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TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL Slobodan Milosevic v. TPI

Leonardo Machado Ramos 1

Luciano Arthur Gluer Junges 2

Mariana Aleixo Ferreira 3

Milena Rodrigues Jovanovichs 4

1. INTRODUÇÃO

O presente guia de estudos destina-se à análise do caso Slobodan Milosevic v. TPI

e de suas possíveis implicações, bem como dos principais aspectos que norteiam a área

do Direito Internacional Público e, mais especificamente, do Direito Internacional dos

Direitos Humanos.

Desde as atrocidades vivenciadas na Segunda Guerra Mundial, a sociedade

internacional vem conferindo uma maior importância e centralidade ao indivíduo.

Percebeu-se, assim, a necessidade de que fossem criados sistemas que protegessem e

promovessem a dignidade humana. Nesse contexto, o Direito Internacional Público

modificou-se completamente, passando a abarcar a garantia de direitos inerentes à

soberania dos Estados e que contemplavam, em sua totalidade, a pessoa humana. Essa

gama de direitos consolidou-se ao longo dos anos e ensejaram o surgimento de um

importante ramo do Direito Internacional Público: o Direito Internacional dos Direitos

Humanos.

Hoje, esse ramo do direito se fortaleceu e se expandiu no cenário internacional, a

ponto de possibilitar a criação de sistemas globais de direitos humanos, congregando

especificidades e semelhanças de determinadas regiões; ampliando, dessa forma, a

eficácia dos instrumentos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.

Um desses sistemas é o Estatuto de Roma, que se caracteriza pela proeminente atuação

do Tribunal Penal Internacional na proteção dos direitos da pessoa humana. Ainda, o

Tribunal Penal atua no controle desses direitos.

Neste âmbito, insere-se o caso Slobodan Milosevic v. TPI, ao qual utiliza-se para

aprofundar a jurisprudência em termos de julgamento adequado para crimes violentos

cometidos por um chefe de Estado. Assim, o Tribunal conta com a deliberação dos juízes

sobre os delitos, tendo em vista as acusações e o caráter de graves violações de direitos

humanitários.

O presente estudo encontra-se no cerce dessas questões, buscando analisar as

principais implicações do caso e a forma como as violações sofridas pelas vítimas

inserem-se no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

2. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

É importante realizar, primeiramente, uma contextualização acerca do Direito

Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), importante ramo do Direito Internacional

Público e essencial na compreensão do caso concreto em questão.

1 Graduando do 2° semestre de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2 Graduando do 4° semestre de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 3 Graduanda do 2° semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduanda do 2° semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria.

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O DIDH surgiu a partir de um processo de internacionalização dos direitos

humanos, impulsionado por um contexto pós-guerra que clamava pela criação de

mecanismos que pudessem garantir proteção aos seres humanos; e em resposta,

especialmente, às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Com esse

movimento, os direitos da pessoa humana ganharam extrema relevância, consagrando-se

internacionalmente, o que culminou no florescimento de uma terminologia, no Direito

Internacional, relacionada especificamente aos direitos humanos: o Direito Internacional

dos Direitos Humanos (Guerra, 2013).

Este ramo autônomo da ciência jurídica contemporânea é dotado de especificidade

própria; tratando-se, essencialmente, de um direito de proteção, marcado por uma lógica

particular e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos, e não dos Estados.

Percebe-se, dessa forma, que os direitos da pessoa humana passam a constituir objeto de

um ramo autônomo do Direito Internacional Público, com instrumentos, órgãos e

procedimentos de aplicação próprios, caracterizando-se essencialmente como um direito

de proteção. Portanto, o DIDH, tendo como núcleo fundamental a dignidade da pessoa

humana, pode ser entendido como “o conjunto de normas que estabelecem os direitos que

os seres humanos possuem para o desempenho de sua personalidade e estabelecem

mecanismos de proteção a tais direitos” (Guerra, 2013, 487).

Tendo isso em mente, a seguir serão abordados brevemente os eixos centrais que

caracterizam este ramo do direito, de forma a ressaltar a importância da

internacionalização dos direitos humanos e da humanização do direito internacional;

demonstrando, assim, a imprescindibilidade desta análise no presente estudo.

2.1. BREVE HISTÓRICO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS

DIREITOS HUMANOS

Até o século XIX, a pessoa humana não era reconhecida como sujeito de direito

internacional, estando relegada a um plano inferior; a sociedade internacional, portanto,

era considerada uma sociedade eminentemente interestatal. O processo de

internacionalização dos direitos humanos impulsionou-se com o direito humanitário, com

a formação da Liga das Nações e com a própria criação da Organização Internacional do

Trabalho (Guerra, 2013).

“Esses institutos contribuíram, cada qual a seu modo, para o processo

de internacionalização dos direitos humanos, seja ao assegurar

padrões globais mínimos para as condições de trabalho no plano

mundial, seja ao fixar como objetivos internacionais a manutenção da

paz e a segurança internacional, ou, ainda, para proteger direitos

fundamentais em situações de conflito armado. ” (Guerra 2013, 469).

Após a instauração desse processo, rompe-se com a concepção tradicional, a qual

sustentava o Estado como único sujeito de Direito Internacional. Por consequência,

nasceu a necessidade de se criarem mecanismos de proteção à dignidade humana, tendo

em vista a violação de direitos humanos sem precedentes que ocorrera durante Segunda

Guerra Mundial, período que se tornou um marco de afronta à dignidade da pessoa

humana. É nesse contexto que emerge o moderno DIDH, como um fenômeno pós-guerra;

sendo o seu desenvolvimento desencadeado por uma crença de que parte dessas graves

violações poderia ter sido prevenida se um efetivo sistema de proteção internacional dos

direitos humanos já existisse. Tal concepção motivou o surgimento da Organização das

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Nações Unidas (ONU), em 1945, e, posteriormente, a assinatura da Declaração Universal

dos Direitos Humanos (DUDH)5, em 1948 (Guerra, 2013).

No pós-guerra, o foco da atenção internacional passou a ser a pessoa humana, de

forma que a dignidade humana se estabeleceu, até certo ponto, como princípio universal

e absoluto. Esse entendimento passou a consolidar a ideia de limitação da soberania

nacional, bem como a reconhecer que os indivíduos possuem direitos inerentes à sua

existência, os quais devem ser protegidos.

Com o tempo, “desenvolve-se uma teoria jurídico-contratual internacional de

justiça, tendo por objetivo alicerçar uma nova dimensão de vinculatividade na proteção

dos direitos do homem” (Guerra, 2013, 474). Sob a égide da ONU, os direitos humanos

ganham força, passando a ser produzidos diversos tratados internacionais para a proteção

dos referidos direitos6. Inaugura-se, assim, um sistema de “codificação” internacional em

matéria de direitos humanos, resultante da intenção da sociedade internacional em

conceber normas no plano internacional que fossem contrárias às práticas de ofensa à

dignidade humana. A começar pela DUDH: a produção normativa internacional seguiu-

se com o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, bem como com as convenções sobre discriminação racial, direitos da mulher e

tortura, por exemplo7. Nesse processo, o movimento de internacionalização dos direitos

humanos expandiu-se também para o plano regional, sendo possível observar a criação

de importantes mecanismos internacionais, a exemplo do Sistema Europeu de Direitos

Humano (SEDH) e do SIDH8. Outro fato bastante relevante nesse contexto foi a

assinatura da Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, que teve efeito decisivo

para a disseminação em escala planetária dos direitos humanos no discurso

contemporâneo (Guerra, 2013).

Em relação ao crescente processo de justicialização dos direitos humanos na

esfera internacional, destacam-se experiências como o Tribunal de Nuremberg e o

Tribunal Penal Internacional (Piovesan, 2013), por exemplo. Ambos os casos

contribuíram, à sua maneira, para o aprimoramento e disseminação do movimento de

justicialização dos direitos do homem, lançando as bases para que o Direito Internacional

dos Direitos Humanos contemporâneo começasse a se consolidar.

Criado em 1945 por meio do Acordo de Londres, o Tribunal de Nuremberg foi

responsável por julgar, em 1945-1946, os criminosos de guerra do período nazista. O

Tribunal aplicou fundamentalmente o costume internacional para a condenação criminal

de indivíduos envolvidos na prática de crimes contra paz, crimes de guerra e crimes contra

a humanidade, previstos no artigo 6º do Acordo de Londres. Consagrou-se, ainda, o

entendimento de que os indivíduos eram passíveis de punição por violação ao Direito

Internacional, o que representou um poderoso impulso no processo de justicialização dos

direitos humanos. A importância do órgão nessa justicialização, portanto, não está

5 “Adotada e proclamada pela Resolução nº 17 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948. Principiando pelo preâmbulo, a Declaração propugna que a dignidade é um valor fundamental ao ser humano, dele emanando todos os demais direitos, que devem ser ‘iguais’ e ‘inalienáveis’” (Garcia 2015, 28). 6 Desde então, múltiplos têm sido os atos internacionais editados no âmbito da ONU ou com a sua intermediação visando à efetiva proteção dos direitos humanos (Garcia 2015). 7 A temática acerca dos referidos Pactos e Convenções será abordada, com mais profundidade, no subtópico 2.4., que trata especificamente sobre o Sistemas Universal de Proteção aos Direitos Humanos (incluindo, por consequência, o estudo dos principais mecanismos convencionais de proteção aos direitos humanos). 8 Os Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos serão mais bem explanados em tópico

subsequente.

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somente na consolidação da ideia de que é necessário limitar a soberania nacional, mas

também no reconhecimento de que os indivíduos têm personalidade jurídica na ordem

internacional, contraindo direitos e obrigações (Piovesan, 2013).

Até a aprovação do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional

(TPI), o sistema global de proteção compreendia apenas as atividades de promoção e

controle dos direitos humanos, não dispondo de um aparato de garantia desses direitos9.

Dessa forma, o TPI surge como aparato complementar às Cortes nacionais, com a

finalidade de assegurar a cessação da impunidade10 para os mais graves crimes

internacionais; considerando que, por vezes, quando da ocorrência de tais crimes, as

instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na realização da justiça. Assim, a

jurisdição do TPI fixa-se como adicional e complementar a do Estado, o que significa que

o Tribunal só poderá julgar determinado caso se for observado a incapacidade ou a

omissão do sistema judicial interno.

2.2. CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

“Os direitos humanos são os direitos consagrados nas Declarações de

Direitos, concebidos no âmbito da sociedade internacional, e,

portanto, reconhecidos por Estados soberanos, que produzirão efeitos

no plano doméstico em conformidade com a própria ordem jurídica

interna de cada Estado.” (Guerra, 2013, 499).

Os direitos humanos são, em primeiro lugar, direitos. Consequentemente, eles têm

a estrutura de direitos. Para todo o direito, há um titular do direito, isto é, a parte (ou

partes) que detém esse direito. Nesse sentido, pode-se afirmar que direitos humanos são

os direitos detidos por todas as pessoas humanas vivas, independentemente de sua

nacionalidade, religião, etnia, gênero, raça, ou outras distinções que as identifiquem

(Nickel e Reidy, 2010). Da mesma forma, assim como todo direito, possuem um objeto,

um destinatário e um conteúdo normativo (ou seja, um conteúdo de lei, responsável por

ditar normas/comportamentos).

“Na condição de reivindicações morais, os direitos humanos nascem

quando devem e podem nascer” (Piovesan, 2013).

Os elementos que compõem tais direitos não se desenvolveram em uma mesma

época; pelo contrário, tiveram seu desenvolvimento e apogeu em contextos históricos

distintos (Guerra, 2013). Ademais, estes direitos são numerosos e específicos, e não

abstratos e genéricos como, por exemplo, os direitos à vida, à liberdade e à propriedade,

de John Locke (Nickel e Reidy, 2010). Segundo Nickel e Reidy (2010), esses direitos

podem ser organizados em sete famílias: direitos de segurança que protegem as pessoas

contra crimes como homicídio, massacre, tortura e estupro (i); direitos ao devido processo

legal que protegem contra abusos do sistema legal, como, por exemplo, a prisão sem

9 A respeito da criação de uma jurisdição internacional, Noberto Bobbio, em sua obra A Era dos Direitos, indica que as atividades internacionais na área dos direitos humanos podem ser classificadas em três categorias: promoção, controle e garantia (Piovesan 2013). “As atividades de promoção correspondem ao conjunto de ações destinadas ao fomento e ao aperfeiçoamento do regime de direitos humanos pelos Estados. Já as atividades de controle envolvem as que cobram dos Estados a observância das obrigações por eles contraídas internacionalmente. Por fim, a atividade de garantia só será criada quando uma jurisdição internacional se impuser concretamente sobre as jurisdições nacionais” (Piovesan 2013, 81). 10 A palavra impunidade significa não ser punido; ou seja, ficar impune diante de um crime.

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julgamento e punições excessivas (ii); liberdades fundamentais em áreas como o

pensamento, expressão e reunião (iii); direitos de participação política, como protesto e

voto (iv); igualdade de direitos que garantem a igualdade de cidadania, a igualdade

perante a lei, e a não discriminação (v); direitos sociais que garantem a subsistência,

cuidados básicos de saúde e educação (vi) e; direitos das minorias que protegem

indivíduos e grupos contra o genocídio, perseguição, discriminação, desigualdade e

privação de território (vii).

A DUDH, dentro da expectativa de proteção dos direitos de todas as gerações,

além de vincular a universalidade desses direitos, também consolida a sua

indivisibilidade. Assim, é possível afirmar que “os direitos humanos são fundamentais,

humanos e universais e sua vigência independe de lei positiva que outorgue porque são

inerentes ao homem” (Guerra, 2013, 473).

2.3. SISTEMA UNIVERSAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Os instrumentos e órgãos relacionados ao DIDH se organizam em sistemas de

direitos humanos (Valadares Vasconcelos Neto, 2015). Dentre esses sistemas, é possível

destacar o Sistema ONU e os sistemas regionais, a exemplo dos Sistema Europeu e

Interamericano. Nesta subseção, serão abordadas, brevemente, as principais

características que norteiam os Sistemas Internacionais de Direitos Humanos; utilizando-

se, para este fim, seus documentos básicos e principais órgãos de proteção e promoção de

direitos humanos. A presente análise limitar-se-á, num primeiro momento, ao estudo do

Sistema ONU, tendo em vista que, no subtópico seguinte, os sistemas regionais serão

explanados de maneira mais específica.

O Sistema ONU é um sistema intergovernamental de proteção e promoção de direitos

humanos que não se limita a uma região, possuindo alcance global (Valadares

Vasconcelos Neto 2015). O fomento à criação de sistemas internacionais de proteção à

pessoa humana, especialmente no âmbito da ONU, é atribuído, sobretudo, às formas

dramáticas de vulnerabilidade e risco em que se encontram os seres humanos. Essas

condições ensejaram, assim, a criação de uma organização internacional – a ONU – sob

o contexto de um sistema interestatal, que não ameaçasse a unidade nacional e a

integridade territorial dos países (Matos 2014).

Os documentos básicos do Sistema ONU podem ser divididos em três grupos: os que

fazem parte da Carta Internacional dos Direitos Humanos; os que protegem grupos

específicos; e os que visam enfrentar certas violações de direitos humanos (Valadares

Vasconcelos Neto 2015). O primeiro deles, a chamada Carta Internacional de Direitos

Humanos, constitui-se no conjunto dos instrumentos basilares do Sistema ONU: a

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH); o Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); o Pacto Interacional sobre os

Direitos Civis e Políticos (PIDCP); e os respectivos protocolos facultativos de ambos os

pactos (Valadares Vasconcelos Neto 2015).

Em 1948, sob os auspícios da ONU, institui-se a DUDH, que representa o ponto de

partida da normativa em direitos humanos. A Declaração passa a expressar um primeiro

consenso sobre direitos reconhecidos em âmbito internacional; pela primeira vez na

história, foi firmado um compromisso global entre países criando padrões semelhantes de

direitos para todas as pessoas (Valadares Vasconcelos Neto 2015). A DUDH reflete-se,

portanto, na consolidação de padrões de interpretação dos inúmeros conceitos e princípios

indeterminados presentes na Carta das Nações Unidas ou na apologia à adoção de tratados

internacionais de proteção dos direitos humanos (Garcia 2015). No papel de declaração

não sujeita a ratificação pelos Estados, a DUDH não é formalmente obrigatória; constitui-

se numa carta de intenções. No entanto, com o passar do tempo, os princípios nela

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declarados inspiraram e serviram de base para pactos e convenções internacionais sobre

direitos humanos. Ademais, tais princípios passaram também a ser considerados

obrigatórios sob o Direito Internacional Consuetudinário. Os artigos da declaração, por

sua vez, são redigidos de forma bastante geral e abstrata; fazendo com que eles precisem

de maior detalhamento, o que é feito por tratados internacionais específicos. Nesse

sentido, os princípios consagrados na DUDH são desenvolvidos por dois tratados em

particular: PIDESC e PIDCP (Valadares Vasconcelos Neto 2015).

Em relação aos tratados para a proteção de grupos específicos, o primeiro dos

instrumentos principais de direitos humanos do Sistema ONU é a Convenção

Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD),

de 1965, seguida da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

contra a Mulher (CEDAW), de 1979, que se inspira em grande medida na estrutura da

ICERD. Merece destaque também a Convenção sobre o Direito da Criança (CRC), que

possui três protocolos facultativos e é o tratado de direitos humanos mais amplamente

assinado e ratificado11. Pode-se mencionar, ainda, na seara dos importantes instrumentos

convencionais de proteção a grupos específicos, a Convenção Internacional sobre o

Direito de Todos os Trabalhadores Migrantes e de suas Famílias (ICMW), de 1990, e a

Convenção Internacional sobre o Direito das Pessoas com Deficiência (CRPD), de 2007

(Valadares Vasconcelos Neto 2015).

No que se refere aos tratados sobre graves violações específicas, há vários

instrumentos normativos sobre crimes internacionais e transacionais com abrangência

global. Daqueles acompanhados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os

direitos humanos (ACNUDH), destacam-se a Convenção contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CAT), de 1984, e a

Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento

Forçado (CPED), de 2006, que visa combater uma violação de direitos humanos que

marcou muitas das ditaduras na América latina e que ainda hoje é frequente. A Convenção

das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, por sua vez, tem como

agência que apoia a sua implementação o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e

Crimes (UNODC); e, mesmo que tal convenção não seja especificamente sobre direitos

humanos, o seu Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do

Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, trata de direitos de grupos

vulneráveis e possui vários elementos de direitos humanos. Por fim, podemos citar o

Estatuto de Roma, de 1998, que institui o TPI, instituição permanente, com competência

para julgar crimes internacionais, conforme já fora relatado em tópicos anteriores

(Valadares Vasconcelos Neto 2015).

Nos sistemas internacionais de direitos humanos, há a presença de mecanismos de

monitoramento desses direitos; no Sistema ONU, por exemplo, são, em sua grande parte,

secretariados pelo ACNUDH. Estes órgãos podem ser classificados em mecanismo com

base na Carta das Nações Unidas e Órgãos de Tratado (em inglês, treaty bodies)

(Valadares Vasconcelos Neto, 2015).

O principal órgão de monitoramento de direitos humanos que tem base na Carta da

ONU é o Conselho de Direitos Humanos (CDH); órgão colegiado composto por 47

Estados membros da ONU que recebe comunicações sobre violações de direitos

humanos, realiza o Exame Periódico Universal (EPU)12 da situação de direitos humanos

11

Todos os Estados membros das Nações Unidas, menos um, ratificaram a CRC. 12

“O Mecanismo EPU coloca em debate todos os aspectos de direitos humanos de cada Estado membro

da ONU. O EPU não é um mecanismo judicial e sim um mecanismo cooperativo onde cada membro do

CDH faz comentários, críticas, recomendações e elogios ao Estado que estiver sob avaliação” (Valadares

Vasconcelos Neto 2015, 28).

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em todos os países e elege especialistas para os procedimentos especiais (Valadares

Vasconcelos Neto, 2015).

“O Conselho de Direitos Humanos, que também servirá de fórum de

diálogo, deve, dentre outras atribuições, (1) expedir recomendações,

inclusive à Assembleia Geral; (2) promover a efetiva coordenação e

sedimentação dos direitos humanos no sistema da Nações Unidas; e (3)

apresentar relatórios anuais à Assembleia Geral”. (Garcia, 2015, 70).

Já os órgãos com base em tratados de direitos humanos - treaty bodies - são criados

por documentos específicos, possuindo várias competências, tais como: “avaliar os

relatórios de Estados partes sobre o cumprimento dos respectivos tratados, elaborar

comentários e recomendações gerais e, em muitos casos, receber e apreciar em

procedimentos quase-judiciais comunicações que denunciem violações de direitos

humanos” (Valadares Vasconcelos Neto 2015, 29). A mais importante das características

comuns partilhadas pelos tratados que compõem o sistema de direitos humanos das

Nações Unidas é o estabelecimento de comitês especializados13 em consonância com seus

termos. Cada comitê monitora a implementação do tratado, sendo seu trabalho

fundamental para o desenvolvimento do DIDH14. Há muitos outros tratados multilaterais

que incluem obrigações de direitos humanos, mas que não têm esses mecanismos de

monitoramento. Os treaty bodies elucidam obrigações decorrentes dos vários tratados

através da adoção de comentários gerais e observações finais em resposta aos relatórios

dos Estados. Alguns treaty bodies também têm uma forma de competência quase judicial,

constituindo-se, essencialmente, em um procedimento escrito e que se conclui com uma

decisão recomendatória pelo comitê competente (Chinkin, 2010). “Os comitês são órgãos políticos ou “quase judiciais” que, todavia,

não apresentam caráter jurisdicional, isto é, suas decisões possuem

natureza recomendatória e não jurídico-sancionatória, de modo que se

aplicam ao Estado violador sanções de caráter moral e político, mas

não jurídico, no enfoque estrito” (Piovesan, 2013, 83).

Por fim, vale ressaltar a importância de algumas agências especializadas da ONU,

que são particularmente instrumentais para a promoção do DIDH e para o

desenvolvimento dos mecanismos de aprimoramento. Dentre elas, merece destaque, aqui,

o ACNUDH, principal agência dedicada a direitos humanos (Valadares Vasconcelos

Neto 2015). O Alto Comissariado das Nações Unidas para a Proteção e a Promoção dos

Direitos Humanos trata-se do principal órgão da ONU com atuação na área dos direitos

humanos, cabendo-lhe apreender esforços para que a Organização contribua na

implementação desses direitos (Garcia 2015). Embora tenha papel eminentemente

auxiliar em relação aos demais órgãos das Nações Unidas, “procura realizar declarações

e apelos nos momentos de crise, promover o diálogo com os Estados, divulgar

informações relevantes e auxiliar os principais organismos internacionais de proteção dos

direitos humanos” (Garcia 2015, 70-71). Nesse sentido, O ACNUDH trabalha apoiando

a criação de parâmetros de Direitos Humanos, monitorando e reportando sobre Direitos

13

Aqui, esses comitês especializados encontram-se contemplados pela expressão treaty bodies; podem ser

considerados, portanto, como uma espécie desses. 14

Muitas das convenções referidas neste estudo (a exemplo das ICERD, CEDAW, ICMW e CAT) também

dispõem sobre a possibilidade de os Estados aceitarem a competência dos respectivos comitês para a análise

de petições noticiando violações às suas disposições. A referência a tais aspectos bem demonstra a

possibilidade de acesso do indivíduo ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos existente

na esfera das Nações Unidas (Garcia 2015).

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Humanos, fornecendo cooperação técnica e serviços de assessoria, advogando por

Direitos Humanos e incrementando a consciência sobre Direitos Humanos e construindo

parcerias (Valadares Vasconcelos Neto 2015, 32).

3. FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL

Fontes do direito são os procedimentos e métodos jurídicos que derivam normas

de aplicação geral, formalmente vinculantes aos seus destinatários. As fontes do DIDH,

nesse sentido, são aqueles métodos jurídicos que conferem obrigatoriedade às normas de

Direitos Humanos (Valadares Vasconcelos Neto, 2015). Desde 1945, tem ocorrido o

processo de legalização dos direitos humanos no âmbito das estruturas institucionais

globais e regionais. Primeiramente, tendo em vista a temática das fontes no Direito

Internacional, vale dizer que o critério geral é o pertencimento da norma às fontes aceitas

de obrigação internacional15, ou seja, que o Direito decorre delas. Para observá-las, tem-

se de prática comum a referência ao artigo 38º do Estatuto da CIJ:

Artigo 38 (1)

A Corte, cuja função é de decidir de acordo com o Direito Internacional disputas

que lhe são submetidas, deve aplicar:

(a) Convenções Internacionais, sejam gerais ou particulares, estas estabelecendo

regras expressamente reconhecidas pelos Estados contestantes;

(b) Costume Internacional, enquanto evidência de prática geral aceita como

Direito;

(c) Os princípios gerais do Direito reconhecidos pelas nações civilizadas;

(d) Sujeita à aplicação das provisões do artigo 59, decisões judiciais e a doutrina

produzida pelos mais qualificados publicistas de várias nações, como meios

subsidiários de determinar as normas do Direito (Corte Internacional de Justiça,

1945).

Cabe ter em mente que a listagem presente neste artigo – que se pretendia

representar o que era o Direito Internacional - é criticada por tratar-se de instrumento

ultrapassado (Thirlway, 2014) e é tida como não exaustiva (Cançado Trindade, 2013),

havendo questionamentos acerca do caráter legal ou não de outras manifestações

internacionais (Thirlway, 2014)18. Além disso, à parte da CIJ, o uso e o modo de

identificar as fontes do direito internacional – por exemplo na importância dada à

jurisprudência - não são vinculativos sobre outras Cortes. Sua vantagem de citação está

em fins de clareza por razão de que, de qualquer modo, em sentido significativo, a

listagem ainda apresenta de modo geral as fontes do Direito Internacional como ele é

reconhecido hoje (Thirlway, 2014). Discorrer-se-á a seguir, então, acerca das fontes

listadas16.

3.1. CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

As convenções internacionais – também denominadas pactos, acordos,

protocolos, tratados – são instrumentos de acepção de obrigações e condições entre partes

15 As fontes no direito internacional são como, por exemplo, as normas de direito doméstico que

determinam a quem compete legislar. 16 O presente guia propõe-se a apresentar o panorama geral das fontes, sem, porém, incorrer numa descrição completamente abrangente de todas as questões atinentes a cada uma.

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através da produção, assinatura e ratificação de textos normativos17 (Crawford, 2012)18.

Podem tanto selos bilaterais – como acordos de facilitação de investimentos - quanto

multilaterais – como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação

racial19 - e seu fundamento enquanto fonte de Direito é o princípio de pacta sunt servanda

(pactos são cumpridos)20. Sua violação implica, deste modo, na violação de obrigações

internacionais e na possibilidade recurso a fóruns internacionais de disputa.

Contrariamente à obrigatoriedade implicada na sua adesão, sua vinculatividade é

exclusiva sobre aqueles que lhes são partes, como rege res inter alios acta nocet nec

prodest21; assim, aqueles que não ratificaram determinado tratado não serão vinculados

por ele – muito embora isso não necessariamente signifique que as normas nele contidas

não incidam, por força de outra fonte, sobre eles (Thirlway, 2014)22. Ademais, há

condições necessariamente observáveis no processo de adesão dos instrumentos

normativos: é uma possibilidade que sejam feitas neles declarações – que apontam

entendimentos (isto é, o que o Estado entende pela obrigação que assume) da parte

contratante acerca de determinadas disposições do texto – e reservas – que podem

implicar na não acepção e não submissão a determinados trechos do dispositivo.

3.2. COSTUME INTERNACIONAL

São entendidas como costumes as normas produzidas através da prática reiterada

e fundamentada em uma crença em obrigatoriedade perceptível. Assim, não basta que a

ação seja reiterada, ampla e consistente se não restar evidente o entendimento de que ela

é obrigatória – excluem-se, assim, do conjunto dos costumes, práticas que ocorrem por

cortesia, por exemplo. A mentalidade por trás há de ser uma que crê na existência da

norma enquanto direito (Thirlway, 2014).

Tal exigência psicológica é denominada opinio juris. Uma das maiores

dificuldades implicadas na identificação do direito costumeiro é a quase intangibilidade

de um estado mental por trás das ações da entidade socialmente construída que é o Estado

17 A adesão brasileira a dispositivos internacionais, por exemplo, só se completa com sua inserção no ordenamento jurídico por via de decreto presidencial, antes passando por aprovação no congresso nacional. O § 3º do artigo 5º da Constituição Brasileira, incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, rege: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (Brasil 2014). 18 Tratados podem ser compostos e, no entanto, nunca entrar em vigor. Disposição normativa comum é a de um número mínimo de partes ratificantes; não atingida, o dispositivo não entra em vigor. Exemplo possível é o da Convenção de Montevidéu sobre os direitos e deveres dos estados (Crawford, 2012). 19 Disponível em:

www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discriraci.htm. 20 Afirma o artigo 26º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: “Todo tratado é vinculativo aos Estados e deve ser cumprido de boa-fé.”. Cabe observar que o conteúdo da convenção referida é, segundo Thirlway, em muito “a codificação do direito geral pré-existente sobre a matéria” (Thirlway 2014, 99). 21 Como disposto pelo artigo 34 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm. 22 É possível se referir à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, muitas vezes aplicada sobre Estados não partes pela Corte Internacional de Justiça por força de seu caráter costumeiro. No caso, o vínculo normativo advém do costume e não do dispositivo legal, embora a norma esteja presente no mesmo; tal ocorre através de processo em que a adesão a determinado texto normativo se dá de modo tão próximo da universalidade que representa e atinge caráter de costume internacional (Thirlway, 2014).

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- evidências dela podem vir, consequente e dificultosamente, dos pronunciamentos e

ações dos oficiais que o compõem (Thirlway, 2014).

Cumpridas tais exigências, o costume pode variar em sua incidência; ao tratar de

norma que diz respeito a aspectos que concernem à comunidade internacional em suas

relações e práticas como um todo – tal qual é na maior parte dos casos -, sua

vinculatividade atinge a todas as nações23. No entanto, há também a possibilidade da

formulação de costumes de escopo limitadíssimo, chegando a ser entre apenas dois

estados24 ou regional25; são, porém, situações de características extremamente

específicas.

3.3. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO

Acerca da terceira fonte citada, curiosamente não há unanimidade entre os estudiosos

(Thirlway, 2014). Há duas interpretações tidas como possíveis para que tipo de obrigação

pode advir deles: podem ser eles entendidos como os princípios derivados de vários

sistemas de Direito doméstico26, como por exemplo princípios de coisa julgada27; ou

princípios aplicáveis às relações legais internacionais e em geral, como o de que norma

especial prevalece sobre geral e de que norma nova derroga28 norma anterior (Thirlway

2014).

Tal confusão existe em razão de situação descrita por Hugh Thirlway como: “falta

de evidências na prática e jurisprudência internacionais de reivindicações de um

determinado direito de natureza jurídica concreta sendo afirmadas […] com base

simplesmente nos princípios gerais do Direito” (Thirlway, 2014, 109). Por tal, Thirlway

afirma que os princípios gerais do Direito são de menor importância prática para a

determinação do que é norma internacional.

3.4. DECISÕES JUDICIAIS E DOUTRINA

O artigo 38º do estatuto da Corte Internacional de Justiça elenca ainda uma dupla

de fontes de caráter subsidiário. Diferentemente das três primeiras, as fontes presentes

em (d) tem caráter de fontes materiais, enquanto as que lhes antecedem são fontes

formais. A diferença entre formais e materiais pode ser compreendida de melhor modo

através do uso do exemplo da Convenção de Montevidéu sobre os direitos e deveres dos

Estados: esta, apesar de nunca ter entrado em vigor, hoje é utilizada constantemente como

23 Salvo o caso excepcional do chamado opositor persistente; um estado que tenha aberta e claramente objetado à formação do costume não é por ele vinculado. A existência de tal condição aponta para uma consideração importante: o direito costumeiro não é formulado simplesmente pela maioria e sim formulado pelo exercício soberano da aceitação e prática (Thirlway, 2014). 24 Como tratado no caso Direito de Passagem sobre o território Indiano (Thirlway 2014). 25 Como no caso do Asilo; há, na América Latina – no entanto, como reconhecido no caso referido, não entre todos os países que a compõem – um costume de direito à recepção de perseguidos políticos nas embaixadas nacionais. A isenção do Peru presente no caso de obrigatoriedade pelo costume é um exemplo de caso de oposição persistente (Thirlway 2014). 26 É o entendimento, por exemplo, de Michael P. Scharf. SCHARF, Michael P. Introduction to International Criminal Law – Case Western Reserve University. Material disponível para membros do MOOC em class.coursera.org/intlcriminallaw-001. 27 Princípio que implica na interdição de novo julgamento acerca de disputa já anteriormente julgada; importa entender que essa restrição não se relaciona com a possibilidade de recurso a instâncias superiores, o que se trata de parte das garantias de um processo para que a questão possa ser considerada res judicata (coisa julgada). 28 Derroga, suprime em só uma parte a norma anterior. Abr-roga, suprime toda.

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fonte para descrever a definição de Estado (Thirlway, 2014). Pode-se compreender, então,

que as fontes formais são tais que têm o seu poder vinculativo em si, enquanto as materiais

somente apresentam as normas sem que, no entanto, delas emanem. Thirlway (2014)

afirma, por exemplo, que um próprio manual de Direito Internacional pode ser uma fonte

material do Direito Internacional.

Porém, diferentemente de um livro-texto qualquer de Direito Internacional, as

decisões judiciais – estas podendo ser tanto as internacionais29 quanto nacionais30 - e as

publicações dos autores mais qualificados são dotadas de uma especial autoridade para

apontar o que é Direito (Thirlway, 2014). É por tal, então, que são listadas, embora de

modo limitado, como fonte a ser aplicada.

3.4.1. Acordo de Londres

Foi assinado em 1945 ao criar-se o Tribunal de Nuremberg para punição dos

crimes cometidos por militares e políticos nazistas durante a segunda grande guerra. Cabe

ressaltar que em seu artigo sexto, o acordo reconhece um dos princípios Jus Cogens31 e

diz o que segue:

“O Tribunal estabelecido pelo Acordo referido no artigo 1.º para julgamento e

punição dos principais criminosos de guerra dos países do Eixo Europeu terá o poder de

tentar punir pessoas que, no interesse dos países do Eixo Europeu, seja individualmente

ou como membros de organizações, cometeram qualquer dos seguintes crimes. Os

seguintes atos, ou qualquer um deles, são crimes que se enquadram na jurisdição do

Tribunal para o qual haverá responsabilidade individual:

(A) CRIMES CONTRA A PAZ: planejamento, preparação, iniciação ou guerra de

agressão, ou uma guerra em violação de tratados, acordos ou garantias internacionais,

ou participação em um plano comum ou conspiração para a realização de qualquer um

dos acima expostos;

(B) CRIMES DE GUERRA: nomeadamente violações das leis ou costumes da

guerra. Tais violações devem incluir, mas não se limitar a, assassinatos, maus tratos ou

deportações para o trabalho escravo ou para qualquer outra finalidade de população

civil ou em território ocupado, assassinatos ou maus tratos de prisioneiros de guerra ou

pessoas nos mares, Matança de reféns, pilhagem de propriedade pública ou privada,

destruição destituída de cidades, vilas ou aldeões, ou devastação não justificada por

necessidade militar;

29 Como a decisão da Corte Permanente Internacional de Justiça do caso Lotus. Exemplo de uso é a opinião dissidente da juíza Wyngaert no caso Yerodia. VAN DEN WYNGAERT, Christine Baroness, Opinion dissidente de Mm. Van den Wyngaert , http://www.icj-cij.org/docket/files/121/8144.pdf, Haia, 2002. 30 Como a decisão da Corte Permanente Internacional de Justiça do caso Lotus. Exemplo de uso é a opinião dissidente da juíza Wyngaert no caso Yerodia. VAN DEN WYNGAERT, Christine Baroness, Opinion dissidente de Mm. Van den Wyngaert , http://www.icj-cij.org/docket/files/121/8144.pdf, Haia, 2002. 31 Vide item 3.5. as regras imperativas (jus cogens) são as normas que impõem aos Estados obrigações objetivas, que prevalecem sobre quaisquer outras. Assim, o jus cogens compreende o conjunto de normas aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional, que não podem ser objeto de derrogação pela vontade individual dos Estados, só podendo ser revogado por outra norma de valor igual.

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(C) CRIMES CONTRA A HUMANIDADE: assassinato, extermínio, escravização,

deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes

ou durante a guerra; Ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos em

execução ou em conexão com qualquer crime na jurisdição do Tribunal, que viole ou não

a lei interna do país onde foi perpetrado.

Líderes, organizadores, instigadores e cúmplices que participam da formulação

ou execução de um plano comum ou conspiração para cometer qualquer dos crimes

anteriores são responsáveis por todos os atos praticados por qualquer pessoa em

execução desse plano” (School 1945)

3.4.2. Tratado de Versalhes

Nas discussões referentes ao tratado de paz que pôs fim à primeira grande guerra,

os representantes da Tríplice Entente propuseram a responsabilização penal do Imperador

Guilherme II da Alemanha pelos abalos sofridos no, então, conflito mais sangrento da

história. A deliberação acerca de quais seriam a punição adequada e por quais crimes o

Kaiser32 seria julgado levaram ao artigo n°227 do tratado que, como mostra a reprodução

abaixo, institui um tribunal de exceção para julgar os crimes cometidos. Além disso, no

corpo do artigo, já é possível notar a observância dos princípios de direito penal como o

devido processo legal (due process of law). Ressalta-se que o artigo foi inócuo, uma vez

que o Ex-Governante alemão encontrou abrigo em países simpáticos a sua causa. (Aragão

2009).

“The Allied and Associated Powers publicly arraign William II of

Hohenzollern, formerly German Emperor, for a supreme offence

against international morality and the sanctity of treaties. A special

tribunal will be constituted to try the accused, thereby assuring him

the guarantees essential to the right of defence. It will be composed of

five judges, one appointed by each of the following Powers: namely,

the United States of America, Great Britain, France, Italy and Japan.

In its decision the tribunal will be guided by the highest motives of

international policy, with a view to vindicating the solemn obligations

of international undertakings and the validity of international

morality. It will be its duty to fix the punishment which it considers

should be imposed. The Allied and Associated Powers will address a

request to the Government of the Netherlands for the surrender to them

of the ex-Emperor in order that he may be put on trial”

3.4.3. Convenções de Genebra de 1949

Entre os anos de 1864 e 1949 diplomatas se reuniram quatro vezes na cidade suíça

de Genebra para discutir o chamado direito internacional humanitário, jus in bello. Esse

ramo do direito possui a função humanitária de traçar os limites da guerra e garantir

proteção aos soldados e civis em áreas de conflito.

Diversas foram as evoluções trazidas nesses documentos. Cabe mencionar a

garantia de proteção aos prisioneiros de guerra, civis e militares, a obrigatoriedade de uma

força invasora fornecer segurança à população civil, proteção aos náufragos e vítimas da

guerra marítima e limitações no uso de algumas variedades de armas. No caso em análise

por essa corte, o direito internacional humanitário deverá ser levado em conta ao se

estudar o conjunto probatório da acusação.

32 Imperador

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3.4.4. Princípios de Nuremberg

Os Princípios de Nuremberg são o resultado dos famosos julgamentos de oficiais

nazistas que ocorreram na cidade homônima. Homologados através da resolução n°95 da

Assembléia geral das Nações Unidas, esses pontos formam a fundamentação do direito

penal internacional, seus princípios e sua normatividade. O Tribunal penal Internacional

Ad Hoc baseia-se neles, assim como toda legislação criminal internacional posterior. A

expressa importância advém dos princípios de direito manifestados no documento que o

tornam parte do jus cogen internacional (conjunto de princípios de normas máximos do

direito internacional). Para facilitar o entendimento e a aplicação no processo penal

internacional, explicaremos separadamente o significado de cada ponto e a sua aplicação

como ferramentas para o jurista:

A) A culpabilidade individual como fundamento da responsabilidade penal por

ato considerado crime pelo direito internacional;

Entende-se por culpabilidade a emissão de um juízo de reprovação perante a

vontade de um agente jurídico que sujeito às leis, e com conhecimento prévio delas, age

em sentido contrário ao disposto pelo direito. O jurista Miguel Reale Junior, em palavras

mais simples, conceitua culpabilidade como “reprova-se o agente por ter optado de tal

modo que, sendo-lhe possível atuar de conformidade com o direito, haja preferido agir

contrariamente ao exigido pela lei”. Dessa definição extrai-se um princípio de direito

penal que nos diz que a culpa só pode ser dirigida ao agente que de fato a causou. Ou seja,

não se pode responsabilizar terceiros pela ação de um indivíduo, somente ele pode

responder pela acusação e cumprir a punição cabível. Um exemplo prático disso é o caso

de um devedor que, ao ver que não possui o devido, tenta responsabilizar juridicamente

seu familiar. Isso é inviável, pois a responsabilidade é intransferível. O Estatuto do

tribunal Ad Hoc para a antiga Iugoslávia define em seus termos a culpabilidade

individual:

“1 - Uma pessoa que planejou, instigou, ordenou, cometeu ou de outra forma

ajudou e incentivou no planejamento, preparação ou execução de um dos crime referido

nos artigos 2º a 5º do presente Estatuto, será Individualmente responsável pelo crime.

2 - A posição oficial de qualquer acusado, seja como Chefe de Estado, de governo

ou como Funcionário responsável do governo, não deve aliviar essa pessoa de

responsabilidade criminal nem mitigar a punição.

3 - O fato de qualquer um dos atos referidos nos artigos 2. °a 5. ° do presente

estatuto ter sido cometido por um subordinado, não alivia seu superior de

responsabilidade criminal; se ele soubesse ou tivesse motivos para saber que o

subordinado estava prestes a cometer tais atos ou tinha feito isso e não tomou os

procedimentos necessários e as medidas razoáveis para prevenir tais atos ou para punir

os perpetradores.

4. - O fato de uma pessoa acusada agir de acordo com uma ordem de um governo

ou de um superior não deve aliviá-la da responsabilidade criminal, mas pode ser

considerado em mitigação da pena. ” (ICTY 1993)

B) A responsabilidade penal internacional independe da lei interna;

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O Tribunal Penal Internacional possui supremacia sobre a lei doméstica do país,

no sentido de que sua legislação, quando solicitada a aplicação, será hierarquicamente

superior à lei nacional. Entretanto, essa concorrência que existe entre a norma nacional e

a internacional não significa que uma pessoa poderá ser julgado pelo mesmo crime mais

de uma vez. A corte segue o princípio bis in idem, que impede que uma pessoa seja

julgada pelo mesmo crime mais de uma vez. Conforme o Estatuto do tribunal:

“1- O Tribunal Internacional e as jurisdições nacionais serão concorrentemente

competentes para julgar as pessoas suspeitas de serem responsáveis por violações graves

ao direito internacional humanitário cometidas no território da ex-Iugoslávia desde 1 de

janeiro de 1991.

2- O Tribunal Internacional terá primazia sobre as jurisdições nacionais,

podendo, em qualquer fase do processo, solicitar oficialmente às jurisdições nacionais

que renunciem à respectiva competência a seu favor, em conformidade com o presente

Estatuto e respectivo regulamento.” (ICTY 1993)

C) A posição oficial ou imunidades não podem afastar a responsabilidade penal

internacional;

Esse ponto surge para burlar qualquer tipo de legislação doméstica que tente frear

a justiça internacional ao conceder privilégios jurídicos aos investigados. Outra nota

importante é que ele “burla” os mecanismos de prescrição dos crimes de acordo com a lei

do país, fazendo com que os crimes previstos no estatuto ( documento anexo) sejam

imprescritíveis. Lembra-se que o TPI possui uma atuação complementar que substitui o

Estado em casos de ineficiência ou omissão.

D) A obediência hierárquica não constitui excludente de responsabilidade com

base apenas em cumprimento de ordem superior;

Tema muito debatido durante os julgamentos de Nuremberg em que os oficiais

nazistas afirmavam que apenas estavam cumprindo ordens de seus superiores e que,

portanto, não poderiam ser responsabilizados criminalmente por seguir a rigidez

hierárquica de um exército, haja vista terem de arcar com punições caso descumprissem

as ordens.

E) O devido processo legal como garantia de todo acusado;

A garantia ao devido processo legal (due process of law) é um dos preceitos

fundamentais do mundo jurídico. Ela sustenta que o acusado só poderá ser condenado se

o processo seguir todos os trâmites e procedimentos previstos na legislação processual e

penal. Seguir o devido processo legal implica em se apoiar no direito ao contraditório e

do direito à ampla defesa.

F) A legalidade (com a definição jurídica dos crimes internacionais em tratados).

Considerado o mais importante dos princípios. A legalidade se apoia na máxima

Nulla poena sine lege. Ou seja, não existe crime sem lei anterior que o defina como tal.

Logo, ninguém pode ser julgado por atos cometidos antes dos mesmos serem definidos

como crimes. Diante disso, surge a chamada retroatividade penal em que, se houver uma

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alteração na lei, o acusado será julgado pela forma como a lei era na época dos fatos. A

não ser que a mudança aja em benefício do acusado. Usando um exemplo banal: se uma

pessoa comete o crime de furto no dia 01/01/2017 com a pena máxima sendo

correspondente a dois anos de privação de liberdade e no dia 02/01/2017 essa pena é

aumentada para quatro anos de prisão, a pessoa vai responder levando em consideração a

pena máxima de dois anos. Agora, se for uma situação contrária em que a pena inicial

seja de quatro anos e depois diminua para o máximo de dois anos. O acusado estará sujeito

à punição prevista na redação mais atual da norma. Em suma, a lei penal só retroage em

benefício do réu.

3.5. NORMAS SUPERIORES

Cabe, por fim, observar as normas peremptórias (chamadas de normas de jus

cogens); uma categoria especial do Direito Internacional. A importância de seu conteúdo

é tida como de tal fundamentalidade para a comunidade internacional que ela supera a

possibilidade da criação de direito que lhes contrarie. Sua obrigatoriedade é, de tal modo,

erga omnes, ou seja, incidente sobre todos da comunidade internacional.

Por outro lado, embora a existência delas seja reconhecida pela comunidade

internacional, encontrando-se presente inclusive na Convenção de Viena sobre o Direito

dos Tratados33, a definição de quais normas portam tal aura de intangibilidade é uma

questão controvertida - um exemplo, no entanto, é o da proibição ao genocídio (Thirlway,

2014). Tal norma, naturalmente, é compreensível, considerando-se o aspecto quase

suprapositivo34 que lhes é conferido. Em tal situação, dentro de um Direito Internacional

que se afastou tanto da sua origem jusnaturalista, a necessidade de evidências claras de

aceitação universal não é garantia necessária surpreendente; na verdade, é facilmente

compreensível.

3.6. FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS

HUMANOS

Resta-nos abordar aqui algumas especificidades dessas fontes quando se trata de

direitos humanos. Os fundamentos do DIDH contemporâneo encontram-se no direito

positivo, com base no consentimento do Estado. A principal maneira em que os Estados

expressam seu consentimento é através do primeiro instrumento enumerado no artigo 38

(1): a negociação e aprovação dos tratados. O Direito dos Tratados é, indiscutivelmente,

a mais importante fonte de direito internacional dos direitos humanos hoje (Chinkin,

2010). Muitos países consideram os tratados de direitos humanos como tendo uma

importância diferenciada e, por vezes, de hierarquia superior. O fundamento dessa

concepção seria o sentido da norma; assim, o tratado não seria apenas uma obrigação em

relação aos demais Estados; mas, principalmente e essencialmente, uma obrigação em

33 Artigo 63 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. O artigo indica que a norma é formulável por via do costume, dependendo, consequentemente, da prática reiterada e ampla amparada pela opinio juris; no entanto, diferentemente de um costume comum, a formação de tal costume haveria de conter a percepção evidente de se tratar especificamente de uma norma de tal natureza inderrogável e superior (Thirlway 2014). 34 Parece necessária a reflexão de que um Direito intransponível e imutável se aproxima muito – ainda que não em origem, mas em consequências - do Direito natural referido pelos juristas dos primórdios do Direito Internacional; porém, a exigência de que a aceitação universal seja demonstrada mantém o papel da soberania dos estados na formulação do Direito, diferentemente do inalcançável direito divino ou natural afirmado pelos antigos internacionalistas.

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relação aos indivíduos de cada Estado. Consoante parecer consultivo, OC-02/82, da Corte

Europeia de Direitos Humanos, os Estados, ao aprovarem tratados sobre direitos

humanos, submetem-se a uma ordem legal dentro da qual assumem diversas obrigações,

não em relação aos outros Estados, mas, sim, aos indivíduos sob sua jurisdição (Varella

2011).

Uma omissão importante do artigo 38 (1) é quanto às resoluções de instituições

internacionais. Resoluções do Conselho de Segurança adotadas sob o Capítulo VII da

Carta da ONU são obrigatórias para os Estados-partes, embora não tenham sido utilizadas

como fonte de direitos humanos. De maior importância, são as numerosas resoluções, da

Assembléia Geral, que versam sobre direitos humanos, responsáveis por estabelecer

normas para os Estados e atores não estatais, bem como fornecer-lhes aspirações e metas.

Por exemplo, o documento fundamental do DIDH - o DUDH – foi construído na forma

de uma resolução da Assembleia Geral. Tais instrumentos não vinculativos (muitas vezes

chamado de soft law) podem constituir a base de normas que ditem costume, ou que,

posteriormente, sejam transformadas em tratado ou costume internacional (Chinkin

2010).

Outra forma em que uma resolução não obrigatória pode ser entendida como uma

fonte de DIDH é o quando essa fornece a interpretação oficial de um tratado. A Comissão

Interamericana, por exemplo, em uma de suas resoluções, concordou em determinar que

os EUA têm obrigações de direitos humanos sob o documento, apesar de não ter se

tornado parte da CADH (Chinkin, 2010).

4. A GUERRA NA ANTIGA IUGOSLÁVIA

A antiga República Federativa da Iugoslávia presenciou um dos principais

conflitos de repercussão global desde a 2ª Guerra Mundial. Porém, antes de abordar a

guerra em si, se faz necessário realizar a retomada histórica da República Federativa da

Iugoslávia com a finalidade de explicar a formação política e populacional deste território,

considerado um caldeirão social devido às várias etnias que povoam as terras da península

balcânica. Neste contexto, a formação da Iugoslávia iniciou-se a partir de 1908 com os

conflitos envolvendo o Império da Áustria-Hungria contra organizações nacionalistas que

participavam da vida política a partir de seu ingresso no Parlamento Bósnio (AGUILAR,

2003, p. 52). Contudo, o atentado praticado em 1914 pelo estudante sérvio Gavrilo Princip

contra o herdeiro do trono austro-húngaro Franz Ferdinando, abalou as frágeis relações

políticas existentes, sendo considerado o estopim de uma série de conflitos que culminou

na 1ª Guerra Mundial, com duração de 1914 até 1917. O fim da Grande Guerra

possibilitou a definição de novas fronteiras na Europa, sendo que a formação da

Iugoslávia foi influenciada pela unificação dos povos eslavos do sul sob Reino dos

Sérvios, Croatas e Eslovenos, que englobava também os territórios da Macedônia,

Kosovo, Montenegro, Bósnia-Herzegovina e Voivodina.

Devido à variedade étnica, a unificação impediu que o sentimento de nação se

desenvolvesse pelo território iugoslavo, ocasionando inúmeras divergências tanto no

campo social quanto no político. Nesta linha, podemos citar como exemplo, a aprovação

da Constituição do Reino, que centralizou o poder sob a égide do rei da Sérvia, Alexandre

I e resultou na formação de grupos nacionalistas de origem eslovena, bósnia e croata que

eram resistentes aos sérvios (Lorecchio, et al., 2010, p. 2)

Já no período da 2ª Guerra Mundial, a Iugoslávia foi invadida pela Alemanha, que

proclamou a Croácia como Estado independente e instalou o governo extremista e

nacionalista de Ante Pavelic, denominado “ustasha”, fortemente ligado aos nazistas.

Neste sentido, leis anti-semitas e de proteção ao povo croata foram promulgadas,

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iniciando-se intensa perseguição e eliminação da população minoritária, o que, até o final

da guerra resultou na morte de 12 dos 14 mil judeus que moravam na Bósnia (AGUILAR,

2003, p.58).

Além da luta contra os alemães e italianos, o território iugoslavo vivenciou uma

guerra interna de extremistas entre croatas contra sérvios, bem como entre as duas

principais organizações de resistência, os chetniks (nacionalistas sérvios) e os partisans

(comunistas liderados por Joseph Broz Tito). A maior parte da população apoiou as forças

de Tito que em 1943 contavam com 300 mil homens e passaram por toda a guerra sem

serem derrotados pelos nazistas (AGUILAR, 2003, p. 59).

O final da 2ª Guerra Mundial fez o Marechal Tito sair como o grande vitorioso

após resistir à investida alemã, sendo então alçado pela população como o grande líder da

Iugoslávia, onde centralizou os poderes no Partido Comunista, nas forças armadas e na

polícia secreta que eliminava qualquer foco de resistência (CINTRA, 2009, p.24). Desta

forma, Tito governou a Iugoslávia com mão de ferro, não permitindo qualquer conflito

com o intuito de manter a unidade política e social do país. Porém, a integração do Estado

foi artificial, conseguida principalmente a partir de sua liderança carismática e do

estabelecimento de práticas políticas e econômicas com a finalidade de tranquilizar as

diferentes etnias (CINTRA, 2009, p.27). Este sistema de concessões durou até 1974,

quando Tito promulgou uma nova Constituição que garantia maior liberdade e poder às

seis repúblicas e às duas províncias autônomas, instituindo o banco central, polícia e

sistemas judiciais e educacionais separados. Esta Constituição combinava componentes

do federalismo e confederalismo, e objetivava a rotatividade do poder executivo para

manter o equilíbrio político e impedir a perpetuação da maioria sérvia no poder

(CINTRA, 2009, p. 39).

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Este modelo governamental durou

apenas 11 anos. A morte de Tito, em 1980,

e o enfraquecimento do sistema comunista

ao longo da década seguinte (culminando

com a queda do muro de Berlim, em 1989),

aliada à decadência econômica pela qual

passava a Europa Ocidental, reacenderam

o ódio étnico nos Bálcãs, fazendo com que

os comunistas começassem a perder o

controle do país. Com isso, divergências do

passado começaram a se agravar. A

Iugoslávia entrou em um período de grave

crise com dívidas superiores a 20 bilhões

de dólares, mais de 50% de seu capital

atrelado a empréstimos e bancos externos e

sem possibilidade de acesso às reservas internacionais (CINTRA, 2009, p. 37). Políticas

austeras dos órgãos econômicos internacionais quase levaram a Iugoslávia ao colapso,

com diminuição dos salários em torno de 30%, 1/5 das receitas totais destinadas ao

pagamento da dívida externa, o nível de desemprego alcançava 1/3 da força de trabalho

e a inflação chegou a 580% (AGUILAR, p. 72). A Federação, em 1987, aceitou uma

emenda Constitucional que transformou o Estado iugoslavo num “estado policêntrico”

com o intento de conceder maior autonomia às repúblicas, porém, esta medida não

alcançou a eficácia esperada e causou o aumento das pressões nacionalistas contra o

Governo Central, permitindo que os líderes locais obtivessem o apoio das massas

nacionalistas e realizassem seguidos levantes que culminaram com as guerras internas e

localizadas entre as várias repúblicas pertencentes à Iugoslávia (CINTRA, 2009, p. 65).

O nacionalismo exacerbado, a inconsistência social e política e a decadência

econômica foram os principais fatores que permitiram o ressurgimento de líderes

ultranacionalistas que se ampararam nas massas para conquistar o poder político de várias

formas e possibilitou a ocorrência das guerras travadas entre as repúblicas. O palco se

tornou favorável para vários tipos de discursos, do nacionalismo sérvio à crença de que

era chegada a hora para eslovenos, croatas, bósnios e kosovinos fundarem seu próprio

país.

Neste contexto, a antiga Iugoslávia presenciou três focos principais de conflitos

ocorridos durante a dissolução da República Socialista Federativa da Iugoslávia. Eles

compreenderam a Guerra da Independência Eslovena (1991), a Guerra da Independência

Croata (1991-1995) e a Guerra da Bósnia (1992-1995). No outro grupo observaram-se as

guerras em áreas povoadas por albaneses, sendo a Guerra do Kosovo (1996-1999), o

Conflito no Sul da Sérvia (2000-2001) e o Conflito na Macedônia (2001). Por fim, há as

operações da OTAN contra a Sérvia chamadas de Operação Força Deliberada

(bombardeio sobre posições sérvias na Croácia e na Bósnia entre 1995 e 1996) e a

Operação Força Aliada (bombardeio sobre a Sérvia em 1999).

4.1. GUERRA DA INDEPENDÊNCIA ESLOVENA (1991)

Os primeiros a agirem foram Eslovênia e Croácia, que em 25 de junho de 1991,

via referendo, declararam independência. No início de 1992, a comunidade internacional

reconheceu a independência croata, eslovena e das outras repúblicas, reduzindo a

Iugoslávia às regiões da Sérvia, Montenegro e Bósnia. A decisão desagradou o presidente

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sérvio Slobodan Milosevic. O primeiro alvo de Milosevic foi a Eslovênia, numa guerra

de “tiro curto” que durou 10 dias. Depois de algumas bombas e ameaças, um acordo foi

firmado pelo governo esloveno e a Iugoslávia.

4.2. GUERRA DA INDEPENDÊNCIA CROATA (1991-1995)

Resolvida a questão da Eslovênia (que sempre foi mais “Ocidental” do que

“Oriental”, e continha pequena representatividade sérvia no país), o exército iugoslavo –

sob o comando de Milosevic – focou seus esforços na Croácia e, prontamente, invadiu o

país com a ajuda das milícias sérvias locais. A guerra, que teve início paralelamente à

declaração de independência da Croácia, colocou frente a frente o exército croata

(inicialmente constituído por apenas 1,5 mil homens), as milícias rebeldes sérvias que

viviam na Croácia (e eram contra a independência), e as forças do exército iugoslavo

(JNA), liderado pelo presidente sérvio, Slobodan Milosevic. O líder embasava seu

discurso intervencionista na necessidade de evitar que as minorias sérvias tivessem seus

direitos suprimidos, ao mesmo tempo em que buscava “manter a união” das repúblicas

que constituíam a Iugoslávia. Em outras palavras, para salvar os sérvios que moravam em

outros países, Milosevic estava disposto a tudo. Até invadir territórios e matar pessoas.

Com o sangue respingando nas coberturas televisivas, ONU e Comunidade

Européia intervieram no conflito. O resultado do embate, contudo, foi devastador: 1.739

pessoas morreram. A cada três vítimas fatais, duas eram civis. Centenas de croatas foram

encaminhados a campos de concentração na Sérvia. Mais de duas mil pessoas ficaram

feridas e 20 mil desalojadas. Apenas no dia 20 de novembro de 1991, 260 pessoas foram

retiradas do hospital de Vukovar e executadas pelos sérvios. Os corpos foram enterrados

numa vala coletiva na localidade vizinha de Ocvara. As vítimas eram civis feridos,

militares e o corpo médico do hospital da cidade, com idades entre 16 e 72 anos. O local

onde a vala coletiva foi descoberta é sede, hoje, de um memorial. Atualmente, Vukovar

tem 27 mil habitantes. E segue dividida. Há escolas específicas para filhos de croatas (que

representam 60% população) e sérvios (35% dos moradores) e bares onde, dependendo

de sua origem, você não pode pisar.

4.3. GUERRA DA BÓSNIA (1992-1995)

Seguindo os passos da Eslovênia e da Croácia, a Bósnia e Herzegovina foi a

terceira república da antiga Iugoslávia a declarar independência, em fevereiro de 1992

(também via referendo). A República da Bósnia, neste período, foi alvo de interesses

sérvios, muçulmanos e croatas, devido principalmente à sua importância econômica nas

áreas agrícola, mineradora, metalurgia e defesa (CINTRA, 2009, p. 38). A grande

questão, porém, é que se em toda a Iugoslávia os nacionalistas faziam uso de discursos

étnicos, a população bósnia era totalmente miscigenada, o que invalidava esse

posicionamento (CINTRA, 2009, p. 72). Na medida em que o diálogo tornava-se

insustentável, a região foi sendo dividida em Zonas Autônomas entre sérvios, croatas e

muçulmanos. Em fevereiro realizou-se um plebiscito para a independência, porém apenas

64% da população votou, e mesmo com o apoio de líderes políticos ele não teve força

prática, o que permitiu o controle de grande parte da Bósnia pelas forças sérvias, que

aliadas a grupos paramilitares e milicianos, chegaram a controlar 60% do território bósnio

(AGUILAR, 2003, p. 91). Pelo país, integrantes de diferentes culturas e religiões estavam

se aniquilando. Começou um processo de limpeza étnica liderado pelos sérvios. Valia

tudo, desde massacres coletivos a estupros sistemáticos de mulheres bósnias, que, pela lei

vigente, tendo filhos de pais sérvios, dariam à luz a crianças “sérvias legítimas”. As

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cidades foram em sua maioria completamente bombardeadas e limpas etnicamente com

militares resistentes sendo enviados a campos de prisioneiros ou executados e mulheres

e crianças mortas e suas casas saqueadas. O conflito deixou aproximadamente 100 mil

mortos. Entre as vítimas, 40 mil civis. Cerca de 50 mil mulheres bósnias foram estupradas

e 1,5 milhão de pessoas ficaram desabrigadas ou refugiadas. Foi o primeiro caso de

genocídio na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. Campos de concentração também se

tornaram comuns.

Na linha de combate se enfrentaram os representantes de cada etnia da então

República: sérvios e bósnios de origem sérvia (representantes da República de Srpska,

apoiados pelo exército Iugoslavo (JNA), de Slobodan Milosevic), croatas e bósnios de

origem croata, e bósnios de origem muçulmana – grupo que registrou as maiores perdas.

O mundo acompanhou ao vivo os principais momentos do conflito.

4.4. GUERRA DO KOSOVO (1996-1999)

Desde o fim da guerra na Bósnia, em 1995, a tensão entre a província autônoma

de Kosovo, de maioria albanesa, e o que restou da Iugoslávia também começou a crescer.

Em 1998, os confrontos entre as forças de segurança sérvias e o Exército de Libertação

de Kosovo (ELK) se intensificaram. Na luta pela independência, separatistas de Kosovo

chegaram a controlar parte da província – quando tiveram sua autonomia ‘castrada’ por

Milosevic, graças ao fechamento do parlamento kosovino e a entrada em ‘campo’ das

tropas sérvio/iugoslavas. A situação chegou ao extremo em 1999, quando após uma

tentativa fracassada de assinar um acordo de paz com os sérvios, a Organização do

Tratado do Atlântico Norte (OTAN) atacou a Iugoslávia em março daquele ano – no

centro de Belgrado, capital da Sérvia, até hoje prédios que foram alvo do ataque restam

intocados, e destruídos.

Em 2008 Kosovo conquistou, finalmente, sua independência. Porém, 13.500

pessoas foram mortas no período, conforme levantamento do Humanitarian Law Center

(HLC). Este episódio, ainda não bem resolvido, segue sendo um dos motivos que barram

a entrada da Sérvia na Comunidade Europeia.

Fruto desta série de episódios, a Iugoslávia deixou de existir, oficialmente, em

2003, dando lugar a um ‘novo país’, chamado Sérvia e Montenegro. Em 2006, porém, as

duas nações também se separaram, após referendo, criando os hoje independentes países

da Sérvia e de Montenegro. O espólio da guerra, entretanto, ficou com a Sérvia, por

motivos óbvios. No total, nove enfrentamentos armados foram registrados envolvendo as

seis repúblicas da antiga Iugoslávia e as duas unidades autônomas, num número

aproximado de 140 mil mortos, outra centena de milhares de desaparecidos e, pelo menos,

2,2 milhões de refugiados, entre 1991 e 2001.

5. SLOBODAN MILOSEVIC

Milošević (diz-se “Milochevitch”) nasceu em 20 de Agosto de 1941 em Podgorica

(antiga Titogrado, atual capital montenegrina) durante a ocupação do Reino da Iugoslávia

pelos nazistas. Seu pai, um sacerdote da Igreja Ortodoxa Sérvia, e sua mãe, uma

professora de ensino médio, ambos viriam a se suicidar, aquele em 1962 e esta dez anos

depois. Seu contato mais importante desse começo de vida viria a ser Ivan Stambolić,

sobrinho de um burocrata importante de Tito (líder da resistência contra os nazistas e

figura política mais importante da Iugoslávia no pós-guerra. Conduziu o país de 1945 até

sua morte, em 1980) e que viria a se tornar Presidente da Sérvia nos anos 80. Ivan apoiou

e foi fundamental na ascensão hierárquica de Slobodan na estrutura partidária da Liga dos

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Comunistas da Iugoslávia, partido único do regime comunista. Estudou direito na

Universidade de Belgrado, se formando em 1966 e, em 1971, casou-se com sua amiga de

infância, Mirjana Marković, com quem teve dois filhos. Hoje a viúva e os filhos vivem

como refugiados na Rússia.

Após cerca de vinte anos como um burocrata do regime, exercendo as mais

diversas funções (dentre as quais destaca-se a presidência de um banco), Milošević

primeiro surge como agente político em 1987, apoiando a minoria sérvia no Kosovo e

pedindo redução da autonomia do governo kosovar. A Federação Iugoslava era

estruturada por seis repúblicas étnicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegóvina, Sérvia

e Albânia) e duas províncias autônomas, Vojvodina e Kosovo, formalmente sobre

jurisdição sérvia, mas que, após a Constituição de 1974, gozavam de larga autonomia e

tinham quase tanto poder quanto as repúblicas. Seus críticos diziam que isso era

nacionalista (o que era um tabu na Iugoslávia pós-guerra, que devia ser um estado

pluriétnico) e que ia contra o lema federativo (em outras palavras, o “Ordem e Progresso”

deles) Irmandade e Unidade. Assim, após lentamente ocupar a seção sérvia da Liga dos

Comunistas com seus apoiadores, Milošević maquinou para que exercessem pressão

sobre Stambolić, que renunciou em dezembro. Slobodan o sucedeu na presidência da

Sérvia, começando seu reino.

Em 1988 e 1989, protestos favoráveis ao novo presidente sérvio eclodiram pela

Iugoslávia pedindo por menos burocracia e corrupção. Os governos de Montenegro,

Vojvodina e Kosovo caíram e foram sucedidos por apoiadores de Milošević. Seus

defensores dizem e diziam que a revolução foi um movimento de baixo pra cima,

autônomo, e que era natural que figuras favoráveis a ele assumissem porque ele era

popular, ao passo que seus críticos dizem que ela não foi autônoma, mas sim uma

manobra política para aumentar seu poder dentro da federação. E, de fato, após as

mudanças de governo, ele agora controlava quatro das nove cadeiras do Presídio. Chefia

de Estado colegiada, instituída após a morte de Tito, composta por um representante de

cada república ou província autônoma mais o líder do partido dominante, a Liga.

Eslovênia e Croácia resistiram, não deixando, por exemplo, que manifestantes sérvios

viessem de trem aos seus territórios para dar andamento à revolução. Isso causou atritos,

como uma retirada de negócios sérvios do território esloveno. Esses atritos aceleraram as

animosidades étnicas e o fim da federação.

Ainda em 1989, foram aprovadas severas reduções de poder às províncias

autônomas, as retornando ao seu status pré-1974, o que também acelerou os conflitos e

concentrou ainda mais poder nas mãos de Milošević. Em 1991, na esteira da Revolução,

Eslovênia, Croácia e Macedônia separaram-se do governo central, abandonando o

comunismo e estabelecendo democracias pluripartidárias. A Krajina (conjunto de regiões

croatas de maioria étnica sérvia) separou-se, por sua vez, do governo croata, buscando

incorporação à Sérvia e dando início aos conflitos étnicos. Em 1992 a Bósnia-

Herzegovina também desligou-se do governo central. A minoria sérvia, que havia votado

pela permanência na federação (que rapidamente deixava de ser uma federação verdadeira

e passava a ser uma extensão da república sérvia), insurgiu-se contra o governo bósnio e

estabeleceu a Republika Srpska, dando seguimento aos conflitos. Milošević, então,

dissolveu a República Socialista Federativa da Iugoslávia e estabeleceu a República

Federal da Iugoslávia, uma federação das ainda remanescentes repúblicas, Sérvia e

Montenegro.

Formalmente, o novo regime também deveria ser uma democracia pluripartidária,

mas foi de fato uma autocracia controlada por Slobodan. A mídia era fortemente regulada,

os editores dos jornais eram escolhidos a dedo pelo governo, e atitudes, como desrespeito

aos governantes ou à bandeira, geravam o aprisionamento dos seus agentes. Em suma, e

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usando uma definição Haia, o norte de Milošević de 1987 em diante foi um irredentismo

que visava incorporar todos os territórios de maioria sérvia sobre uma única Grã-Sérvia.

Assim, todas as ações sérvias na Croácia, Bósnia e Kosovo partiriam do mesmo princípio.

Esse plano seria materializado por deportações em massa.

Warren Zimmermann (antigo diplomata americano para a Iugoslávia) e outros

afirmaram que Slobodan nunca foi um nacionalista convicto, inveterado, mas que na

verdade foi um oportunista: abraçando e insuflando o nacionalismo sérvio para conquistar

poder vendo que o comunismo-titoísmo, como instrumento político, vinha perdendo

apoio. Teoriza-se que, após ter visto forte apoio popular espontâneo a Aleksandar

Ranković no seu funeral, em 1983 (quando as primeiras vozes já começavam a pedir por

redução da autonomia kosovar, após rebeliões dos albaneses étnicos da província), ele

tenha visto o potencial do nacionalismo sérvio como ferramenta política. Ranković, por

sua vez, foi um burocrata sérvio (considerado por um período o terceiro homem mais

poderoso da Iugoslávia) que, numa conjuntura anterior à Constituição descentralizadora

de 1974, conduziu um regime fortemente repressivo à maioria étnica albanesa do Kosovo

e encorajando, inclusive, que emigrassem para a Turquia.

A queda Milošević começou durante a guerra no Kosovo, quando foi processado

por crimes de guerra e contra a humanidade lá cometidos. Nos anos subsequentes, os

eventos na Bósnia e na Croácia também foram incluídos no processo. Como era limitado

a dois mandatos na Sérvia (mesmo sendo o homem mais poderoso da federação na

prática) em 1997 assumiu a presidência da Federação Iugoslava. Convocou eleições

prematuras e, em virtude do desgaste internacional, as perdeu no primeiro turno para o

candidato da oposição Vojislav Koštunika, de direita. Slobodan, inicialmente, resistiu à

cessão de poder, mas consentiu após protestos e constatando que não teria apoio do

exército. Após um breve hiato entre 2003 e 2004, Koštunika exerceria a chefia do governo

sérvio até 2008. Milošević, foi preso na sua casa em Belgrado em 2001, após seus

seguranças conflitarem com a polícia, por suspeitas de corrupção e abuso de poder. Foi

extraditado para o Tribunal Internacional de Crimes da Antiga Iugoslávia (em Haia) após

pressão americana.

5.1. CRIMES PRATICADOS

Os crimes dos quais Milošević foi acusado foram: genocídio; colaboração em

genocídio; deportações; assassinato; perseguições motivadas por etnia, posicionamento

político ou credo; atos desumanos/transferência forçada; exterminação; aprisionamento;

tortura; mortes consentidas; cárcere ilegal; consentidamente causar grande sofrimento;

deportações ou transferências ilegais; extensa destruição e apropriação de posse alheia,

sem justificativa de necessidade militar e conduzida de maneira ilegal e irresponsável;

tratamento cruel; saque de propriedade pública ou privada; ataques a civis; destruição ou

dano consentido de monumentos históricos e instituições dedicadas à educação ou à

religião; ataques ilegais aos objetos civis. Além disso, a acusação do Tribunal diz que

Milošević foi responsável pela deportação forçada de 800.000 albaneses étnicos do

Kosovo e pelo assassinato de centenas de albeneses kosovares e demais não-sérvios na

Croácia e na Bósnia.

Vale ressaltar que o julgamento começou em 12 de Fevereiro de 2002, com

Milosevic defendendo a si mesmo. Todavia, ele veio a falecer em 2006, antes de receber

uma sentença, devido a um ataque cardíaco.

5.1.1.Kosovo

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• A deportação forçada de aproximadamente 800.000 albaneses kosovares. Para

facilitar essas expulsões, forças da República Federal e da Sérvia deliberadamente

criaram um clima de medo e opressão por meio do uso da força, ameaças de força e atos

de violência;

• O assassinato de centenas de civis albaneses kosovares - homens, mulheres e

crianças - que se deu de maneira ampla ou sistemática ao longo da província do Kosovo;

• Violência sexual perpetrada por militares da República Federal e da Sérvia

contra albaneses kosovares, em particular mulheres;

• Uma campanha de destruição sistemática das propriedades de albaneses

kosovares materializada por amplo bombardeio de cidades e vilarejos, além da queima e

destruição de propriedade, incluindo casas, fazendas, negócios, monumentos culturais e

locais religiosos. Como resultado dessas ações, vilarejos, cidades e regiões inteiras

tornaram-se inabitáveis por albaneses kosovares.

5.1.2. Croácia

• O extermínio ou assassinato de centenas de croatas e outros cidadãos não-

sérvios, incluindo mulheres e idosos, em Dalj, Erdut, Klisa, Lovas, Vukovar, Voćin,

Baćin, Saborsko e vilarejos limítrofes, e em Škabrnja, Nadin, Bruska, Dubrovnik e

arredores.

• O encarceramento e reclusão prolongados e rotineiros de milhares de croatas e

outros civis não-sérvios em unidades de detenção dentro e fora da Croácia, incluindo

campos prisionais em Montenegro, Sérvia e Bósnia-Herzegovina.

• O estabelecimento e manutenção de condições de vida desumanas para croatas

e demais detidos não-sérvios nessas unidades de detenção mencionadas acima.

• A deportação ou transferência forçada de pelo menos 170.000 croatas e demais

civis não-sérvios dos territórios especificados acima, incluindo a deportação para a Sérvia

de pelo menos 5.000 habitantes de Ilok e 20.000 habitantes de Vukovar; e a transferência

forçada para localizações dentro da Croácia de pelo menos 2.500 habitantes de Erdut.

• A destruição deliberada de casas, demais propriedades públicas e privadas,

instituições culturais, monumentos históricos e locais sagrados em Dubrovnik, Vukovar,

Erdut, Lovas, Šarengrad, Bapska, Tovarnik, Voćin, Saborsko, Škabrnja, Nadin, e Bruška.

• Torturas repetidas, espancamentos e mortes de croatas e demais civis detidos

não-sérvios nas unidades de detenção dispostas acima.

• Ataques ilegais a Dubrovnik e vilarejos croatas indefesos.

5.1.3. Bósnia- Herzegovina

• Assassinatos em massa de milhares de bósnios muçulmanos durante e depois da

conquista de territórios na Bósnia-Herzegovina.

• O assassinato de milhares de bósnios muçulmanos em unidades de detenção na

Bósnia-Herzegovina.

• O ocasionamento de dano corporal e psicológico severo a milhares de bósnios

muçulmanos durante seu confinamento em unidades de detenção na Bósnia-Herzegovina.

• O confinamento de milhares de bósnios muçulmanos em unidades de detenção

na Bósnia-Herzegovina, sobre condições calculadas de forma a destruir parcialmente o

corpo dessas pessoas, por meio de fome, água contaminada, trabalhos forçados, cuidado

médico inadequado e constante abuso físico e psicológico.

• O extermínio, assassinato e morte consentida de não-sérvios, principalmente

bósnios muçulmanos e croatas vivendo nos territórios de Banja Luka, Bihać, Bijeljina,

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Bileća, Bosanska Krupa, Bosanski Novi, Bosanski Šamac, Bratunac, Brčko, Čajniče,

Doboj, Foča, Gacko, Sarajevo (Ilijaš), Ključ, Kalinovik, Kotor Varoš, Nevesinje,

Sarajevo (Novi Grad), Prijedor, Prnjavor, Rogatica, Sanski Most, Srebrenica, Teslić,

Višegrad, Vlasenica e Zvornik.

• O tratamento cruel e desumano de civis bósnios muçulmanos, bósnio-croatas e

demais não-sérvios. Tratamento desumano, incluindo, mas não limitado a, violência

sexual, tortura, abuso físico e psicológico e existência forçada sob condições degradantes.

• A imposição de medidas restritivas e discriminatórias contra bósnios

muçulmanos, bósnio-croatas e demais não-sérvios, como a restrição à liberdade de

movimento, remoção de posições de autoridade em instituições locais de governo e

polícia, demissão de empregos, buscas arbitrárias nas suas residências, negação ao seu

direito de devido processo legal e negação ao direito de acesso legal a serviços públicos,

incluindo cuidado médico adequado.

• A transferência forçada e deportação de milhares de bósnios muçulmanos,

bósnio-croatas e demais civis não-sérvios para localidades fora dos territórios controlados

pelos sérvios.

• A destruição intencional e irresponsável de casas e demais propriedades públicas

e privadas pertencentes a bósnios muçulmanos e bósnio-croatas, de instituições culturais

e religiosas, de monumentos históricos e de outros locais sagrados.

• A obstrução de auxílio humanitário, em particular médico e alimentício, aos

enclaves sitiados de Bihać, Goražde, Srebrenica and Žepa, e a não-liberação de água para

os civis presos nesses enclaves, de forma a criar condições de vida insuportáveis.

6. A IMPORTÂNCIA DO TPI PARA A IUGOSLÁVIA

Nesse contexto, a Iugoslávia foi tomada pelo parco exército federal na tentativa

de evitar o controle por grupos paramilitares e guerrilheiros patrocinados pelas próprias

repúblicas, porém, conflitos cada vez mais intensos ocorreram com total destruição de

várias cidades. A brutalidade dos líderes levou a Iugoslávia ao caos e crimes como

massacres, estupros, guetificação de territórios, deslocamentos forçados, limpeza étnica

e violações constantes à Convenção de Genebra. O arrasamento e desespero causado

chamaram a atenção do mundo e a ONU, através do Conselho de Segurança (UNSC),

começou a agir por meio de acordos de paz, embargos econômicos e operações de paz

(AGUILAR, 2003, p. 95). Os crimes de guerra e contra a humanidade não passaram

incólumes pelo Conselho de Segurança, que instituiu em 1993 duas resoluções com a

finalidade de se estabelecer um Tribunal Penal “ad hoc” para a Ex-Iugoslávia, com

competência somente para agir nos conflitos que envolveram a guerra civil ocorridos

neste território. O tribunal foi criado pela resolução número 827 do Conselho de

Segurança das Nações Unidas:

“An international tribunal for (...) prosecuting persons responsible for

serious violations of international humanitarian law committed in the

territory of the former Yugoslavia.” 35

O tribunal está situado em Haia na Holanda por motivos de segurança jurídica e

ambas as resoluções definiram que o objetivo principal era o de julgar os responsáveis

pelos graves crimes internacionais ocorridos na Guerra Civil da Ex-Iugoslávia. O tribunal

também era responsável por construir uma relação pacífica entre as etnias que coabitam

35 Security Council Resolution 827, 25 May 1993

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a região e prevenir novas ações atentatórias ao Direito Humanitário Internacional

(Resolução 808 e 827, Conselho de Segurança, 1993).

Além destas funções principais, o tribunal conta com programas de suporte como

o registro e processamento de indiciamentos, apoio e proteção às testemunhas e vítimas

da guerra, tradução de documentos e ajuda nos assuntos administrativos, possuindo um

corpo de funcionários com mais de 1200 pessoas de mais de 80 países (ROCHA, 2003,

p. 2). O TPI para a Ex-Iugoslávia começou a atuar em 1991 e irá encerrar seus trabalhos

quando todos os casos que estiverem sob sua jurisdição forem devidamente julgados. Até

o momento mais de 80 indivíduos, dentre importantes líderes militares, políticos, chefes

de organizações nacionalistas e paramilitares, já foram sentenciados. Apesar de realizar

um bom trabalho de combate aos criminosos de guerra e contribuir para a ajuda às vítimas

de guerra, o tribunal sofreu várias críticas de alguns juristas reconhecidos

internacionalmente. Carla del Ponte, expõe que uma das principais dificuldades foi a falta

de cooperação entre os governos envolvidos na guerra para capturar os acusados. Sérvia

e Croácia, são grandes exemplos, pois o nacionalismo exacerbado presente nas duas

Repúblicas impediu que muitos dos nacionais fossem enviados para o Tribunal Penal

Internacional para a Ex-Iugoslávia e optando por julgá-los em tribunais domésticos

muitas vezes contestados pela União Européia (ALVES, 2004, p. 24). O tribunal também

conviveu com críticas sobre sua competência para julgar os acusados, posto que ele foi

criado pelo Conselho de Segurança da ONU e não mediante um tratado, além de discutir

crimes ocorridos em conflitos armados internos e não internacionais (BRANDÃO, 2006,

p. 82).

Questionou-se também o grande número de sérvios que foram julgados em

detrimento dos acusados de outras nacionalidades, o que ensejou o aumento das tensões

na região, considerando que todas as etnias participantes da guerra civil praticaram atos

contra a humanidade. A tentativa do tribunal de reescrever a história iugoslava por meio

dos julgamentos, como nos tribunais da 2º Guerra Mundial, também foi duramente

criticada principalmente pelos analistas políticos, que viram com ceticismo os

julgamentos no formato exibição (show trials), pois a população encarou estas atitudes

como vingança das forças de ocupação.

As críticas feitas ao TPI para a Ex-Iugoslávia estimularam a ONU a rever o

sistema de julgamento dos crimes contra o direito humanitário internacional. Em 1994, a

Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas com a ajuda de mais de 60 ONGS

(organizações não-governamentais) e representantes de quase todos os países membros

da ONU elaborou um esboço com ampla aceitação internacional do futuro Estatuto de

Roma (NETO, 2005, p. 62). Apesar destes fatos, é notável a importância do TPI para a

resolução de conflitos e para a doutrina internacional, posto que ele é considerado o

principal instrumento para identificar, julgar e prender os responsáveis pelos atentados

contra a pessoa humana em áreas onde geralmente eles são protegidos pela própria

população e se utilizam de métodos, como campanhas publicitárias de forte apego

religioso e político, que influenciam diretamente a estrutura da sociedade e dificultam a

captura dos acusados.

6.1. CRIMES EM QUE O TRIBUNAL ATUA

O Tribunal Internacional para a Ex-Iugoslávia possui uma jurisdição bem clara

quanto aos crimes em que irá atuar. Para melhor explicarmos isso, exporemos os artigos

que definem a tipificação penal das acusações feitas nesta corte. Entendemos que a

melhor forma de apresentar esse assunto seja através da reprodução literal do que está

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escrito no corpo do estatuto para que, ao se juntar com as acusações, as partes possam

relacionar e enquadrar a denúncia dentro da jurisdição penal do tribunal.

Artigo 2

Violações graves da Convenção de Genebra de 1949

O Tribunal Internacional terá o poder de processar pessoas que cometerem ou

ordenaram graves violações às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, a saber,

os seguintes atos Contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra

pertinente:

(A) matança deliberada;

(B) tortura ou tratamento desumano, incluindo experiências biológicas;

(C) causar intencionalmente grandes sofrimentos ou ferimentos graves no corpo

ou na saúde;

(D) destruição extensiva e apropriação de propriedade, não justificada por

necessidade militar e realizada de forma ilegal e despreocupada;

(E) convocar um prisioneiro de guerra ou um civil para servir nas forças de um

poder hostil;

(F) privar voluntariamente um prisioneiro de guerra ou um cidadão dos direitos

de julgamento justo e regular;

(G) deportação ilegal, transferência ou confinamento ilícito de um civil;

(H) levar civis como reféns.

Artigo 3

Violações dos costumes ou das leis da guerra

O Tribunal Internacional terá o poder de processar pessoas que violem as leis ou

costumes de guerra. Essas violações devem incluir, mas não se limitar a (ao):

(A) emprego de armas venenosas, ou outras armas, calculadas para causar

sofrimento desnecessário;

(B) destruição despreocupada de cidades, centros ou vilas, ou devastação não

justificada por necessidade militar;

(C) ataque ou bombardeio por qualquer meio, de cidades, vilarejos, habitações ou

construções;

(D) buscar a destruição ou danos intencionais a instituições dedicadas à religião,

caridade e educação, artes e ciências, momentos históricos e obras de arte e ciência;

(E) saque de propriedade pública ou privada.

Artigo 4

Genocídio

1. O Tribunal Internacional terá o poder de processar as pessoas que cometam

genocídio, conforme definido no parágrafo 2 deste artigo, ou de cometer qualquer dos

outros atos enumerados no parágrafo 3 deste artigo.

2. Genocídio significa qualquer dos seguintes atos cometidos com a intenção de

destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, quais sejam:

(A) matar membros do grupo;

(B) causar sérios danos corporais ou mentais aos membros do grupo;

(C) deliberadamente infligir sobre o grupo condições de vida calculadas para

provocar a sua destruição física total ou parcial;

(D) impor medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro do grupo;

(E) transferir forçadamente crianças do grupo para outro grupo.

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3. Os seguintes atos são puníveis:

(A) genocídio;

(B) conspiração para cometer genocídio;

(C) incitamento direto e público a cometer genocídio;

(D) tentativa de cometer genocídio;

(E) cumplicidade no genocídio.

Artigo 5

Crimes contra a humanidade

O Tribunal Internacional terá o poder de acusar pessoas responsáveis pelos

seguintes crimes quando cometidos em conflitos armados, seja de caráter internacional

ou interno, e dirigidos contra qualquer população civil:

(A) assassinato;

(B) extermínio;

(C) escravização;

(D) deportação;

(E) aprisionamento;

(F) tortura;

(G) estupro;

(H) perseguições de cunho político, racial e religioso;

(I) outros atos desumanos. (ICTY 1993)

6.2. PENAS ATRIBUÍDAS PELO TRIBUNAL

O direito se distingue das demais formas de controle social, como a moral e a

religião, por admitir o uso da força para seu cumprimento. A doutrina jurídica entende

que o direito possui duas formas de aplicação de sua força normativa; a primeira seria a

coerção, em que, através da possibilidade do uso da força a sociedade cumpre uma

normativa. A segunda possibilidade seria a coação, o uso da força em ato para assegurar

o cumprimento de uma norma. (BETIOLI, 2014)

Para assegurar o seu poder de coação e coerção, o direito usa de um

mecanismo denominado sanção. Sanção seria nas palavras do jurista Antônio Bento

Betiolli: “uma consequência atribuída à observância ou não de um

comportamento previsto em uma norma ética anterior, que pode

estimulá-lo ou reprimi-lo.”

A sanção pode ser premial, quando recompensa a observância de uma

norma (como por exemplo um desconto quando se paga uma conta dentro do prazo) ou

punitiva quando atribui penalidades ao descumprimento de uma norma. No caso deste

tribunal nos focaremos na função punitiva da sanção. Abaixo estão dispostos as

possibilidade de punição que o Tribunal admite:

1. A pena imposta pela Câmara de Julgamento será limitada à prisão. Ao

determinar os termos de prisão, as Câmaras de julgamento devem recorrer à prática geral

relativa a penas de prisão nos tribunais da ex-Jugoslávia.

2. Ao impor as sentenças, as Câmaras de Julgamento devem levar em conta fatores

como a gravidade da infração e as circunstâncias individuais da pessoa condenada.

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3. Além das prisões, as Câmaras de julgamento podem ordenar a devolução de

qualquer propriedade e produto adquirido por conduta criminal, inclusive por meio de

coação, aos seus legítimos proprietários. (ICTY 1993)

7. ESTRUTURA E COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL

O Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia é dividido basicamente em

quatro órgãos: a Presidência, as Câmaras, que compõem três Câmaras de Julgamento e

uma Câmara de Recurso, o Procurador e uma Secretaria (responsável pela administração,

atendendo às câmaras e ao procurador).

Será adotado nas conversações o pronome de tratamento “Excelentíssimo (a)”

para a Presidência, os Juízes e os Procuradores, e “Ilustríssimo (a)” para os(as)

Advogados(as). Não obstante, para referir-se a pessoas como réus, vítimas e testemunhas,

pede-se o uso do pronome “Senhor (a)”, rejeitando-se termos como “tu” e “você”. Demais

formas de título podem ser passadas posteriormente. Entretanto, embora tais tratamentos

necessitem ser seguidos, será respeitado o direito de fala e apontando-se equívocos.

7.1. A PRESIDÊNCIA

Os juízes permanentes do Tribunal Internacional elegerão um presidente dentre

os seus. Este presidente será membro da Câmara de Recurso e deve presidir os seus

procedimentos.

No âmbito desta simulação, será representada na figura da Mesa Diretora, a partir

da coordenação e moderação das atividades do Tribunal. Com isso, cabe à Presidência

não a intromissão no conteúdo dos debates dos Juízes, Promotores e Advogados, mas sim

o zelo pelas regras do Comitê e da própria Simulação, de forma que todos presentes sejam

mantidos atentos aos princípios norteadores dos Direitos Humanos.

7.2. OS JUÍZES

De acordo com o Art. 13 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a Ex-

Iugoslávia , é necessário que os candidatos para o Judiciário tenham competência em

direito penal ou em áreas relevantes do direito internacional humanitário e dos direitos

humanos. Este requisito para qualificações profissionais é combinado com o dever de os

Estados escolherem os juízes levando em consideração a necessidade de representação

dos principais sistemas jurídicos do mundo e a representação geográfica equitativa. As

Câmaras serão compostas por um máximo de dezesseis juízes independentes

permanentes, sendo que dois dos quais não poderão ser nacionais do mesmo Estado.

Ainda, quatorze dos juízes permanentes do Tribunal Internacional serão eleitos pela

Assembléia Geral a partir de uma lista apresentada pelo Conselho de Segurança e seguirão

o estatuto de normas do TPI. É importante ressaltar que os juízes do Tribunal

Internacional adotarão regras processuais e provas para a realização da fase pré-

julgamento dos processos, os processos e recursos, a admissão de provas, a proteção das

vítimas e testemunhas e outros assuntos apropriados.

Destarte, os juízes detêm a importante missão de avaliar e julgar os crimes dos

indivíduos indiciados. Sendo assim, é essencial que se comprometam com a aplicação da

Justiça, distanciando-se de discursos puramente ideológicos e de argumentos falaciosos.

Requer-se, então, que cada juiz entregue uma nota prévia com suas opiniões particulares

sobre o caso, contendo um indício de sua teoria sobre a culpabilidade do acusado a partir

de uma fundamentação jurídica, podendo conter trechos de doutrinadores ou

jurisprudência do tribunal.

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7.3. OS PROMOTORES

Este órgão autônomo é chefiado por um Promotor que fica encarregado de receber

informações devidamente fundamentadas, sobre crimes da competência do Tribunal, e,

assim, investigar os fatos, formular a denúncia do crime e acusar o suspeito nos

julgamentos. O Promotor será nomeado pelo Conselho de Segurança mediante a

nomeação do Secretário-Geral. Ele ou ela deve ser de alto caráter moral e possuir o mais

alto nível de competência e experiência na condução de investigações e processos

criminais. O Promotor deve cumprir o mandato de quatro anos, sendo passível de

reeleição, e atuar conforme os termos e condições de serviço de um Secretário-Geral

Adjunto das Nações Unidas. É importante ressaltar que ele, ou ela, não deve procurar ou

receber instruções de qualquer governo ou de qualquer outra fonte.

Os promotores, portanto, carregam a responsabilidade de acusar o réu e,

principalmente, de apresentar evidências e argumentos que corroborem tais acusações.

Dessa forma, assim como ocorre com a Defesa, o cargo de Promotor exige uma

preparação efetiva, visto que, inicialmente, é a partir do conteúdo apresentado por essas

duas partes que os juízes formularão suas conclusões do caso. Para isso, deve-se entregar

um modelo de denúncia formal a ser enviado aos juízes. Este documento deverá contar

com as acusações elencadas contra o réu, os indícios da autoria dos crimes e as provas a

serem apresentadas durante o julgamento.

7.4. OS ADVOGADOS

Defesa faz-se presente a fim de assegurar todos os direitos do réu e,

consequentemente, a máxima de que “ninguém é culpado até que se prove o contrário”.

Sendo assim, os advogados de defesa deverão responder às acusações, fornecer

evidências contrárias e apresentar argumentos em prol da inocência do réu.

Os advogados terão também de entregar um dossiê em defesa de seu cliente,

baseado nas informações contidas no guia, em documentos anexos e em pesquisas

individuais.

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