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PAULA MONTEIRO MENDES “Tupy, or not tupy that is the question ” Artigo para obtenção do título de Especialista apresentado ao curso de Pós Graduação Latu Sensu História Sociedade e Cultura da Pontifícia Universidde Católica de São Paulo – PUC SP, sob a Orientação do Professor Dr. Josias Abdalla Duarte São Paulo 2009

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PAULA MONTEIRO MENDES

“Tupy, or not tupy that is the question ”

Artigo para obtenção do título de Especialista apresentado ao curso de Pós Graduação Latu Sensu História Sociedade e Cultura da Pontifícia Universidde Católica de São Paulo – PUC SP, sob a Orientação do Professor Dr. Josias Abdalla Duarte

São Paulo 2009

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Índice

Agradecimentos 3

Introdução 5

Parte I : “Certidão de Nascimento do Brasil?” 7

Parte II: “Peri, o Índio Nobre” 11

Parte III: “Tupy Or Not Tupy, That Is The Question” 13

Considerações Finais 18

Bibliografia 21

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Agradecimentos

Este trabalho é resultado de um processo que durou muito mais que a

própria pesquisa em si. E tudo que ele envolveu não poderia ter acontecido sem

a ajuda de algumas pessoas. Quero agradecer a todas elas pelo carinho e pela

compreensão.

À minha família, meu orientador, meus amigos e quatro seres que

mesmo sem nunca falarem, só de me olhar, expressam todo o amor do mundo.

À minha mãe, por me dar esta força mesmo de longe e acreditar em tudo

o que faço, por levar e buscar e entregar papéis e fazer todo tipo de serviço

chato para que desse tudo certo. Por ser minha amiga, conselheira e me fazer

acreditar nas coisas. Pelo seu amor incondicional.

Ao meu pai, pelo seu carinho e amor, por me apoiar em todas as minhas

escolhas e se interessar por tudo que leio e aprendo desde que eu era criança.

Por ser meu amigo e por me entender.

À minha irmã, por ser minha amiga, por me dizer sempre palavras tão

belas quando eu preciso, por me ligar e dizer que sente orgulho de mim, por

todas as coisas não ditas e subentendidas. Por todo seu amor e

companheirismo.

À Adriana, o outro pedaço de mim, nesta terra que está tão longe. Minha

amiga que me apoiou durante todo o processo de pesquisa, leu e comentou

meu trabalho, me ajudou com a revisão, mas não só isso, me deu forças durante

toda esta empreitada, esteve ao meu lado não só na pesquisa, mas em toda uma

vida, me apoiando em tudo e me dando sempre muito amor. Por tudo o que

vivemos e descobrimos juntas.

Ao Pedro, por me “convencer” a fazer este curso. Ele que durante dois

anos esteve ao meu lado nas aulas, nos almoços, nas conversas me ensinando e

me fazendo descobrir tantas coisas. Pela sua companhia e pelo seu carinho.

À Dani e à Nega, pela amizade sincera, cumplicidade e compreensão

infinitas.

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Aos meus quatro cachorros: Rip, Rita, Valquíria e Frajola, por serem só

amor.

E, finalmente, ao meu orientador, Josias, por aceitar trabalhar comigo à

distância, pelas aulas sempre tão interessantes e proveitosas, pela dedicação e

pelos conselhos sempre tão valiosos. Pela ajuda na elaboração do trabalho. Por

todo o aprendizado, pela paciência e pela amizade que criamos.

Quero agradecer também a muitos outros amigos, por tornarem tudo

isso (que é a vida) mais leve: Améris, Babi, Camila, César, Daniel, Fabiano,

Lílian, Manu, Maria Elisa, Priscila, Ricardo, Verena. Ao meu querido primo

Fernando. E aos meus avós, Lídya, Francisco, Elza e Wilson.

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Introdução

Este artigo tem como finalidade estudar o imaginário que tantas vezes foi

revisitado e continua presente com a necessidade que temos de entendê-lo,

interpretá-lo e a partir dele encontrar respostas para questões atuais) dos

intelectuais brasileiros e dos que pensaram o Brasil, acerca dos povos indígenas,

ou seja, os povos nativos das terras brasileiras.

Para tanto, resolvi analisar três modelos exemplares em que tais povos

são colocados em evidência: a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500; o

Romantismo, movimento artístico e literário (que no Brasil ocorreu no século

XIX), tomando como modelo o índio Peri, personagem do livro “O Guarani”, de

José de Alencar, um dos símbolos indígenas mais adotados pelos intelectuais

românticos, e por fim, o começo do século XX e a visão de Oswald de Andrade,

em um de seus manifestos que praticamente deu início ao movimento a que

chamamos “Modernista”.

É muito interessante perceber como um mesmo episódio, um mesmo

povo , uma mesma cultura podem ser revisitados tantas vezes e com

perspectivas tão diferentes em um período de cerca de 420 anos. Um mesmo

ponto de partida, como a carta de Pero Vaz de Caminha, pode ter significados

bastante diversos, que dependem da intenção que se tem, do que se quer provar

e de que ideais se quer defender.

Veremos como em cada um destes episódios, destes textos literários o

índio vai simbolizar algo distinto. A partir da Carta de Pero Vaz de Caminha,

que inicialmente propõe-se a afirmar a passividade do índio em relação a seus

colonizadores, do índio que estava aguardando a catequização, José de Alencar

e Oswald, partindo de um nacionalismo, de uma valorização do “brasileiro”,

criam imagens totalmente distintas de uma suposta “mesma figura”.

Vítima, resistente, cavaleiro. Nestes três períodos pontuais, o imaginário

brasileiro se apossou da figura do índio e a utilizou como base para defender

ideias, ideais e pontos de vista. Esta figura (que nunca teve voz, muito menos

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teve uma participação ativa neste processo) atendeu às necessidades de cada

sociedade para o seu ideário, a sua utopia.

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Erro de português

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português.

Oswald de Andrade

Certidão de Nascimento do Brasil ?

As afirmações “Quando o português chegou aqui” e “Quando o Brasil foi

descoberto”, entre outras, são muito comuns de serem encontradas ainda hoje.

O fato é que elas, além de nos trazerem a impressão de que esta terra não tinha

dono, (impressão que, há muito, vem sendo refutada pelos estudiosos) trazem

também outra idéia que está muito enraizada em nosso imaginário: a idéia de

que os grupos indígenas que aqui viviam foram completamente passivos e

submissos perante os portugueses. Quando digo “passivo em relação aos

portugueses”, não me refiro apenas à postura em relação à colonização,

dominação e exploração a que foram submetidos. De acordo com esta visão, o

índio não reagia nem se revoltava, ou seja, era completamente passivo.

Felizmente, sabemos que, como todo processo histórico, isso foi algo complexo

e impossível de ser reduzido a apenas um episódio pontual. Também sabemos

que houve muitas revoltas, guerras, uniões mistas envolvendo nativos e

colonizadores, enfim, muitas tentativas pela parte do índio de reverter esta

situação, ou mesmo, de vivê-la. Também sabemos que o colonizador também

foi muito influenciado pelo colonizado, começando pela própria língua

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indígena, que era falada no Brasil até meados do século XVIII, além da

alimentação e outros hábitos, ou seja, havia uma estreita relação entre as duas

culturas.

Porém, a visão do índio como alguém inocente é algo muito marcante.

Esta visão perdurou por muito tempo e que ainda está muito presente em nosso

imaginário. Ver o índio como um ser ingênuo, frágil, “bonzinho”, que se

deleitava com algumas contas e bugigangas dadas pelo colonizador ; é tratá-lo

como um ser infantil.

No entanto, podemos dizer que idéias reducionistas e simplificadas

sempre têm muitas explicações. Deste modo, também existem muitas

explicações para esta idéia acerca do índio e de sua “passividade” em relação ao

seu colonizador. A principal delas é a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal na ocasião do “achamento” do Brasil (é claro que esta carta não foi o

único elemento que contribuiu para a construção deste pensamento, muitos

outros fatores estão envolvidos, mas sem dúvida ela foi de fundamental

importância neste processo). A carta que durante muito tempo foi considerada

a “certidão de nascimento” de nosso país, o início de nossa literatura. O

primeiro documento escrito. Ela é “o início de nossa história”. O início da

História de uma sociedade que só valorizava documentos escritos. Dentro deste

contexto, a carta é uma das únicas fontes que possui validade. Nela, Pero Vaz

de Caminha lança as bases para este imaginário de um índio passivo e inocente

que vai durar por tanto tempo. Vale ressaltar que este pensamento teve início

no século XIX, época em que encontramos o historicismo, e toda a sua busca

pelas verdades, que só as fontes “oficiais” e escritas possuíam.

Aí, o indígena é visto como uma criatura ingênua, boa e pronta a aderir

ao catolicismo, como podemos perceber nos excertos abaixo:

“(...) Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de

encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca

disso são de grande inocência.”

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“Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e

eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não tem nem entendem crença

alguma, segundo as aparências.”

“E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece

outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam

aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que

nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui

mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e

convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo

de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimento de nossa

fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também

comungaram.”

“Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se convertera, ou não,

se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.” (CAMINHA)

Com esta carta, Pero Vaz de Caminha evidencia todo um pensamento e

toda uma época. A Europa está vivendo o século XV, época das grandes

navegações, da descoberta de novas terras, colonização, procura de novos

mercados, grandes impérios ultramarinos. A intenção dos colonizadores era

também trazer “verdades” para povos que fossem diferentes, intenção que,

aliás, parece estar presente em todos os povos dominantes, independentemente

da época. (a sociedade conquistadora acredita-se superiora e, assim, crê que a

‘outra’ deve segui-la, obedecê-la.). No caso português ainda havia uma estreita

relação entre o Estado e a Igreja, de alguma maneira, as suas intenções

acabavam se encontrando e se fundindo.

Era importante para o império português e para a igreja católica ter os

povos indígenas sobre seu jugo. A intenção da igreja era catequizá-los e como o

índio não “conhecia Deus’, tampouco os seus dogmas, só podia ser visto como

um objeto, ou seja, como uma alma que deve ser salva. Para a igreja católica o

índio nada mais podia simbolizar do que um ser passivo, desprovido de alma,

ou então, com depois se convencionou, portador, sim ,de uma alma, mas que

deveria ser salva rapidamente, apto a receber o bem e a verdade que ela

carregava. Não podemos nos esquecer de que estava quase se iniciando o

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Renascimento, época que defendia ideais como os da civilização, da ciência, do

conhecimento, de uma evolução em que os povos europeus eram ou se

enxergavam como “condutores”.

A diferença que os índios apresentavam foi de fundamental importância

para a legitimação de uma linha evolutiva que colocava os europeus e sua visão

acerca do mundo no ápice.

É claro que nesta sociedade o índio só pode ser visto como um ser

passivo e ingênuo, visto que é alguém que não conhece “verdades”. Além de

não conhecer Deus1, ele não domina a língua escrita, ele não é “civilizado”, ou

seja, não partilha dos mesmos valores de civilização dos povos dominantes. Por

isso, é visto apenas como um ignorante, um ingênuo, uma criança pronta para

aprender, para receber.

Esta foi uma visão que permaneceu durante muito tempo em volta do

índio, de alguém passivo e submisso, e foi retomada diversas vezes em outras

ocasiões.

Talvez até possamos chamar a carta de Pero Vaz de Caminha de certidão

de nascimento do Brasil, no sentido de que ela ajudou a perpetuar muito do

pensamento e do imaginário que se constituiu em relação a nosso país. Com ela

nasceram muitas idéias preconceituosas que perduraram por um longo tempo.

Não, nosso país não estava nascendo naquele momento, mas um imaginário,

sim.

1 O deus cristão, pois o índio tinha e tem o seu conjunto de valores religiosos e espirituais.

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Peri, o Índio Nobre

No século XIX, com a Independência do Brasil e consequentemente a

formação de um novo país, a preocupação dos intelectuais (influenciados pelo

Romantismo vindo da Europa) era eleger símbolos que fossem genuinamente

“nacionais”, que de alguma maneira pudessem representar um Brasil “puro”. É

justamente aí, neste período, que ocorre a primeira grande mudança no

imaginário brasileiro em relação ao índio.

O Romantismo ocorreu em uma época muito delicada no mundo todo –

ou pelo menos na parte do mundo que mais influenciava o Brasil, a Europa. A

Revolução Francesa e a formação de Estados-Nações colaboraram para que

valores burgueses e de um forte nacionalismo se instalassem.

Era necessário que cada país buscasse suas raízes, mantivesse sua

cultura, preservasse seu folclore, ou seja, cultuasse o que era agora classificado

como “nacional”, o que pudesse representar cada nação que estava emergindo.

O Brasil, que acabava de se tornar uma nação, um Estado, também

buscava elementos que lhe fossem peculiares, particulares, a fim de distanciar-

se de Portugal de qualquer maneira e mostrar que possuía uma cultura própria,

com uma dinâmica própria. Tinha agora o desafio não só de construir uma

nação, mas principalmente, de formar um discurso nacional.

Se todo o nacionalismo precisa de história ou de passado, o nacionalismo brasileiro

logo depois da independência precisava encontrar um passado independente da

história colonial, pois esta era comum com Portugal. E Portugal era, na época, o

inimigo, a nacionalidade de que a brasileira precisava distinguir-se. (CANDIDO,

171-172)

De acordo com estes ideais, dentro do que classificamos como

“Romantismo”, uma das maiores preocupações era exaltar a nossa “cor local”, a

nossa natureza, tão diferente da européia. Os povos indígenas foram então

escolhidos para protagonizar este cenário “genuinamente brasileiro”. O índio

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foi escolhido como o verdadeiro representante de nossa cultura, de nosso

passado.

Porém, este mesmo índio que foi escolhido para representar a cultura

nacional carregava mais traços medievais e europeus que brasileiros.

Geralmente, a visão que se tem do índio nesta época é completamente

idealizada, não havia preocupação em estudar estes grupos étnicos, em saber

como viviam, como se organizavam, enfim, em entendê-los como seres

complexos e humanos. O retrato que se tem do índio é chapado, construído a

partir de uma ótica pré-estabelecida, já formulada.

Alguns escritores, influenciados pelo mito do “Bom Selvagem”, criaram

verdadeiros heróis indígenas. Caracterizavam estas personagens como criaturas

puras, corajosas e ainda não contaminadas pela sociedade.

José de Alencar talvez seja um dos escritores-chave deste período. Um

dos mais preocupados com a temática indígena, escreveu três romances

indianistas e foi responsável por fixar no imaginário brasileiro a figura do índio

mais corajoso e heróico de nossa literatura: Peri.

Peri, personagem principal do livro “O Guarani”de 1857 encarna todos

os valores de um verdadeiro cavaleiro medieval. É o típico símbolo do índio

“puro”, de coração bom, com todas as características pertinentes a um

verdadeiro herói: corajoso, destemido, gentil e forte.

Pela primeira vez, a visão que se tem acerca do índio está sendo mudada.

De elemento decorativo, ele passa a protagonista e isso ocorre não por acaso,

pois os índios e a sua cultura encarnam perfeitamente o novo projeto nacional

brasileiro.

Esta visão em relação ao índio está totalmente de acordo com os valores

que estavam sendo buscados. Ele entra em cena para representar um símbolo

nacional, para “resgatar” valores que fossem tipicamente “brasileiros” e, ao

mesmo tempo, encarnar virtudes que eram reconhecidos e atribuídos às

sociedades civilizadas, isto é, as sociedades européias. Sendo assim, podemos

afirmar que Peri, “é um nobre”.

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“Tupy, or Not Tupy That Is The Question”

Em 1922, ano do centenário da Independência, São Paulo assistiu a uma

revolução. Mesmo que restrita (à elite burguesa) e pouco divulgada, ela mudou

as bases de nosso pensamento e até hoje influencia nossas concepções acerca da

cultura brasileira.

Os modernistas vão revisitar o mesmo ideal nacionalista dos românticos,

porém de outra maneira, agora tentando resgatar a cultura indígena como algo

complexo e não-estático. A maioria dos intelectuais tentava fugir dos

estereótipos e idealizações românticos, procurando enxergar a população

indígena como plural, complexa e com vários grupos, cada um possuidor de

uma cultura própria.

No fim, a preocupação era a mesma: tentar buscar uma identidade

nacional, porém de uma forma diferente, abordando a situação por outro viés.

A idéia era resgatar as diferenças, mostrar o Brasil como um país único, com

uma cultura própria e uma população própria, mas desta vez por meio de um

caminho diferente daquele mostrado pelos europeus.2 Os modernistas chamam

para si a tarefa de redescobrir o Brasil. De redescobrir o seu povo e a sua

cultura.

Nesta parte, analisarei o escritor Oswald de Andrade e a visão acerca dos

povos indígenas em seu “Manifesto Antropófago”, publicado em 1928.

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.

Filosoficamente.”

É assim que Oswald inicia seu “Manifesto Antropófago”. Podemos

perceber logo de início um tom provocador, polêmico. Neste manifesto, ele vai

tentar reverter as nossas bases filosóficas. Vai repensar não somente o que se

pensava até agora acerca do índio, mas também a nossa própria cultura, o nosso

pensamento, muitas vezes estático e apoiado numa idéia de evolução, com

2 Como já dito anteriormente, durante o Romantismo, a intenção também era fugir de modelos vindos da Europa, porém, percebemos que os valores que se cultuavam nos índios eram valores totalmente europeus, de cavaleiros medievais, etc.

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pontos de partida e de chegada (se faz claro que o ponto de partida são os

indígenas, as populações tidas como “selvagens”; e o ponto de chegada, os

europeus, as sociedades “civilizadas”).

“Oswald de Andrade, ao cunhar o conceito de antropofagia, formulou

uma audaz abstração da realidade, propondo a ‘reabilitação do primitivo’ no

homem civilizado, dando ênfase ao mau selvagem, devorador da cultura

alheia, transformando-a em própria, desestruturando oposições dicotômica

como colonizador/colonizado; civilizado/ bárbaro; natureza/tecnologia. Ao

propor o canibal como sujeito transformador, social e coletivo, Oswald produz

uma releitura não só da história do Brasil, mas também da própria tradição

ocidental.” (ALMEIDA)

Ao propor a antropofagia, Oswald também propõe que reformulemos a

história do Brasil, a idéia de Brasil que se iniciou com a carta escrita por Pero

Vaz de Caminha há tantos anos atrás. É preciso ter uma atitude diferente da que

se teve até então, repensar nosso país, repensar a maneira como pensamos a

nossa cultura.

Na verdade, a própria idéia de Antropofagia já havia sido proposta por

José de Alencar, durante o Romantismo, porém de maneira distinta, em que,

inclusive, é possível encontrar uma espécie de hierarquização:

“(...) ao contrário da crença dos cronistas, que entendiam a

antropofagia como um sinal de gula ou de vingança, o romancista (José de

Alencar) ressalta o caráter de ritual, em que “o selvagem americano só

devorava ao inimigo vencido e cativo na guerra”, de forma que os restos do

inimigo tomavam-se uma espécie de hóstia sagrada que fortalecia os

guerreiros”. Os índios acreditavam que, ao comer a carne do guerreiro inimigo,

estariam adquirindo todas suas qualidades, operando uma “transfusão de

heroísmo”. (CONSOLARO, grifo meu)

Segundo esta visão defendida por alguns escritores românticos, como

José de Alencar, haveria uma hierarquização e só as características consideradas

mais “elevadas” poderiam ser incorporadas, ou melhor, de acordo com esta

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visão, haveria uma cultura superior a outra e a Antropofagia era interpretada

como a transferência para algo que fosse melhor.

Oswald, ao contrário, propõe, a partir de uma outra interpretação de

Antropofagia que não haveria características nem melhores, nem piores, nem

mais evoluídas, nem mais selvagens. Ele propõe que haveria somente

diferenças. O diferente, e apenas isso, é que deveria ser incorporado. Tenta

romper com uma noção muito mais determinista e linear, baseada num conceito

de evolução:

“A anti-hierarquização, expressão mais impactante da Antropofagia,

frequentemente apaga-se na afirmação de que o ritual antropofágico exigia

uma vítima valorosa. Segundo essa interpretação, só os grandes guerreiros

eram devorados; trazendo esta vertente (não se poderia devorar o covarde)

para a metáfora canibal, definiu-se que não seria passível de devoração o que

se considera inferior : como a língua criada pelo carcamano, a música sertaneja,

a literatura de massa, etc...etc...etc...e como a cultura européia contém

tradicionalmente maior valor agregado, termina-se propondo sua devoração

como preferencial. Muitos dos nossos intelectuais do século dezenove, como

Sílvio Romero e Machado de Assis propunham de maneira explícita ou velada

: não somos europeus, mas se misturarmos nossa expressão autóctone e afro-

descendente com os maneirismos europeus estaremos no caminho para o

progresso e para nos tornarmos civilizados.

Em seu movimento de antropófago, Oswald ampliava as

possibilidades de devoração numa apologia clara a toda diferença.”

(ALMEIDA)

Oswald amplia as possibilidades de “deglutição” quando afirma que “só

me interessa o que não é meu”.

Outro aspecto que ainda pode ser analisado em seu manifesto é a

inversão dos valores existentes. Oswald propõe que sejamos como os

antropófagos e desta maneira tenta também romper com a idéia de um modelo

europeu a se seguir, de uma sociedade “civilizada” como um ponto de chegada.

Para ele, não deveríamos buscar esta idéia de evolução, que nos assombrou por

tanto tempo e julgou tantos povos autóctones como inferiores. Lembremos que

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Pero Vaz de Caminha descreveu o povo que aqui encontrou como ingênuo, mas

com um grande potencial para aprender tanto a língua escrita como a fé dos

portugueses.

Ao afirmar que “nunca fomos catequizados”, Oswald acaba

questionando todo o ideal do “índio passivo”. Ele nos afirma que o índio nunca

foi catequizado, ou seja, que a sua cultura nunca foi apagada, ao contrário, o

índio “devorou” o bispo Sardinha. E é por esta razão que este episódio aparece

em destaque no Manifesto, como sendo um ponto de partida, uma contagem.

Oswald também considera como um início o mesmo episódio que

Caminha, porém, enquanto este vê nascer uma possibilidade de “civilização”,

“catequização” e relativa passividade em relação ao colonizador, Oswald

enxerga o nascimento de uma resistência que perdurou por tanto tempo e que,

aliás, nunca se apagou.

Mais uma vez, vemos que a maneira de se pensar o índio mudou, não

temos mais a criatura dócil e passiva de Caminha, tampouco o herói medieval

de Alencar:

“(...) o neo-indianismo, o neo indianismo dos modernos de 1922 (precedido por

meio século de etnografia sistemática) iria acentuar aspectos autênticos da vida do

índio, encarando-o não como gentil-homem embrionário, mas como primitivo, cujo

interesse residia precisamente no que trouxesse de diferente, contraditório em

relação à nossa cultura européia. O indianismo dos românticos, porém, preocupou-

se sobremaneira em equipará-lo qualitativamente ao conquistador, realçando ou

inventando aspectos do seu comportamento que pudessem fazê-lo ombrear com

este - no cavalheirismo, na generosidade, na poesia.

(...) o indianismo serviu não apenas como passado místico e lendário, (à maneira

da tradição folclórica dos germanos, celtas ou escandinavos) mas como passado

histórico à maneira da Idade Média. Lenda e história fundiram-se na poesia de

Gonçalves Dias e mais ainda no romance de Alencar, pelo esforço de suscitar um

mundo poético digno de europeu.” (CANDIDO, 18-20)

Os modernistas, representados aqui por Oswald, elegem como nosso

representante o “mau selvagem”:

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“Imerso na tradição, que associa o canibalismo ao brasileiro, Oswald de

Andrade e seus amigos abandonaram a imagem do ‘bom selvagem’ para

firmar aquela que lhes pareceu mais adequada para o Brasil: a do ‘mau

selvagem’, antropófago, que estava escondido debaixo da pele do bem-

comportado personagem romântico de José de Alencar, o índio Peri.”

(ALMEIDA)

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Considerações Finais

O mais interessante de se estudar as leituras e interpretações sobre o

encontro imaginário acerca de algo, como o que foi feito neste trabalho, é

perceber como o elemento imaginado em si, apesar de ser tantas vezes visto e

retomado, não apresenta nenhuma voz. Estamos lidando com estereótipos o

tempo todo: o herói mitológico, o guerreiro ativo, a vítima, o bom selvagem, o

mau selvagem, o “apenas selvagem”. A figura do índio é tantas vezes

modificada e em nenhum momento percebemos uma preocupação em se ouvir

o que eles próprios têm a dizer, que direitos deveriam exigir e, principalmente,

como pensavam em si mesmos, como se enxergavam.

Mas talvez aqui isto não tenha tanta importância, porque estamos

lidando com símbolos o tempo todo e esta figura nada mais é do que um

símbolo, escolhido para representar as utopias, os anseios e os ideais de cada

época.

O índio é um elemento muito forte, muito marcante não só em nossa

história, mas também em nosso imaginário. Porque esta figura é imaginada e

pensada de maneiras tão diversas?

O elemento indígena está fortemente ligado à idéia que temos de nação,

uma vez que é o habitante autóctone de nossa terra. Não há como pensar em

Brasil, em dominação, independência e, principalmente, em colonização sem

pensar no índio.

Num primeiro momento, quando o Brasil é pensado como objeto, outro

espaço, território, ou seja, apenas pela ótica do outro, o índio também só pode

ser pensado como um ser passivo. Não há ainda o olhar sobre si mesmo, a auto-

reflexão, pois o Brasil não é uma nação. (Uma nação nos moldes europeus, que

fique claro, nos moldes do colonizador.)

Em José de Alencar já temos um país, já nestes padrões europeus de

nação,3um país que pensa em si mesmo, que quer se colocar como sujeito, como

3 Ao menos era o que muitos desejavam, no entanto, percebiam que nós não éramos. Se na Europa as sociedades apresentavam uma homogeneidade étnica e cultural, no Brasil vivíamos outra cena. Vale lembrar que muitas vezes a homogeneidade nesses países foi construída com rigor e brutalidade.

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elemento ativo. Nesta fase, o Brasil não só vai pensar em si próprio como

também vai tentar legitimar sua independência, seus elementos naturais. Ainda

que refute as influências européias, o próprio movimento romântico, em que

estão inseridos todos estes pensamentos, foi importado de lá. E este índio nada

mais é do que uma cópia de um cavaleiro medieval europeu.

Esta figura grande e heróica do índio ia ao encontro de toda a utopia que

se criara: a de uma Nação com um “passado próprio”. Éramos independentes,

mas a Europa, ainda que renegada, continuava sendo um modelo a se seguir.

Continuava representando os ideais de civilização, de progresso a que se queria

chegar. Negávamos as influências européias, mas a todo o tempo estávamos

também buscando o seu reconhecimento.

Era necessário mostrar à Europa que os nossos índios eram tão dignos de

referência quanto os seus elementos folclóricos.

Já o Modernismo, embora tenha sido um movimento importado da

Europa, procurava negá-la como modelo. Negar toda a lógica racionalista e

greco-romana a que a civilização ocidental sempre esteve tão apegada – por

isso, o “mau-selvagem” – e as idéias de “evolução” e “civilização” a que os

românticos estavam tão apegados. Os modernistas apresentavam um caráter

mais subversivo.

É interessante notar como tanto os propósitos do Romantismo como os

do Modernismo são parecidos. Afinal, ambos estavam tentando buscar uma

identidade na figura do índio. Claro, o que vai diferir é a maneira como farão

isso.

Podemos perceber que em três momentos distintos, uma mesma figura

teve inúmeras apropriações distintas, colaborando para um imaginário. Para o

imaginário de um país, acerca de uma figura: o índio.

E este tema permanece e torna-se complexo a partir do momento em que

os índios assumem a palavra e se colocam como sujeitos e não e não mais como

objetos. Ou seja, é importante que continue como uma preocupação “nossa”, de

alguém que é estranho, alheio, ou seja, que se saiba reconhecê-lo como sujeito

também.

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Porém, mais importante ainda, seria a participação do próprio índio

neste debate. Mais interessante seria ouvir a sua voz, escutar o que ele tem a

dizer e o que ele opina de tudo aqulio que foi pensado a respeito de sua pessoa.

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