedo que fosse. “Sou uma pessoa matinal”, sua mãe proclamava alegremente, “mas o seu velho pai amuado pre-cisa de várias xícaras de café antes de cair em si”. Depois ela fazia cara de má, jogava os ombros para frente e soltava rosnados como um urso ferido. Chester fazia o mesmo e os dois riam.

Ele sorriu, mas seu olfato protestou furiosamente e o sorriso sumiu de seu rosto.

– Ai, mãe, o que é isso? Que nojo! – ofegou, incapaz de ex-plicar o fedor. Como se alguém tivesse desligado a TV, a imagem de sua mãe desaparecera. Então ele se sentiu ansioso e abriu os olhos.

Escuridão.– O quê? – murmurou. Caía inteiramente sobre ele, impene-

trável e ininterrupta. Depois ele captou algo pelo canto do olho – um brilho fraco. Por que está tão escuro aqui?, perguntou-se Chester. Embora não conseguisse enxergar a menor pista que confirmasse que estava em seu quarto, sua mente trabalhava a mil para convencê-lo de que realmente estava lá. Será que essa luz vem da janela, e o cheiro... Tem alguma coisa queimando no fogão, lá embaixo? O que está havendo?

O odor era intenso. Era sulfuroso, mas ao mesmo tempo havia algo por baixo dele... O fedor acre de decomposição. A combinação encheu suas narinas e fez seu sangue gelar. Ele ten-tou levantar a cabeça para olhar em volta. Não conseguiu – estava preso em alguma coisa, como, aliás, seus braços e pernas; todo o corpo parecia grudado. O primeiro pensamento que lhe passou pela cabeça foi o de que estava paralítico. Não gritou, mas respirou fundo para tentar vencer o terror. Disse a si mesmo que não tinha perdido as sensações do tato, mesmo nas extremidades, de forma

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que provavelmente não devia estar paralítico. Ficou também mais animado por conseguir mexer os dedos das mãos e dos pés, ainda que só um pouco. Era como estar preso em algo firme e inabalável.

As cócegas em seu tornozelo voltaram, como se sua mãe fan-tasma ainda estivesse ali, e a imagem tênue dela voltou a sua mente.

– Mãe? – chamou ele, inseguro.As cócegas pararam e ele ouviu um ruído baixo e pesaroso.

Não parecia muito humano.– Quem está aí? Quem está aí? – ele desafiava a escuridão.Depois ouviu o que era inconfundivelmente um miado.– Bartleby? – gritou. – É você, Bartleby?Enquanto pronunciava o nome do felino, os acontecimentos

no Poro lhe voltaram em um turbilhão. Arquejou ao se lembrar de que ele, Will, Cal e Elliott, à frente de um imenso buraco cha-mado Poro, haviam sido encurralados pelos Limitadores.

– Ah, meu Deus – ele gemeu. Haviam praticamente enfrentado a morte certa nas mãos dos

soldados Styx. Parecia uma cena de pesadelo, um sonho ruim que se recusava a esmorecer, mesmo depois de acordar. E tudo tinha um ar muito recente, como se tivesse acontecido minutos antes.

E outras lembranças lhe voltaram.– Ah, meu Deus! – murmurou, recordando o momento em

que Rebecca, a menina Styx que fora implantada na família de Will, revelara que o tempo todo tivera uma gêmea idêntica. Ele se lembrou das gêmeas zombando impiedosamente de Will, com um prazer cruel na revelação dos planos de eliminar hordas do povo da Crosta usando o vírus letal, Dominion. As gêmeas di-ziam a Will para desistir, depois o irmão de Will, Cal, apareceu na abertura, reclamando que queria ir para casa.

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E ele se lembrou da saraivada de balas que derrubou o menino.Cal estava morto.Chester estremeceu, mas se obrigou a recordar o que aconte-

cera em seguida. A imagem de Will, seu amigo, voltou-lhe – ele e Chester estendiam as mãos um para o outro e Elliott gritava, e todos estavam unidos por uma corda. Nesse instante Chester entendeu que ainda havia esperança... Mas por quê? Por que havia esperança?... Ele não conseguia se lembrar. Eles estavam empacados numa situação desesperadora, não havia saída. Chester estava tão desnorteado que precisou de vários segundos para organizar os pensamentos.

Isso! Foi isso! Elliott estava tentando tirá-los de dentro do Poro... Ainda havia tempo... Eles iam escapar.

Mas deu tudo tão errado. Ele cerrou os olhos como se suas retinas ainda ardessem dos clarões abrasadores e da brancura cáustica das explosões, quando foram bombardeados pelas pode-rosas armas da Divisão Styx. Chester reviveu o tremor no chão, e outra lembrança veio à tona – a imagem nebulosa de Will sendo lançado no ar, bem acima de sua cabeça, pela beira do Poro.

Chester se recordou do pânico cego que lhe acometeu quan-do ele e Elliott tentaram evitar que fossem arrastados pelo peso combinado dos corpos de Will e Cal. Mas havia sido em vão, porque estavam amarrados juntos, e a última coisa de que ele se lembrava era que haviam sido atirados, os quatro, no vazio escuro do Poro.

Ele conseguia se lembrar, agora, da investida do vento inces-sante, que arrancou seu fôlego... e clarões vermelhos, um calor incrivelmente forte... mas agora...

... mas agora...

... agora ele devia estar morto.

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Então, o que era isso? Onde, diabos, ele estava?Bartleby miou de novo e Chester sentiu o hálito quente do

gato em sua cara.– Bartleby, é você, não é? – perguntou Chester, hesitante.A imensa cabeça circular do animal estava a centímetros

dele. É claro que tinha de ser Bartleby. Ele se esquecera de que o gato também caíra junto com os outros... e agora estava aqui.

Depois Chester sentiu uma língua áspera raspar seu rosto.– Sai! – berrou. – Para com isso!Bartleby o lambeu com um vigor ainda maior, claramente

deliciado por obter uma reação de Chester.– Sai de cima de mim, seu gato idiota! – gritou Chester num

alarme crescente. Não só porque não tinha a menor condição de deter o animal, mas porque a língua de Bartleby era áspera como uma lixa, e ser lambido por ele era muito doloroso. Renovando seus esforços para se libertar, Chester lutou furiosamente, gritan-do a plenos pulmões.

Os gritos não pareciam refrear nem um pouco o animal, e Chester não teve alternativa a não ser sibilar e cuspir com a maior selvageria que pôde. Acabou dando certo, e Bartleby recuou.

E vieram novamente o silêncio e a escuridão.Ele tentou chamar Elliott, depois Will, embora não estivesse

certo de que algum deles sobrevivera à queda. Tinha a horrível sensação na boca do estômago de que podia ser o único sobrevi-vente, além do gato, é claro. Isso quase lhe pareceu pior – a ideia de que estava sozinho com o animal gigantesco e babão.

Uma sugestão lhe bateu como uma bola de críquete na ca-beça... Será que, por milagre, ele havia caído no fundo do Poro?

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Lembrou-se do que Elliott lhes dissera – não só a abertura tinha mais de um quilômetro de largura, como era tão funda que só um homem, segundo as histórias, conseguira subir de volta. Dentro do que lhe permitia a substância invisível grudada nele, Chester tremeu incontrolavelmente. Vivia seu pior pesadelo.

Fora enterrado vivo!Estava espremido numa espécie de cova rasa no formato de

um corpo, encalhado nas entranhas da Terra. Como é que ia sair do Poro e voltar à superfície? Ele descera ainda mais do que as Profundezas – o que ele já teria achado bem ruim. A perspectiva de voltar para seus pais e para sua ótima vida estável era cada vez mais distante.

– Por favor, eu só quero ir para casa – balbuciava consigo mesmo. Assaltado por ondas alternadas de claustrofobia e pavor, começou a suar frio.

Foi então, deitado ali, que uma vozinha em sua cabeça lhe disse que não podia ceder ao medo. Ele parou de balbuciar. Sabia que tinha de se libertar do que o mantinha preso como um bloco de cimento e achar os outros. Eles podiam precisar de ajuda.

Retesando o corpo, relaxando e se retorcendo, ele precisou de dez minutos para soltar parcialmente a cabeça e recuperar parte do movimento de um dos ombros. Em seguida, ao con-trair os músculos dos braços, ouviu o ruído repugnante de suc-ção e o ombro de repente estava livre do material esponjoso e pegajoso.

– Isso! – exclamou. Embora o movimento de seu braço fosse limitado, ele levou um momento para tatear o rosto e o peito. Achou as alças da mochila e soltou as duas fivelas, pensando que isso o ajudaria em sua luta pela liberdade. Depois, concentran-

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do-se em soltar o restante do corpo, erguendo-se e rosnando, ele ficava cada vez mais aquecido pelo esforço desses micromovi-mentos. Era como se tentasse se libertar de um molde. Mesmo assim, aos poucos seus esforços pareciam dar resultado.

Muitos quilômetros acima de Chester, o velho Styx espiava o in-terior do Poro enquanto um chuvisco constante caía a sua volta, e em algum lugar ao longe uma matilha de cães uivou.

Embora seu rosto fosse muito vincado e o cabelo pontilhado de prata, a idade não lhe trouxera fragilidade. Seu corpo alto e magro era teso como um arco sob o longo casaco de couro abo-toado até o pescoço. Quando iluminados, seus pequenos olhos brilhavam como duas contas de um preto muito polido, e um senso de poder emanava de todo seu ser e parecia penetrar a es-curidão, dominando-a.

Ele gesticulou com uma das mãos e outro homem apareceu a seu lado, e ambos ficaram ombro a ombro na beira do precipício. Este segundo homem era estranhamente parecido com o velho, embora seu rosto ainda não tivesse rugas e o cabelo fosse tão pre-to e penteado para trás que podia tranquilamente ser confundido com um capuz.

Membros de uma raça secreta de nome Styx, estes homens investigavam um incidente que ocorrera pouco tempo antes. Um incidente em que o velho Styx perdera as netas gêmeas, que ha-viam sido arrastadas para dentro do vazio.

Embora soubesse que havia pouca possibilidade de uma das meninas ainda estar viva, a face do velho Styx não revelava ne-nhuma tristeza ou angústia pela perda enquanto ele dava ordens num ladrar em staccato.

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Houve uma nova agitação quando os Limitadores em torno do Poro começaram a obedecer a suas ordens. Esses soldados, um destacamento especializado que treinava nas Profundezas e realizava operações clandestinas na superfície, vestiam fardas par-das – casacos pesados e calças volumosas – apesar da alta tempe-ratura que prevalecia naquela profundidade da Terra. Seus rostos magros estavam impassíveis e decididos enquanto alguns usavam as miras instaladas nos rifles, que captavam a luz, para sondar as profundezas do Poro, e outros baixavam globos luminosos em cabos para verificar sua parte superior. Era improvável que as gê-meas tivessem conseguido interromper sua queda para a morte, mas o velho Styx precisava ter certeza.

– Alguma coisa? – ladrou ele em sua própria língua, um idio-ma nasalado e áspero. As palavras ecoaram pelo Poro e subiram o aclive atrás dele, onde outros soldados, com a eficiência de costu-me, já desmontavam os canhões de campanha que tinham causa-do tanta destruição no local em que se encontravam.

– Elas obviamente pereceram – sussurrou o velho Styx a seu jovem assistente, então recomeçou de imediato a gritar ordens a todo volume. – Concentrem todos os esforços na localização dos frascos! – Ele contava com o fato de que uma ou as duas gêmeas tivessem tido tempo de soltar os pequenos frascos que traziam pendurados no pescoço antes de caírem pelo precipício. – Preci-samos desses frascos!

Seu olhar inflexível caiu nos Limitadores que engatinhavam em volta dele, passando um pente fino em cada centímetro do chão. Verificavam minuciosamente sob cada pedaço de pedra lascada e peneiravam a terra calcinada que ainda ardia de resíduos do explo-sivo das bombas que haviam sido detonadas ali. De vez em quan-

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do esses resíduos se inflamavam, pequenas chamas se reacendiam e brotavam do chão, para então desaparecerem com igual rapidez.

Soaram gritos de alarme e vários Limitadores se jogaram ao chão enquanto uma faixa de terra mais além do Poro se soltava com um baque surdo. Toneladas de pedra e terra que haviam se despregado com o bombardeio deslizaram pelo abismo. Embora tivessem escapado por um triz, os soldados simplesmente se reer-gueram e reassumiram seus deveres, aparentemente sem se deixar abalar pelo acontecimento.

O velho Styx virou-se para contemplar a escuridão no alto do aclive.

– Não há dúvida de que foi ela – disse o jovem assistente, olhando na mesma direção. – Sarah Jerome levou as gêmeas.

– Quem mais poderia ser? – vociferou o velho Styx, menean-do a cabeça. – E o extraordinário é que tenha conseguido, em-bora estivesse mortalmente ferida. – Ele se voltou para o jovem assistente. – Estávamos brincando com fogo quando a colocamos contra seus filhos e, muito simplesmente, queimamos os dedos. Nada jamais é óbvio quando se trata do filho de Burrows – disse, mas corrigiu-se rapidamente, porque também supunha que Will estivesse morto. – ... quando se tratava do filho de Burrows. – Calou-se com uma carranca, respirando fundo antes de voltar a falar. – Mas diga-me... Como Sarah Jerome desceu até aqui? Quem era o responsável por esta área? – Ele apontou um dedo para o alto do aclive. – Quero que eles respondam por isso.

O jovem assistente baixou a cabeça para mostrar que enten-dera a ordem e saiu.

Logo outra figura apareceu em seu lugar. Era tão distorcida e recurvada que ficava difícil saber, à primeira vista, se era realmen-

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te humana. Por baixo de um manto duro de sujeira, um par de mãos nodosas se retorcia em direção à luz. Com movimentos de pássaro, as mãos ergueram o manto e revelaram uma cabeça hor-rivelmente deformada com tumores bulbosos tão numerosos que em certos lugares pareciam crescer um por cima de outro. Tufos moles de cabelo úmido emolduravam um rosto em que se viam dois olhos inteiramente brancos. Sem íris ou pupilas, giravam como se pudessem enxergar.

– Meus pêsames pela perda das... – A figura arquejou, caindo em um silêncio respeitoso.

– Eu agradeço, Cox – respondeu o velho Styx, agora falando em inglês. – Todo homem é arquiteto de sua fortuna, e coisas infelizes acontecem.

Em um movimento súbito, Cox limpou com as costas do punho o fio de saliva leitosa que pendia de seus lábios escureci-dos, espalhando-a em sua pele cinzenta. Ergueu o braço fino e, com um solavanco, levou-o ao rosto e bateu com um dedo em garra no tumor do tamanho de um melão que tinha na testa.

– Pelo menos suas meninas deram cabo de Will Burrows e de Elliott, aquela porca – disse ele. – Mas ainda vais expurgar o restante das Profundezas dos últimos renegados, não é?

– Expurgaremos cada um deles, usando as informações que você nos deu – disse o velho Styx, depois lhe lançou um olhar astuto. – De qualquer forma, Cox, por que pergunta?

– Por nada – respondeu a massa disforme, rápido como um raio.

– Ah, creio que... esteja preocupado porque Drake até agora escapou de nós. E você sabe que cedo ou tarde ele irá atrás de você para um acerto de contas.

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– Ele que venha, estarei pronto – proclamou Cox confiante, mas uma veia azul sinuosa que pulsava sob um de seus olhos dizia o contrário. – Drake pode vir com tudo que...

O velho Styx ergueu a mão para silenciá-lo quando o jovem assistente voltou trazendo três Limitadores. O trio de soldados formou uma fila e parou rigidamente em posição de sentido, com os olhos fixos à frente e os longos rifles ao lado do corpo. Dois eram jovens subalternos e um era oficial, um veterano grisalho de muitos anos de serviço.

De punhos cerrados, o velho Styx andou lentamente pela fila, parando ao chegar ao último homem, que por acaso era o veterano. Virou-se inteiramente para ele e sustentou seu olhar por vários segundos, a centímetros de seu rosto, antes de baixar os olhos para o traje de batalha do homem. Três fios de algodão curtos, de diferentes cores, projetavam-se do tecido, pouco aci-ma do bolso, no peito do veterano. Aqueles fios coloridos eram condecorações por atos de bravura – o equivalente Styx das me-dalhas da Crosta. O velho Styx fechou os dedos enluvados ali, arrancando-os e jogando-os na cara do homem. O veterano não piscou, nem mostrou a mais leve reação.

O velho Styx recuou, depois gesticulou para o Poro com tal despreocupação que parecia estar enxotando uma mosca ir-ritante. Os três soldados entraram em formação. Encostaram os rifles um no outro, formando uma pirâmide. Depois desa-fivelaram os volumosos cintos de equipamentos e os deposita-ram numa pilha organizada ao lado dos rifles. Sem nenhuma ordem a mais do velho Styx, marcharam em fila para a beira do Poro e, um depois do outro, jogaram-se nele. Não soltaram um grito que fosse. E nenhum de seus camaradas na área parou o

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que fazia para olhar enquanto os três soldados se lançavam no abismo.

– Justiça severa – disse Cox.– Não exigimos nada menos do que a excelência – respondeu

o velho Styx. – Eles falharam. Não nos são mais úteis.– Sabeis bem que as meninas podem ter sobrevivido – arris-

cou-se Cox.O velho Styx se voltou para dar toda a sua atenção a Cox.– É verdade... Seu povo realmente acredita que um homem

caiu ali e sobreviveu, não é mesmo?– Eles não são meu povo – grunhiu Cox, pouco à vontade.– Um mito sobre um glorioso Jardim do Éden esperando no

fundo – disse o velho Styx em tom jocoso.– Conversa fiada – murmurou Cox, começando a tossir.– Nunca pensou em experimentar você mesmo? – O velho

Styx não esperou pela resposta, batendo as mãos enluvadas ao se virar para o jovem assistente. – Envie um destacamento ao Bunker para extrair amostras do vírus Dominion dos cadáveres que estão lá. Se pudermos refazer a cultura, manteremos o plano em andamento. – Ele tombou a cabeça de lado e sorriu cruel-mente para Cox. – Ora, não queremos que o povo da Crosta perca seu dia do Juízo, não é verdade?

Cox cacarejou uma gargalhada, espirrando a saliva leitosa no ar.

Chester não se permitiu um segundo que fosse de descanso. O que quer que o matinha agarrado era oleoso no contato com a pele e, em sua luta, tinha uma certeza cada vez maior de que era a origem do fedor que sentia. Enquanto se esforçava para soltar o segundo braço, o outro ombro ficou livre, e então, de repente,

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toda a metade superior do tronco estava desimpedida. Com um ruído alto de sucção, ele finalmente se sentou e rugiu de triunfo.

Tateou pelo breu, completamente mergulhado na substância pegajosa. Esticando-se ao máximo, alcançava por pouco a super-fície, que parecia nivelada. Chester arrancou pequenas tiras da substância que o envolvia – era fibrosa e gordurosa ao toque e ele não tinha a mais remota ideia do que se tratava. Mas, o que quer que fosse, parecia ter absorvido o impacto de sua queda no Poro. Por mais loucura que isso lhe parecesse, era o provável motivo para ele estar vivo.

– De jeito nenhum! – disse ele, desprezando a ideia. Era for-çada demais, devia haver outra explicação.

Ele não via em lugar nenhum a lanterna que prendera em seu casaco, então procurou em todos os bolsos por globos lumi-nescentes de reserva.

– Mas que droga! – exclamou ao descobrir que o bolso do quadril estava rasgado e que todo o conteúdo sumira, incluindo os globos. Falava consigo mesmo para manter o moral elevado, e tentou colocar-se de pé. – Ah, dá um tempo! – Gemeu ao desco-brir que as pernas ainda estavam entaladas no material esponjoso e por isso não conseguia se levantar.

Mas essa não era a única coisa que o mantinha preso ali. – O que é isso? – disse, descobrindo uma corda amarrada a

sua cintura. Era a corda de Elliott, que eles haviam usado para se unir numa corrente no alto do Poro. Agora restringia seus movi-mentos – à esquerda e à direita estava firmemente presa no ma-terial esponjoso. Sem uma faca, só o que podia fazer era tentar desatar o nó. Era mais fácil falar do que fazer, porque suas mãos estavam ensopadas do fluido oleoso e escorregavam na corda.

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De forma atrapalhada e com alguns palavrões, por fim ele conseguiu desatar o nó, afrouxando-o a seu redor.

– Até que enfim! – berrou. Soltou as pernas e isso provocou um som forte de sucção. Uma das botas ficou para trás, presa no material. Chester precisou usar as duas mãos para puxá-la, calçando-a antes de se levantar, trôpego.

Foi a essa altura que percebeu o quanto doía cada parte de seu corpo – como se tivesse acabado de jogar a partida de rugby mais pesada de sua vida, talvez contra um esquadrão de gorilas particularmente beligerantes.

– Ai! – reclamou ao esfregar braços e pernas, descobrindo também que tinha queimaduras de cordas no pescoço e nas mãos. Com um gemido alto, Chester esticou as costas, olhando para cima, tentando distinguir de onde tinha caído. O mais es-tranho era que depois do começo da queda, quando o ar passara disparando por seu rosto com tanta intensidade que mal conse-guia respirar, ele não se lembrava de muita coisa até Bartleby o acordar, focinhando em seu tornozelo.

– Mas onde é que eu estou? – disse repetidas vezes, sem sair do fosso. Percebeu algumas áreas de iluminação muito fraca – embora não soubesse o que as provocava, o alívio da escuridão o fez se sentir um pouco melhor. E, à medida que os olhos se adaptavam, distinguiu vagamente a silhueta fugaz do gato que rondava em volta dele como um jaguar à espreita.

– Elliott! – chamou. – Você está aí, Elliott?Ele percebeu um eco distinto à esquerda quando gritava, mas

nada a sua direita. Gritou várias outras vezes, sempre esperando uma resposta.

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– Elliott, está me ouvindo? Will! Ei, Will! Você está aí? – mas ninguém respondia.

Chester disse a si mesmo que não podia ficar ali o dia todo, simplesmente gritando. Percebeu que um dos pontos de ilumi-nação na realidade vinha bem de perto e criou coragem para ten-tar alcançá-lo. Usou as unhas para sair do poço. Como estava ensopado no fluido escorregadio, não se arriscava a ficar de pé, mas mantinha-se de quatro, avançando pela superfície flexível. Percebeu outra coisa ao prosseguir: sentia-se estranhamente leve, como se flutuasse na água. Perguntando-se se isto era devido às pancadas na cabeça, que o haviam deixado meio tonto, disse a si mesmo para se concentrar na tarefa que precisava realizar.

Chester avançou pouco a pouco, com movimentos curtos e estudados, esticando os dedos para a luz. Depois a luz pareceu tocar a parte de baixo da palma estendida – e ele percebeu que vi-nha de algo incrustado no fundo do material elástico. Ele enrolou a manga e meteu o braço no buraco para pegá-lo.

– Eca! – disse, ao retirar a luz com o braço coberto do líquido oleoso. Era uma lanterna Styx. Não sabia se tinha sido dele ou se pertencia a um dos outros, mas agora isso não importava. Ele er-gueu a lanterna para avaliar as cercanias, sua confiança crescendo a tal ponto que decidiu ficar de pé.

Descobriu que estava numa superfície acinzentada – não era nada lisa, mas estriada e encaroçada, de textura um tanto pareci-da com a da pele de um elefante. A luz revelou que havia outros objetos presos ali, variando de pequenos seixos a pedaços subs-tanciais de pedra. Evidentemente tinha batido no material com alguma força e penetrado nele, como o próprio Chester.

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Ele levantou ainda mais a lanterna e viu que o chão se es-tendia para todos os lados em um platô de ondulação suave. An-dando com cuidado para não perder o equilíbrio, Chester voltou a seu buraco para examinar mais atentamente. Nem acreditava no que via e riu de assombro. O contorno perfeito de seu corpo havia se delineado na superfície do material. Isso lhe trouxe à mente o desenho animado das manhãs de sábado com o infeliz coiote que sempre parecia terminar caindo de grandes altitudes, deixando o formato de seu corpo impresso no chão do cânion. E ali estava uma versão real da forma de Chester! O desenho não parecia mais tão engraçado.

Murmurando de incredulidade, deu um pulo no buraco para pegar a mochila, o que lhe exigiu certo esforço. Depois de soltá-la, pendurou-a nas costas e saiu do buraco. Em seguida, curvou-se para levantar a corda.

– Direita ou esquerda? – perguntou-se ele, olhando para as duas extremidades que desapareciam no escuro. Escolhendo uma direção ao acaso e preparando-se para o que podia encontrar, co-meçou a seguir a corda, arrancando-a da superfície elástica ao prosseguir.

Tinha percorrido dez metros quando a corda de repente saiu de suas mãos e ele caiu de costas, sentado. Agradecido pelo tapete subterrâneo e flexível que tinha absorvido sua queda, Chester se levantou e examinou a ponta. Estava puída, como se tivesse sido cortada. Apesar disso, conseguiu seguir o fio que restara e logo chegou a uma impressão funda no chão. Contornou a forma, iluminando-a com a lanterna.

Certamente parecia que alguém estivera ali; o contorno não era tão perfeito quanto o dele, como se seu autor tivesse caído de lado.

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– Will! Elliott! – gritou de novo. Ainda não obtivera respos-ta, mas Bartleby de repente reapareceu, fixando os olhos grandes e imóveis em Chester. – O que foi? O que você quer? – grunhiu ele com impaciência. O gato lentamente se virou para a direção contrária e, com o corpo arriado no chão, começou a se esgueirar para frente. – Quer que eu vá com você... É isso? – perguntou Chester ao notar que Bartleby se comportava precisamente como se caçasse alguma coisa.

Seguiu o felino até que chegaram a uma superfície vertical – uma parede de material flexível e cinzento, de onde água corria em riachos.

– E agora, para onde? – quis saber, começando a pensar que o gato o estaria levando a uma caçada inútil. Chester relutava em vagar para muito longe e se perder, mas sabia que mais cedo ou mais tarde teria de criar coragem e explorar toda a área.

Com o rabo esquelético empinado, Bartleby apontava o fo-cinho para o que parecia um espaço na parede. A água descia pela abertura numa chuva contínua.

– Aí dentro? – perguntou Chester ao tentar iluminar através da água com a lanterna Styx. Em resposta, Bartleby passou pelo manto de água, e Chester o seguiu.

Ele descobriu que estava numa espécie de caverna. Bartleby não era o único dentro dela. Alguém mais parecia estar sentado ali, recurvado e cercado de folhas de papel.

– Will! – exclamou Chester, ofegante, quase incapaz de falar, de tão aliviado que estava por seu amigo ter sobrevivido.

Will levantou a cabeça, relaxando os dedos que haviam es-tado fortemente cerrados em torno de um globo luminoso, e deixou que a luz banhasse seu rosto. Não disse nada, olhando taciturno para Chester.

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VERTIGENS

– Will? – repetiu Chester. Alarmado com o silêncio do ami-go, ele se agachou ao lado dele. – Está machucado?

Will simplesmente o encarava. Depois passou a mão no ca-belo branco, pegajoso de óleo, fez uma careta e piscou um olho como se falar exigisse esforço demais.

– O que foi? Fale comigo, Will!– Tá, eu estou bem. Apesar dos pesares – respondeu por fim

Will numa voz monótona. – Estou com uma dor de cabeça de matar e minhas pernas doem pra caramba. E meus ouvidos não param de estalar. – Ele engoliu em seco várias vezes. – Deve ser a diferença de pressão.

– Os meus também – disse Chester, depois percebeu que para ele isso não tinha a menor importância no momento. – Mas, Will, há quanto tempo está aqui?

– Sei lá. – O amigo deu de ombros.– Mas por que... O que... Você... – Chester gaguejou, as

palavras se atropelando. – Will, nós conseguimos! – ele soltou, rindo. – Nós conseguimos, puxa vida!

– É o que parece – respondeu o amigo numa voz monótona, com os lábios apertados.

– O que há de errado com você? – indagou Chester.– Não sei – murmurou Will. – Não sei o que há de errado,

ou de certo, não sei de mais nada.– Como assim? – disse Chester.– Pensei que ia ver meu pai de novo – explicou Will, de cabe-

ça baixa. – O tempo todo, enquanto coisas horríveis aconteciam com a gente, uma esperança me fazia continuar... Eu realmente acreditava que voltaria com meu pai. – Ele ergueu uma escova de dentes suja do Mickey Mouse. – Mas agora o sonho acabou. Ele

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MAIS PERTO, MAIS LONGE

está morto e só deixou para trás esta escova de dentes idiota que roubou de mim... E as maluquices que escreveu no diário.

Will escolheu uma folha de papel molhada e leu uma frase rabiscada ali.

– Um “segundo sol”... no centro da Terra? Mas o que isso quer dizer? – Ele respirou fundo. – Não faz sentido algum.

Depois ele praticamente sussurrou.– E Cal... – Will tremeu com um soluço involuntário. – Foi

culpa minha ele ter morrido. Eu devia ter feito alguma coisa para salvá-lo. Devia ter me entregado a Rebecca... – Estalou a língua nos dentes, corrigindo-se – ... às Rebeccas.

Levantou a cabeça, pousando o olhar opaco em Chester.– Sempre que fecho os olhos, só o que vejo é a cara das duas...

Como se elas estivessem impressas em minhas pálpebras, na pró-pria escuridão... Duas caras cruéis e sórdidas, brigando e gritando comigo. Parece que não posso tirá-las daqui – disse, dando um tapa na testa com alguma força. – Ai, que dor – gemeu ele. – Por que eu fiz isso?

– Mas... – Chester começou.– A gente pode simplesmente desistir. Que sentido tem? –

Will o interrompeu. – Lembra o que as Rebeccas disseram sobre a trama do Dominion? Não podemos fazer nada para impedir que elas espalhem o vírus na superfície, não daqui de baixo. – Com grande cerimônia, largou a escova do Mickey Mouse numa poça de aparência gordurosa, como se estivesse afogando o animal mal pintado que compunha seu cabo. – Que sentido tem? – repetiu ele.

Chester estava perdendo a calma rapidamente.– O sentido é que estamos aqui, estamos juntos e já mos-

tramos praquelas vacas do mal. É como se... Como se... – Ele se

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atrapalhou por um segundo, tentando se expressar – ... É como um videogame, quando você ganha outra chance... Sabe como é, quando consegue mais uma vida. Ganhamos uma segunda chan-ce para tentar impedir as gêmeas Rebecca e salvar a vida de todas aquelas pessoas na superfície. – Ele tirou a escova da poça e, sacu-dindo a água, devolveu-a a Will. – O sentido é que conseguimos, ainda estamos vivos, pelo amor de Deus.

– Grande coisa – murmurou Will.– É claro que é grande coisa! – Chester sacudiu o amigo

pelo ombro. – Vamos lá, Will, sempre foi você que nos manteve andando, nos arrastando junto de você; era você o maluco que... – Chester parou para respirar em sua agitação – ... que sempre tinha de ver o que podia encontrar depois. Lembra?

– E não foi isso que nos meteu nesta confusão, afinal? – res-pondeu Will.

Chester fez um ruído entre o “hum” e o “é”, depois meneou vigorosamente a cabeça.

– Eu quero que você saiba... – A voz de Chester tremeu e sumiu enquanto ele evitava os olhos de Will e mexia numa pedra perto da bota. – Will... Eu fui um imbecil.

– Agora isso não importa – respondeu Will.– Importa, sim. Eu agi como um mimadinho... Fiquei tão

cheio de tudo... de você. – E a voz de Chester se firmou de novo. – Eu falei muita coisa que não queria. E agora estou pedindo a você para fazer suas explorações, e prometo que nunca mais vou reclamar. Me desculpe.

– Está tudo bem – murmurou Will, meio sem graça.– Faça o que você sabe fazer melhor... Achar um jeito de nos

tirar daqui – Chester insistiu.

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MAIS PERTO, MAIS LONGE

– Vou tentar – disse Will.Chester o olhou fixamente.– Estou contando com isso, Will. As pessoas da superfície

também. Não se esqueça, minha mãe e meu pai estão lá em cima. Não quero que eles peguem o vírus e morram.

– Não, claro que não – respondeu Will de pronto, porque a menção dos pais de Chester recolocou a situação em foco. Will sabia o quanto o amigo os amava e o destino deles, como de cen-tenas de milhares de pessoas – se não milhões delas – podia estar selado se a trama dos Styx seguisse adiante.

– Então vamos lá, parceiro – Chester instou, oferecendo a mão a Will para ajudá-lo a se levantar. Juntos, eles passaram pela cascata e chegaram à superfície elástica.

– Chester – disse Will, voltando um pouco a ser ele mes-mo –, tem uma coisa que você precisa saber.

– O que é?– Notou algo de estranho neste lugar? – perguntou Will,

olhando inquisitivamente para o amigo.Perguntando-se por onde começar, Chester meneou a cabe-

ça, chicoteando no rosto a cabeleira cacheada e ensopada de óleo e prendendo uma mecha na boca. Ele a tirou imediatamente com um olhar de nojo e cuspiu várias vezes.

– Nada além dessa coisa em que caímos, que tem um cheiro e um gosto horrorosos.

– Acho que estamos num grande fungo subterrâneo – Will continuou. – Terminamos numa espécie de plataforma dessa coi-sa... Deve se projetar do Poro. Uma vez, vi algo assim na televi-são... Havia um fungo monstruoso na América que se estendia por milhares de quilômetros no subsolo.

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– Era isso que você queria...– Não – Will o interrompeu. – Esta é a parte interessante.

Olhe com atenção. – O globo luminescente estava na palma de sua mão e ele o atirou despreocupadamente a cinco metros no ar. Assombrado, Chester viu o globo flutuar de volta à mão de Will. Era como se testemunhasse a cena em câmera lenta.

– Ei, como você fez isso?– Precisa tentar – disse Will, passando o globo a Chester. –

Mas não jogue com muita força, ou vai perdê-lo.Chester fez como Will sugeriu, atirando-o para cima. Mas

aplicou força demais e o globo se lançou por vinte metros, ilumi-nando o que parecia ser outro afloramento de fungo acima deles, antes de flutuar sinistramente para baixo, a luz brincando em seus rostos voltados para cima.

– Mas como...? – Chester ofegou com os olhos arregalados de pasmo.

– Não sente que está, hum, sem peso? – disse Will, procuran-do a palavra certa. – É baixa gravidade. Acho que tem um terço do que estamos acostumados na superfície – Will lhe informou, apontando o dedo para cima. – Isso... E o solo macio que temos neste fungo... pode explicar por que não estamos achatados feito panquecas. Mas cuidado quando se mexer, ou pode escorregar para fora da plataforma e cair no Poro de novo.

– Baixa gravidade – repetiu Chester, tentando absorver o que o amigo dizia. – O que isso significa exatamente?

– Significa que a gente deve ter caído muito.Chester o olhou sem compreender.– Nunca se perguntou o que existe no centro da Terra? –

disse Will.

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